![]() ![]() ![]() ![]() ![]()
| Resenha:MILLET, Kate The Politics of CrueltyAn Essay on The Literature of Political ImprisonmentEd. W. W. Norton & Cia, USA, 1994, 335 págs.
| ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Sergio Lessa
Sergio_Lessa@revistapraxis.cjb.net
Professor da Universidade Federal de Alagoas, membro das editorias da Revista Práxis e da Crítica Marxista.
O livro de Kate Millet, conhecida militante da esquerda norte-americana, é profundamente perturbador.
Inicialmente, pela demonstração de que a II Guerra Mundial marca o fim de um longo período, do fim da Idade Média à primeira metade do século XX, no qual a tortura foi banida do procedimento judiciário legal e, em seguida, teve diminuída sua ocorrência, sugerindo a possibilidade do seu desaparecimento com o avanço da "civilização". A partir de 1945, contudo, assistimos ao retorno da tortura enquanto instrumento, senão legal, ao menos para-legal e legítimo, para a repressão política direta. Nova onda de desenvolvimento das técnicas de tortura e nova expansão da sua presença pelo mundo indica o ressurgimento de um velho fenômeno com um novo conteúdo: a repressão política passa a ser seu o palco privilegiado. Ela se converte em instrumento exclusivo de aparatos estatais repressores, que atuam à margem do judiciário, ainda que muitas vezes com o consentimento velado, ou explícito, do mesmo.
Primeira constatação perturbadora: o apogeu do Welfare State, a forma mais democrática que o capitalismo já conheceu, e o renascimento da tortura, são dois fenômenos contemporâneos. Não deixa de ser irônico que a primeira ocorrência de tortura nesse novo contexto se deixarmos de lado o Gulag soviético e as práticas de tortura nas sociedades pós-revolucionárias da Europa Oriental e Ásia tenha sido patrocinada, na Argélia, por um dos baluartes da democracia ocidental, a França. E que uma outra democracia, a norte-americana, seja a responsável pela generalização da prática da tortura contra prisioneiros políticos na América do Sul e Central a partir da década de 1950, justamente aquela que marca o apogeu do Welfare State. Esse é o primeiro argumento perturbador de Millet: a tortura foi redescoberta pelos países "democráticos" nas últimas décadas. Tem servido como instrumento para a manutenção dos seus impérios.
O segundo argumento inquietante do texto de Millett está na demonstração de como a transformação da tortura em instrumento direto da repressão política fez com que passasse por profundas mutações internas. Não se trata mais de convencer o prisioneiro a abandonar as suas crenças, nem mesmo de uma execução pública exemplar: trata-se, agora, de retirar informações necessárias à luta político-militar imediata. Ela agora é secreta, é escondida, é misteriosa atua nas sombras, na noite, nos calabouços e nos porões. Novas técnicas, novos rituais impregnam essa nova feição da tortura, que transparecem imediatamente na nova tipologia que assume a relação entre o torturador e o prisioneiro, e de modo menos imediato, na forma como as informações são processadas pelos órgãos de inteligência, na relação entre essas informações e os procedimentos jurídicos etc.
Essas revelações da investigação de Millett são inquietantes, tanto no que significam enquanto sintoma do agravamento da crise global em que estamos mergulhados, como pelos detalhes que revela das diferente formas em que a tortura tem sido legalizada, ou pelo menos legitimada, como prática de Estado.
Os Estados Unidos assistem hoje ao que parece ser uma verdadeira explosão da literatura de contestação ao status quo. De um modo geral, contudo, parece que os novos autores têm revelado uma incapacidade para superar uma certa ilusão de que a crise do capitalismo mundial (e do império norte-americano) possui soluções que não envolvam uma restruturação global da reprodução social. Barbara Ehrenreich, em O medo da queda, William J. Wilson, em When work disappears (Knopf, 1996), Mandrick, em The end of affluence (In: Práxis no 7) e, agora, também Millett, produzem retratos fiéis da realidade, mas o diagnóstico que fazem, e as soluções que propõem, estão em geral muito aquém do quadro de crise por eles delineado.
Millett, nesse sentido, não consegue levar até às últimas conseqüências a sua tese de que o renascimento contemporâneo da tortura é, em alguma importante medida, uma recriação das sociedades ditas democráticas (França, Estados Unidos etc.). Como um Estado pode ser democrático e promover a tortura ao mesmo tempo? Que democracia é essa que necessita da tortura? Sabemos nós que é aquela democracia formal dos países capitalistas centrais, que tem como contrapartida necessária a presença de ditaduras na periferia dos seus impérios (tal como necessita da superexploração do trabalho no Terceiro Mundo para manter seus elevados padrões sociais, seu Welfare State). Millett chega à constatação exemplar de que Estado e tortura são duas coisas que se entrelaçam de modo muito íntimo e, na parte final do seu livro, chega muito perto da tese segundo a qual apenas coma extinção do Estado pode a tortura se tornar algo pertencente ao passado da humanidade. Novamente, a constatação não a leva a retirar as últimas conclusões dos seus argumentos.
Um outro limite do texto de Millett está no seu silêncio sobre a presença norte-americana no Vietnã. Ainda que ela faça denúncias contundentes contra o apoio norte-americano às ditaduras da América Central e às ditaduras militares que assolaram, há até bem pouco tempo, a América do Sul (o Brasil é tratado de modo direto em várias passagens importantes), ela deixou de analisar o direto envolvimento de norte-americanos em torturas tanto na Coréia como no Vietnã. Esse silêncio de Millett não nos parece casual: a atuação do exército francês na Argélia é investigada em detalhes, mas o comprometimento direto de norte-americanos em torturas é algo que não lhe chama a atenção, pelo menos a ponto de merecer algumas páginas em seu estudo. Mais uma vez, o fato de ser americana parece cobrar seu preço nesse constrangedor silêncio.
Em que pese esses e outros silêncios, o texto e a investigação de Millett são brilhantes. Sua crítica indignada e irônica a Georges Bataille, no elogio que ele faz ao que acredita ser o aspecto "sexy" da tortura; sua descrição da especificidade da condição feminina na "nova" tortura, aquela que emerge após a II Guerra Mundial; seu comentário sobre o filme Closet Land, de Radha Bharadwaj; suas longas páginas que descrevem a especificidade da solidão relatada pelos submetidos a longas torturas; a emocionante vitória de Nien Chen sobre seus torturadores chineses, que relembra em alguns detalhes a resistência de Dmitrov à prisão nazista etc., são momentos que fazem de The Politics of Cruelty um texto indispensável.
Caro Leitor, esperamos que a leitura desta resenha, publicada na Revista Práxis número 9, Julho de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©.
Retornar ao início da página
Clique aqui para acessar a Primeira Página da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para conhecer as Características da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo por Tomos da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo do Tomo 9 da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar a Lista de Autores publicados pela Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar a Lista de Artigos e Ensaios publicados na Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo por Assuntos da Revista Práxis na Internet.
Para contatar a Revista Práxis mande um e-mail para rvpraxis@gold.com.br
ou leia a Página de Endereços para Contatos.
Para contatar o WebMaster da Revista Práxis na Internet mande um e-mail para: wmpraxis@horizontes.net
|
|
Néliton Azevedo, Editor, WebMaster.
© Projeto Joaquim de Oliveira, 1997. All rights reserved.