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A Relação Marx-Engels em perspectiva1
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Guido Oldrini
Guido_Oldrini@revistapraxis.cjb.net
Professor de Filosofia da Universidade de Bologna, Itália, membro do Comitato di Direzione da revista Marxismo Oggi, membro do Conselho Consultivo da Revista Práxis.
Pelas mãos dos pesquisadores que se interessam pelos problemas do marxismo clássico, circulam há muito tempo numerosas, fiéis e exaustivas biografias sobre Marx e Engels. Através de autores como Franz Mehring, Gustav Mayer, Nikolaevsky/Maenchen-Helfen etc.,2 pôde-se e se desejou informar de muito perto a respeito do vigor e da significação da relação pessoal que existiu entre os dois fundadores do marxismo. Neste sentido, não há nenhuma biografia que não tenha dedicado um capítulo especial à sua amizade, amizade que Mehring chamou, com toda a razão, de uma "união sem igual".
Tratar-se-á, porém, de uma outra coisa caso não se coloque a questão a respeito dessa amizade do ponto de vista do grau de influência recíproca exercida em nível teórico ou para além deste , quer tenha existido uma completa concordância entre suas idéias científicas, quer não. Essas são, como se sabe, concepções polêmicas, um problema que nunca se solucionou, e que deve ser efetivamente examinado de modo claro. Digo isso não a partir do ponto de vista do historiador da filosofia burguesa, e tão pouco a partir do ponto de vista dos intérpretes marxistas: mesmo que seja exata a extensa biografia de Mayer quanto à real diferença entre as respectivas contribuições dos dois autores, "Engels, tanto intelectual quanto politicamente, deixou estabelecido tudo aquilo que nele teve origem".3
Defrontamo-nos, portanto, com uma metamorfose típica das interpretações historiográficas. Aqui, sem a menor pretensão, e sem a possibilidade de uma reconstrução detalhada, passarei esquematicamente em revista as etapas principais da relação entre Marx e Engels.
Em primeiro lugar, esses autores aparecem ao longo do tempo como uma inseparável unidade, como os indiscutíveis Dioskuren4 do marxismo, representantes conjuntos e por antonomásia desta herança clássico-teórica. Já numa segunda fase, à medida que o marxismo da Segunda Internacional (e Engels não é considerado somente fundador e mentor desta, mas também seu principal representante), vai gradualmente disseminando-se, introduz-se furtivamente a dúvida e o sempre resoluto distinguo:5 Engels aparece cada vez mais como um simples ponto de apoio da atividade de Marx, e seu próprio trabalho é reduzido com a corroboração das conhecidas demonstrações de modéstia do próprio Engels à esfera da colaboração e cooperação no interior do próprio ideário marxiano.
Em seguida, a diferença tornar-se-ia ainda mais profunda, e tanto na historiografia burguesa, como também no interior de um marxismo consciente, colocou-se como necessidade impor uma rígida separação entre o marxismo de Marx e a vulgarização marxista de Engels, o que implicou em que se afastasse do marxismo, de modo indiferenciado e de uma só vez, todo o marxismo da Segunda Internacional; que se lhe denunciasse o mecanicismo e o determinismo positivista, e que se lhe recusasse, enérgica e totalmente, seu resultado final. No pólo oposto reagiu a ortodoxia dogmática, que sic et simpliciter reiterou, sem apresentar alternativas e também sem a menor consciência crítica da articulação efetiva do problema , a tese da unidade sempre forte e contínua entre Marx e Engels e sua teoria como unum atque idem.
O que podemos dizer diante de um quadro historiográfico tão difuso? Sob quais perspectivas ele se conserva? Certamente, da pequena nota como a aqui apresentada não se pode esperar resposta definitiva, pois de maneira alguma ela o contempla. Sua única pretensão é sugerir uma linha metódica de pesquisa e isto também sem entrar muito in medias res, na medida em que se procura antes esclarecer a pertinência de cada um dos argumentos teóricos comentados que impeça que dos extremos opostos somente um dos lados se sobressaia e acabe caindo em contradições ou conclusões finais indefensáveis. Considero de fato essa prática do distinguo nada suficiente, e muito menos como sendo o recurso dos recursos; considero-a como o extremo embotar ou deixar-se confundir, como o conciliar. Porém, essas distinções, que são bastante engenhosas, concatenadas e provocadoras, acabam sendo necessárias: é preciso ter por trás um princípio diretivo, um ponto de apoio a partir do qual seja possível lançar-se ao debate.
Procurarei indicar em seguida os fundamentos elementares e as conseqüências desta discussão.
Enquanto complexo doutrinário, o marxismo é uma teoria que se apresenta sob duplo aspecto: ele é, ao mesmo tempo, teoria da história (materialismo histórico) e concepção geral de mundo teoria filosófica (materialismo dialético). György Lukács insistiu contínua e vigorosamente, em especial na Estética e na Ontologia, sobre a íntima conexão existente no interior do marxismo entre determinações teóricas e determinações históricas daqueles problemas que dizem respeito à inseparabilidade que origina a linha fundamental do pensamento marxiano. Observou que os problemas do materialismo histórico se vinculam com aqueles do materialismo dialético E também insistiu sobre a cooperação, recíproca e constante, que essas duas ramificações da ciência haviam de manifestar em toda investigação. Numa esclarecedora passagem da Ontologia, ele diz:
"A prioridade do ser na reprodução biológica do homem enquanto ponto de partida de sua atividade econômica, e esta enquanto fundamento onto-genético de sua atividade social tornada agora cada vez mais pura, é a base ontológica que o materialismo dialético, a filosofia geral do marxismo, une indissoluvelmente à sua teoria do desenvolvimento histórico-social, o materialismo histórico; com isso, este vínculo torna-se ainda mais forte e consolidado porque (...) também a historicidade mesma é um princípio ontológico fundamental da concepção de mundo do marxismo. (...) O materialismo histórico encerra, por isso, sua necessidade intrínseca, seu ser fundado sólido-cientificamente em primeiro lugar sobre a base de uma ontologia dialético-materialista".6
Se a proposta é examinar efetivamente as mediações que a partir da "função ontológico-primária da economia" conduz aos mais complexos e elevados grupos de categorias, tomadas aí as esferas da política ou da ética, ou das relações sociais em geral (ontologia do ser social), é então evidentemente necessário, para que se possa dar uma resposta completa a este conjunto de problemas, elevar-se ao nível de uma construção dialético-materialista flexível e articulada (uma construção sistemática não rígida). Seria de fato impossível falar de uma "ciência" do marxismo, construir uma teoria marxista plena, sem fazer uso de categorias generalizantes, isto é, sem aquela generalização categorial que permite a todo momento relacionar cada análise concreta às fronteiras de uma visão totalizadora da história: eis um ponto sobre o qual Marx e Engels não se cansaram jamais de insistir.
Agora, se lançamos luz à relação Marx-Engels do ponto de vista do primeiro dos dois aspectos do marxismo, aquele referente aos componentes histórico-materiais, não há nenhuma dúvida de que chegamos necessariamente a uma conclusão definitiva a respeito da coerência plenamente marxista da contribuição de Engels, desde o início até o fim de sua atividade. Engels não apenas obedece ao seu percurso intelectual ab origine na Inglaterra (que é o mesmo de Marx) por meio do qual indica o significado avassalador e a decisiva preponderância da estrutura econômica esta base sobre a qual reconhecera lutas e movimentos políticos , mas também é a partir do seu encontro pessoal com Marx em Paris que compreende imediatamente os dois aspectos do marxismo violento por um lado, reflexivo por outro. A partir daí, compreende completamente essas duas características que, como diz Mayer, "completam-se mutuamente". Assim, no início de sua atividade, "Engels foi" mesmo "o concessor e Marx o destinatário" (Mehring).
Decisiva sobretudo foi a contribuição de Engels para a fixação dos princípios e a articulação (Erarbeitung) da teoria do materialismo histórico, assim que ela foi exposta pela primeira vez na Ideologia Alemã (da qual grande parte, como é conhecido, é justamente devida a ele). E está também aí a circunstância sintomática que caracteriza a concepção materialista, "as palavras filosóficas dos materialistas sobre a matéria" que ambos os autores utilizam sob a expressão "concepção de mundo"7, e que mais tarde é largamente empregada por Engels em seus trabalhos Ludwig Feuerbach, Anti-Dühring e Dialektik der Natur.
Os últimos trabalhos de Engels atestam o significado que ele atribui, sempre em perfeita continuidade e harmonia com Marx, ao princípio de unidade que a investigação científica tem sempre que conservar, e atestam também que esta investigação, mesmo não o querendo, mantém aquela unidade com os seus pressupostos de pensamento, com suas matrizes filosóficas. Esses seus trabalhos, juntamente com a correspondência trocada com Freund (cuja significação serve também como prova da completa concordância entre suas idéias e as de Marx), revelam como ele se engajou até o fim num combate em duas frentes, isto é, por um lado contra toda espécie de idealismo, e, por outro, contra o materialismo mecanicista pré-marxista8.
Enquanto polemista, enquanto destruidor (auflöser) de mitos, enquanto alguém que dissolve (auflöst) a mistificação de tantos interesses burgueses, dos quais começou pelos de "pátria" e de "unidade nacional" (que para a burguesia se tornara uma simples "necessidade econômica", como ele mesmo esclarece em seu O papel da violência na história)9, dentre tantos temas não há realmente nenhum que lhe imponha resistência. A luta ideológica marxista tem nele um pilar, um insuperável debatedor. Desde seus polêmicos escritos sobre história da literatura e crítica literária que têm como antecedentes os escritos de juventude contra os românticos, os "verdadeiros socialistas", os publicistas da "jovem Alemanha" até os apontamentos e anotações ulteriores nas correspondências, oferece-se "neste terreno" e este é um juízo lukacsiano10 "um insuperável modelo metodológico".
Resumindo: Engels permanece sempre na linha de frente, trabalha em íntimo contato de idéias com Marx, jamais se retira das lutas coletivas enquanto estas acontecem. Falou-se uma vez que o Manifesto do partido comunista era a tal ponto "fruto de uma criação coletiva (...) de dois autores singulares que atuam em unidade intelectual" que no seu interior "a parte ou os capítulos, que um ou outro assinava, faziam-se indistingüíveis"11. É possível confirmá-lo, ao menos o que nos interessa, considerando o reexaminar (wiederholen) da maior parte de sua produção, ou talvez até mesmo considerando-a toda, excetuando-se naturalmente O Capital (obra, aliás, que Engels, enquanto o outro lado do ideário marxiano, decifra, completa, esclarece e comenta internamente).
Mesmo que se observe a partir desta atividade que Engels, por influência de Marx, desenvolve no seu cotidiano uma contribuição incansável no plano político-organizacional ("resolver e não eliminar", como diz Bravo12), no que diz respeito à construção do partido dos trabalhadores, mostra-se a todo momento impossível pensar no trabalho de Marx sem o apoio, a contribuição, o estímulo e a colaboração de Engels. Como Lênin já havia tornado inteiramente evidente, isto é algo que Engels, nas ocasiões específicas, jamais deixou de fazer.
A discussão é outra se examinamos, com Lukács, o marxismo sob o aspecto de sua dimensão ontológica. Aqui o marxismo de Engels nem sempre está à altura das intuições geniais e das descobertas de Marx: no âmbito das leis do real (wirklichen), ele alcança a profundidade própria dessas, mas não suas fundações, manifestando-se nele um inegável erro de simplificação. Inegável, porém, não no sentido de que seus ensinamentos já anunciem os limites de toda degeneração positivista do marxismo que veio à luz com o marxismo da Segunda Internacional (conforme a compreensão que sempre se repete em uma grande parte da moderna marxologia burguesa, de Iring Fetscher a Habermas), mas, no máximo, pelo motivo inverso: seu marxismo ainda flerta em demasia com a dialética hegeliana, a qual ele não diferencia logicamente o bastante da ontologia.
Quero apresentar apenas três exemplos, todos os três retirados de Lukács,13 que dizem respeito, na ordem, à categoria da negação, à relação categorial entre liberdade e necessidade e à relação vinculada aos pontos precedentes entre práxis e "verdade objetiva".
No plano lógico ou gnoseológico, a negação tem o significado primário de realização dinâmica da dialética, porque ela assegura aos conceitos flexibilidade dialética. Mas e já o havia destacado o antidialético Feuerbach, crítico da filosofia de Hegel de maneira alguma ela representa (darstellt) uma categoria ontológica autônoma. Ontologicamente considerado, o "nada" jamais se põe; põe-se apenas a negação de algo outro, a negação de uma outra efetividade (wirklichkeit): por exemplo, sob a morte, a realidade da vida. "Um ente não objetivo é um não-ente", segundo a significativa observação de Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde ele quis dizer: ser e objetividade exprimem a mesma coisa; não há nenhum "nada" que a forma do ser contenha. Por isso, quando Engels dá o exemplo do grão de cevada que se transforma em planta e esta se define enquanto "a negação do grão" (exemplo denominado como sendo "a negação da negação", mas que em Marx comenta Lukács "esta não aparece de modo algum"), ele intercala de modo ilegítimo uma categoria lógica na ontologia e viola a lei da objetividade do objeto procedimento que Marx já observara contra Hegel , isto é, transforma de maneira forçosa (zwängt) objetos ontológicos e realidades em formas que, à medida que são lógicas, deformam aqueles mesmos objetos ontológicos e realidades.
Primazia análoga e injustificada do modelo hegeliano da lógica se mantém no tratamento que Engels dispensa à relação entre liberdade e necessidade. Sem dúvida, ele coloca sobre os pés, no sentido materialista, a fórmula idealista de Hegel de cuja concepção a liberdade é, como se diz, a "verdade da necessidade", a necessidade "conceituada" por meio da qual ele a interpreta enquanto esclarecimento das associações que são resultado do processo de trabalho objetivo:
"Não é na sonhada autonomia com relação às leis da natureza que se encontra a liberdade" escreve Engels no Anti-Dühring, "mas no conhecimento destas leis e, com isso, na possibilidade devida, a liberdade sistematicamente deixa atuar o determinar finalidades (...) Liberdade do arbítrio significa, por essa razão, nada mais do que a capacidade de poder decidir com conhecimento de causa (Sachkenntniss) (...) A liberdade assenta-se, deste modo, no conhecimento das necessidades naturais fundadas no domínio de nós mesmos e da natureza exterior. Ela é, por isso, produto do desenvolvimento histórico"14.
Mesmo com esta "virada materialista", Engels não se livra completamente, porém, da arquitetônica lógica do sistema hegeliano. Escapa-lhe a importância logicista excessivamente entorpecida que Hegel precisamente atribui, em virtude das pressões do sistema, à categoria necessidade. Marx, ao contrário, procede muito mais livremente em comparação a Hegel. No ponto de partida da ontologia marxiana, assim como Lukács a interpreta, encontra-se uma hierarquização bastante sofisticada das associações entre as categorias aqui apontadas, uma concepção de liberdade melhor articulada que é posta, no interior da relação, no circuito completo das categorias modais. Da maneira como Engels procede, essa ontologia esgota-se inteiramente na necessidade "conceituada", quando, ao contrário, ela deve significar o campo das possibilidades, das decisões que se circunscrevem entre alternativas que a realidade humana mesma não perde de vista na execução do processo de trabalho.
Isso tem conseqüências imediatas também para o terceiro e último ponto que aqui está em questão, ou seja, o exame do papel da práxis na ontologia e na clarificação do processo gradual no qual está compreendida a estrutura constitutiva do real (wirklichen). Para o marxismo vigora o princípio de que a práxis representa o critério absoluto da teoria, e isso é demonstrado pela "verdade objetiva"15. Engels apresenta os casos típicos dessa verificação mediante a práxis, notoriamente, no âmbito da experiência e da indústria, que são o oposto do caráter meramente contemplativo do pensamento burguês; uma descoberta que corresponde à coisa dada (gegebenes ding) que pode ser pressuposta, e que tem o significado da apresentação da prova positiva que corresponde àquelas propriedades da realidade que existe fora de nós.
Nos moldes das objeções agnósticas como as levantadas pelos neokantianos, segundo as quais as propriedades de uma coisa não são ainda "a coisa em si", e enquanto coisa em si jamais poderiam ser conhecidas, já que estão para além de toda capacidade de conhecimento possível, Engels responde, a respeito destas mesmas objeções, com as palavras da polêmica hegeliana contra Kant: se conhece-se as propriedades totais de uma coisa, conhece-se também a "coisa em si", e esta aparece, pois, como nada além do que aquilo dado pela realidade positiva, realidade esta que é o lugar no qual a coisa exterior a nós tem existência. Decisiva e definitivamente, esse é o mais elevado grau de refutação do agnosticismo que a práxis da indústria moderna oferece.
Se, no tempo de Kant, "a coisa em si" ainda parecia ocultar algo de misterioso, Engels destaca, num texto de 1892 (do prefácio à edição inglesa da obra Do socialismo utópico ao socialismo científico), "que estas coisas inexplicáveis são compreendidas uma após outra mediante o progresso gigantesco da ciência, analisadas e, o que é mais importante, reproduzidas. O que podemos criar, seguramente não podemos designar como incognoscível"16.
E no ensaio sobre Feuerbach: "Se podemos garantir a exatidão de nossa compreensão de um processo natural na medida em que nós mesmos o produzimos, na medida em que o criamos a partir de suas condições e deixamo-lo, além disso, a serviço de nossas finalidades, eliminamos com isto a incognoscível ‘coisa em si’ kantiana"17.
Já são bastante conhecidas essas famosas passagens. A partir delas, evidencia-se claramente quanto o Engels dialético, marxista, se coloca frente a cada uma das formas do pensamento metafísico contemplativo e da dialética idealista de Hegel. Ele observa como, numa proporção que é sempre progressivamente crescente, a ciência impõe-se pouco a pouco em todos os domínios: investigar não coisas ou fatos, mas processos; superar (aufzuheben) toda a fixidez (fixiertheit) das categorias; dissolver (aufzulösen) os elementos estáticos no processo dinâmico, e compreender dialeticamente as reais associações deste último, que a cada vez são novamente confirmadas mediante o controle prático e a experiência.
Essa experiência tem, no entanto, um alcance limitado18. Se, para além da verificação, um fato, um dado ou um nexo causal isolado diz respeito a um processo cujo resultado tem na observação o mais puro e elevado grau das esferas complexas do real como finalidade, ou ainda a ampliação da consciência da estrutura ontológica, então a experiência já não basta. De fato, isto tem a ver com a realidade (wirklichkeit) exclusivamente sob o aspecto da aparência, aquele do fenômeno (oberfläche) separado da esfera de sua manipulabilidade tecnológica (technologischen manipulierbarkeit) e que, enquanto tal, pode muito bem conviver com uma falsa teoria na qual o "em si" do objeto (sache) no sentido engelsiano não toca de modo algum. A práxis imediata necessitou, por essa razão, reinaugurar e afirmar a mediação em consonância com uma completa ontologia do trabalho. De outra maneira, a observação crítica de Lukács a respeito da práxis não conservaria o seu significado pleno: "A orientação no sentido de uma praticidade lógico-imediata, ainda que solidamente fundada, conduz, do ponto de vista ontológico, a um beco sem saída"19.
Penso que é possível observar claramente o que existe de comum entre os três exemplos que foram aqui apresentados e discutidos. Todos deixam entrever como, ao lado das exposições de Engels "que caminham sobre o fio da ontologia marxiana", apresentam-se outras "tais, que às vezes seguem de muito perto a crítica da validade atual da dialética hegeliana, da maneira como Marx se considerava em geral teoricamente autorizado a fazê-lo". Tanto mais que, em determinadas circunstâncias, Engels fica suscetível ao seu próprio fascínio diante do logicismo (logizisierung) hegeliano da história. Assim, de maneira nenhuma preocupa-se ele com a ontologia em primeiro lugar, como, por exemplo, na Dialética da Natureza, onde permanentemente acena com Hegel. É precisamente isso que impele Lukács, nos Prolegômenos à Ontologia do Ser Social, a levantar a questão sobre "até que ponto se apropriou metodologicamente com total coerência, até o fim e por toda a parte, das questões decisivas e, conseqüentemente, da evolução ontológica da concepção de mundo consumada por Marx, e até que ponto se satisfez com o Hegel "posto materialmente sobre os pés"20.
Naturalmente, procede-se de tal forma a respeito da posição do problema, que de modo algum se esgota e também não se esgota para Lukács "o elevado nível e a relativa correção histórica também desse aspecto das construções de Engels"; menos ainda intenta aquela mesma posição diminuir o valor das contribuições complementares de Engels para o marxismo, ou mesmo das infatigáveis lutas que ele levou ao extremo para que triunfassem as concepções teóricas de Marx. Em suma, a contribuição de Engels é algo que representa, para todo marxista sério, uma profunda aquisição. Somente sectários, pessimistas ou obstinados revisionistas que são enfim, como Lênin bem o sabia e dizia, uma só e a mesma coisa poderiam propor-se a levantar objeções enquanto ruminam (grübeln) sobre sofismas.
1 - Traduzido do original alemão (Die Beziehung Marx-Engels in Perspektive) por Jesus J. Ranieri, mestre em sociologia e doutorando em Ciênc. Soc. pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
2 - Isto sem esquecer as monumentais biografias de Sammel, trabalhadas a partir do Instituto Marx-Engels de Moscou, e as traduções publicadas na R. Democrática Alemã, traduções que, graças aos alemães, foram postas em circulação no Ocidente.
3 - Conforme o juízo de BRAVO, Gian Mario. Friedrich Engels. Milano, Angeli, 1986, p. 85.
4 - Os filhos de Zeus, Castor e Polux. No caso específico da relação Marx-Engels, o intuito é apontar para aquele caráter de indissolubilidade que caracteriza o trabalho conjunto dos dois autores. (NT)
5 - Em latim, no original: distinguir.
6 - LUKÁCS, György. "Zur Ontologie des Gesellschaftlichen Seins" (editado por Frank Benseler), vol. 2. In: Werke, vol. 14. Luchterhand, Darmstadt-Neuwied, 1986, p. 150-s.
7 - MEW 3, p. 89 (cf. KOSING, Alfred. "Friedrich Engels Beitrag zur Revolutionären Weltanschauung des Marxismus". In: Philosoph der Arbeiterklasse: Friedrich Engels 1820-1970 (editado por A. Kosing e F. Richter). Berlin, Dietz Verlag, 1971, p.15.
8 - Em luta análoga também em dois fronts Lênin teve sucesso na esfera política, tanto contra o oportunismo, quanto contra o dogmatismo sectário.
9 - MEW 21, p. 410-s.
10 - LUKÁCS, György. "Friedrich Engels als Literaturtheoretiker und Literaturkritiker". In: Probleme der Ästhetik. Werke, vol. 10. Luchterhand, Neuwied-Berlin, 1969, p. 515.
11 - BRAVO, Gian Mario. Op. Cit., p. 31.
12 - Idem, Ibidem, p. 88-s.
13 - Remetendo às seguintes obras: LUKÁCS, György, Gelebtes Denken, Eine Autobiographie im Dialog (editado por István Eörsi), Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1981, p. 167-s; ao seu prefácio de 1967 para a nova edição de "Geschichte und Klassenbewußtsein", in: Werke, vol. 2, Frühschriften II, Luchterhand, Neuwied-Berlin, 1968, p. 21-s; e aos dois volumes da já mencionada "Ontologie", in: Werke, vol. 13, p. 111-125, 259-s, 457-s., 498-ss., vol. 14, p. 57-s, 102-ss. Dos textos de Engels comentados por Lukács nas obras acima, sobretudo as partes discutidas em "Anti-Dühring", in: MEW 20, p. 105-s, p. 126-132; em "Ludwig Feuerbach", MEW 21, p. 275-s, p. 273-ss, e no prefácio de 1892 da edição inglesa do pequeno texto Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft, que foi composto por ele a partir das páginas do "Anti-Dühring", MEW 22, p. 296-s.
14 - MEW 20, p.106. (Cf. também SÄUBERLICH, Walter, "Friedrich Engels und das Problem der Freiheit", in: Philosoph der Arbeiterklasse, op. cit., pp. 253-256.
15 - Cf. II Tese ad Feuerbach, que foi mais tarde lembrada e comentada por Lênin em Materialismo e Empiriocriticismo, cap. II, § 6).
16 - MEW 22, p. 297.
17 - MEW 21, p.276.
18 - A tal respeito, Lênin advertiu que não se deve esquecer que o critério da práxis, tomado isoladamente em si mesmo, jamais confirmou ou desmentiu inteiramente qualquer representação humana.
19 - LUKÁCS, György. Werke. Cit., vol. 14, p. 109.
20 - Idem, Ibidem, vol. 13, p. 111.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 8, Março de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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