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| 100 anos de CanudosElogio à DominaçãoR. Levine e a República Sertaneja de Belo Monte 1 | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Mário Maestri
Mario_Maestri@revistapraxis.cjb.net
Doutor em História pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, professor da UCS e da UPF, membro fundador do Centro de Estudos Marxistas-RS, sócio da Revista Práxis.
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Fotografia original do 12o Batalhão de Infantaria
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Guerra de Canudos, Bahia, 1897Apesar de serem a confederação dos quilombos de Palmares e a república sertaneja de Belo Monte acontecimentos históricos simbolicamente próximos e aproximáveis, as datas jubilares daqueles sucessos causam repercussões diametralmente opostas.
O transcurso do III Centenário do fim da resistência palmarina despertou escasso interesse. Em 1995, a atenção do grande público desviou-se do debate sobre o significado da confederação quilombola, concentrando-se na exótica, superficial e autofágica discussão sobre a sexualidade do comandante negro.2 Apenas um ano após o transcurso do terceiro centenário da morte de Zumbi, lançou-se uma publicação que registrou condignamente aquele aniversário, avançando o conhecimento historiográfico sobre os quilombos brasileiros3.
Não se repetiu o mesmo desinteresse no relativo à república sertaneja. Antes mesmo de completarem-se os cem anos do início da guerra dos sertões de Canudos, ocorreram três importantes lançamentos historiográficos sobre os fatos: O treme-terra: Moreira César, a República e Canudos, de Oleone Fontes; O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos, de Robert M. Levine; e Canudos: o povo da terra, de Marcos Villa.4 Livros, um filme, documentários e encontros científicos nacionais e internacionais foram e serão lançados ou realizados. E, como não poderia deixar de ser em nossa era da informação virtual, os acontecimentos de Belo Monte possuem já uma bem realizada home page, com resumo dos fatos, fotografias, bibliografia mínima e um animado fórum5.
Fenômenos extra-historiográficos contribuiriam para o inesperado interesse sobre a guerra sertaneja de 1896-7. Apesar do anunciado fim da história, dos movimentos sociais e da própria esquerda, atualmente pululam com inesperada intensidade movimentos camponeses e rurais insurgentes na América Latina. Sobretudo os acontecimentos do México trouxeram algum alento às forças anti-imperialistas sul-americanas, profundamente deprimidas após a débâcle do Leste Europeu.
No Brasil, no contexto da ofensiva internacional triunfante do neoliberalismo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) se apresenta hoje como a única força social popular que tem alcançado vitórias reais e conseguido determinar as políticas e ações governamentais no sentido dos interesses das classes populares. O movimento conselheirista e seu conteúdo místico surgem naturalmente como contrapontos históricos do MST, da Igreja progressista e das Comunidades Eclesiásticas de Base (CEB), esses dois últimos movimentos também em refluxo. O excelente livro de Marco Villa, Canudos: o povo da terra, que analisa o arraial de Belo Monte como uma forma de concretização natural, no mundo rústico, do cristianismo primitivo, certamente expressa o influxo do MST e da CEB na reflexão historiográfica sobre o movimento conselheirista. Não deixa de ser interessante o fato de que a leitura do autor sobre Belo Monte destoe, nesse trabalho, de sua visão, em um texto anterior Canudos : o campo em chamas , de menores ambições, onde se dá maior importância às causas sociais e não espirituais do confronto6.
A dimensão esotérica e mística das efemérides decimais determina que sobretudo os decênios, cinqüentenários, centenários, sesqüicentenários e milênios sejam oportunidades particulares da conformação do imaginário coletivo sobre o passado, quando transcursos históricos singulares ou singularizados reúnem as condições mínimas para serem registrados e celebrados. Nessas ocasiões, as celebrações do transcurso dos grandes natalícios históricos se transformam comumente em verdadeiras operações de construção e reconstrução das visões coletivas do passado.
O bicentenário da Revolução Francesa foi acontecimento exemplar, como momento de manipulação da consciência histórica. Aquele natalício foi utilizado como momento de poderosa tentativa de destruição da compreensão de 1789 como marco fundador da nação francesa e da conformação do pensamento marxista7. No Brasil, em 1972, nos momentos mais duros da ditadura militar, os festejos do Sesqüicentenário da Independência ensejaram uma gótica tentativa de re-entronização do personagem histórico Pedro I como fundador do Estado nacional. Iniciativa pertinente, da ótica militar-conservadora, já que foi ele o promotor do primeiro golpe de Estado e grande vetor do Estado nacional nascente monárquico, autoritário, centralizador e escravista.
É crível que o transcurso do I Centenário da destruição da república sertaneja de Belo Monte enseje acalorado debate historiográfico e importantes tentativas de aprofundamento da manipulação do imaginário brasileiro sobre seu passado e seu presente. O significado desse transcurso histórico aumenta devido à importância da excepcional obra de Euclides da Cunha Os Sertões : Campanha de Canudos , ainda hoje referência essencial para o pensamento autoritário e elitista brasileiro.
I - Um Olhar Imperial sobre o Brasil
O livro O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos, do historiador norte-americano Robert M. Levine, professor da Universidade da Califórnia publicado em inglês em 19928 e traduzido e lançado em português em 1995, sob o patrocínio prestigioso da Ed. da Universidade de São Paulo, praticamente sem modificações, a não ser na ordem da apresentação da bibliografia9 , certamente monopolizará e organizará parte das discussões sobre a república sertaneja de Belo Monte, contribuindo poderosamente para conformar a visão historiográfica e o imaginário brasileiros sobre aqueles acontecimentos.
O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos constitui trabalho sintético de grande fôlego. Foi escrito a partir de uma bibliografia, em inglês e português, com mais de quinhentos títulos. O texto português, com a bibliografia, supera 390 páginas. Na atual conjuntura, é improvável que surja um trabalho de igual objetivo e dimensões, no Brasil. Sobretudo se considerarmos o pouco prestígio atual junto aos cientistas sociais e órgãos financiadores de trabalhos abordando a história social.
No Brasil como alhures, nesses tempos de "Nova História", os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bon ton historiográfico recomendam temas e estudos monográficos e intimistas, abordando a biografia, o "exótico ou o escabroso, especialmente se com conotações sexual ou mística"10. Assim sendo, é provável que o livro em questão se transforme no principal trabalho historiográfico de referência sobre os acontecimentos sertanejos, por um longo tempo, substituindo, nesse relativo, nem que seja parcialmente, os livros de Euclides da Cunha, de Rui Facó e de Edmundo Moniz, que ocupavam até agora tal condição11.
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Fotografia original do 39o Batalhão e 6a Brigada canhoneando Canudos
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Guerra de Canudos, Bahia, 1897Pela sua dimensão, pelos seus objetivos, pelo possível papel que desempenhará sobretudo na historiografia brasileira,12 O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos exige uma discussão que vá além dos acontecimentos históricos em questão. Sobretudo porque cremos que esse ambicioso trabalho expresse também a consolidação de uma tendência historiográfica que talvez seja pertinente definir, apesar da pomposidade e afetamento do termo, de imperial.
Ao igual de outras regiões da América Latina, a história do Brasil serviu como campo de liça de uma plêiade de historiadores norte-americanos, sobretudo após a revolução cubana, que ensejou um significativo crescimento dos fundos alocados pelas instituições financiadores daquele país para os estudos americanistas. Tal foi a importância dos brazilianists para nossas ciências sociais que eles se transformaram em tema de estudos.
Muitos trabalhos dessa ampla produção constituem marcos referenciais da historiografia brasileira. No campo das pesquisas escravistas, os estudos de R. Conrad e S. Stein são exemplos dessa contribuição germinal13. Poderíamos assinalar outras contribuições de igual valor para outros períodos e temas de passado brasileiro. Apesar de escritos originalmente em inglês, como parte de exercícios acadêmicos norte-americanos, essas obras se inseriam harmoniosamente na produção historiográfica brasileira, fecundando-a poderosamente.
O trabalho de Robert M. Levine filia-se a uma tendência distinta. O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos foi escrito, como as obras anteriores, inicialmente em inglês, como parte da ampliação do campo de intervenção da historiografia norte-americana sobre a América Latina. Porém, trata-se de uma tentativa de leitura global da sociedade brasileira, tendo como referência os sucessos de 1897, para o público e para a inteligentzia norte-americana sobretudo, a partir de critérios, categorias e paradigmas dominantes naquela sociedade. Nesse sentido, constitui um livro sobre a história brasileira, de certo modo estranho à historiografia brasileira.
Não constitui novidade a produção de leituras sintéticas sobre a realidade brasileira, para público não-brasileiro. Esse gênero historiográfico produziu clássicos de nossa história, como a História do Brasil, de Hendrich Handelmann, redigida no século XIX, para citar um exemplo amplamente conhecido e reconhecido14. A história, como ciência, rejeita limites nacionalistas e aponta tendencialmente para a sua internacionalização.
Em O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos, há modificações de qualidade, também em relação a estudos sintéticos realizados por autores não-brasileiros dirigidos aos leitores de suas nações. O livro de R. Levine não só assenta raízes em paradigmas, critérios e categorias próprias e dominantes na sociedade e na historiografia norte-americanas, como almeja igualmente transformar-se na interpretação hegemônica, da realidade analisada, na historiografia e na sociedade brasileira, essa última palco dos fatos abordados e, em última instância, principal interessada naqueles acontecimentos.
É antiga a proposta de uma historiografia internacionalista, escrita por sobre as razões, idiossincrasias e preconceitos nacionais, que, respeitando as especificidades das diversas instâncias do desenvolvimento civilizatório, seja escrita a partir das grandes determinações unificadoras da experiência humana. Porém, por um lado, devido às tendências neoliberais e irracionalistas atualmente triunfantes, tal corrente se encontra em franca depressão. Por outro, nesse último contexto, a crescente internacionalização da economia cria as condições para a consolidação de tendência historiográfica que, por seu conteúdo, e para diferenciá-la da corrente recém-referida, parece-nos possível definir de imperial, como assinalamos.
II - O Padrão Excelente
A pertinência dessa nominação se deveria ao fato de tal produção não propor a constituição de uma historiografia sem fronteiras. Ou seja, como viemos de assinalar, analisar fatos locais, regionais, nacionais ou internacionais nas suas especificidades e determinações históricas singulares, a partir de critérios, paradigmas e necessidades profundos, próprios e comuns a todas as sociedades, expressando assim a unidade essencial da história. Ao contrário, a obra em questão constitui uma construção totalizante, de síntese, formatada pelos pressupostos, idiossincrasias, necessidades e paradigmas do centro internacional do poder econômico, político, militar e portanto historiográfico hegemônico. No caso, os USA.
R. M. Levine propõe-se a uma superação documental e metodológica da historiografia conselheirista. Por um lado, promete "re-interpretar" os acontecimentos em questão, inserindo-os no "contexto da história brasileira", a partir "de uma base de recursos mais ampla" do que a de todos os "trabalhos anteriores". (RML: 1995, 33) Por outro, baseado nesse prometido desbordamento bibliográfico e arquival, dispõe-se a realizar um salto metodológico de qualidade em relação a tudo que foi escrito.
Para o autor, tradicionalmente, os sucessos dos sertões baianos teriam sido analisados de duas óticas. A primeira, seria a hegemônica: "A maioria das histórias sobre Canudos preserva a visão do litoral euclidiana, ou seja, uma pressuposição de que os canudenses se recusam a aceitar a República porque temiam o progresso." (RML: 1995, 30) A segunda seria a da esquerda, mais precisamente a do PCB15: "Os ideólogos do Partido Comunista Brasileiro tentaram enxergar em Canudos o resultado da mobilização de camponeses conscientes, o primeiro exemplo de uma situação de conflito e luta de classes." (RML:1995, 295)16
Para o autor, que analisa longamente a primeira visão e apresenta, rápida e caricaturalmente, a segunda, as duas leituras terminam aproximando-se, na sua impotência metodológica: "Nenhuma das interpretações contribui muito para uma melhor compreensão das vidas e motivações daqueles homens e mulheres que seguiram o Conselheiro até o seu refúgio sagrado." (RML: 1995, 30) Para realizar a revolução metodológica prometida, o autordispõe-se a "examinar Canudos da perspectiva de todos aqueles que se viram envolvidos em sua história". (RML: 1995, 33) Tanto a "base mais ampla" como a "perspectiva" metodológica do importante trabalho de R. M. Levine colocam essenciais questões epistemológicas.
Nas pouco mais de quinhentas referências utilizadas na análise da república sertaneja de Belo Monte, mais de duzentas são trabalhos em inglês, maioritariamente produzidos por historiadores norte-americanos, sobre o Brasil e a América Latina. Essa produção é utilizada intensamente, sobretudo na apresentação do quadro sintético e global da sociedade brasileira. Como o próprio autor assinala, algumas vezes estudos de outras regiões do Brasil e da própria América Latina são utilizados para completar a reconstrução do cenário geral do drama nordestino.
Tal fatocomprova a existência de uma importante produção sobre a América Latina, praticamente autônoma à própria historiografia latino-americana, e um quase truismo para os historiadores brasileiros. Ou seja, a Biblioteca do Congresso dos USA é o melhor local para escrever sobre quilombos no RS, sobre movimentos sertanejos nordestinos ou sobre a extração da borracha na Amazônia. Nessa época de comunicação virtual, qualquer autor pode realizar a prova dos nove. Caso tenha livro editado no Brasil, certamente o encontrará facilmente nos fichários daquela biblioteca e mui dificilmente nos das bibliotecas de sua universidade, cidade ou capital.
Nenhum autor norte-americano pode ser recriminado pela excelência desses recursos. Ao contrário, eles apenas realçariam a incúria das autoridades brasileiras que não garantem as condições que facilitem a produção, no País, de uma ciência de qualidade e de vanguarda. Isso, mesmo quando temos um sociólogo na presidência da República. Entretanto, tal fato constitui fenômeno mais complexo. Não devemos esquecer que a construção das condições necessárias para uma ciência imperial centros de pesquisas globais, megabibliotecas, grandes financiamentos, divulgação internacional etc. é acompanhada pela destruição crescente das condições mínimas de trabalho nas províncias.
O mesmo Estado que impõe restrições draconianas dos investimentos culturais na periferia dos centros hegemônicos através da exigência de organismos como o FMI, Banco Mundial, OMC etc. de restrições dos investimentos sociais dá-se as condições para produzira interpretação teórica das províncias,segundo sua ótica e interesse. Essas facilidades/dificuldades que almejam a produção de uma ciência social ideologicamente disciplinada cerceiam igualmente os cientistas sociais norte-americanos progressistas, dificilmente admitidos nas universidades daquele país17.
Exige também discussão o fato de que um livro sobre a realidade brasileira, com as intenções hegemônicas assinaladas, seja escrito e se baseie sobretudo em uma vasta bibliografia em inglês. Isso não apenas porque a bibliografia e a língua utilizadas obrigariam o autor brasileiro, para escrever sobre sua própria realidade, a conhecer, ter acesso e referir-se, necessariamente, àquela língua e àquela bibliografia. Mas sobretudo porque tal prática tende a determinar, não um enriquecimento, mas um empobrecimento fatual e conceptual do tema.
Assinalamos que O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos propõe-se a realizar uma recapitulação global explicativa da sociedade brasileira e que boa parte de tal empresa é realizada a partir de textos sintéticos produzidos por scolars norte-americanos, de certo modo estranhos à própria historiografia nacional. Nesse relativo, não raro se tende a desconhecer simplesmente a bibliografia brasileira especializada.18 O que resulta, como veremos, num empobrecimento significativo das questões.
Também por esse motivo, mas não apenas devido à ele, a leitura de Levine da história e da sociedade brasileiras e do movimento conselheirista termina impregnada por uma visão na qual a sociedade norte-americana liberal é o paradigma excelente, a vara de todas as medidas.
III - Liberalismo Social
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Vista Geral de Canudos ao Norte
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Fotografia original. Bahia, 1897Apesar da violência classista que os USA conheceram no passado e conhecem no presente, aquela nação e sociedade são apresentadas, normalmente, como referência paradigmática. Um exemplo: "O que efetivamente triunfou na República brasileira foi um liberalismo abrandado e muito pouco ligado às questão sociais, uma imitação do sistema político norte-americano, sem, no entanto, nenhum tipo significativo de defesa dos direitos individuais ou qualquer compromisso referente à educação pública ou outros mecanismos que preparassem a população para o exercício da cidadania." (RML: 1995, 40)
Assim, de supetão, retomamos a velha discussão sobre as razões pretensamente responsáveis por não termos alcançado os parâmetros sociais e políticos tidos como naturalmente excelentes do "liberalismo social" do grande Estado americano. É igualmente com perplexidade que o leitor se informa que, no Brasil, "o judiciário funcionava como instrumento de controle social e não de justiça social"19. (RML: 1995, 97) O que introduz a proposta de que em outras paragens mais civilizadas, e sobretudo nos USA, a Justiça foi instituição criada para assegurar a desejável "justiça social", descumprindo a função de coerção e discriminação social. (RML: 1995, 97)
No mesmo sentido, surpreende o leitor a referência ao conhecido racismo baiano e à desconhecida democracia racial norte-americana: "Certa vez, quando os Estados Unidos tentaram indicar um cônsul negro para Salvador, houve um verdadeiro 'furacão tropical' de protestos". A expressão "certa vez", própria aos atemporais contos de fadas, não esclarece o momento em que as elites norte-americanas deram essa lição de democracia racial: Antes da guerra de Secessão? Em 1896? Há cinco anos? É igualmente tentador indagar sobre a acolhida de eventual cônsul negro baiano, na Carolina do Sul, há duas décadas, para não apertarmos o parafuso. (RML: 1995, 94)
Cremos que, devido às características assinaladas e ao seu caráter imperial e exterior à realidade brasileira estudada, O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos apresenta explicações uniformizadoras muitas vezes caricaturais e culturalistas , que abstraem determinações regionais e sobretudo de classes da sociedade brasileira, que é vista como uma totalidade homogênea. Quando tal proposta se choca frontalmente com os fatos, tende-se à expurgar da nacionalidade brasileira aqueles setores sociais que não se enquadram nessa leitura. Nesse sentido, é exemplar o conteúdo dado na obra ao substantivo e adjetivo pátrios "brasileiro".
Ao analisar a obra de Euclides da Cunha, afirma-se: "Tal foi a visão, reforçada pela narrativa assombrosa e brilhante de Euclides da Cunha, que os brasileiros acabaram adotando, numa tentativa de racionalização da chocante brutalidade dos anos 1896-1897, quando a comunidade foi destruída." (RML: 1995, 108: destacamos) É recorrente no texto a tendência a evacuar as classes subalternas da categoria "brasileiro" e restringi-la às elites. Efetivamente, o texto sugere que Belo Monte e os conselheiristas não fizessem parte do Brasil e não devessem ser considerados, portanto, brasileiros.
Ademais, e em sentido oposto, cria-se igualmente uma unidade e homogeneidade nacionais inexistentes onde, ao contrário, há diversidade e contradição. Assim fazendo, o autor acaba determinando que atos e essências próprios às classes dominantes violência social, por exemplo sejam alocados também nas chamadas classes subalternas. (RML: 30, 59, 102, 148, 342 et passim)
Nos momentos conclusivos do trabalho, ao interrogar-se sobre o nível de violência do Brasil, tido como paradoxal, afirma-se: "É surpreendente que a sociedade brasileira tenha dado à luz a tantos movimentos violentos num espaço de tempo relativamente curto." (RML: 1995, 319) Tal fato seria próprio à cultura lusitana. E para reforçar a visão da violência idiossincrática da civilização lusitana, cita-se, entre outros exemplos, a sociedade angolana colonial!20 Em verdade, a violência em questão seria produto de "uma certa dose de alienação que sempre fez parte da vida no Brasil". (RML: 1995, 319)
O fato de que iguais violência e alienação encontrem-se nas sociedades americanas colonizadas pelos espanhóis, pelos franceses, pelos ingleses etc. retira qualquer operacionalidade de semelhante explicação. Essa última, devido ao seu caráter culturalista e supra-histórico, acaba, mais uma vez, diluindo a responsabilidade das elites nacionais na histórica e crescente barbarização social.
Apesar das inúmeras reflexões penetrantes e elucidativas, essa leitura imperialdetermina um empobrecimento do contexto histórico reconstruído, em grande parte, a partir de uma historiografia generalista e monográfica de certo modo estranha à historiografia brasileira. São inúmeros os barbarismos historiográficos do texto. Um exemplo. Ao leitor gaúcho certamente causará arrepios ler que Euclides da Cunha esquecera que os homólogos sulinos dos pobres "boiadeiros" nordestinos, "viverem num meio ambiente muito mais rico, podendo assim prosperar somente com a caça do gado selvagem apesar dessa situação ter começado a mudar em fins de 1890 com a introdução do arame farpado, o que facilitava a domesticação dos animais". (RML: 1995, 105)
Não sabemos se nos USA a introdução das cercas foi concomitante com o fim da caça ao gado bravio. No RS, os dois fenômenos não possuem relação direta ou indireta. Em 1890, no RS, não apenas a produção pastoril declinava inexoravelmente, dando lugar à policultura, como havia quase um século que os "gaúchos" que se dedicavam à "caça do gado selvagem" eram tidos, havidos e tratados como ladrões. Em verdade, há muito as terras já tinham sido apropriadas, divididas e demarcadas com outras divisasque as cercas de arame farpado21.
IV - A Couraça do Gaúcho
O leitor brasileiro ficará também perplexo ao saber que o gaúcho, como o vaqueiro nordestino, vestia-se com "armaduras de couro". (RMC: 1995, 105) O pala, o poncho, o xiripá e a bombacha do gaudério sulino não eram confeccionados em couro, mas sim em tecido. Se o fossem, dificilmente se explicaria essa esquisitice, já que o pampa era desprovido da densa e agressiva vegetação que exigia, em regiões dos sertões nordestinos, as roupas de couro do vaqueiro22.
Também surpreende a afirmação sobre os núcleos de pequenos proprietários sulinos: "Havia certas exceções no Centro-Sul e no Sul, maioritariamente casos de imigrantes que vieram como colonos e que, após uma ou duas gerações, tornaram-se produtores de hortaliças. Raramente colonos brasileiros conseguiam se sair assim tão bem." (RML: 1955, 158)
São abundantes os estudos sobre a imigração de centenas de milhares de europeus, que receberam lotes, gratuitamente até 1850 e a partir de então onerosamente. Em geral, no Sul, as glebas coloniais, vendidas a baixo preço e financiadas, foram pagas em alguns poucos anos, dez em geral, sem grandes dificuldades. Também no relativo ao Sul, a renda colonial provinha sobretudo da comercialização do milho, do vinho e da banha. As verduras, sem importância econômica, eram destinadas ao consumo familiar23.
Em ao menos um caso, uma afirmação do autor coloca grave questão metodológica, já que se refere a uma das principais características da sociedade brasileira. Segundo o texto: "Na América portuguesa (Brasil), assim como na França e nas demais regiões da Europa, a maioria das pessoas vivia nas cidades". (RML: 1995, 83) No Brasil, a urbanização é fenômeno relativamente recente. Muito além do início do século XX, a imensa maioria da população brasileira vivia e trabalhava no meio rural.
Durante a Colônia, o Império e a República Velha, as próprias capitais regionais litorâneas eram acanhados centros urbanos, à exceção do Rio de Janeiro e Salvador. Essa última cidade, ex-capital colonial e segunda metrópole brasileira quando dos sucessos conselheiristas, como assinala o autor, possuía uns 180 mil habitantes, num momento em que a população da Bahia ultrapassaria facilmente os dois milhões de habitantes. (RML: 1995, 92-4)
Esse gravíssimo desconhecimento da história brasileira se transforma em um dos eixos sobre o qual se assenta o estudo em questão. Efetivamente, a visão dualista da sociedade brasileira do autor se apoia em uma interpretação infundada do contexto histórico da época, na qual a maioria da população brasileira viveria no litoral, em núcleos urbanos. Os sertões seriam terras semi-despovoadas e semi-desconhecidas.
Essa verdadeira "Terra incógnita" teria sido revelada, pela primeira vez, aos "brasileiros", por Euclides da Cunha: "Antes de Canudos, mesmo os brasileiros letrados de todas as regiões do País, com exceção dos nordestinos praticamente ignoravam a existência de lugares como o sertão." (RML: 1995, 78) Nos fatos, em geral, nessas épocas, os "brasileiros letrados" conheciam o que ocorria em Paris, no Rio de Janeiro e na sua região. Em fins do século XIX, o Brasil era uma unidade, sobretudo político-administrativa, em processo de construção. É sabido que a centralização efetiva da sociedade brasileira foi um movimento posterior à Revolução de 30, ensejado pelo processo de industrialização nacional.
Inúmeras outras afirmações merecem uma revisão, já que destoam com a inegável qualidade do trabalho. Entre elas, por exemplo, encontram-se propostas como "não existem muitas pesquisas sobre a Cabanada e outros movimentos oitocentistas" (RML: 1995, 311), como a definição de Tiradentes como "líder insurrecional" ao lado de Zumbi e de Conselheiro (RML: 1995, 80), como a inexistência de "uma presença portuguesa ostensiva" no Brasil, no período colonial; ou a existência de "um certo grau de participação popular legal" durante a Regência (RML: 1995, 98) etc.
No relativo a essa última afirmação, o saudoso historiador Manuel Maurício de Albuquerque lembrava, com pertinência, o caráter elitista do regime eleitoral regencial, mesmo após 1834: dos cinco milhões de habitantes do Brasil, apenas cinco mil eleitores de segundo grau grandes senhores de terras e de escravos podiam votar e serem eleitos para as magistraturas supremas24.
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Camponês Conselheirista, em frente à sua choupana
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Fotografia original. Bahia, 1897Os inúmeros barbarismos historiográficos dizem igualmente respeito à história de Belo Monte. Há consenso historiográfico que as tropas enviadas de Salvador para prender Antônio Maciel pernoitavam em Uauá quando foram surpreendidas, ao amanhecer, por um grupo de conselheiristas, possivelmente enviado para interceptá-las. O próprio autor adere, em outra passagem, a essa interpretação25.
V - Ubiqüidade Sertaneja
Portanto, é incompreensível a proposta de "canudenses" estacionados "para rezar", em Uauá, como propõe o autor: "Em fins de 1896, um contingente de cem policiais estaduais, sob o comando de um tenente, foi mandado para interceptar o grupo de canudenses que, a caminho de Juazeiro, havia parado temporariamente em Uauá para rezar." (RML: 1995, 222)26
Ainda que nossa informação sobre a família e a infância de Antônio Macial seja limitada, há também consenso entre os historiadores que seu pai, Vicente Maciel, tenha se casado apenas duas vezes, a primeira com sua mãe, Maria Joaquina do Nascimento, também conhecida como Maria Chana e, a seguir, com Francisca Maria da Conceição. Ao contrário, o autor apresenta três esposas para Vicente Maciel e avança detalhes sobre um casamento, salvo engano, até hoje desconhecido.
"O primeiro casamento de Vicente terminou de forma desastrosa: abandonou sua mulher após tê-la espancado de maneira tão selvagem que quase a matou. Sua segunda esposa, Maria Maciel (mais conhecida como Maria Chana), instituiu uma rígida disciplina religiosa." Finalmente, ficamos sabendo que: "Seu pai se casou de novo em 1836, logo após a morte de Maria Chana, mas continuou a brigar e a bater constantemente na nova esposa." (RML: 1995, 181 e 184) Tal informação, se verídica, exige uma discussão e uma confirmação mais substancial, e não uma referência en passant.
A tendência do autor a pronunciar-se sobre tudo e todos, no referente à história do Brasil, leva a incorreções sobre inúmeros acontecimentos históricos. O movimento dos muckers é explicado devido à interferência do exterior em um modo de vida tradicional: "A penetração do mundo exterior, na forma de navegação de cabotagem ligando Porto Alegre a São Leopoldo e, em 1871, a finalização da ferrovia, veio perturbar o anterior isolamento da região: os muckers tentaram até impedir o funcionamento da estrada de ferro." (RML: 312).
A ligação fluvial a navegação de cabotagem é feita entre dois portos do litoral Porto Alegre/São Leopoldo foi contemporânea à fundação da colônia alemã e o movimento religioso tem sido explicado pelo isolamento econômico e sobretudo pelas diferenças sociais entre os colonos, e não pelo rompimento desse último. Salvo engano, não há informação histórica sobre a oposição ativa dos muckers à estrada de ferro. É igualmente improcedente a explicação da denominação mucker movimento místico europeu a partir de um hipotético "líder do movimento, o alemão Mucher"27. (RLM: 1995, 308)
Como compreender a afirmação sobre os conselheiristas: "Suas cidades não eram indolentes (indolent); e os sertanejos não eram miseráveis como mendigos, como pensavam os habitantes do litoral." (RML: 1995, 106; 1992, 62) No máximo, os habitantes da cidade não seriam indolentes. É igualmente paradoxal a afirmação de que "O conselheiro começava sua pregação com algumas sentenças em latim, que serviam para mistificar (mystify) seus ouvintes e consolidar sua autoridade" (RML: 1995, 193) Se é boa a tradução, o texto propõe que Antônio Maciel introduzia algumas palavras em latim para abusar da boa fé ou para enganar seus ouvintes, já que esta é a acepção do verbo "mistificar" em português, tendo o mesmo sentido em inglês.
O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos exemplifica dificuldades que serão colocadas pela crescente hegemonia de uma historiografia sobre a realidade brasileira escrita em língua não-vernácula. No presente caso, como já foi possível notar, sem o texto original, em inglês, fica difícil ao leitor saber se deslizes e barbarismos historiográficos e impropriedades categoriais são devidos ao texto original ou a uma tradução descuidada. Em todo caso, lamentavelmente, esse trabalho não conheceu uma tradução rigorosa, uma propriedade de linguagem, um respeito à língua da civilização abordada, como o magnífico trabalho de Robert Conrad, Últimos anos da escravatura no Brasil, para citar um exemplo já referido.
Alguns dos freqüentes deslizes de tradução não dificultam a compreensão do trabalho. É o caso em que se afirma que Antônio Maciel reconstruía as "paredes do cemitério", em vez dos "muros" dos mesmos (RL: 1995, 188) "cemetery walls". (RML: 1992, 126) Outros colocam problemas graves de interpretação. Na segunda página da "Introdução", ficamos sabendo que: "Em 1893, o Conselheiro liderou um grupo de discípulos pios até Canudos e, num inacessível vale montanhoso do sertão da Bahia, num rancho abandonado, fundou uma comunidade." (RML: 1995, 22)
Não fica difícil ao leitor conhecedor da história da fundação de Belo Monte, em uma fazenda abandonada, compreender que ranch (RML: 1992, 2) fazenda, em inglês foi traduzido pelo seu faux ami. Rancho, em português, significa correntemente pequena residência rural. Não dificulta a compreensão do texto a falsa identificação entre "boiadeiros" e vaqueiros, ainda que, na economia pastoril, a vaca a matriz assuma papel dominante. Portanto, chama-se comumente de vaqueiro quem se ocupa dessa criação. Em geral, apenas os bois são levados para o abate, dando-se portanto nome de boiadeiro àqueles que participam da condução das boiadas.
VI - Bandeirantes Negros
Não poucas vezes, o leitor surpreende-se com afirmações paradoxais. Por exemplo: (RML: 1995, 114) "O trabalho indígena era utilizado desde fins do século XVI, quando o governador Mem de Sá derrotou as tribos próximas ao Recôncavo e abriu aquela área para o cultivo da cana-de-açúcar. Tanto os escravos como os brutais bandeirantes contratados pelo governador da Bahia embrenhavam-se pelo interior à caça de indígenas."
A escravidão de nativos é muito anterior aos "fins do século XVI"28. Nos fatos, ela é contemporânea à ocupação colonial da costa, realizada a partir de 1530. Durante a administração de Mem de Sá, terceiro governador geral do Brasil, houve apenas um salto de qualidade na escravização de nativos. Alguns raros cativos negros participaram nas bandeiras e se desconhecem entradas formadas por cativos africanos, já que a escravidão negra procedeu à nativa. As bandeiras eram organizadas com alguns luso-brasileiros e muitos nativos aliados. Portanto, é absolutamente improcedente falar de "escravos" nas bandeiras.29Boa parte dessa confusão deve-se, mais uma vez, a uma tradução desatenta. Nesse caso, uma tradução possível seria: "Tanto escravistas (slavers) como brutais bandeirantes paulistas contratados pelos governadores (governors) da Bahia embrenhavam-se pelo interior à caça de indígenas." (RML: 1992, 70)
No mesmo sentido, apenas para dar outro exemplo, já que os vagões dos trens só atolam na areia após descarrilarem, seria preferível, em vez da tradução "vagões de trem abarrotados de suprimentos atolaram na areia", optar por "comboios de carretas carregados de suprimentos afundaram na areia até seus eixos". (RML: 1995, 253) De fato, no original lê-se: "Wagon trains loaded with supplies sank up to their hubs in sand." (RML: 1992, 175)
É igualmente de grande impropriedade a definição dos colonos alemães sulinos como "fazendeiros": "O empobrecimento era resultante da falta de capital por parte dos fazendeiros, o que os forçava a abandonar seus métodos tradicionais de cultivo para utilizar as técnicas de desmatamento e queimada comuns à região." (RML: 1995, 11) Sobretudo no Sul, fazendeiro é o grande proprietário dedicado ao pastoreio. Nesse caso, é incorreta a tradução de "farmers" (RML: 1992, 220) por fazendeiros, em vez de "agricultor", "cultivador" ou, como seria pertinente, "colono".
Além disso, o abandono dos métodos tradicionais europeus de cultivo e a utilização das "técnicas de desmatamento e queimada" foi um fenômeno geral e absolutamente inevitável na imigração teuto-italiana sulina, entre os colonos que progrediram ou entre os que fracassaram na aventura americana. Definitivamente, o sucesso ou o fracasso de uma exploração colonial não dependeu minimamente das "técnicas de desmatamento e queimada comuns à região", mas sim, na mais das vezes, da maior ou menor facilidade de escoamento dos produtos.
No texto português, aponta-se a existência, entre os "canudenses", de "alguns escravos ou servos fugitivos de antes da Abolição". (RML: 1995, 104) É-nos difícil saber o que se quer indicar com o vocábulo "servo" categoria reservada pela historiografia para descrever, sobretudo, o trabalhador hegemônico, na Europa feudal. No fato, segundo parece, o autor, por razões estilísticas, utilizava "bondsmen" (RML: 1992, 61) como sinônimo de escravo, e a tradução lançou mão, indevidamente, da segunda opção, segundo o Harrap’s, para aquele vocábulo.
Por outro lado, é absolutamente obscuro o sentido da afirmação de que: "Mesmo quando os bandidos armados eram mantidos à distância, os moradores das áreas rurais viviam sujeitos a engodos por parte de pretensos artistas e poseurs, os quais acabavam tirando-lhes suas parcas economias." (RML: 1995, 121; 1992, 75) Em francês atual, língua à qual talvez se refira o autor, já que o texto, no original, encontra-se em itálico, indicando ser um vocábulo estrangeiro, um poseur seria uma pessoa afetada.
É-nos também difícil compreender o sentido da caracterização como "jagunço" categoria que tradicionalmente designa capanga ou bandido nordestino dos cablocos sulistas envolvidos no movimento do Contestado: "Muitos desses homens possuíam armas e acabavam formando o núcleo do exército de jagunços de José Maria." (RL: 1995, 315) Em todo caso, os seguidores de José Maria eram, na imensa maioria, caboclos sem terra.
Algumas palavras, geralmente provenientes do inglês, invadiram o português coloquial do Brasil. No contexto da moderna divisão do trabalho e da insegurança do mundo urbano, a segurança security do indivíduo e do patrimônio passou a ser da alçada da intervenção do capital e a profissão especializada, desempenhada por "seguranças", dedicados à proteção de políticos, de bancos, de condomínios etc. Apesar da modernidade pós-liberal ter eclipsado tendencialmente o uso de termos próprios ao Brasil pré-moderno como guarda-costas e capangas , é impróprio definir como "seguranças" a eventual guarda pessoal de Antônio Maciel, se é que ela existiu, e, ainda mais, os defensores do arraial: "apenas um pequeno número de pessoas (os seguranças do Conselheiro e alguns de seus combatentes) eram verdadeiramente jagunços."; "que o fizeram buscar refúgio nas montanhas, defendido por seguranças." (RM: 1995, 105, 107, destacamos) Nesse caso, trata-se de outro erro crasso de tradução, já que no texto, em inglês, lê-se "bodyguards". (RLM: 1995, 63)
A gravidade de uma historiografia imperial, escrita na língua oficial da metrópole despreocupada com o respeito e fidelidade à própria realidade estudada, que se propõe como interpretação hegemônica para a sociedade involucrada pelo fenômeno, no presente caso assume um quase paroxismo quando dezenas de citações de documentos originais em português, após terem sido traduzidos ao inglês, foram vertidas, novamente, ao português. Assim, as citações traduzidas do português ao inglês, do texto norte-americano, possuem maior fidelidade do que as do texto português, já que sofreram apenas um e não dois movimentos de tradução!30
VII - Litoral e Progresso
A importância essencial de O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos encontra-se na sua interpretação dos acontecimentos, já que não apresenta, em relação aos trabalhos anteriores, inovação ou rediscussão significativa das fontes sobre o fenômeno, que permitam uma revisão substancial dos fatos. A vasta bibliografia utilizada não revoluciona o conhecimento sobre os acontecimentos, mas amplia a autoridade da interpretação apresentada. Possivelmente, no Brasil, será a explicação do autor sobre os acontecimentos que contribuirá para consolidar a revisão pretendida sobre a saga sertaneja.
Assinalou-se que o autor se propõe a analisar os acontecimentos sertanejos do ponto de vista de todos os participantes no confronto. Talvez também devido a essa disposição, tendências dualistas traspassam claramente o estudo, onde, como vimos, poderosas definições e sugestões elucidativas sobre o embate convivem com a compreensão dos acontecimentos como resultado do confronto de tendências "modernizantes" do "litoral", com o arcaísmo dos matutos dos sertões.
O autor afirma: "A tentativa de refúgio dos canudenses num santuário a salvo da ameaça e da intromissão das forças modernizadoras gerou temores quanto à capacidade de sobrevivência da República". Ou: "Canudos serviu para confirmar o medo da elite, surdo e latente, de que o atraso da população rural terminasse por frustrar praticamente todas as tentativas de reconstrução do Brasil dentro de moldes europeus." Ou ainda: "O ímpeto modernizador da República ameaçava trazer novas influências para o sertão, o que o Conselheiro, como figura de posicionamento social reacionário, não aprovava." (RC: 109; 109; 326, destacamos).
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Divisão Canet na cidade de Monte Santo
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Fotografia original. Guerra de Canudos, Bahia, 1897Mais de cem anos após 1889, é ainda difícil saber qual o "ímpeto modernizador" republicano que ameaçava, desde o litoral, o sertão. Maior razão tem o historiador Edmundo Moniz, recentemente falecido, em Canudos: a guerra social, em apontar que, em última instância, os sertanejos sublevavam-se contra a República precisamente porque ela se negava a modernizar os sertões, pondo fim ao latifúndio e ao atraso secular vivido pela população rural. Claro está que a sublevação dos camponeses e vaqueiros nordestinos constitui um movimento que, devido aos próprios limites históricos, assumiu e não poderia ter deixado de assumir uma forma ideológica mística e religiosa.
São absolutamente impertinentes as interpretações dualistas de nossa sociedade. Apesar de suas diversidades, o Brasil do litoral e o Brasil do sertão constituíam partes de uma totalidade íntima e profundamente articulada. Para Euclides da Cunha e tantos outros analistas, reconhecer tal realidade supunha aceitar que razões sociais e econômicas e não raciais, geográficas e climáticas determinavam o atraso do País.
Os Sertões: Campanha de Canudos constituiu uma poderosa e brilhante escamoteação das razões últimas do embate entre as forças militares e os sertanejos. É igualmente incorreta a visão de um sertão dominado por proprietários absenteístas, residindo no litoral. A grande maioria dos proprietários de terra viviam, no mínimo a maior parte do ano, em suas fazendas, impondo a hegemonia das elites sobre as classes chamadas subalternas.
O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos retoma e moderniza algumas teses apresentadas brilhantemente por Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Além da visão dualista da sociedade brasileira, de um litoral modernizante e densamente urbanizado, em confronto com um interior com estruturas esclerosadas, o autor retoma acriticamente outras teses da historiografia das elites brasileiras sobre a república sertaneja de Belo Monte, entre elas as pretensas violências internas do arraial santo, a misoginia e a alienação de Antônio Conselheiro.
Sem documentação conclusiva, afirma-se o fuzilamento, "sem julgamento", "em plena luz do dia", do comerciante Antônio da Mota "e seu filho mais velho", na frente dos familiares, suspeitos de terem passado informação aos inimigos, quando dos combates de Uauá. Os fatos teriam ocorridos "supostamente na frente do Conselheiro". A grave afirmação apoia-se em carta escrita ao barão de Jeremoabo, o arqui-inimigo de Belo Monte, em 27 de setembro de 1896, por um seu correspondente. (RML: 1995, 242)
Inicialmente, há o problema da própria data da correspondência, já que o primeiro combate contra as forças militares, Uauá, ocorreu em 21 de novembro de 1896, dois meses após a pretensa data da carta. Portanto, não sabemos o momento preciso em que a carta foi escrita. A informação, que não é elucidada a partir de documentação positiva, termina apoiando, cinqüenta páginas adiante, um generalização arbitrária quanto à freqüência e às razões dos pretensos fuzilamentos. Então, afirma-se que se executaria, como norma, aos que traíssem os "princípios" do arraial santo.
O texto relata que, além do comerciante, dois ou mais filhos seus, e não apenas um, teriam sido fuzilados: "a ditadura utópica do Conselheiro afetava em diferentes graus todos os habitantes da cidade sagrada. A traição aos seus princípios era punida com a morte como já vimos no caso da execução do comerciante Antônio da Motta e de seus filhos". (RML: 1995, 290, destacamos). Quanto a essa última questão, trata-se, mais uma vez, de uma tradução desatenta que inviabiliza a compreensão do texto. Efetivamente, na primeira citação, traduziu-se "he and his oldest sons" "ele e seus filhos mais velhos" por "ele e seu filho mais velho"!
Não parece desnecessário lembrar que o hipotético fuzilamento de delatores, por traição grave, teria sido um ato pertinente e moral, caso tivesse ocorrido, após o ataque da comunidade pelas tropas policiais e militares. Nesse momento, o arraial de Belo Monte constituía a capital de uma região insurrecionada, uma espécie de república rústica, que se independizara do governo estadual e federal, que lhe decretara guerra, sem razão ou direito.
VIII - Horror às Mulheres
Entre as acusações lançadas por Euclides da Cunha contra Antônio Maciel encontra-se a sua pretensa misoginia. Diversos indícios desmentem a acusação. Existe igualmente o depoimento direto de uma mulher que pertenceu ao círculo próximo do líder sertanejo. A moderna historiografia tem classificado essa assertiva como mais uma das calúnias lançadas contra Antônio Maciel, por seus inimigos, no calor do confronto. O texto registra simplesmente: "Apesar de as mulheres serem bem-vindas à comunidade, ele (Antônio Maciel) não lidava diretamente com elas, evitando até mesmo olhá-las." "Em função da misoginia do Conselheiro, as mulheres foram fisicamente segregadas." (RML: 230, 336)
O autor vai além. Negando a possibilidade de um eventual caráter místico de um possível afastamento simbólico de Antônio Maciel das mulheres, sugere que, no caso de Antônio Maciel, a hipotética distância em que se mantinha das mulheres se deveria a um problema psicológico. "De qualquer forma, o Conselheiro impôs um rigoroso padrão moral baseado na sua própria dificuldade em se relacionar com as mulheres (e possivelmente na raiva que sentia por elas)." (RML: 1995, 231)
Assim, além da afirmação peremptória sobre a dificuldade de relacionamento de Antônio Maciel com as mulheres, afirma-se seu ódio pelo chamado sexo frágil. Lamentavelmente, não se apresenta a eventual documentação probatória sobre a dificuldade de Antônio Maciel de relacionar-se com as filhas de Eva. Da raiva que sentiria, possivelmente, pelas mulheres, trataremos a seguir. Em todo caso, não devemos esquecer que Antônio teria tido, no mínimo, duas mulheres e três filhos. Um feito singular, para alguém que odiava, abominava e se relacionava dificilmente com as mulheres.
As elites procuram crer e fazer que o status quo é imutável. Portanto, apenas siderados e lunáticos proporiam e propõem a reforma de ordem tida como natural seja social, econômica, religiosa, comportamental etc. Eixo essencial da interpretação das elites sobre a república sertaneja foi a alienação de Antônio Maciel. Desqualificando-se o líder máximo, logicamente desqualificava-se o movimento e seus aderentes. A historiografia registra que, antes mesmo da fundação de Belo Monte, o clero baiano tentara conseguir a internação de Vicente Maciel, em hospital de alienados, no Rio de Janeiro, para afastá-lo e desacreditá-lo diante dos seguidores e admiradores.
A tese senhorial da demência de Antônio Maciel, retomada e refinada por Nina Rodrigues, em seu artigo A loucura epidêmica de Canudos,31 defins de 1897, foi ampliada por Euclides da Cunha, em Os sertões: campanha de Canudos. Nesse trabalho, Antônio Maciel é apresentado como um mestiço portanto senhor de uma psique naturalmente fraca mentalmente perturbado pelos fracassos econômicos e familiares.
O historiador norte-americano não retoma a determinação étnica da origem da doença mental de Antônio Maciel, mas a substitui por uma interpretação freudiana radical. Para ele, o pretenso descontrole psíquico do líder sertanejo seria o fruto certo de uma infância infeliz. Primeiro, teria ocorrido a pressão de um pai desregrado:Antônio Maciel "deve ter sido afetado psicologicamente pelos descontroles freqüentes de seu pai. De acordo com os padrões modernos, Antônio não tinha uma vida caseira saudável, devido tanto ao decadente status econômico do seu pai resultado de maus investimentos e da bebedeira como à ausência de afeto, tudo aliado a práticas religiosas de caráter penitencial." (RML: 1995, 182)
Não conhecemos as bases metodológicas da determinação linear da saúde mental de Antônio Maciel a partir dos pretensos desmandos de seu pai. No máximo, provada a gravidade desses desmandos, seria apenas possível afirmar que eles poderiamter influenciado a formação do filho. Por outro lado, a vida caseira do menino Antônio, deve, logicamente, ser cotejada com os padrões da época, e não com os anacrônicos "padrões modernos"!
A mãe não poderia deixar de estar presente nessa construção freudiana sumária do perfil psicológico de Antônio Maciel. "Para piorar ainda mais a vida infeliz do garoto, sua mãe, Maria Joaquina do Nascimento, morreu quando ele tinha apenas seis anos." (RML: 1995, 182) Após deduzir um desequilíbrio motivado por uma vida familiar da qual, de certo e positivo, sabemos quase nada, descreve-se até mesmo a evolução da doença mental, como já o fizera Nina Rodrigues, papa tupiniquim dos desvarios da frenologia européia. Afirma-se que, em fins dos anos 1860, "presumivelmente, o estado emocional de Maciel" continuou "a piorar". Ao contrário, vinte anos mais tarde, ele já estaria definitivamente maluco pois, segundo o texto, "milhares de pessoas" foram atraídas para Belo Monte "pela loucura carismática do Conselheiro". Em verdade, o diagnóstico precisa-se para os momentos finais da vida de Antônio Maciel, quando é classificado como psicótico. Afirma o autor que, então, "sua psicose" assumiu um caráter "bem mais sério no fim da vida". (RML: 1995, 22, 339)
Quanto à interpretação dos atos de Antônio Maciel, mergulha-se igualmente no hipotético e no arbitrário, chegando a elucubrações que nem mesmo Euclides da Cunha se permitiu. Foi assinalado o "possível" ódio de Antônio Maciel às mulheres. Toda a documentação conhecida comprova e o autor reconhece que "Antônio Conselheiro não aceitava a idéia de que fosse o Salvador". No entanto, afirma-se simplesmente que "inconscientemente, (Antônio Maciel) pode ter se identificado com Jesus Cristo" (RML: 1995, 308). No mesmo sentido, conclui-se, páginas adiante, que, "sob a tensão do conflito, ele teria prometido até mesmo o Segundo Advento no ano de 1900". (RC: 1995, 322)
IX - O elogio à Dominação
Em nível das simples elucubrações, podemos sugerir que Antônio se identificava com Santo Antônio, com o apóstolo Pedro ou com Dom Pedro II. Eventualmente, o líder sertanejo certamente podia ver-se até mesmo como um Napoleão Bonaparte sertanejo, se é que conhecia o personagem, já que demonstrou, segundo parece, reais dotes táticos e estratégicos. Podemos também sugerir que, sob a tensão do conflito, Antônio Maciel pregasse o suicídio coletivo entre os conselheiristas. Porém, para a historiografia, essas elucubrações são depoimentos do estado de alma mais dos analistas do que dos analisados, revelando os apriorismos e preconceitos dos primeiros.
O que sabemos de certo é que toda a informação fidedigna conhecida sobre Antônio Maciel sobretudo os seus sermões apresenta esse último como um simples líder religioso laico, com singulares qualidades de liderança, ligado a uma teologia católica, apostólica e romana formalmente tradicionalista e conservadora. Sabemos igualmente, e temos uma grande documentação comprovando, que sempre se assinou como Antônio Vicente Mendes Maciel e que, quanto muito, segundo parece, aceitava ser chamado de Peregrino.
As conclusões de O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos são claras. R. M. Levine não esclarece se compreende a repressão de Belo Monte como uma inconseqüência republicana ou uma ação inevitável, devido à radicalização da autonomia da comunidade. Nos fatos, defende as duas teses32. O autor explica o massacre dos sertanejos devido ao fato de Antônio Maciel ter sido "teimoso" e "inflexível" e não ter seguido o exemplo do padre Cícero. (RML: 1995, 31, 61, 301) R. M. Levine se demora na referência à flexibilidade do padre Cícero, que apresenta como paradigma do líder sertanejo.
Afirma R. M. Levine: "Se seu líder fosse mais flexível, talvez eles (os sertanejos) tivessem conseguido negociar uma conciliação com seus inimigos. Ele certamente tinha bons modelos. O padre Ibiapina, (...). Além dele também houve o padre Cícero, que permitindo aos seus ajudantes a concretização de acordos políticos, transformou sua comunidade teocrática em um pólo forte de política nordestina. Porém, o Conselheiro era por demais obstinado para seguir o exemplo de qualquer um dos dois líderes." (RL: 1995, 282, 313)
O padim, é bom lembrar, em lugar de assumir a luta de seus crentes,os quais mistificou incessantemente, utilizou seu prestígio para manipulá-los, transformando-se num dos mais poderosos latifundiários e chefes políticos sertanejos de sua época, contribuindo assim para a manutenção das estruturas sociais e fundiárias nordestinas. A leitura do testamento do padre Cícero33 nos ilumina sobre os excepcionais resultados econômicos que podiam resultar da manipulação religiosa e social das massas sertanejas. O que nos permitiria concluir que, para os padrões neoliberais contemporâneosde sucesso econômico e político, a vida do padre Cícero foi um grande sucesso e a de Antônio Maciel um estrondoso desastre.
No mesmo sentido, o texto sugere que Antônio Maciel, em vez de encorajar os sertanejos a lutarem de armas nas mãos por sua autonomia política, ideológica, econômica e religiosa, deveria ter "encorajado seus fiéis a adotarem formas de resistência mais mundanas burla, dissimulação, ignorância simulada, falsa cooperação, sabotagem, paralisação, mexericos maliciosos e assim por diante." (RL: 1995, 336) O que propõe o abandono à resistência e luta pelas chamadas classes subalternas em prol dessas formas de "resistência mundana".
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Incêndios em Canudos
Fotógrafo: Flávio de Barros, Divisão de Artilharia Canet.
Fotografia original. Guerra de Canudos, Bahia, 1897O sentido pacificador, quietista e anti-insurrecional dessa leitura da república sertaneja de Belo Monte assume sua plenitude quando o autor inverte a leitura da historiografia pró-conselheirista que compreendeu o confronto como uma essencial página da história social brasileira. R. M. Levine apresenta a rebelião sertaneja como a responsável pelo atraso social e político do Brasil e pela ausência da democracia e de reformas sociais. "O choque provocado pelo conflito de Canudos e o medo de que a rebelião se espalhasse pelas cidades brasileiras levou os políticos a reforçar os sistemas de controle social e a rejeitar as reformas que pudessem levar o País a uma democracia expressiva." (RML: 1995, 26) Não deixa de ser interessante o fato de que setores ligados ao latifúndio apresentam a mobilização do MST como um grave empecilho para a reforma agrária.
A desvalorização da resistência sertaneja expressa-se, igualmente, na forma sumária em que é apresentada a guerra sertaneja de defesa de Belo Monte. As sucessivas expedições são tratadas de modo extremamente sumário, quando o são, como se não possuíssem mérito histórico e, portanto, não constituíssem matéria historiográfica.
Em fins do século passado, o confronto nos sertões baianos se realizou igualmente em nível da linguagem. Os sertanejos denominaram a comuna rebelde de Belo Monte, nome fundido no cadinho da esperança. Tal fato não passou despercebido aos repressores do movimento, que raramente se referiam ao reduto com outro nome do que Canudos a denominação do miserável arraial à beira do Vaza-Barris, antes da chegada de Antônio Maciel e acompanhantes. Nos jornais da época e nos trabalhos historiográficos posteriores, os defensores do arraial foram igualmente denominados de jagunços, forma depreciativa utilizada no Nordeste para apontar capangas e criminosos, ou populares tidos como tais.
Robert M. Levine prossegue na trilha aberta por Euclides da Cunha. No texto, podem quase ser contadas nos dedos das mãos as vezes que o narrador designa o arraial de Belo Monte. (RML: 1995, 23, 33, 89, 193 etc.). Como vimos, por jagunços se define até mesmo os camponeses sublevados em Santa Catarina/Paraná e os putativos "seguranças" de Antônio Maciel. O autor assim deprecia até mesmo as tropas conselheiristas, formadas por sertanejos em armas. "Os jagunços, como não poderia deixar de ser, perseguiram os soldados, matando um a um à medida que as fileiras se desfaziam." (RL: 1995, 256)
Nos fatos, não consegue compreender, como não o compreendiam os oficiais brasileiros no fim do século passado34, que a qualidade bélica dos combatentes não se devia a um passado criminal, mas à identificação profunda com a defesa da república sertaneja. Como outros exércitos populares, a grande aptidão dos conselheiristas não se devia às fantasmagóricas armas moderníssimas que se pretendeu possuírem, ou seja, à capacidade dos sertanejos de matar, mas sim às suas disposições de morrerem em defesa do mundo que haviam criado.
Euclides da Cunha escreveu, com Os Sertões ..., um pungente livro que denunciou o massacre sofrido pelos conselheiristas. Suas páginas doloridas registram a simpatia pelas massas nordestinas, sem jamais lamentar o insucesso da autonomia sertaneja. Ele compreendia o combate dos sertões como parte do confronto entre um Brasil litorâneo, europeizado e em desenvolvimento, e um sertão atrasado e retrógrado, social e etnicamente. Quanto muito, desejou a absorção desse por aquele.
Escritor brilhante e espírito sensível, Euclides da Cunha jamais compreendeu que a titânica resistência sertaneja expressava a única força capaz de conquistar a modernidade que alardeava desejar para o País. Cegado pelos preconceitos senhoriais da época, para o escritor, sobretudo, era necessário que a república sertaneja fenecesse, para que o seu Brasil vingasse.
A um século da resistência final da república sertaneja de Belo Monte, o historiador Levine, num livro de grande ambição, de certo modo embrenha-se na mesma angustiada picada aberta por Euclides. O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos registra o mesmo olhar simpático sobre a saga sertaneja e o mesmo profundo desgosto diante do agir e da resistência rústicos da população miserável que ousou olhar seus senhores nos olhos.
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1 - Agradecemos, pela leitura crítica, ao doutor Astor Dihel, da UPF, à lingüista Florence Carboni, da UPF, ao sociólogo Clóvis Moura, ao doutor José Rivair, da UFRGS, à doutora Loraine Giron, da UCS, ao doutor Luís Carlos Lopes, da UFF, e aos companheiros do CEM-RS, assinalando, entretanto, que as opiniões deste artigo são apenas da responsabilidade do autor.
2 - MAESTRI, Mário. "Zumbi 300 anos: Palmares a comuna negra no Brasil escravista". In: Práxis, no 5, Out-Dez. 95. BH, Ed. Projeto, pp. 33-44.
3 - Cf. REIS, J. J. & GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1996.
4 - FONTES, O. C.. O treme-terra: Moreira César, a Rep. e Canudos. Petrópolis, Vozes, 96. LEVINE, R. M.. O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos. São Paulo, EDUSP, 95. VILLA, M.A. Canudos: o povo da terra. São Paulo, Ed. Ática, 95.
5 - http://www.ax.apc.org/~eraldojunior/hp.13.hatm Desativada (Nota do WebMaster - NW)
6 - Apud Idem. Canudos: o campo em chamas. São Paulo, Ed. Brasiliense, 92, p. 142.
7 - Apud MAESTRI, Mário. "França: a revolução está próxima". In: Universitário, abril de 1986. Porto Alegre.
8 - Vale of Tears: Revisiting the Canudos Massacre in Northeastern Brazil, 1893-1897. Berkeley, University of California Press. Agradecemos à lingüista Carla Grims, que nos possibilitou a consulta dessa obra em inglês.
9 - Na edição norte-americana, a bibliografia se inicia com o tópico "selected works in english", ao qual segue o tópico "selected works in portuguese and other languages". Na tradução portuguesa, inicia-se com o tópico "Bibliografia geral", que contém as obras em português, ao qual segue o tópico "Bibliografia em inglês".
10 - "Mídia e história". In: Registro, ano 3, no 6. CNRH, UFOP, p. 2.
11 - Apud FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gêneses e lutas. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1972; e MONIZ, E.. Canudos: a guerra social. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1982.
12 - Compreendemos "historiografia brasileira"como o conjunto de trabalhos produzidos a partir do e inseridos no debate sobre a história do Brasil.
13 - Apud CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira/INL, 1975; e STEIN, Stanley J. Grandezas e decadência do café no vale do Paraíba. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1988.
14 - Apud HANDELMANN, H. História do Brasil. São Paulo, Ed. Melhoramentos, 78.
15 - As relações de Levine com a historiografia marxista merecem melhor discussão. Segundo parece, para ele, a Guerra Fria não acabou. Levine discute superficialmente a importante produção marxista sobre o tema e o faz, quando a ela se refere, en passant e em forma caricatural.
16 - A passagem retida é bom exemplo. Rui Facó, o principal ideólogo do PCB a referir-se aos fatos em questão, apresenta a religião como a consciência possível dos sertanejos. Apud FACO, Rui. Op. cit.. Também é paradoxal a afirmação de que a historiografia marxista teria visto em Canudos, "o primeiro exemplo de uma situação de conflito e luta de classes" no Brasil. Ela desconhece a história colonial desenvolvida por essa escola historiográfica. Ex.: PRADO, Caio. Evolução política do Br.. São Paulo, Ed. Brasiliense, 75.
17 - Apud KIRKPATRICK, Peter. "O futuro do marxismo nos USA". In: Práxis, no 7, Jun/out. de 1996. Belo Horizonte, Ed. Projeto, pp. 86-96.
18 - Por exemplo, ao traçar um quadro bastante superficial das raízes e razões da formação intelectual e cultural de Euclides da Cunha, R. M. Levine obvia totalmente o conhecido texto de Nélson Werneck Sodré sobre aquele escritor: SODRÉ, N. W. Euclides da Cunha a Intuição e a Superstição. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1964, pp. 93-164. A visão do autor sobre Euclides da Cunha sofre visivelmente com tal desconhecimento.
19 - Devido a um lapso, três linhas não foram traduzidas, nesta oração: "and unlike the two-tiered system of England and France, which permitted private individuals to file formal charges in court" (RML: 1992, 56)
20 - Os movimentos messiânicos afro-angolanos são bem anteriores aos séc. XIX e XX. Já no séc. XVII, no reino Kongo, ocorriam fatos semelhantes.
21 - Por exemplo: DACANAL, José Hildebrando; e GONZAGA, Sergius (Org.). RS: economia e política. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982; Idem. RS: Imigração e colonização. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980; LEITMAN, Spencer L. Raízes sócio econômicas da guerra dos Farrapos: Um capítulo da História do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro, GRAAL, 1979; RÜDIGER, Selbat. Colonização e propriedade de terras no RS. Século XVIII. Porto Alegre, IEL,1969.
22 - ZATTERA, V. S.. Gaúchos: iconografia. Séc. XIX e XX. Porto Alegre, Ed. Palloti, 95.
23 - Ver, no relativo ao RS: DACANAL, J.H. & GONZAGA, S. (Org.) Imigração e colonização. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992; DE BONI, Luís Q & COSTA, Rovílio. Os italianos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EST; Caxias do Sul, UCS, 1984; GIRON, Loraine S. As sombras do Littorio:o fascismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Ed. Parlenda,1994.
24 - ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1981, pp. 386.
25 - "Durante a noite, quando os soldados dormiam, toda a população da cidade (Uauá) conseguiu fugir sem ser vista pelas sentinelas, embrenhando-se pelos arbustos da caatinga. (...) No dia 21, a Guarda Católica do Conselheiro tomou a estrada". (RML: 1995, 248)
26 - Nesse caso, não se deve a um erro de tradução: "Toward the end of 1896 a contigent of one hundred state police, commanded by a lieutenant, set out to intercept the group from Canudos, which had stopped in Uauá for prayers en route to Juazeiro." (RML: 1992, 152)
27 - "Some claimed to be Christ reincarnated, as in the case of the German-born leader of the Anabaptist Mucker uprising in Rio Grande do Sul, which began in the early 1870s." (RML: 1995, 218) Aqui temos mais um lapso: "Alguns se diziam Cristo reincarnado, como no caso do líder, nascido na Alemanha, do (movimento) mucker anabatista surgido no RS".
28 - Por exemplo: MAESTRI, M. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasil.. Séc. 16. Porto Alegre, Ed. UFRGS, 95.
29 - Por exemplo: MONTEIRO, J. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1994.
30 - Tal fato é justificado, em nota, à página 61: "Tradução livre. Devido à perda de parte da documentação do autor durante a passagem do furacão de 24 de agosto de 1992 na cidade em que reside, ficou impossibilitada a transcrição de alguns dos textos originais em português. (NT)" (destacamos). Em verdade, não são alguns, mas quase meia centena de citações vernáculas traduzidas do inglês. O espaço de três anos entre a ocorrência do desastre e a publicação da edição em português permitiria folgadamente a apresentação não contaminada das citações em português.
31 - RODRIGUES, Nina. As colletividades anormaes. Rio de Janeiro, Civ. Brasil., 1939.
32 - "Canudos era sinônimo de autonomia, e por isso mesmo deveria ser destruída." (RML: 1995, 74); "Não demorou muito para que Canudos se tornasse uma ameaça irritante, mesmo não sendo verdadeiramente nenhuma ameaça." (RML: 1995, 106)
33 - LOURENÇO FILHO, M.B. Juazeiro do padre Cícero. São Paulo, Ed. Melhoramentos, s.d., pp. 194-202.
34 - Século XIX. (NW)
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Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 9, Julho de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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