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Os Cartórios e a Miséria da Crítica Neoliberal 1

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Ronald Rocha
Ronald_Rocha@revistapraxis.cjb.net

Sociólogo, membro da Editoria da Revista Práxis, do Conselho Deliberativo da revista Teoria e Debate, do Conselho de Colaboradores da revista Crítica Marxista e do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores.


"Não se esqueça de que a mesma mão que nomeia é a que demite".
Fernando Henrique Cardoso, a um parlamentar do PMDB paraibano. 2

No Brasil, os ideólogos neoliberais – muitos dos quais fascinados pela recusa de corte weberiano ao chamado patrimonialismo – vêm proclamando-se os campeões do combate ao "cartorialismo". Tal expressão ganhou, recentemente, notoriedade no linguajar político. Trata-se de um construto etimológico pela fusão de duas palavras. Uma, cartório, é derivada regressiva de cartorário e cartulário, que, por seu turno, vêm do latim vulgar chartulariu: livro de registro para documentos públicos inicialmente conservados em mosteiros e igrejas. Em Português, acabou denominando uma repartição legalmente autorizada pelo Estado – mas controlada por pessoas, logo privadamente, através de concessões oferecidas pelos governantes –, na qual se processam atos e se mantém arquivos respeitantes aos tabelionatos, escrivanias judiciais, ofícios de notas e registros públicos.

A outra palavra, o sufixo nominativo "ismo", provém do grego ismós, que pode, seja sugerir doutrina, teoria, escola ou princípio, seja nomear práticas, condutas, resultados, ações, atividades, peculiaridades, singularidades, qualidades, naturezas, características ou até mesmo condições patológicas. Em Português, introduz igualmente um enfoque pejorativo, habitando a desconcertante área indefinida que fica entre a referência respeitosa e a crítica mordaz.

Tal como se tornou voz corrente, o cartorialismo seria, portanto, um conjunto de atos e concepções que implicam – na condição de objetivo, coincidentemente ou não – a manutenção, a prática e a defesa de certas benesses incrustradas na coisa pública, em nome de uma suposta razão comunitária e sempre de acordo com interesses particularistas de indivíduos, segmentos e classes. No Brasil, trata-se de um fenômeno político indelevelmente relacionado à existência e à multiplicação da máquina burocrático-estatal – incluindo a lógica do capital, que se lhe impõe, na sua essencialidade, como imanência – , e da hegemonia existente, independentemente de se pretenderem ou mesmo de serem, nos limites da sociedade burguesa e sob o ângulo dos valores dominantes, mais ou menos universais ou setoriais, promotoras do "bem-estar social" ou "egoístas", frutos de garantias conquistadas ou de manipulações ideológicas, elementos mera e diretamente zeladores da ordem ou reprodutores do trabalho como força produtiva.

Porém, no jargão neoconservador em voga, já portanto sob um ângulo doutrinário bem definido, seria todo atributo da esfera pública imediatamente discrepante dos interesses puramente privados da burguesia e de seus projetos referenciados nos axiomas do "Estado mínimo", que só vêm aceitando legitimar certas funções instrumentais essencial e diretamente indispensáveis, hoje – vale dizer, nos atuais período da luta de classes, matriz hegemônica e orientações governamentais – , à reprodução dos lucros e à dominação política. O restante – as ditas "gorduras" – não passaria de alvo de suas imprecações contra-reformadoras e dogmáticas.

I - Formas precedentes ao cartorialismo burguês

Os "teóricos" brasileiros da globalização, e certos setores democráticos que se pautam – ou se impressionam – por sua proposta de agenda e se vêem polarizados por suas teses privatistas, tentam colocar, num tour de force propagandístico, a tradição socialista e, mais amplamente, o pensamento de esquerda na origem do cartorialismo. Alguns até acreditam sinceramente nesse disparate. Apenas um bloqueio do senso crítico, cuja origem se localiza na desvantagem cognitiva inerente à ideologia burguesa no mundo contemporâneo, sobretudo em sua variante neoliberal, pode propiciar que semelhante fantasia ganhe conotações veneráveis e adquiram credibilidade intelectual.

Trata-se de uma tese que, no mínimo, ignora os momentos fundamentais do assunto em foco, indispensáveis para delinear-se os contornos de sua ontologia. Inicialmente, deve-se ressaltar que o cartorialismo, desde o século passado e nos seus conteúdos e funções atuais, é parte integrante da hegemonia do capital e compõe um traço da forma peculiar pela qual os órgãos e instituições do Estado nacional surgiram e acabaram fixando-se na formação social brasileira. Tem, portanto, uma dimensão particular de classe, articulada histórica, lógica, estrutural e funcionalmente à dominação burguesa.

Depois, é preciso lembrar que a iniciativa política e a direção ideológica na constituição do capitalismo de Estado no Brasil coube a uma fração da burguesia que, afinal, ostentou a falácia do capital de todos como emblema da república populista, é bem verdade que respaldada no movimento de massas nos marcos da estratégia nacional-desenvolvimentista então hegemônica na seara da esquerda. De resto, como se sabe nos círculos minimamente informados, as políticas do regime militar não só mantiveram, como também desenvolveram os interesses burocráticos que se incrustaram na coisa pública.

E, finalmente, cabe frisar que a gênese histórica e mesmo as tipologias primevas do cartorialismo precedem o capitalismo, a existência nacional e, obviamente, as próprias noções hoje conhecidas como esquerda e socialismo. Têm uma base cultural multimilenar, que veio sendo reciclada e reapropriada pelos sucessivos poderes constituídos, sempre adquirindo conteúdos sociais precisos, caldeados e tornados contemporâneos pelos interesses hegemônicos e as lutas de classes, no largo e complexo processo que – analisado post festum – acabou desaguando na lógica do capital e sendo alvo palingenésico de sua razão instrumental.

O espectro cartorial emerge das brumas do passado. É oportuno fazer como que um retorno às origens remotas da sociedade portuguesa, isto é, ao surgimento daquele ambiente onde se deu a expansão colonial-mercantil e lhe foram impressas marcas culturais duradouras. Como ponto de partida, registre-se, de maneira muito generalizante, que a desagregação das comunidades primitivas ibéricas se deu rumo a sociedades aldeãs celtiberas e a monarquias centralizadas no litoral sul-sudeste-sudoeste – relacionadas, desde o início, aquelas com trabalhos agropastoris e artesanais, essas com a mineração e o comércio greco-fenício –, ambas de sentido "asiático": sem propriedade privada individual, cimentadas pelo fetiche da entidade coletiva e baseada num trabalho realizado como servidão generalizada em prol de totalidades míticas que velavam o poder burocrático de chefias e, nos casos mais cristalizados, nobrezas locais. Aparece uma espécie de "coisa pública" integralizante, cuja presença impregnou as sociedades nascentes. Não havia lugar para noções como propriedade privada e individualidade.

Semelhantes formações sociais – depois de longa resistência militar, sobretudo na Lusitânia – foram superadas pela ocupação romana, ou, mais amplamente, pelo episódio conhecido como processo de romanização, com a sua onipresente máquina estatal e a escravidão que lhe acompanhou a expansão. Em Lições sobre a filosofia da história universal, Hegel notou que "O Estado", em Roma, começa a destacar-se abstrato; começa a constituir-se para um fim, no qual também participam os indivíduos; mas não com participação geral e concreta. Os indivíduos livres são efetivamente sacrificados à dureza do fim, ao qual haverão de consagrar-se nesse serviço para o abstrato universal. O império romano já não é o reino dos indivíduos (...). Aqui não há alegria, divertimento, mas dúvida e trabalho amargo. O interesse desprega-se dos indivíduos (...). O universal subjuga os indivíduos, que haverão de consagrar-se a ele por inteiro; em troca do que esses indivíduos recebem em si a universalidade, isso é, a personalidade; tornando-se pessoas jurídicas em seu ser privado (...) sob essa universalidade, suas figuras concretas são aplastadas e incorporadas como massa. Roma se converte num panteão de todos os deuses e de todo espírito, mas sem que tais deuses e espírito conservem sua vida característica."3

Obviamente, por representar uma forma extrema de subsunção do ser humano à totalidade que se lhe impunha heteronômicamente, semelhante norma podia incorporar e reciclar o velho "estilo de vida" ibérico, sem portanto destrui-lo inteiramente. Surgiu, assim, a justaposição de realidades que inaugurou a convivência de tensões burocráticas de naturezas e gêneses distintas, mas que, associadas, gestaram e fortaleceram uma tradição "pública" peculiar, na qual o indivíduo continuou dissolvendo-se, nesse caso de maneira mais ainda radical. Paradoxalmente, o privado, posto pelos cânones do direito romano no que diz respeito à propriedade dos meios de produção, permanecia inibido e com pouquíssimo espaço nas relações políticas.

O colapso do grande império latino abriu caminho a um processo de feudalização singular: de início, marcado pela irrupção dos alanos, vândalos e suevos, estabelecendo reinos passageiros, e, imediatamente após, pela extensa e mais duradoura monarquia visigótica. Então, aprofundou-se um conceito de política estreitamente vinculado à organização burocrático-militar. Houve, portanto, uma resistência forte à dispersão feudal típica de outras regiões da Europa, nas quais o Estado se confundia, cada vez mais e por um período significativo, com as figuras individuais da classe dominante rural.

Tais inflexões foram mais tarde acentuadas pela ocupação bérbere-árabe, por séculos de militarismo em nome do combate da cruz ao crescente, pelo surgimento precoce do Estado nacional português, inclusive de um poder régio centralizado, e pela sua intimidade com um capital mercantil influente. Com a bancarrota social, lato sensu, da revolução burguesa, mesmo no importante capítulo de 1383, retido por Fernão Lopes no seu magistral livro Crônica de D. João I, quando a velha ordem foi política e passageiramente batida, o processo da expansão colonial se operou a partir do pacto entre uma nobreza feudal sui generis – mais pública do que individual, mais militar do que senhorial e até, não raro, mais comercial do que agrária – e um capital do tipo "antediluviano", para utilizar uma feliz expressão de Marx em O Capital.4 Eis o ponto de partida burocrático de um processo que haveria de integrar o novo território luso-brasileiro ao processo da modernidade.

Aqui, a colonização – em vez de ser um elemento difusor das novas sociedades civis emergentes nas revoluções burguesas européias, onde vicejaram o grito emancipatório da "razão soberana" e aquelas "grandes e pequenas robisonadas" ironizadas por Marx nos Grundrisse,5 indissociáveis da penetração do capital na esfera produtiva – articulou-se através de uma seção altamente burocratizada do Estado português, cuja função precípua era sustentar, diante das crescentes demandas do mercado europeu, os lucros fabulosos de um capital que operava na esfera da circulação, exclusivamente. O vento moderno, que inflou as velas da esquadra portuguesa comandada pelo Capitão-Mor Pedro Álvarez Cabral, não respeitou fronteiras nem preconceituou formas. Todavia, sintomaticamente, dos seus treze navios, na maioria naus e caravelas, não mais do que duas pequenas embarcações haviam sido financiadas por particulares.

Ao contrário do norte-africano e das sociedades orientais, alvos iniciais do capital mercantil, nas terras "brasílicas" inexistiam uma produção anterior e até forças produtivas locais capazes de serem acionadas para efetivá-la em larga escala. De mais a mais, como foi notado por Marx em O Capital, com tanta terra livre seria estritamente necessário que o indivíduo fosse cativo por vontade, não só de particulares, mas especialmente por decisão dos centros estatais do sistema colonial. Não havia espaço para certas ilusões românticas que por vezes perpassavam os ideais burgueses de progresso em outros quadrantes do mundo.

A ignorância sobre tal "detalhe" foi o ponto de partida para o drama tragicômico de um "previdente" capitalista, que "transportou (...) para (...) Nova Holanda" – uma colônia – "meios de vida e de produção no valor de 50.000 libras esterlinas", bem como "3.000 indivíduos" de famílias trabalhadoras, mas que, "tão logo a expedição chegou ao lugar de destino, (...) ‘ficou sem um criado para fazer-lhe a cama e trazer-lhe água do rio’. Pobre Mr. Peel (...)", ironizou Marx em O Capital! "Havia previsto tudo, menos a exportação para Swan River das condições de produção imperantes na Inglaterra". Eis a bem-humorada prova de "que o capital não é uma coisa, senão uma relação social entre pessoas, às quais as coisas servem de veículo".6

Na ocupação luso-americana, determinações afins geraram o colapso da pretensão inicial de incorporar o ainda "verde" gentio e constrangeram o capital protocapitalista, como prioridade, a utilizar-se do potencial produtivo de seres humanos de origem africana, transformando-os em simples instrumentos de trabalho e dando assim início à odiosa escravidão mercantil como empreendimento estratégico do sistema colonial. O capital português do século dezesseis, anterior à paranóia produtivo-fabril que assolaria outras regiões da Europa, evitou a esparrela de Mr. Peel.

Os órgãos do Estado, o capital comercial e a oligarquia escravista nascente firmaram, desse modo, um pacto que iria marcar indelevelmente a vida coloniana, os hábitos culturais do Império, a ideologia da burguesia emergente, as formas de hegemonia e a história política do País. Teria sido, lançando-se mão de uma interessante alegoria bíblica, o "pecado original" da burguesia brasileira, cujo longo processo de remissão, invariavelmente buscado por setores das classes dominantes, do Império aos dias presentes, finalmente abriria, com a crise inaugurada nos anos setenta e a falência do capitalismo estatal, o capítulo da esquizofrenia neoliberalizante.

II - O capital vai aos cartórios

Nesse quadro, a implantação da primazia burguesa no Brasil, em contraste com a Grande Revolução Francesa, ver-se-ia permeada por um pacto conciliador. Ao fim e ao cabo, resultaria sendo "sem ‘terror’, como ‘revolução sem revolução’, isso é, como ‘revolução passiva’ para empregar", como resolveu faze-lo Antônio Gramsci em Quaderni del carcere, "uma expressão de Cuoco em sentido um pouco diferente daquele que Cuoco desejava exprimir".7

Não que tivessem inexistido episódios importantes de conteúdo popular, marcantes na história do País. Ao contrário. A dominância do capital nas esferas da produção e do Estado foi um processo longo, multilateral e complexo de luta de classes – que englobou levantes anticoloniais, rebeliões de várias naturezas durante o Império, inúmeros tipos de resistência e combate à escravidão, combates republicanos, mobilizações agrário-camponesas e assim por diante –, ao qual não faltaram grandes movimentos de massas, sublevações radicais e muitos exemplos de bravura, invariavelmente reprimidos com selvageria.

Mas tais eventos não lograram confluir para um momento popular singular que desse o tom na modernidade capitalista, significasse a derrota decisiva da velha ordem social e fundasse uma forte nação burguesa, como na França e na Inglaterra. O capital se afirmou por cima, "sem ‘terror’, como revolução sem revolução". De outro modo: sem uma soberania revolucionária de massas insurretas que impusesse reformas sociais mais profundas e a democratização completa, mesmo que apenas jurídico-formal, do regime político. Aqui prevaleceu o acordo conservador tripartite firmado entre os burgueses, a oligarquia latifundiária e um Estado-tutor, com sérias conseqüências para o futuro político da jovem nação.

Assim aconteceu nas transformações abolicionistas e na proclamação da República, episódios fundamentais no processo de revolução burguesa e pontos nevrálgicos de uma viragem na formação social. Pode-se dizer que o Brasil ingressou na modernidade ocidental-burguesa por uma via "meridional" – lembrando aqui, com certa liberalidade, o esforço intelectual de Gramsci diante da chamada Quistione meridionale, no qual os termos dicotômicos norte-sul transcendem os limites da formação econômico-social italiana para tocar o relacionamento das regiões mais atrasadas da Europa e, por que não dizer, do planeta com a realidade geral do capitalismo avançado, implicando repercussões fundamentais na elaboração da estratégia socialista contemporânea8 –, isso é, pela porta dos fundos: a partir da colonização, com dependência estrutural, uma questão agrária explosiva, bolsões crônicos de subdesenvolvimento e miséria, hegemonia passiva e hipertardiamente, como expresso na República Velha.

O legado público, patrimonial e cartorial das classes dominantes, ao longo da História do Brasil, foi apropriado pelas correntes nacionalistas, protecionistas e desenvolvimentistas pós-trinta, militares ou civis, invariavelmente defensoras de um Estado com formas extremadamente autoritárias, centralizadoras e paternalistas. Não foge à regra o "trabalhismo", que reafirmou semelhante passado mesmo nos momentos em que incorporou aspirações populares nas lutas por reformas em fase de ascensão no início dos anos sessenta.

O capitalismo de Estado, especialmente na década de cinqüenta, quando inaugura um papel chave na estratégia desenvolvimentista, surge impregnado de idênticos traços. Com o fim da república populista, o regime militar implantado pelo golpe de 64 – na medida em que representava politicamente a marcha de um novo ciclo de concentração e centralização de capitais, que tinha na vertente monopolista-pública um dos pilares básicos – manteve intactas e acentuou as mazelas do cartorialismo.

É preciso esclarecer que não se trata de um inchaço no setor público, isso é, de gigantismo, como repete ad infinitum a campanha do marketing repetitivo, reproduzindo-se e respaldando-se no senso comum. A população é notoriamente carente dos serviços básicos. A questão reside, portanto, na tipologia político-cultural que articula o Estado, através de sua burocracia, com a sociedade civil: a cidadania burguesa esteve sempre dependente, massacrada, passiva e aprisionada em uma postura heteronômica na relação com suas próprias instituições.

Em aparente paradoxo, e curiosamente, a intervenção crescente dos órgãos estatais na economia, bem como a ineficiência e o autoritarismo no tratamento dispensado às massas populares, foram invariavelmente os sustentáculos de uma política, tão competente quanto escandalosa, de favorecimento não só às oligarquias políticas locais, no esquema do clientelismo clássico, como também ao capital privado, nacional e imperialista, que sempre se beneficiou das mais variadas formas de acumulação adicional sob os escombros das finanças públicas, sem falar na hiperexploração do trabalho alheio.

A convivência pacífica e mutuamente lucrativa entre os políticos da ordem, os burgueses privados, a burocracia estatal e o burguês coletivo, gerando projetos e práticas sincréticas, sobreviveria tão somente durante o longo ciclo ascendente da economia mundial. O crescimento da mais-valia relativa e a estabilidade político-social era o mais eficaz produtor de consensos entre os momentos altéricos dos interesses dominantes, dispensando a "descoberta" contemporânea do recurso à "interlocução social" – tão exaltada como panacéia para os males do mundo por alguns setores – , sucessora prestimosa da conciliação nacional que Antônio Carlos sintetizara no seu famoso apelo à "revolução antes que o povo a faça".

Mas o longo ciclo ascendente iria exaurir-se. O capitalismo de Estado havia surgido com desenho monopolista na Europa no início do século vinte. Nos primeiros anos da jovem URSS, afirmou-se como um dos modos de produção constitutivos da complexidade socialista entendida como formação social transitória. Logo após, conquistou um lugar central nas economias nazi-facistas. Sob o stalinismo, transformou-se – já como forma singular, ocupando a primazia e tragicamente reconceituado como relação socialista de produção – em pilar social do poder burocrático, do que Trotsky denominou "contra-revolução termidoriana" e da batalha da industrialização.

Após a Segunda Guerra Mundial, olhando-se a oeste, a intervenção do Estado na economia e as suas políticas sociais seriam poderosos meios para o capital combater os abalos cíclicos da ordem, alavancar uma nova fase de reprodução do capital e ostentar reformas que neutralizassem a sedução antiburguesa referenciada na Revolução Socialista de Outubro e permitissem o fortalecimento do capitalismo de corte ocidental no terreno da disputa entre as duas superpotências emergentes à frente dos grandes blocos que buscavam hegemonizar o mundo.

Todavia, com a longa crise instalada na primeira metade da década de setenta, os padrões de acumulação e as políticas dominantes passaram por grandes transformações. Confluem os elementos de uma quádrupla agonia: do fordismo, do Welfare State, do keynesianismo e das tiranias burocráticas. Primeiramente, o neoliberalismo foi uma resposta, uma forma cultural de readequação do capital em um momento adverso. Posteriormente, passou a um projeto voltado contra os direitos e conquistas sociais e políticas das classes trabalhadoras e dos povos, bem como promotor de uma guerra sem quartel ao movimento socialista. É no quadro de crise mundial do capitalismo público e do trabalho regulamentado, a oeste e a leste, bem como de falência do modelo brasileiro de organização estatal – resultante na crise do endividamento e instaurada no interior do regime militar – , que o discurso anticartorial do neoliberalismo adquiriu notoriedade.

Portanto, a propaganda neoliberal, em que pese a sua falaciosidade, não é uma invencionice, uma simples ficção. Edifica-se com base nas questões reais e possui um mote histórico-social. Tal é a origem de sua eficácia hegemônica, demonstrada nos últimos vinte anos. Todavia, interpreta os problemas econômico-sociais e lhes destina "soluções" pelo viés da ideologia do capital, cujo conservadorismo compromete sua validade científica, e com propósitos multilateralmente contra-revolucionários.

Assim acontece com todas e cada uma das propostas neoconservadoras nas disputas políticas que se dão em torno da questão cartorial no Brasil. Se o Estado está em crise, afirmam que a causa reside na perversidade imanente de sua intervenção na sociedade civil – especialmente na economia – responsabilizam o chamado "estatismo" da esquerda e pregam reformas que o possam reduzir à dimensão "mínima".

Por extensão, aplicam um projeto que, no quadro das chamadas "globalização" e "reforma do Estado", acaba com as conquistas dos trabalhadores, alcançadas por meio de lutas e sacrifícios inomináveis, transforma o patrimônio das empresas nacionais em capital privado e reduz drasticamente os serviços públicos, sobretudo aqueles de prioridade social como previdência, educação e saúde. Para tanto, promove uma readequação institucional que otimize a implementação de seu programa governamental. Nessa perspectiva, o esforço de revisão e depois o processo de "reformas" constitucionais passou a ocupar o centro de sua tática.

De fato, as instituições públicas do País vivem uma crise crônica, embora se deva registrar que as políticas governamentais provocaram o seu agravamento. No entanto, como é fantasioso pensar que as graves questões nacionais possuam uma gênese no Estado, per se! Mesmo sendo agente poderoso na objetivação do real, o poder político e suas iniciativas expressam onto-dialeticamente os problemas, relações, interesses, conflitos, dilemas e limites da sociedade civil.

O Estado não é, pois, uma entidade fantasmagórica, supra-social, uma pura mediação absoluta, mas sim uma relação social. O discurso que se propõe a resolver sua crise através de uma política cujo centro se localize no "círculo de giz caucasiano" de sua lógica interna, revela-se uma retórica vazia e tediosa, cujo fim é manter na penumbra os maiores dramas humanos e abordá-los subordinadamente aos inconfessáveis e intocáveis benefícios dos "de cima", cristalizados na essência necessária de seu próprio ser.

III - Anticartorialismo e neoliberalismo

Um exemplo é a cruzada que Roberto Campos, decano do neoliberalismo, sustenta contra o que rotulou de "Petrossauro", em arroubo de humor amumiado. Na mesma linha vai o Programa Nacional de Desestatização – através do qual o governo promove a liquidação das empresas estatais a preços muito abaixo do valor e parcialmente recebendo, em alguns casos, moedas podres –, cuja lógica só poderá ser compreendida se o seu véu pretensamente reformador for rasgado. Nada tem de uma operação "livre", na qual pessoas físicas ou jurídicas, como sintetiza Marx nos Grundrisse, reconheceriam-se "mutuamente como proprietárias (...) cuja vontade impregna suas mercadorias" em um ato de soberania e cidadania, no qual surge "a noção jurídica de pessoa e, na medida em que se acha contida naquela, a de liberdade". Ou seja, não é um ato em que "ninguém se apodera da propriedade alheia pela violência", em que "cada um aliena a mesma voluntariamente".9 Vale dizer, não é uma transação precipuamente definida no patamar econômico, a exemplo de qualquer outra compra e venda no mercado capitalista, mesmo quando há o condicionante das distorções oligopólicas e até monopólicas. Pelo contrário, as privatizações possuem uma determinação subjetiva extra-econômica, derivativa de um projeto social e de suas políticas impostas pelo governo federal.

O sujeito burguês-Estado – as camadas superiores da burocracia do poder político, notadamente os diretores do conjunto das empresas públicas, gerentes de um capital coletivo, abstrato e juridicamente impessoal, e seus possuidores reais – subtrai-se à lógica do mercado e, neste caso à revelia das "sacrossantas" e "sempiternas" leis que o teriam transformado no princípio leibniziano da "razão suficiente", transfere aos conglomerados privados um conjunto de vantagens historicamente acumuladas: capital fixo, experiência produtiva, organização, controle estratégico de mercado e imagem.

Há, para certos setores, coerção, mas em geral predomina o consenso criteriosamente construído nas instituições públicas e particulares de hegemonia, pela propaganda governamental e midiática, sob uma decisão elícita – vale dizer, mediada por inequívoca vontade, no caso político-ideológica. Inexistindo a compra e a venda espontâneas no mercado burguês, ocorre nada menos do que um processo tardio, gigantesco, acelerado, deliberado e seletivo de neo-acumulação primitiva, que drena riquezas fabulosas para capitalizar o setor privado e o fortalece ainda mais perante os governos, de acordo com as diretrizes dos centros decisórios da ordem financeira internacional expressas no "Consenso de Washington".

Se Hegel tinha razão quando enxergou, em Princípios da Filosofia do Direito, "a propriedade como existência da personalidade"10 – isso é, como ser-membro-da-sociedade –, a chamada "utopia possível" do minimalismo neoliberal, verbalizada por Fernando Henrique, nada mais seria que, privatizando as empresas e os serviços públicos, transformar o Estado em uma banalidade insocial, despersonalizada. Restar-lhe-ia tão somente o caráter chamado, em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, por Engels, de "primeiro poder ideológico sobre os homens". Um ente que, tendo logrado alcançar uma relativa existência "independente frente à sociedade"11, otimizar-se-ia enquanto exclusiva mediação consensualista e coercitiva em prol dos interesses dominantes, aos quais permanece ontogeneticamente atado.

Também o funcionalismo se converteu, pela magia mercadológica, em "bode expiatório". Tornou-se – pasmem! – o "responsável" pelas mazelas que a burguesia, com seus políticos e governos clientelistas e arrogantes, vem criando há um século. A fórmula mágica inventada é, por meio da revogação do Regime Jurídico Único, a retração numérica dos quadros funcionais e a extinção de sua estabilidade. Tais medidas estão previstas no projeto de "reforma" administrativa enviada por Fernando Henrique ao Congresso.

É oportuno desmascarar o seu falacioso diagnóstico sobre o serviço público. Há inchaço? Existem, sabe-se, poucos servidores. Proporcionalmente aos países capitalistas do hemisfério norte, a força de trabalho no Brasil alocada no setor estatal- cerca de 6,5 milhões de trabalhadores, ocupando 9,5% dos empregos da Nação, a julgar pelos números do próprio Ministério da Administração da Reforma do Estado – é proporcionalmente muito menor do que a existente nos países capitalistas do hemisfério norte, mesmo naqueles onde não se desenvolveu plenamente o Welfare State: 15,5% nos USA, 21% na Inglaterra, e 25% tanto na França quanto na Itália, segundo informações amplamente conhecidas.12

Há marajás? Tal distorção – resultado não só de privilégios concedidos aos apaniguados, mas também da cristalização da elite burocrático-gerencial do poder burguês, inclusive nas empresas estatais, como fruto das formas hegemônicas estabelecidas e por responsabilidade única dos sujeitos dominantes – não pode ser creditada na conta inexistente das multidões de "barnabés" proletarizados na base da pirâmide funcional. Para eliminá-la, basta substituir os jargões antifuncionalismo por uma política que tome providências enérgicas e urgentes contra os privilégios dos que se locupletam servindo à ordem. Os políticos burgueses relutam em faze-lo: preferem atingir os trabalhadores a cortar na própria carne.

Há ineficiência? Negligência? Burocratização? Nepotismo? Que se pague bons salários à grande massa de funcionários sacrificados e se prepare programas de reciclagem, atualização tecnológica e capacitação administrativa. Que sejam instaurados, quando necessário, processos administrativos. Que se procure simplificar os serviços e o acesso da população aos bens oferecidos. Que se proíba contratações à revelia dos concursos e se combata favoritismos. Porém, atenção para não incorrer na ilusão dos reformadores morais, que imaginam um Estado ideal, órgão universal da sociabilidade humana, serviçal irrepreensível das populações, indiscriminadamente, ignorando-se a sua dimensão incontornável de classe, para não falar do Estado nacional brasileiro, instância pública constituída e reproduzida como mediação exacerbadamente hostil aos interesses do mundo do trabalho e singularmente coercitiva do jugo burguês.

A política neoconservadora para o serviço público deve ser criticada, não por supostos "enganos", como se no fundo estivesse animada por móveis altruístas, mas pelos fins recônditos que busca e os resultados sociais desastrosos que gera. Mais a longo prazo, com base na tese do "Estado mínimo", pretende abrir espaço para o capital oligopolista-financeiro privado no promissor e lucrativo filão do serviço público. Tal como no PND, prossegue no processo de neo-acumulação primitiva, desta feita carreando estruturas, instalações, tradição administrativa e força de trabalho capacitada, histórica e nacionalmente constituídas, para o setor privado.

A curto prazo, tenta retirar do poder político a sua fração de responsabilidade na manutenção e reprodução das forças produtivas humanas, visando à retração dos gastos estatais e ao crescimento imediato dos lucros do capital por meio da redução drástica de salários indiretos, representados pelos serviços públicos prestados à população, e do corte nas despesas de manutenção da máquina estatal, drenando-as para outras "prioridades". Para tanto, precisa colocar os servidores à mercê das pressões governamentais de ocasião, liquidar completamente a sua já débil autonomia, submetê-los aos caprichos clientelistas, golpear sua liberdade organizativa, banir o seu direito de manifestação e, no afã de ancorar mais em baixo a massa geral dos salários, achatar os seus vencimentos. Tratamento semelhante acaba sendo reservado aos escalões inferiores das polícias civis e militares.

Eis o "anticorporativismo" propalado pela universalismo que o neoliberalismo advoga para si. O seu nome pomposo é antipatrimonialismo. Uma piada de mau gosto? Não. Apenas um exemplo de como a fé ideológica disputa com a desfaçatez a primazia na realpolitik. Também na recente crise no setor bancário ficou patente o cinismo dos "reformadores" do Estado. Dessa feita, o erário público foi acionado para escorar os ricos, na mais pura tradição cartorialista e sob as bênçãos do Acordo de Basiléia, firmado em dezembro de 1987 pelos bancos centrais de doze países – o Brasil aderiu em 1994 –, cujo "objetivo maior", segundo Murillo Campello, na insuspeita Conjuntura Econômica, "seria estabelecer padrões internacionais de capitalização para as instituições bancárias, de maneira a equalizar nos mercados financeiros internacionais as práticas da atividade de intermediação financeira", para "garantir a solvência das instituições financeiras, na onda da globalização dos mercados"13.

A simples presença de uma política internacionalmente integrada pelas instituições cerebrais do establishment da Nova Ordem Mundial – que ungem as iniciativas provincianas com aqueles óleos xenófilos da "respeitabilidade", abrindo-lhes as frestas para vislumbrar o brilho do empiristicamente chamado "primeiro mundo" – sugere que a falência do velho padrão do sistema financeiro brasileiro e a política governamental de custeio público à sua reciclagem têm um significado ideológico e uma repercussão econômica importantes, que superam o nível fenomênico da presente vaga de "quebras" e incorporações. O episódio do Banco Nacional, que se destacou em meio a outros favorecimentos absurdos, é apenas o emblema de algo mais grave.

O processo vem de longe. Os mais de vinte anos de longa e multifacetada crise não foram sucedidos, em âmbito mundial, por um ciclo de ascensão estável, capaz de tranqüilizar os guardiões da ordem vigente. No Brasil, o dique anti-inflacionário, construído às vésperas das eleições presidenciais em torno do Plano Real, que optou por submergir conquistas sociais, fatores de progresso e a própria soberania, vem apresentando sucessivas fissuras. Ontem, sobressaíram-se os abalos no setor bancário. Agora são as verdadeiras crateras nas contas externas, o déficit público e a dívida interna. Sempre são a sobrevalorização do Real, taxa de juros, achatamento salarial e recessão, na inconsistente política de apenas tratar da crise no âmbito restrito da circulação monetária. Outras virão. É o que passou a ser conhecido como "ajuste".

Obviamente, as "fusões" bancárias ultrapassam o mero arranjo sistêmico: representam mais um pulso na centralização e concentração de capitais. Os grandes conglomerados financeiros, capazes de atuarem simultânea e organicamente nos vários setores da economia, no movimento superior e totalizante da reprodução capitalista, estão absorvendo unidades que se retardaram na ruptura com as práticas isoladamente bancárias, que ainda viviam nos poros de uma economia crescentemente oligopolizada e que se mostravam cada vez mais apertados na selva da "globalização". É claro que os elos mais fracos são as empresas de características incompatíveis com as vertiginosas mudanças tecno-estruturais em curso no setor e a conjuntura de inflação moderada: exatamente aquelas de baixa liquidez operacional, incapazes de grandes investimentos em renovação de capital fixo e aprisionadas em métodos gerenciais rotineiros.

Seria uma utopia esperar, endossando simploriamente a mitologia na moda, que o Estado ficasse à margem dos fatos, como se os seus atuais dirigentes realmente acreditassem que, de acordo com as suas juras, o mercado resolve tudo. A conexão dos órgãos de poder com as estratégias do capital oligopolista é um traço contemporâneo irrecorrível, que sempre fica evidente nas políticas públicas, seja por ausências do Estado, quando se trata de atender às reivindicações dos movimentos populares, seja pela sua presença, nos momentos cruciais para o capital, sobretudo na disputa de hegemonia e na coerção. Neste País, onde a tradição cartorial sempre visou ao zelo por lucros fáceis e à garantia de benesses privadas, o governo Fernando Henrique atendeu prontamente aos apelos aflitos dos "infortunados" banqueiros com a receita de Basiléia traduzidos no PROER: os termos da medida provisória, concebidos para o "fortalecimento do sistema financeiro", reservou-lhes regalias fiscais e decidiu sustentar-lhes os custos de monopolização.

Inicialmente, os beneficiários do casuísmo foram o Unibanco e o Nacional, na esteira dos quais vem uma longa – e caríssima – lista de pretendentes à mão "solidária" do cartório que todos criticam hipocritamente. O Banco Central, exatamente quando anunciava uma duplicação mensal no rombo acumulado pelas contas federais – passando de 1,756 para 3,704 bilhões de reais de agosto a setembro de 199514 – e técnicos do governo estimavam um déficit público anual cinco vezes maior, fez-lhes um empréstimo subsidiado que sobe, até o momento em que foi redigido este texto, a R$ 5,8 bilhões, cobrindo as dívidas, viabilizando a compra da "parte boa" e tornando dinheiro vivo antigos créditos podres.

Somente adquirindo títulos pelo preço nominal, isso é, pelo dobro da sua cotação no mercado real, os cofres públicos perderam uma soma superior a dois bilhões de reais. Considerando-se também as operações financeiras correlatas do Banco Central – no primeiro momento emitiu para prover o desatino do PROER, depois vendeu 3,161 bilhões de títulos para neutralizar o vetor inflacionário acionado pelo aumento em 25% da moeda circulante, causado principalmente pela injeção de liquidez na caixa do Nacional, como de praxe pagando altos juros – , ficam patentes as razões pelas quais a dívida externa foi às nuvens no final de 1995, subindo 5,65% em novembro. Pelas últimas informações, incluindo R$ 5,9 bilhões para viabilizar o controle do Econômico pelo Excel, mais R$ 5,7 bilhões para salvar o Bamerindus e outros gastos de mesmo perfil, a mão generosa do Banco Central já desembolsou perto de R$ 20 bilhões, podendo tal cifra crescer, a curto prazo, ainda mais.

Os empresários, políticos e ideólogos neoconservadores, como Delfim Neto e Roberto Campos, que vêm repetindo à exaustão a inexistência de recursos e defendendo histericamente o "Estado mínimo", apoiaram, sem o menor rubor nas faces, o esbanjamento e a intervenção máxima do Estado. Alguns ainda procuraram mais privilégios, como Francisco Dornelles, deputado pelo PPB do Rio de Janeiro, que propôs reduzir o poder dos acionistas majoritários e ampliar os benefícios fiscais, inclusive abater integralmente do Imposto de Renda os "rombos" dos bancos absorvidos – vale dizer, lucro e poder sem limites para os magnatas –, e até mesmo expandir a mamata para o conjunto dos empresários, como Cunha Bueno, deputado pelo PPB paulista. Em dezembro de 1995, o próprio governo Fernando Henrique, atendendo às sugestões de banqueiros reunidos com Pedro Parente, que respondia interinamente ao Ministério da Fazenda, pôs-se a estudar novas isenções no imposto de renda para os bancos, garantindo-lhes o ressarcimento dos empréstimos em atraso, completando a cena paradisíaca de lucro especulativo sem risco algum.

A desfaçatez supostamente anticartorial também se dirige ao processo de trabalho. Depois de uma campanha orquestrada nas instituições privadas e públicas de hegemonia, contra normas que seriam responsáveis pelo engessamento da economia, veio a primeira grande investida prática de caráter nacional: o contrato coletivo firmado, às vésperas do carnaval de 1996, entre a diretoria pelega do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e oito sindicatos patronais ligados à FIESP, ao arrepio de conquistas sociais elementares. A iniciativa, um balão de ensaio enchido e lançado por sujeitos políticos alinhados ao ideário neoliberal, provocou, nos círculos dominantes, reações desencontradas. O Ministério Público do Trabalho a considerou ilegal e o Tribunal Regional do Trabalho de SP aceitou, logo depois, o pedido de medida cautelar contrário ao acordo. Mas o porta-voz do Palácio do Planalto a definiu como "fato positivo" e como "exemplo" a ser imitado, posição reafirmada três dias depois pelo próprio Fernando Henrique.

Que o presidente da República chegue a incentivar o desrespeito às leis, sobretudo em declarações de ampla repercussão pública, já é um fato significativo. No caso em tela, trata-se de uma violação dos direitos que beneficiam justamente os setores populares mais desfavorecidos e desamparados: a contratação de assalariados sem registro em carteira de trabalho, sem salário-educação e com redução de contribuições tanto ao FGTS quanto à Previdência Social, dentre outros. É um paradoxo que só pode adquirir sentido num comportamento casuístico: quando as leis beneficiam o capital e as contra-reformas governamentais, como na repressão à greve dos petroleiros em 1995 e na defesa do monopólio fundiário contra os sem-terra, os poderosos as transformam em princípios e reprimem draconianamente os movimentos sociais.

Os ideólogos burgueses, acometidos de um "materialismo" de ocasião, dizem, como Antonio Hermírio de Moraes, que "A pergunta a fazer é simples: quem deve mudar? A realidade ou a lei?" Mas tal tese jamais é reconhecida para deslegitimar os códigos legais que velam pelos interesses anti-sociais do capitalismo, sempre amparados pelo culto à ordem. Ao pragmatismo patronal, que manipula como se lhe dá na telha o conceito e o valor de justiça, é preciso lembrar: "vamos devagar com o andor porque o santo é de barro". A realidade dos esquadrões da morte, que viola o direito dos seres humanos à vida, seria uma justificativa séria para que o extermínio seja glorificado e a lei se adapte à pena de morte?

O argumento corrente de que a chamada des-regulamentação é uma forma de atacar o desemprego não passa de mistificação. Ao invés de um aumento na oferta global de vagas, o resultado seria uma brutal redução nos salários indiretos. Na verdade, os empresários partem da suposta imutabilidade dos seus privilégios e prerrogativas, pretendendo apresentá-los como imperativos reais e morais incontornáveis, para só então discutir o direito ao trabalho. Como então perceberam os dirigentes da CUT, abrir mão de conquistas sociais não é uma solução para o desemprego, mas uma simples adaptação à crise. Uma submissão à chantagem, ainda que disfarçada.

Tal política de conjunto, com as medidas que lhe são correspondentes, configura uma incoerência interna da qual o discurso neoliberal jamais poderá livrar-se: ataca ou defende o patrimonialismo quando lhe convém. Sobra-lhe apenas o recurso de convencer aos incautos de que os lucros e a reprodução do capital constituem a síntese dos interesses universais. De resto, bem coerente com a mascateagem do Presidente da República em sua viagem à China, quando se prestou a cabalar, num vexame diplomático, facilidades para certas empresas brasileiras na construção de uma usina hidroelétrica. Já os direitos dos trabalhadores, as conquistas sociais, os serviços públicos, as estatais e as leis trabalhistas, essas já seriam bem outra estória. Não passariam de abomináveis "particularismos" inflacionantes, "vilanias corporativas".

IV - A esquerda e sua consciência de si

Tais são alguns capítulos da novela brasileira da "globalização", que, diante da resistência encontrada, vem arrastando-se desde a posse de Collor na Presidência da República. Sob a gestão de Fernando Henrique, a ofensiva neoconservadora conseguiu alcançar o seu ponto máximo: a classe dominante, depois de reunificar-se no processo eleitoral e derrotar o campo democrático-popular nas eleições presidenciais de 94, voltou-se contra os direitos avançados inscritos a duras penas no texto constitucional de 88, visando a suprimir quaisquer dispositivos que representem conquistas sociais, empecilhos à religião do mercado e obstáculos aos oligopólios nacionais e internacionais. Depois do pleito municipal de 1996, os ataques foram redobrados, embora encontrando resistências no parlamento e nos movimentos de massas.

A pronunciada sobrevivência do passado na formação social brasileira, própria da via "meridional" de ingresso na sociedade caracteristicamente capitalista, forma o pano de fundo que permite aos ideólogos desse barbarismo – ao contrário do que vem ocorrendo na Europa e dos USA, onde assumem a pós-modernidade – serem cultural e filosoficamente "pósteros" para, em nível político, paradoxalmente, sem qualquer desconforto intelectual, reivindicarem-se instrumentos da modernidade, no caso vulgarmente confundida com atualidade ou até com novidade. Os neoliberais não vacilam em converter o anti-estatismo no epicentro de seu marketing e não se vexam em proclamar que a esquerda é intrinsecamente um arcaísmo pró-cartorial. Mas semelhante bestialogia não se desvela espontaneamente, por si só, como evidência.

É bem verdade que os êxitos atuais da reação burguesa, em perspectiva histórica, são passageiros. Além do que, vêm sendo contestados em muitos países, de uma forma ou de outra, como demonstram os eventos políticos recentes na Europa. No Brasil, ainda não se consolidaram: existem muitas lutas populares à sua frente. Mas não devem ser subestimados. Foram muito profundos e ainda não se constituiu, globalmente, uma contra-ofensiva revolucionária capaz de superá-los. É inadmissível que os socialistas cultivem a ilusão voluntarista de revertê-los facilmente. Sem a compreensão clara dessa realidade, incluindo a correlação de forças, não seria possível formular uma opção avançada e produtiva.

Os êxitos da contra-revolução vigente só podem ser compreendidos por meio do método marxiano, que, nos Grundrisse, parte de uma concepção de real como síntese, "rica totalidade com múltiplas determinações e relações"15 – objetivas e subjetivas, internacionais e nacionais, dentre outras –, Gesellschaftlichen Seins. Há, portanto, que se considerar também as políticas e atitudes das correntes à esquerda, não como pensamentos e valores absolutos, supostamente fundantes, mas como dimensão indescartável da causalidade social. E olhar de frente os erros cometidos no tratamento dado à tradição cartorial, pela sua incidência na disputa contra-hegemônica.

Duas posições, grosso modo, vêm prejudicando a luta contra o neoliberalismo e auto-alimentando-se mutuamente. Uma se contrapõe ao cartorialismo. Mas, sob a influência e a pressão ideológica do ideário privatista em voga, julga-o imanente ao capitalismo de Estado e às chamadas funções sociais da gestão pública. Por via de conseqüência, vê na contra-revolução atual um aspecto progressista, que se voltaria contra o que a mídia chama de "arcaísmo", e apologiza, sem qualquer inquietação, a modernidade, à qual vota uma valoração ilimitada e unilateral como positividade. Aprisionada em um calabouço dogmático, acaba desertando de qualquer resistência, detendo as reformas nos limites do que foi agendado pelo neoliberalismo e rejeitando explicitamente não apenas o telos revolucionário, mas também a luta por reformas sociais de cunho democrático-popular, essas últimas vistas como exigências irrealistas e até corporativas.

Quando muito, defende uma política meramente "propositiva", isso é, aquela que professa um neocontratualismo. Assim, é fortemente tensionada pela idéia de uma coalizão estratégica da esquerda com o chamado "centro", ocasião em que o PSDB acaba sendo insistentemente lembrado, como cantava um comercial muito conhecido, "assim, assado, quente frio ou bem gelado". É no interior dessa lógica que vira e mexe aparece uma certa indecisão frente ao governo federal e a gestões locais conservadoras. Em alguns casos, até o apoio, seja de modo assumido, seja envergonhado, a políticos tradicionais de direita, que sequer a máscara de modernos têm.

Semelhante atitude vem jogando um papel coadjuvante da política burguesa dominante no palco da disputa pela hegemonia, contribuindo, conscientemente ou não, para confundir as massas populares, jogar os partidos socialistas na vacilação e desmoralizar o combate antineoliberal. É o "Cavalo de Tróia" da esquerda, sem que, obviamente, os seus agentes possuam sequer uma sombra da grandeza de Ulisses, muito embora talvez possam cultivar, relativamente às lutas proletárias, um ódio equivalente ao que Menelau sentiu pelos raptores de Helena.

A outra postura é frontalmente indisposta com a contra-revolução atual, mas trata o cartorialismo como se fosse um mal menor, que se pode ignorar ou tolerar em nome do capitalismo de Estado e de políticas sociais limitadas, entendidos acriticamente como sendo, respectivamente, composto por "nossas empresas" e sustentadas por "nossas leis". Vê no discurso anticartorial um mero artifício burguês, ignorando que o seu approach propagandístico se apropria de uma questão candente da realidade, respeitante ao cotidiano do povo, cujas mazelas são generalizadamente repudiadas pela sociedade civil.

Por extensão, vê nas empresas públicas e na Carta Magna – tais como se cristalizaram na história do Brasil em um quadro de populismo e, mais amplamente, de política burguesa pré-neoliberal, especialmente no processo constituinte de 88, condicionando sem dúvida o perfil das conquistas e direitos populares – as trincheiras exclusivas das mobilizações democrático-populares, que girariam em torno de sua defesa.

Assim, é fortemente tensionada pelo discurso, também apologético, do nacionalismo e do paternalismo social, que sempre agiram no sentido de acaudilhar os trabalhadores a setores da classe dominante local, em que pesem as conquistas positivas obtidas nas brechas e crises da hegemonia burguesa. Pode-se dizer que também nutre ilusões no Estado, seja por supervalorizar o seu propalado protecionismo social, seja por abordá-lo como parte integrante de um conceito de socialismo reduzido ao somatório das empresas postas sob a sua propriedade formal e do plano, tal como as proposituras e legados, respectivamente, social-democrata e stalinista.

Referenciada nessa lógica, subestima ou simplesmente ignora o imprescindível esforço crítico à tradição conservadora pré-neoliberal e a necessária luta pelas verdadeiras reformas. Limita-se à resistência ou procura saídas equivocadas: voluntaristas, se cotejadas com a crise do capitalismo de Estado e do movimento socialista; ou espontaneístas, se apreciadas como submissão à inércia nacional-populista e aos reclamos corporativos.

Tal posição vem servindo de pretexto para que os ideólogos conservadores caracterizem caluniosamente a esquerda como arcaica e inimiga de reformas sociais, ao mesmo tempo em que também contribui para prostrar o movimento popular na confusão, na paralisia e na desmoralização, restando inclusive incapaz de ultrapassar os limites da vulgata pseudomarxista em bancarrota, que tão profundamente influiu nas derrotas e afetou negativamente a imagem do movimento comunista internacional.

V - Os interesses populares na crise do Estado

Polarizadas pelos termos simétricos desse dilema e carentes de uma crítica consistente ao cartorialismo, as elaborações dominantes na esquerda não tiveram condições de impedir que os enfrentamentos à ofensiva neoliberal desaguassem invariavelmente na fragmentação, em parte somando suas vozes ao coro da privatização, em parte aferrando-se ao status quo. Vale dizer: ora sem resistir, aderindo quase, ora resistindo atabalhoadamente; ora tomando a iniciativa pela via de remar confortavelmente com a maré, ora prostrando-se na paralisia por aninhar-se, também comodamente, no remanso cartorial.

Não seria impróprio falar de doutrinarismos que mantiveram o senso comum sob uma tensão dupla e permanente: os cultos ao mercado e ao capitalismo de Estado. Mas, também, há pragmatismos: seja uma certa capitulação à onda privatista, pelo mimetismo que produz audiência midiática e vem sendo visto, pelos seus partidários, como eleitoreiramente útil; seja uma diluição no fetiche do capital de todos, como âncora "segura" na contraposição à política neoconservadora.

Todavia, tais comentários não justificam uma posição ambígua, intermediária. É impossível resolver antinomias, mesmo fictícias como essas, pelo arreglo. Pouquíssimos espaços e chances teriam os que, impróprios seguidores da Ética a Nicômano, agissem nos termos da "excelência característica da virtude" moral do tipo aristotélico: situando-se no "meio-termo entre dois vícios", isso é, como se a conseqüência política fosse "o atributo de visar ao meio-termo". Porque, ao contrário de uma coisa física, o fazer político é uma práxis não-"divisível". Ademais, porque, mesmo implicando também uma forma de pensamento, não é uma espécie de "mediania" que apenas seja "relativa a nós", isso é, diga respeito ao âmbito exclusivo dos seus "atores", ou que tenha origem numa suposta e sempre ilusória escolha infinita pelas subjetividades, mesmo que tal opção seja pretensamente "determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática"16.

Trata-se, pois, de tomar um caminho singular, qualitativamente distinto. Não é objetivo deste pequeno ensaio elaborar toda uma política de combate ao neoliberalismo. Sua conclusão apenas sugerirá certos parâmetros necessários a um olhar que ultrapasse o empirismo e o pragmatismo que a vêm dividindo no campo da batalha metafísica entre o "partido do sim" e o "partido do não":


1 - Considerando as relações cartoriais como formas particulares das instituições burguesas no Brasil – responsáveis pela tutela das massas, funcionais à hegemonia passiva, núcleos de privilégios inaceitáveis e instrumentos de autoritarismo burocrático –, é preciso que o movimento socialista seja o primeiro e o mais radical de seus críticos e opositores. A sua eliminação é um antigo anseio da sociedade civil e deve ser, permanentemente, uma exigência democrática da esquerda. Nessa perspectiva, justifica-se a luta por reformas no Estado, mas num sentido absolutamente oposto ao das contra-reformas propostas pelo governo federal;

2 - Ao contrário do que deseja fazer crer a crítica neoliberal, os "cartórios" não se confundem com a existência de capitalismo estatal, direitos sociais e serviços públicos voltados às necessidades básicas da população. A não ser, à esquerda, por uma postura doutrinarista, e, à direita, pelo privatismo, a luta democrática contra o cartorialismo é perfeitamente compatível com a defesa da "coisa pública" no interior da disputa contra-hegemônica em geral e dos interesses imediatos das classes populares, sendo-lhe até necessária;

3 - Diferentemente dos direitos, normalmente cristalizações legais de fatos sociais anteriores, e do serviço público, que acaba respondendo a demandas espontâneas, o capitalismo de Estado, hoje, apenas encontra uma débil sustentação no senso comum. A propaganda neoliberal conseguiu neutralizar uma certa sensação nacional-populista de propriedade universal – os bens do Estado seriam de todos, da nação inteira – com a massificação de um embuste: a tese da ineficiência imanente, que tem como corolário a crença em que os capitais e serviços estatais seriam incontornavelmente controlados por máfias corporativas, cujos contornos se identificariam com seus trabalhadores. Renunciando a tais mitos, a manutenção das empresas públicas precisa de melhores justificativas. No plano estratégico, preserva uma força de reserva para um desenvolvimento auto-sustentado e autônomo, uma das tipologias subordinadamente integrantes da complexa formação social transitória – o socialismo – e um vetor capaz de manter alteridades no interior do campo do capital, dificultando a homogeneização de seus interesses. Taticamente, bloqueia o verdadeiro botim a que uma fração do capital sujeita o patrimônio coletivo real da burguesia e nominal da entidade nacional, bem como favorece às mobilizações proletárias, pela politização, na medida em que o patrão é o Estado, e pelas conquistas obtidas, na medida em que os governos são mais expostos ao desgaste provenientes das pressões reivindicatórias do que os grupos privados;

4 - A defesa das empresas estatais, dos serviços públicos e dos direitos sociais diante dos ataques privatistas, incluindo a disputa contra-hegemônica, será ineficaz sem a proposta de reformas democráticas. Taticamente, porque são indispensáveis para que a resistência contra o neoliberalismo, ao contrário dos resquícios de nacional-populismo, realize uma demarcação com as mazelas cartoriais e não seja vista como gigolotagem de privilégios largamente repudiados, condições sine qua non para o engajamento decidido e amplo das massas populares. No plano estratégico, porque seria inconcebível que os socialistas fizessem uma apologia insensata do Estado, tanto em geral quanto burguês, reforçando assim a principal instituição da sociedade alienada;

5 - A ideação neoconservadora, quando se propõe a "desprivatizar o Estado" – na verdade colocando-o mais ainda disponível ao capital financeiro e sua estratégia, pois em nome de acabar com privilégios corporativos públicos promove os privilégios das grandes corporações privadas – , manifesta um telos ideologicamente articulado. Propaga o valor mítico de que o poder político instituído é "uma simples referência a si mesmo", tão somente uma universalidade abstrata ou "absoluta mediação", para lembrar uma expressão contida na Ciência da Lógica, de Hegel.17 Vale dizer, um espaço idílico à margem da sociedade civil, tomando por realidade a dimensão imaginária que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, demonstraram ser tão somente uma "aparência de comunidade ilusória": é a "contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo que faz com que o interesse coletivo adquira, na qualidade de Estado, uma forma independente, separada dos interesses reais dos indivíduos e do conjunto".18 Incentiva, pois, um neocontratualismo baseado na pragmática dialógico-transcendental e dissolvente da luta de classes. Ademais, acionando as instituições públicas e particulares de hegemonia, procura tanger o imaginário popular no sentido de que reconheça como desprivatizáveis – ou corporativos – apenas os segmentos do Estado que o projeto neoliberal deseja liquidar em função dos interesses particularistas do capital oligopolista-financeiro. Não cabe aos socialistas se comprometerem com a retórica da desprivatização quimérica de um ser social que sempre terá, enquanto existir, uma dimensão particular indescartável. Em outra perspectiva, devem lutar para que, mesmo no interior do Estado burguês – cuja essência coercitiva é irreconciliavelmente hostil ao universo do trabalho, mas cujas formas precisam ser disputadas palmo a palmo –, alarguem-se as conquistas já consubstanciadas e constituam-se as mais amplas liberdades possíveis. É óbvio que jamais se tratará de uma democracia real, tal como aquele regime político indispensável ao trânsito ao não-Estado. Porém, a consciência dos limites necessários da sociedade capitalista e a luta por reformas democrático-populares no seu interior, põem, como antítese, no caso de serem integrados ao projeto socialista, o propósito libertário de sua ultrapassagem: supõem culturas, políticas, objetivos, meios e valores solidáriose compatíveis com os interesses do mundo do trabalho e a ideação revolucionária.

1 - Este ensaio foi apresentado por escrito no Seminário Internacional de Montevideo – promovido pelas revistas marxistas do cone sul e dedicado ao tema Marxismo y capitalismo hoy: modernidad y crisis – , sendo exposto oralmente no taller intitulado Ideologias en el capitalismo tardio (I), que também contou com a participação da professora universitária uruguaia Ana Ribeiro, no dia 25 de maio de 1996, sábado, às 10:00 horas.

2 - Folha de São Paulo, 19/10/95, Cad. 1, p. 4.

3 - HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal. Madri, Alianza Editorial, 1986, p. 207.

4 - MARX, K. El Capital. México, Fondo de Cultura, 1975, v. I, p. 664.

5 - Idem, Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Borrador) 1857-1858. México, Siglo XXI, 1971, v. 1, p. 3.

6 - Idem, El Capital, cit., v. I, p. 651.

7 - GRAMSCI, A. Quaderni del Carcere. Torino, Einaudi, 1977, t.III, p.2011.

8 - Idem, ibidem, pp. 131 e 132, 2.021-2.023, 2.038 e 2.039, 2.201.

9 - MARX, Karl. Elementos ... Cit., v. 1, pp. 181 e 182.

10 - HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa, Guimarães Ed., 1986, p. 59, pfo 51.

11 - ENGELS, Friedrich. "Ludwig Feuerbach y el fim de la filosofía clásica alemana". In: Obras Escogidas. Moscú, Edit. Progresso, 1980, t. III, p. 390.

12 - Folha de S. Paulo, 15/10/95, cad. 1, p. 10.

13 - CAMPELLO, Murillo. "O acordo de Basiléia e a indústria bancária brasileira". In: Conjuntura Econômica. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, vol. 49, no. 10, outubro de 95, p. 34.

14 - Ver os números apresentados por RODRIGUES, Cari; e PATUA, Gustavo: Folha de S. Paulo, 24/11/95, cad. 1, p. 14.

15 - MARX, Karl. Op. cit., v. 1, p. 21.

16 - ARISTÓTELES. "Ética a Nicômaco". In: Os pensadores: Aristóteles, vol. IV. São Paulo, Abril S/A Cultural e Industrial, 1973, pp. 272 e 273.

17 - HEGEL, G. W. F. Ciência de la Lógica. Buenos Aires, Ediciones Solar S.A. y Librería Hachette S.A., 1976, p. 532.

18 - MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Lisboa/São Paulo, Editorial Presença/Martins Fontes, 1975, p. 39.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 9, Julho de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

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