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Liberdade e Dialética em SartreO Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Walter Matias
Walter_Matias@revistapraxis.cjb.net
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, professor da Universidade Federal de Alagoas, UFAl.
O presente artigo é um resumo do primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado cujo título é: O tema da liberdade na "Crítica da Razão Dialética" de Jean-Paul Sartre. No momento, temos a intenção de apresentar a temática da liberdade e da dialética em Sartre a partir da relação entre O Ser e o Nada e a Crítica ..., como introdução e discussão a algumas das questões prementes da obra desse eminente filósofo.
I - Passagem do Conceito de Liberdade em O Ser e o Nada para o da Crítica da Razão Dialética
"A nossa liberdade, hoje, reduz-se à livre escolha de lutar para nos tornarmos livres. E o aspecto paradoxal desta fórmula exprime apenas o paradoxo da nossa condição histórica. Não se trata de engaiolar os meus contemporâneos: eles já estão na gaiola; trata-se, ao contrário, de nos unirmos a eles para quebrarmos as grades."1
A efetivação da filosofia de uma época é a época apropriada por sua filosofia. Hoje, quando já se fala na crise da modernidade ou na sua superação, alguns temas exigem o rigor e a sistematização do filosofar. Essa é uma exigência que vem sendo praticada por toda a história do pensamento e prática filosóficos; porém, quando a atividade filosófica parece não encontrar ecos imediatos na apreensão da universalidade do conceito pelo particular ou singular, torna-se urgente radicalizar o trabalho do conceito, que caracteriza a atividade filosófica, para construir-se uma abordagem mais esclarecida do real.
O pensamento ocidental construiu uma história da liberdade que tem em Aristóteles sua primeira elaboração sistemática a partir da Ética a Nicômaco e, mesmo sofrendo modificações, essa elaboração perdurará até o século XX, onde a obra de Jean-Paul Sartre vai levar a tese aristotélica às últimas conseqüências. Seguindo o itinerário aberto por Aristóteles, a liberdade é concebida como o que se opõe ao que é condicionado externamente e ao que acontece sem deliberação.
Segundo o autor da Ética a Nicômaco, livre é aquele que possui em si mesmo o fundamento do seu agir ou não agir, sendo causa interna de sua decisão ou não decisão da ação. A vontade tem poder para determinar, isto é, para ser autodeterminada, e isso caracteriza o agir livre. Traduzindo-se como ato voluntário e decisão, a liberdade decide entre alternativas possíveis, lançando o agente numa dimensão de possibilidade onde a escolha, ou o poder de escolher sempre entre alternativas, fundamenta a realização do ser humano como tal.
Radicalizando essas concepções, Sartre fará da liberdade o poder que o homem tem de escolher, sem determinações, seu próprio ser e seu mundo. Porém, antes de analisar a postura de Sartre, principalmente em O Ser e o Nada, para chegar à Crítica da Razão Dialética, é necessário que se aponte os precedentes da filosofia sartreana na construção de sua concepção de liberdade.
A história da antropologia filosófica realizada na modernidade elegeu o conceito de autonomia do sujeito como pressuposto antropológico para a interpretação do homem. Autonomia do sujeito tornou-se paradigma da modernidade, encontrando na obra de Descartes sua primeira elaboração e defesa filosófica. A filosofia do sujeito encontra na obra cartesiana sua elaboração primeira, a partir do momento em que o cogito passa a ter estatuto ontológico e, conseqüentemente, fundamento da noção de autonomia do sujeito. É a obra de Descartes que proporciona o fundamento metafísico do conceito moderno de liberdade, dando-lhe conotação de liberdade compreendida como autodeterminação de si mesma, o que só foi possível com o deslocamento da fundamentação da metafísica operada pela filosofia cartesiana, quando elege o cogito como princípio de interpretação da realidade.
Filosofia revolucionária, a obra cartesiana vai proporcionar mudanças radicais na atitude metafísica, quando desloca a busca de fundamento ontológico e epistemológico em um ser absoluto para a subjetividade do sujeito, subjetividade essa que é uma experiência absoluta, não do absoluto; podendo ser traduzida pelo cogito ergo sum, o que dará à noção de autonomia do sujeito sua fundamentação ontológica, justificando uma das concepções mais fortes de liberdade construída na modernidade.
A liberdade passará a ser entendida não como uma característica do homem que tem sua fundamentação exclusiva num ser absoluto, ou numa explicação essencialista que transcenda necessariamente o sujeito, mas será entendida a partir do eu penso, o que tornará possível toda e qualquer interpretação da realidade, mesmo que para o autor de O Discurso do Método, essa dimensão humana, a res cogitans, mantenha-se numa perspectiva metafísica. A metafísica agora não parte de uma perspectiva em que a realidade é pensada tendo um único fundamento onde esse fundamento possa ser o Ser eterno, inamovível, absoluto, pura essência, essência pura , mas encontra sua fundamentação ontológica na subjetividade do sujeito que conhece e que constrói idéias distintas e claras.
Com Descartes, a modernidade encontra, no cogito, as primeiras caracterizações da antropologia moderna, isto é, o nascimento da autonomia do sujeito e de um conceito de liberdade que tem nessa autonomia sua fundamentação: a liberdade entendida como autodeterminação de si mesma, aproximando o conceito de liberdade da interpretação moderna de existência, sendo essa uma característica puramente humana, e encontrando nas filosofias do sujeito um correlato do conceito de liberdade.
Todo discurso filosófico da modernidade que se fundamenta na filosofia do sujeito iniciada pelo discurso cartesiano, mutatis mutandis, admitirá a noção da liberdade como autodeterminação de si mesma. A premência dessa interpretação estará presente na antropologia iluminista, principalmente nas obras de Kant e Hegel; no primeiro, a partir das atribuições do sujeito transcendental que atinge sua autonomia pela razão e pela vigilância dos imperativos categóricos, e no segundo, pela interpretação da passagem da consciência em si para a consciência de si, seguida da consciência para si, através da dialética do senhor e do escravo como abordagem da cultura, onde o homem cria seu itinerário ontológico, antropológico e ético.
Sendo o cogito entendido como fundamento da liberdade que se quer certeza de si mesma e, mesmo tendo o cogito primazia metafísica, a trajetória dessa abordagem da liberdade, que perpassa toda a modernidade, insere a historicidade como traço essencial do homem, pois a realização ôntico-ontológica do homem passa a ter dimensão histórica, o que não quer dizer que a compreensão da história como âmbito de realização humana seja uma concepção homogênea para toda a modernidade pois, já em Descartes, a realização da liberdade se dá numa perspectiva meta-histórica.
Dentro dessa perspectiva insere-se a obra de Jean-Paul Sartre, que pode ser caracterizada como uma busca da liberdade. Sartre leva às últimas conseqüências o cogito cartesiano, tomando como verdade incondicional, pelo menos na época de O Ser e o Nada, a subjetividade: "Não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão esta: penso, logo existo; é aí que se atinge a si própria a verdade absoluta da consciência. Toda teoria que considera o homem fora desse momento é antes uma teoria que suprime a verdade, porque, fora deste cogito cartesiano, todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina de possibilidades que não está ligada a uma verdade desfaz-se no nada; para definir o provável, temos de possuir o verdadeiro. Portanto, para que haja uma verdade qualquer, é necessário uma verdade absoluta; e esta é simples, fácil de atingir, está ao alcance de toda gente; consiste em nos apreendermos sem intermediário."2
O conceito de liberdade que está construído em O Ser e o Nada, tem todas as atribuições da citação acima. Pode-se dizer que os pressupostos históricos e metafísicos do pensamento de Sartre residem na dicotomia cartesiana de sujeito e objeto; onde a primazia é dada ao sujeito, ou, o que dá no mesmo, à subjetividade do sujeito que encontra no cogito seu fundamento, e, por conseguinte, à fundamentação do conceito de liberdade.
Mas se verá adiante que o conceito de liberdade, tanto em O Ser e o Nada quanto na Crítica da Razão Dialética, adquirirá, a partir da ontologia fenomenológica, uma caracterização que vai além da verdade do cogito formulado na passagem de Sartre citada. Sua compreensão da subjetividade está permeada pela leitura da consciência como intencionalidade que lança o sujeito ao futuro.
A intencionalidade da consciência adquire caracterização ontológica, uma vez que o interior da consciência apresenta uma dimensão paradoxal, isto é, é de natureza do cogito sair de si mesmo, pois "o ser da consciência não coincide consigo mesmo em uma adequação plena"3. O para-si, a consciência, o homem, o oposto do em-si, não surge como algo determinado em si mesmo. A consciência é consciência de alguma coisa, ou seja, intencionalidade que se preenche, que se lança ao futuro, ao devir; e a partir desse lançar-se, a consciência adquire alimento, torna-se o que não é, não um em-si (que é plenitude total, pura identidade), mas um para-si, "o nada pelo qual o ser vem ao mundo". A consciência lança-se para algo que não é ela sem, contudo, transformar-se nesse outro. Lança-se como existência que adquire essência, isto é, constrói liberdade. Nesse caso, "o homem é liberdade em seu próprio ser". Liberdade e consciência formam uma mesma esfera constituída pela intencionalidade, intencionalidade essa que focaliza o em-si preenchendo o nada que é a consciência, o que, para Sartre, é pressuposto para não haver qualquer possibilidade de determinação nas ações humanas e a liberdade torna-se o princípio de todas as essências vivenciadas pelo para-si. A liberdade é a revelação do homem (para-si) como contingente que se realiza pela ação.
A concepção de liberdade teorizada por Sartre em O Ser e o Nada, está adstrita à indeterminação total, o que coloca essa teorização numa perspectiva meta-histórica, e aqui se encontram algumas antinomias dessa teoria que precisam ser delimitadas: "Sou necessariamente consciência (de) liberdade, posto que nada existe na consciência senão enquanto consciência não tética de existir. Assim, minha liberdade está perpetuamente em questão no meu ser; ela não é uma qualidade justaposta ou um propriedade de minha natureza; ela é exatamente a textura de meu ser; e, visto que o meu ser está em questão no meu ser, devo necessariamente possuir uma certa compreensão da liberdade."4
O para-si é livre e contingente. Como conciliar essa afirmação antinômica, já que Sartre quer livrar a liberdade de todo determinismo? Sou "necessariamente consciência (de) liberdade", e essa liberdade realiza-se pela escolha de um "projeto original". Temos projetos particulares que visam à realização do mundo e que estão inseridos no projeto global que somos. O conceito de projeto está fundamentado, em O Ser e o Nada, a partir de uma das caracterizações da liberdade por Sartre: liberdade é fundamento da existência e esta se traduz pela necessidade do para si ser constantemente escolha, onde não há uma distância abissal entre liberdade e escolha. O conceito de escolha aparece como a tessitura da subjetividade, pois o sujeito escolhe a si mesmo, escolhendo-se como subjetividade que se quer livre, colocando, assim, a liberdade como que circunscrita à esfera da escolha de ser, mas no caso do para-si, ser por aquilo que não se é, ou seja, "ser para o para si é niilizar o em-si que ele é". E as escolhas estão como que isentas de determinação.
Mas, como levar para o âmbito da liberdade situada historicamente essa concepção de liberdade que se perde na indeterminação? Como conciliar liberdade e facticidade? Sendo inteiramente liberdade, então os elementos singulares de uma situação não podem levar a uma determinação, a qual iria contradizer diretamente a "liberdade absoluta", mas somente em uma circunstância em que a liberdade deve determinar-se livremente. Sartre quis manter a relação híbrida entre liberdade e facticidade (relação antinômica), sem eliminar qualquer lado em benefício do outro, para que houvesse uma relação entre liberdade e projeto que não fosse solapada por qualquer perspectiva de determinação, uma vez que escolher é projetar-se, e o projeto é fundamentalmente livre, o que caracteriza o ser do para-si, sem desembocar num caráter, numa natureza ou numa determinação determinante. Cada uma das escolhas se insere livremente num leque cada vez maior de escolhas possíveis e, conseqüentemente, deve adquirir dimensão injustificável, pois justificá-la a lançará no âmbito das determinações, o que para Sartre seria lançar o sujeito numa dimensão da moral que não encontra fundamentação. Portanto, o pré-requisito para que o projeto inicial, fundamental, seja significativo, é que esse projeto deve ter efeito significativo sobre as escolhas específicas sem, entretanto, determiná-las.
Assim sendo, a situação não deve ser interpretada como um amálgama de condições objetivas que especifiquem o projeto, mas como a concretização do projeto (realização da escolha e efetivação da liberdade), como algo elaborado pelo sujeito em circunstâncias e perante a relação com determinados elementos surgidos da contingência do sujeito.
Para Sartre, a liberdade tem validade absoluta, assim sendo, não pode ser limitada por algo externo a ela. Porém, a liberdade concretiza-se mediante condições que entram em confluência com a contingência. O homem em situação, homem em liberdade, é o que Sartre vai traduzir por engajamento, o que não é algo arbitrário ou voluntarista, mas componente da estrutura ontológica do ser, o que justifica que Sartre parta das determinações existenciais individuais, das situações de vida concretas e seus projetos conseqüentes, em busca de uma síntese global; tendo como pano de fundo as implicações ontológicas dos existentes quanto à efetivação da liberdade.
A obra de Sartre pretende descrever a experiência da inter-subjetividade e o projeto fundamental que a define, a liberdade como autodeterminação diante do ser acabado (ser-em-si); a vontade de chegar a ser e o compromisso com as ações concretas em nome de um absoluto (liberdade) como característica do projeto fundamental de determinar a existência a partir do devir. Porém, e a partir da dicotomia colocada acima, a conciliação entre liberdade e situação não é resolvida em O Ser e o Nada, pois esse texto dá premência ao homem como liberdade onde a dimensão psicológica é realçada transformando a ontologia fenomenológica numa psicologia fenomenológica que busca libertar o homem de todo Eu e de toda subjetividade de caráter substancialista, isso a partir da abordagem da consciência, o que fez com que Sartre deslocasse sua análise de uma perspectiva ontológica para perquirições de ordem psicológica.
A situação que pode ser interpretada na dimensão da facticidade é apresentada em termos abstratos, isto é, enquanto estrutura de todo homem enquanto homem, o que cria uma contradição, uma vez que uma das questões principais de O Ser e o Nada é a liberdade como essência do homem. O para-si é o lugar de toda teoria da liberdade. Desembocando na psicologia fenomenológica e fazendo uso da redução fenomenológica, o para-si (que aparece como consciência) torna-se o ponto nodal da análise da liberdade.
Na consciência não se encontra nenhum sujeito, nem o psicológico, que é um transcendente para a consciência; nem o sujeito transcendental, que é uma construção elaborada pelo sujeito psíquico. É a partir de si mesma que a consciência se determina, recusando, desta forma, toda perspectiva de definição a partir de uma realidade ou de uma substância. Ela é um nada, pura existência. Não é o mundo que entra na consciência, não é um processo de assimilação da exterioridade pela interioridade, mas, no processo de conhecimento, a consciência é presença no mundo e se define por negar-se a ser substância.
Como intenção até o mundo, a consciência é existência, e existir, para Sartre, é projetar-se na possibilidade de adquirir ser, na realização de um projeto a partir do qual se construa o mundo como objeto de todas as intenções e significações. Essa existência eqüivale à liberdade pura, ou seja, ao poder de autodeterminação. A liberdade não é qualidade da consciência, mas é a existência anterior a toda determinação. Contudo, a liberdade só se exerce no mundo e, por conseguinte, é liberdade situada e só assim a consciência abre ao mundo possibilidades e significados que este não possuiria por si mesmo: a ação livre é ação sobre o mundo, dando-lhe sentido.
A consciência é consciência de alguma coisa "isto significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência"5 , e essa estrutura faz referência às ações fundamentais do sujeito no mundo. É nesse momento que Sartre, para uma análise da consciência, da liberdade, permanece na perspectiva tanto da psicologia fenomenológica quanto da ontologia fenomenológica: a dualidade do ser apresentada em O Ser e o Nada, ser-em-si e ser-para-si, é a caracterização do ser de uma presença (consciência, para-si) que não pode ser o em-si e do ser do em-si (mundo) que apenas aparece para a consciência.
Essa ontologia procura dar esclarecimento à ambigüidade da consciência que se descobre oposta ao mundo e que ao apreendê-lo se faz o que não é e, des-velando o mundo como correlato dela mesma, descobre a impossibilidade de ser o que ele é: "Ser consciência de alguma coisa é estar diante de uma presença concreta e plena que não é a consciência."6
Se existir é estar aí simplesmente, é a presença de algo absoluto, a liberdade, como diz o personagem Roquentin em A Náusea: é a exigência da consciência de enfrentar a facticidade, e essa pode ser vivida como a instância da "présence concrète et pleine" de que fala Sartre. A instância do mundo que é correlação com a consciência e a liberdade surge como realidade da consciência que se realiza num leque de possibilidades, realização que é autodeterminação da própria consciência no lançar-se ao mundo, tornando-se consciência do mundo.
Em O Ser e o Nada a situação não é causa do ato, nem o influencia à maneira de determiná-lo. O homem está condenado a ser livre, tem que atuar e atuar é modificar a situação a partir do projeto de ser e isto é o que é grandioso na obra de Sartre: a exigência de que uma liberdade autêntica só se manifeste quando se sabe comprometida com a situação que quer transformar, isto para fazer-se realmente liberdade. Porém, a concepção de liberdade situada elaborada em O Ser e o Nada está adstrita a uma abstração do sujeito e da situação, pode-se falar até de uma hipóstase desses conceitos (liberdade, sujeito, situação), pois há a intenção da construção de uma ontologia concreta o que não acontece, por exemplo, com o "ser-aí" em Heidegger, que é neutro, abstrato, enquanto Sartre busca tirar as conseqüências ontológicas para a vivência existencial do sujeito a partir da compreensão ontológica do "ser-aí". Portanto e, apesar disso, há a elevação da liberdade e da situação ao nível de descrições abstratas que não procuram retirar ou abarcar as manifestações históricas das ações do para-si. A liberdade aparece como o poder da consciência de negar o ser e negar-se a si mesma, o que significa o poder de determinar-se e de criar-se indefinidamente. Mas, se "estou condenado a ser livre isto significa que não se pode encontrar limites para minha liberdade que esta mesma, ou, se se prefere, que não estamos em liberdade de deixarmos de ser livres"7, isto significa também que o homem que atua em situação está elegendo-se livremente num mundo sem leis nem critérios absolutos que possam constrangê-lo em um sentido ou outro e que, ao mesmo tempo, esse atuar assegura o êxito do projeto. A única lei que rege o homem é a liberdade, sua liberdade, o que o mergulha no âmbito de suas próprias criações, onde ele cria, mergulhado na facticidade, sua própria moral, seu próprio destino, e, aqui, Sartre não radicaliza a postura dicotômica elaborada em O Ser e o Nada, no momento em que absolutiza a liberdade.
Se o homem em liberdade deve inventar sua própria essência, seu próprio ser, a análise da liberdade em situação descrita em nenhum momento coloca a questão da liberdade em situação que se realiza historicamente, o que apresenta, em O Ser e o Nada, um elemento que será exigido no desenvolvimento histórico da própria obra de Sartre, pois a partir de textos como: Marxismo e Existencialismo e em Crítica da Razão Dialética nas abordagens sobre os grupos em fusão a história aparecerá como palco fundamental do homem em liberdade e que a exerce de forma inteligível.
Quando se lê certas passagens de O Ser e o Nada, como a que segue abaixo, pode parecer paradoxal afirmar que a história não está presente nessa obra; contudo, o paradoxo não existe se a questão for vista tomando-se as duas obras aqui estudadas8. "O Para-si não poderia ser uma pessoa, isto é, escolher os fins que ele é, sem ser homem, membro de uma coletividade nacional, de uma classe, de uma família, etc. Mas estas são as estruturas abstratas que ele sustenta e transcende por meio de seu projeto. (...) Contudo, a existência do Outro coloca um limite de fato à minha liberdade. Isto porque, pelo surgimento do Outro aparecem certas determinações que eu sou sem havê-las escolhido."9
A eleição da característica do mundo da vida como structures abstraites é o que dá à análise da liberdade seu caráter abstrato e o que é interessante é o fato de que, nas obras posteriores ao O Ser ..., o Outro passa a ter uma contribuição maior na construção da liberdade, como é o caso da discussão da liberdade na Crítica ... Na Crítica ..., a situação é entendida como situação que se constrói a partir de uma rede de fenômenos sociais, onde a liberdade é um projeto inserido numa determinada situação, o que levou Sartre a reinterpretar o Outro e inseri-lo no âmbito do projeto individual que se quer livre.
Isto já aparece no texto Existencialismo é um Humanismo: "Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros; só posso tomar a minha liberdade como um fim se tomo igualmente a dos outros como um fim."10
Esse texto lembra as análises do imperativo categórico de Kant, mas pretende tirar conseqüências otimistas da dialética do senhor e do escravo de Hegel, isto porque em O Ser ..., o Outro adquire uma conotação pessimista, uma vez que o Outro põe limites à liberdade; criando, assim, um conflito sem solução. Agora Sartre quer apontar para uma solução no momento em que, a partir do engajamento, o para-si encontra o outro para-si; acontecendo a possibilidade de se construir uma relação de liberdade. Assim, Sartre sai de uma análise meta-histórica para as significações que o contexto social e histórico proporciona para a efetivação dos projetos dos sujeitos singulares, desembocando numa dimensão mais significativa da vida social que é a realização do sujeito singular nas práticas historicamente situadas da coletividade; e será pela ação que a consciência, definida como liberdade, encontrará o espaço e o tempo necessários à sua realização.
Fazendo uso do pensamento de Marx, Sartre encontrará os princípios epistemológicos, antropológicos e metodológicos para tentar fazer a confluência de sua ontologia fenomenológica com o marxismo, buscando fundamentação para tirar as conseqüências possíveis da efetivação da liberdade historicamente situada.
A partir da Crítica ..., a liberdade vai ser entendida como a ação pela práxis individual e coletiva que leva a uma compreensão dinâmica da vida. A verdade da liberdade é a realização histórica do sujeito, onde a história é o devir concreto do sujeito situado no seio da totalidade da própria história, essa é uma totalidade em curso, nunca totalizada. A liberdade assimila-se à ação do sujeito que age numa situação historicamente dada e que remete à totalidade da humanidade, isto é, toda ação singular transcende o sujeito singular até os sujeitos coletivos. A consciência é consciência livre, as transformações históricas são provenientes dessa consciência e o que torna essas transformações inteligíveis é o caráter de interligação que elas mantêm com a práxis humana.
Falar da passagem do conceito de liberdade em O Ser e o Nada para o da Crítica... significa apontar para o itinerário que esse conceito vai percorrer entre as duas obras em questão, pois o que vai acontecer é a transposição de termos que possam conotar ao mesmo tempo as teses do existencialismo de Sartre e as exigências de uma abordagem a partir do materialismo histórico.
Portanto, Sartre vai construir uma terminologia que, ao seu ver, complementará no sentido de atribuir aos termos uma dinâmica mais dialética e menos idealista os conceitos usados anteriormente na ontologia fenomenológica das obras anteriores. Daí a necessidade de abordar quais as inovações temáticas levantadas por Sartre para poder delimitar melhor a passagem do conceito entre as duas obras supra citadas.
II - Inovações no Tema da Liberdade
Em um livro publicado em 1936, La Transcendence de L'Ego, Sartre diz: "sempre me pareceu que uma hipótese de trabalho tão produtiva como o materialismo histórico nunca precisou, como alicerce, do absurdo que é o materialismo metafísico"11. Essa afirmação feita sete anos antes da publicação de O Ser ..., já sugere a aproximação, pelo menos em forma de leitura, de Sartre do materialismo histórico, o que certifica a presença de um diálogo que será travado até a elaboração da Crítica ....
A honestidade intelectual de Sartre é tão presente em sua obra que ele jamais fará uma simples transposição de conceitos para atender determinadas situações. No curso de sua obra há um desenvolvimento de conceitos12 e, a partir desse desenvolvimento processual, os conceitos vão adquirindo a força necessária para a formação do corpo teórico que guiará a prática e por esta será preenchido das atividades político-filosóficas e literárias do autor de A Náusea. Sendo assim, Sartre, no momento em que publica O Que é Literatura? seu primeiro texto explicitamente marxista , traz para sua terminologia os conceitos que julga necessários para uma discussão crítica e transformadora da realidade que quer analisar.
A partir do texto anteriormente citado e de toda a obra posterior, nota-se que o que Sartre quer é superar as insuficiências epistemológicas e antropológicas das obras anteriores no que diz respeito às exigências que as condições históricas colocaram para ele após o final da Segunda Guerra. Isso significa que a experiência pessoal de Sartre durante a Guerra foi decisivo para o que se pode chamar de sua descoberta da história, o que o levou a não permanecer unicamente na esfera da experiência subjetiva, isto no âmbito da reflexão filosófica e de sua ação política direta nos problemas sociais nos quais ele sempre procurou intervir. Daí a presença da filosofia da existência permeada pela fenomenologia que estará presente em toda obra, mas que, agora, precisa ser complementada, no dizer de Sartre, pela abordagem dialética.
A fenomenologia será sempre o método que garante a abordagem existencial-ontológica que capta os existentes em sua facticidade, em oposição à apriorística dos pressupostos metafísicos que, segundo Sartre, dominam as filosofias que vão de Platão a Hegel, tanto quanto a utilização dessas filosofias pela Psicologia. A eidética fenomenológica quer enfrentar o mundo como ele é em sua contingência e revelar por inteiro esse contingente, o mundo das coisas e dos homens que se pode desvelar em sua complexa totalidade.
Da fenomenologia como método que busca descobrir a estrutura ontológica do ser, agora surge também a exigência de mostrar o processo de inteligibilidade das situações historicamente dadas, e é nesse instante que o materialismo histórico surge como a abordagem que trará os pressupostos de discussão da dialética como lógica da ação. Para Sartre, a dialética é o único modo de proceder estritamente histórico e a razão dialética deve apreender o projeto original como "totalização perpetuamente em curso como História e como Verdade histórica"13, buscando, dessa forma, a inteligibilidade da história e sua verdade a partir das ações dos homens como liberdades historicamente situadas.
Sartre procura conciliar as características antidialéticas do seu existencialismo, presentes em O Ser e o Nada, com a abordagem dialética presente em Crítica da Razão Dialética. O existencialismo, acrescido da fenomenologia, é uma forma de compreender a experiência individual subjetiva; e o marxismo é uma forma de compreender de fora (da perspectiva do sujeito singular ou do sujeito coletivo) a dimensão objetiva da história.
Em O Ser e o Nada, a liberdade do homem é a tessitura de seu ser (liberdade, consciência e para-si formam uma mesma esfera) e a consciência, que é intencionalidade, adquire essência por aquilo que não é: "A consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, surge a questão de seu ser enquanto este ser implica um ser outro que ele"14 e, uma vez que esta concepção de liberdade coloca a noção de escolha (choisir): o para-si é inteiramente escolha e esta como elemento constitutivo da liberdade. A liberdade passa a adquirir caráter absoluto pois, para Sartre, a escolha desemboca no projeto e o projeto deve ser fundamentalmente livre, o que caracteriza o ser para-si; este projeto livre (a liberdade) não pode importar numa natureza, num caráter ou em qualquer outra determinação. A liberdade torna-se um exercício paradoxal, pois é a realização do sujeito em determinada situação que não pode determinar a escolha do próprio sujeito e onde a situação não é um conjunto de condições objetivas que determinem o projeto, mas a materialização do projeto criado pelo sujeito mediante elementos encontrados na própria contingência do sujeito.
Esta abordagem paradoxal e dicotômica que aparece em O Ser e o Nada só terá uma leitura menos apriorística na Crítica ..., quando a noção de projeto, que engloba o conceito de liberdade, vai ser metamorfoseada pela noção de totalização, uma das mais importantes inovações temáticas feita por Sartre. Antes da Crítica ..., a noção de projeto é associada à noção de engajamento (engagement), termo que tornou-se famoso nas décadas de cinqüenta e sessenta, principalmente pelo papel que Sartre exerceu quando criticou os intelectuais a partir da situação da França diante da guerra do Vietnã e do próprio destino político da Europa.
Pode-se dizer que a base existencialista na noção de engajamento é a teoria da situação esboçada em O Ser e o Nada. O engajamento é inerente à estrutura ontológica do para-si. Não é uma atitude meramente subjetiva, fruto exclusivo da vontade no sentido de um voluntarismo, mas está ligado ao projeto original de cada ser humano na realização de sua autenticidade. Portanto, engajar-se é lançar-se na aventura de Ser. E Sartre vai procurar retirar todas as conseqüências dessa aventura mostrando que o engajamento busca apreender o sujeito na totalização em curso que ele chama de História.
O projeto totaliza o contexto do sujeito na medida em que o organiza. Melhor dizer, a situação em torno do próprio sujeito. A noção de projeto insere-se agora como totalização, no âmbito do fazer cultura pelos homens, o que lembra ou sugere a presença, na Crítica ..., da filosofia de Hegel, notadamente as figuras da consciência de si, isto é, no momento em que o aparecer da consciência de si conota um estágio de desenvolvimento do conhecimento de si e das objetivações do espírito pelo sujeito que faz cultura. O desejo, que é um conceito fundamental na aquisição da consciência de si, pode ser lido como o projeto sartreano e, assim como o desejo não se realiza plenamente no transcorrer da vida do sujeito, também o projeto, que é agora totalização em curso uma vez que se insere na dimensão da própria história , não chega jamais a uma totalidade totalizada.
A ação humana realiza-se na dinâmica dialética, a partir da negação do dado. Negando o dado, o projeto lança o sujeito na dimensão do futuro, produzindo uma nova ordem de ação, que resulta da superação de projetos anteriores. Sendo assim, a história surge da experiência da ação: é a confluência dos atos humanos. Essa noção de liberdade projeto que se traduz por totalização em curso: história será elaborada para fundir-se com os conceitos de escassez, prático-inerte, serialidade e grupo em fusão; conceitos esses que completam as inovações temáticas e a construção da tematização da liberdade. Para Sartre, a escassez (rareté) é a relação fundamental e o princípio de possibilidade da história humana: "esta relação unívoca da materialidade circundante aos indivíduos se manifesta em nossa História sob forma particular e contingente, já que toda aventura humana pelo menos até agora é uma luta encarniçada contra a escassez".15
Todo projeto funda-se na necessidade de negar o dado a partir da constatação de que o homem tem uma insatisfação ontológica fundamental diante da natureza e de que a história é a luta contra a escassez advinda dessa insatisfação: "a escassez é uma relação fundamental (com a natureza e com os homens). Há que se dizer neste sentido que é ela que faz de nós esses indivíduos que produzem esta História e que se definem como homens."16
Superar a escassez, ir além do dado imediato (pode-se dizer superar o em-si) é, para Sartre, construir a história, pois a totalização opõe-se à escassez; porém, a Crítica ... constata que a luta contra a escassez foi o que gerou a opressão, a exploração e a negação do homem pelo homem. É a partir dessa construção temática que Sartre vai continuar sua busca de liberdade, construindo uma antropologia filosófica com fundamentação dialética. É justamente a concepção de dialética elaborada pelo autor da Crítica ... que permeará toda a abordagem temática e toda crítica à filosofia que culminará na própria abordagem dialética da liberdade.
III - A Dialética Crítica 17
O ser humano pode ser conhecido, mas não pode ser conhecido com satisfação a partir de sua realidade imediata. Querer entender e interpretar, esgotar numa abordagem teórica o conhecimento sobre o ser humano, é tarefa fadada ao malogro, pois o homem sempre inventa o novo e suas atividades lhes escapam formando uma relação de elementos que fluem para a construção desse novo, de algo novo que será, por isso mesmo, elemento de novo processo de explicação e interpretação da realidade humana. Isto ocorre porque, como diz Sartre: "A realidade humana, na medida em que se faz, escapa ao saber direto. As determinações da pessoa só aparecem numa sociedade que se constrói sem cessar atribuindo aos seus membros um trabalho, uma relação ao produto do trabalho e relações de produção com outros membros, tudo isso num incessante movimento de totalização."18
Conhecer o ser humano e conhecer a si mesmo exige que se entre na fluidificação dos conceitos, ou seja, no âmbito das mediações, do conhecimento mediato. Esta é uma das exigências feitas por Sartre quando elabora sua concepção de dialética.
Na modernidade, a problemática da dialética é colocada por Kant. Para esse, na Crítica da Razão Pura, a dialética aparece como a contraposição necessária aos limites da metafísica. Em sua crítica ao pensamento metafísico, transformando-o em uma epistemologia, Kant elabora uma explicação da dialética em que essa torna-se a revelação da exigência de apreensão do incondicionado, daquilo que não era passível de entendimento através da metafísica e, ao mesmo tempo, a dialética é a constatação de que o pensamento se desenvolve efetivamente por contradição, possuindo dinamismo interno que visa à totalidade. A dialética torna-se uma exigência do pensamento, mas no caso de Kant, esse pensamento é uma razão transcendente que não se identifica com seu objeto mas, mesmo assim, não é uma razão analítica que coloca o entendimento em submissão ao objeto e sim uma razão que nega seus objetos superando-os na busca de uma unidade formadora de um sentido. Kant vai estabelecer os termos que irão compor a terminologia dialética: movimento transcendente, totalidade, contradição e mediação. Sua abordagem vai mostrar que o movimento de superação do dado pela razão dialética constata que a apreensão desse mesmo dado se dá através da apreensão de objetos de pensamento e esses como as mediações necessárias ao movimento de construção de conhecimento, onde a razão, voltando-se à exterioridade e negando-se, indo além dela, está lançada a uma totalidade nunca totalizada, abrindo o dinamismo próprio do conhecer.
Hegel vai dar ênfase à noção de contradição essa possui caráter ontológico valorizando o poder da consciência racional; e a dialética passa a ser a apreensão do conceito em sua universalidade pelo movimento fenomenológico da consciência, movimento esse que se dá no âmbito do Espírito. A dialética adquire uma conotação realista; uma vez que visa captar o real sem a determinação de categorias a priori, é um processo objetivo que se realiza no âmbito da consciência individual, onde a dialética se caracteriza pelo movimento da coisa representado conceptualmente.
No itinerário moderno do conceito de dialética, Marx dá uma contribuição capital para a fundamentação e utilização do conceito na filosofia contemporânea. Marx não fará grandes modificações nas principais concepções elaboradas por Hegel sobre a dialética, mas vai fazer um enxerto dando-lhe uma dinâmica maior, quando atribui à dialética uma característica de maior historicidade o desenvolvimento da realidade é intrinsecamente dialético e retira da abordagem hegeliana toda perspectiva de idealismo objetivo, deslocando o foco da fenomenologia da consciência a dialética não é apenas o movimento das coisas representado conceptualmente (como queria Hegel) para a expressão, mesmo que por categorias da lógica, das ações relações que ensejam a práxis dos homens historicamente determinados.
Quando Sartre discute a dialética, está construindo uma concepção própria do marxismo. Dito de outra maneira, ele elabora uma interpretação, uma hermenêutica marxista, com base existencialista e fenomenológica. Para chegar ao que chama de dialética crítica, faz várias explanações sobre o marxismo, procurando integrá-lo com o existencialismo. Para Sartre, há uma recusa em abarcar o sujeito singular, em sua vivência, pelo marxismo que, ao seu ver, preocupa-se apenas com o homem em sua generalidade: "existencialismo e marxismo visam o mesmo objeto, mas o segundo reabsorveu o homem na idéia e o primeiro procura-o por toda parte onde ele está, no seu trabalho, em sua casa, na rua."19 Isto é esboçado em Questão de Método onde as críticas ao marxismo são dirigidas a Engels ; Sartre não faz alusões críticas-depreciativas a Marx. Depois, as críticas se voltam contra o "marxismo mecânico" ou "marxismo metafísico" e, ainda, procuram determinar os limites do materialismo dialético, ou seja, buscam legitimar a dialética histórica rejeitando a dialética da natureza.
Na verdade, toda crítica ao marxismo feita no texto supra citado visa a delimitar as análises de Engels a partir dos livros Dialética da Natureza e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, uma vez que esse no olhar de Sartre e de outros, como Adorno e Habermas elabora uma leitura da dialética que prende o homem e seu agir exclusivamente no âmbito das transformações que o homem constrói a partir da natureza, ou seja, às determinações da própria natureza; dando desta forma uma excessiva importância à categoria do trabalho em detrimento da interação e da linguagem, o que valeu a Engels a acusação de determinismo e mecanicismo na abordagem da dialética e, ao mesmo tempo, este texto de Sartre tece uma acirrada crítica ao marxismo ortodoxo, principalmente ao "socialismo real" e ao sectarismo partidário do PCF, tanto quanto ao stalinismo. Essa crítica atinge toda a tradição advinda do monismo metodológico da Segunda Internacional que, através das leituras de Engels, institucionalizou a dialética como "ciência".
O materialismo dialético, do ponto de vista da ortodoxia reinante naquela época (1940-1950), foi instituído para dar ao marxismo o estatuto de ciência, sendo a verdade de toda elaboração científica naquela época, o que serviu para justificar o socialismo ortodoxo soviético. Com esse mecanicismo e determinismo da realidade, atribuindo à natureza e ao homem o mesmo estatuto ontológico e epistemológico, o materialismo dialético apresenta leis científicas que têm a pretensão de validade igual , tanto para a natureza quanto para a sociedade e o pensamento. Será justamente esta a abordagem que o marxismo ocidental vai rechaçar procurando mostrar tanto a pobreza filosófica dessa abordagem quanto suas conseqüências políticas.
A crítica de Sartre visa resgatar o poder teórico e filosófico do marxismo, a partir da obra marxiana, mostrando até que ponto a obra de Marx continua relevante e influenciando na vida política do mundo ocidental, pois "é verdade também que a prática marxista nas massas reflete ou reflete pouco a esclerose da teoria: mas justamente o conflito entre ação revolucionária e a escolástica da justificação impede o homem comunista, nos países socialistas como nos países burgueses, de tomar uma clara consciência de si: um dos caracteres de nossa época é que a história se faz sem ser conhecida (...) Mas, o que faz a força e a riqueza do marxismo é que ele foi a tentativa mais radical de esclarecer o processo histórico na sua totalidade. Há vinte anos, ao contrário, sua sombra obscurece a história: é que ele cessou de viver com ela e tenta, por conservantismo burocrático, reduzir a mudança à identidade."20
Sem dúvida, é contra qualquer forma de determinação determinada que Sartre luta desde suas primeiras obras e, já que um dos objetivos da Crítica ... é fundar a inteligibilidade da história, o lugar ontológico, ético e antropológico fundamentais do homem, era de esperar-se que essa rejeição fosse direcionada ao marxismo ortodoxo.
Para Sartre, a dialética é uma teoria do conhecimento, uma lógica para explicar os momentos da totalização. A razão dialética tem a importância de apontar os limites da razão analítica, mostrando que a razão está em curso e que é a práxis do indivíduo que lhe dá a possibilidade de apreender o conhecimento da história que ele faz e que o faz. Sendo assim, a dialética aparece como integrada na própria ação: "A dialética como lógica viva da ação não pode aparecer a uma razão contemplativa. (...) No curso desta ação, o indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem."21
A práxis não afirma a racionalidade absoluta do real como se a realidade obedecesse a um sistema definido de princípios, o que atribuiria à razão um caráter de constituída, mas o que se quer mostrar é que a partir de um ponto de vista da razão dialética, a razão não é nem constituinte nem constituída aprioristicamente isto seria permanecer numa abordagem idealista mas razão que se constitui no mundo e pelo mundo, integrando-se no devir do fazer histórico.
Nesse ponto, mutatis mutandis, há uma aproximação entre Lukács e Sartre. Na história do marxismo ocidental, Lukács foi o primeiro a dirigir-se contra a abordagem determinista, mecanicista, e o empobrecimento da dialética. Quando publica História e Consciência de Classe, em 1923, abriu a discussão para uma abordagem da dialética como uma atividade humana e histórica. O sujeito social, a partir de qualquer que seja sua atividade, constrói a realidade histórico-social, onde esta atividade é ontológica por si mesma, trazendo, dessa forma, para o cenário intelectual europeu, uma dimensão antes menosprezada pelo marxismo soviético, a da subjetividade.
Na atividade do ser social não existe mais o dualismo natureza e sociedade; há uma relação de interação entre sujeito e objeto no fazer histórico, onde a subjetividade se transforma numa atividade objetiva. Não há uma dialética da natureza que determine a dialética da história, mas uma dialética que se constrói historicamente a partir das apreensões do sujeito junto à objetividade, transformando-as em totalidades concretas que são o próprio curso da história, para Sartre uma totalidade em curso.
Mas, no caso de Lukács, a subjetividade é coletiva e traduz-se pela noção de classe social (o proletariado como classe-sujeito que vai mudar o curso da história), sendo esta o locus onde o indivíduo encontra os instrumentos da libertação ou de reificação. É aqui que se encontra a principal diferença entre Sartre e Lukács.22 Enquanto esse encontra na classe proletária o lugar de realização da libertação histórica por excelência, aquele quer partir das atividades dos sujeitos singulares e suas experiências até os sujeitos coletivos socialmente organizados na construção de conquistas historicamente situadas:
"A dialética é, pois, atividade totalizadora, não tem outras leis além das regras produzidas pela totalização em curso e estas evidentemente dizem respeito às relações de unificação com o unificado, isto é, os modos de presença eficaz do devir totalizante às partes totalizadas. (...) Estas indicações nos permitem definir um primeiro caráter da experiência crítica: ela se faz no interior da totalização e não pode ser uma apreensão contemplativa do movimento totalizador; ela também não pode ser uma totalização singular e autônoma da totalização conhecida, mas ela é um momento real da totalização em curso, enquanto que esta se encarna em todas as suas partes e se realiza como conhecimento sintético de si mesmo pela mediação de algumas dentre elas. Praticamente, isto significa que a experiência crítica pode ser e deve ser a experiência reflexiva de qualquer um."23
Para Sartre, a dialética é o movimento próprio da vivência histórica. O processo de totalização ou, o que dá no mesmo, a atividade totalizadora, assemelha-se às atividades do para-si, em O Ser e o Nada, quando tem que negar o dado (em-si) para construir sua autenticidade. A experiência crítica é reflexiva porque está encarnada na práxis humana, mas a experiência crítica é apenas um momento da totalização em curso e o papel da razão dialética é o de apreender a universalidade dos conceitos nas singularidades dessa experiência, o que caracteriza o próprio processo da dialética.
Dessa forma, Sartre quer ir além do conceito de consciência de classe, uma vez que esse foi hipostasiado pelo marxismo soviético e pelo próprio Lukács, na concepção de Sartre. Esta hipóstase levou à reificação da dialética, negando que essa possui dupla caracterização: a relação ontológica entre sujeito e objeto; a relação intrínseca entre sujeito e história o sujeito faz a história assim como a história faz o sujeito.
Os erros que Sartre aponta no marxismo são: primeiro, ter transformado a dialética numa ciência, o materialismo dialético, onde esse aparece como o método por excelência e a verdade da revolução (confundindo história com natureza); segundo, o de ter eleito a classe operária como a única capaz de fazer a transformação radical da história no sentido de uma libertação do homem da exploração econômica e social, transformando a consciência de classe numa abstração da própria transformação social. De um lado, o real tem como fundamento a objetividade, do outro é a subjetividade o único fundamento do real: o que levou ao "idealismo", uma vez que este separa sujeito e objeto.
É importante mostrar que as transformações do capitalismo, após os anos cinqüenta, trouxeram novas exigências para as lutas sociais, e que a práxis deve partir da relação do sujeito singular, fundindo-se inter-subjetivamente com os sujeitos políticos coletivos. Esse é um dos objetivos capitais da Crítica ... e dos escritos de Sartre após os anos sessenta.
1 - SARTRE, Jean-Paul. Situações IV: Resposta a Albert Camus. Lisboa, Ed. Europa-América, 1972, p. 96-97.
2 - Idem. O Existencialismo é um Humanismo. SP, Abril Cultural, 78, p. 15.
3 - Idem. L'être et le néant. Essai d'ontologie phénoménologique. Paris, Ed. Gallimard, 1949, p. 116.
4 - Idem. Ibidem, p. 514.
5 - Idem. Ibidem, p. 28.
6 - Idem. Ibidem, p. 32.
7 - Idem. Ibidem, p. 515.
8 - Não se pretende, neste artigo, afirmar ou demonstrar a ausência da história em O Ser e o Nada. Sartre escreveu esse ensaio sobre as condições de sua época e em confluência com seus contemporâneos, o que já pode ser uma característica da historicidade. Contudo, o que se pretende é uma analogia, mesmo que perigosa, entre as duas obras de Sartre em questão.
9 - Idem. Ibidem, p. 606.
10 - Idem. O Existencialismo ... Cit., p. 19.
11 - Apud, JAMESON, F.. Marxismo e Forma. SP, Ed. HUCITEC, 1985, p. 161.
12 - Desenvolvimento no sentido de aufheben e das conseqüências que esse termo trouxe da filosofia de Hegel.
13 - SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique. Tome I: Theorie des ensembles pratiques. Paris, Ed. Gallimard, 1960, p. 10.
14 - Idem. L'être ... Cit., p. 29.
15 - Idem. Critique ... Cit., p. 201.
16 - Idem. Ibidem. p. 201.
17 - Não cabe no presente trabalho discutir todas as abordagens que Sartre fez sobre a dialética, muito menos levar a questão da fundamentação da dialética em Sartre às últimas conseqüências, mas inserir essa temática no âmbito da questão da liberdade. Contudo, é interessante notar que a abordagem de Sartre sobre a dialética permanece na esfera ôntica da questão, na escolha que o autor da Crítica ... faz da história como lugar privilegiado do processo dialético, sendo a dialética o processo do desenvolvimento da realidade histórica, o que não impede uma investigação sobre o contributo ontológico que a Crítica ... possa oferecer sobre a questão da dialética. Ver para isso: BORNHEIM, Gerd; Dialética: Teoria e Práxis; POA, Globo.
18 - SARTRE, Jean-Paul. Critique ... Cit., p. 105.
19 - Idem. Questão de Método. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1978, p. 123.
20 - Idem. Ibidem, p. 123-124.
21 - Idem. Critique ... Cit., p. 133.
22 - A queixa de Sartre sobre Lukács recai sobre o uso, por parte desse, de categorias como "classe social" e "proletariado", que, em sua interpretação, são categorias muito amplas, que agregam simultaneamente mulheres, negros, judeus, homossexuais e tantas outras minorias, o que tornaria despercebidas as lutas específicas de vários agentes históricos importantes. Todavia, pode-se afirmar que o exagero parte do próprio Sartre uma vez que não discute com mais sistematização as teses de Lukács.
23 - Idem. Ibidem, p. 139-140.
BIBLIOGRAFIA
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- Idem. O idiota e o espírito objetivo. Porto Alegre, Ed. Globo, 1980.
- Idem. "Racionalidade e Acaso". In: NOVAES, Adauto (Org.). Rede Imaginária. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1991.
- COTRONEO, Girolamo. Sartre, rareté e storia. Napoli, Guide, 1976.
- ENGELS. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. SP, Ed. Global,81.
- Idem. Dialética da Natureza. Rio de Janeiro, Ed. Leitura, s/d.
- HODARD, Philippe. Sartre entre Marx et Freud. J-P Delarge, 1980.
- JAMESON, Frederic. Marxismo e forma. São Paulo, Ed. HUCITEC, 1985.
- JEANSON, Francis. Sartre. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1987.
- MENDONÇA, C. D. "O Ser e o Nada de Sartre: uma descoberta filosófica dos Tempos Modernos". In: Rev. Trans/Form/Ação, SP,17/94, pp. 105-112.
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- SARTRE, J. P.. Critique de la raison dialectique: Théorie des ensembles pratiques. T. 1 (précédé de Questions de méthode). Paris, Ed. Gallimard, 60.
- Idem. Escritos Políticos: 1. Política Francesa. Madrid, Ed. Alianza, 1986.
- Idem. L'être et le néant: Essai d'ontologie phénoménologique. Paris, Ed. Gallimard, 1949.
- Idem. Marxismo e Revolução. Lisboa, Ed. Europa/América, s/d.
- Idem. Situações III e IV. Lisboa, Ed. Europa/América, 1982.
- Idem. A náusea. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986.- Idem. O Existencialismo é um Humanismo. SP, Ed. Abril Cultura, 1978.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 9, Julho de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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