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Praticismo, Alienação e Individuação

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Sergio Lessa
Sergio_Lessa@revistapraxis.cjb.net

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas, membro da Editoria da Revista Práxis, membro do Conselho Editorial da revista Crítica Marxista.


Lukács, no seu conhecido ensaio Marx e o Problema da Decadência Ideológica, afirma que, por ter ultrapassado historicamente seu período revolucionário, a burguesia não mais produz a melhor teoria, aquela capaz de abarcar, nos limites do desenvolvimento do gênero humano, a totalidade do existente. A burguesia teria se convertido numa classe contra-revolucionária, cuja concepção de mundo (Weltanschauung) não mais poderia ser ciência, apenas deformação do real. Lukács, certamente, não endossa a tresloucada tese segundo a qual a burguesia não pode produzir toda e qualquer ciência, arte, filosofia etc.. Para o filósofo húngaro, ela o faz apenas e tão-somente em setores parciais (a totalidade é uma dimensão a ela interdita) e com um alcance muito menor que o possibilitado pelo atual desenvolvimento das forças produtivas.1

Estou convencido do acerto dessa tese. Qualquer concepção de mundo que, tal qual a burguesa, justifique a exploração do homem pelo homem, está impossibilitada de desvendar o "enigma" do mundo em que vivemos. O ponto de partida de tais concepções é insuperavelmente falso: tomar como signo de civilização e de humanidade a, hoje, essencialmente bárbara e desumana exploração do homem pelo homem. Ao postular a validade e a perenidade históricas do capital, a concepção de mundo burguesa não pode ir para além da acepção da individualidade enquanto mônada – e do seu corolário, a concepção da sociedade como mero ajuntamento destas mônadas. Baseado no falso pressuposto segundo o qual há uma natureza humana a-histórica, que reduz o homem a um animal competitivo e mesquinho (um animal burguês, para sermos breves), o pensamento centrado no capital é eterno refém do dualismo indivíduo-sociedade que o caracteriza desde sua gênese. E isto porque, sem poder abarcar as determinações ontológico-unitárias predominantes na totalidade social, limita-se a velar as reais contradições que permeiam a reprodução social contemporânea. Tais contradições, perdidas as suas raízes sociais, convertem-se em quebra-cabeças lógico-formais (Estado versus sociedade civil, cidadão versus Estado, possibilidades de democratização do Estado através da superação do seu caráter de classe etc.), que apaixonam e seduzem a mentalidade burguesa porque tais quebra-cabeças são o único espaço em que esta pode vicejar. Por sua essência, a Weltanschauung burguesa "se detém na superfície dos fenômenos, se atola no imediato e monta ecleticamente pedaços de pensamentos contraditórios para formar um todo."2

Por essa razão, ainda que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas ofereça possibilidades novas e revolucionárias para o desenvolvimento humano, a consciência meramente fenomênica3 de que é capaz o mundo burguês só concebe o novo como uma nova forma do velho. O caso hoje mais escandaloso é, talvez, o da informatização e automação. Elas permitem aumentar significativamente o tempo livre da humanidade; contudo, no interior do capitalismo, produzem uma jornada de trabalho maior e mais intensa, abolem direitos trabalhistas, diminuem salários e provocam mais desemprego. As potencialidades revolucionárias inscritas no mundo burguês são percebidas, pela ideologia dominante, tão-somente como formas que renovam o velho, de modo que o novo em potência jamais sequer chega perto de efetivar-se.

Imersos neste mundo burguês, carentes de uma concepção de mundo que possa captar o real em suas dimensões decisivas, a nossa existência, e a consciência a ela associada, reproduzem-se cotidianamente em uma superficial banalidade, que expressa a tragédia das nossas vidas. Capazes de assaltar o céu, limitamo-nos a deixar fugazes rastros na areia. Esmagados pela mesquinhez e pela fluidez dessa existência sem sentido e incapaz de criticar a sua essência, curvamo-nos ao triste "destino" de fazer da necessidade virtude: terminamos por confundir tais superficialidades e fugacidade com a forma essencial da existência humana. O irracionalismo de tal concepção, que se acovarda ao fugir dos graves problemas e das enormes potencialidades com que nos deparamos – e que elogia essa fuga como a única existência possível e, portanto, desejável –, constitui a justificativa ideológica indispensável a que os indivíduos suportem a enorme infelicidade, de todos e de cada um, que brota das alienações predominantes. "(...) o irracionalismo expressa precisamente este total desbaratamento da vida afetiva do homem, que de modo algum pode se converter em prática social plena de sentido e satisfatória, e frente à qual se acha a objetividade inerte e incompreensível, fetichizada e mistificada, das potências sociais"4. Infelizes, neurotizados, paranóicos, miseráveis, cada um de nós à sua maneira e intensidade, tocamos cotidianamente nossas vidas (quase) acostumados e conformados com o esgarçamento de nossas relações sociais e de nossos afetos. O que fazer, reza o senso comum, se a vida parece não ter outro jeito de ser vivida?

Hoje – e nem sempre foi assim –, os processos alienantes se desenvolveram a tal ponto que, mesmo entre nós, revolucionários,5 pode-se perceber a presença marcante desse conformismo. Dominados por esta existência pobre e miserável, propiciada pela regência do capital, até mesmo a consciência dos revolucionários em boa medida tem sido incapaz de enxergar para além das capas fenomênicas do real, e se tem restringido a interpretações e críticas parciais, fragmentadas e limitadas do existente.

Contudo, em que pese a fertilidade da tese lukácsiana acerca da incapacidade histórica da burguesia produzir, hoje, um autêntico para-si, é forçoso reconhecer que nela há graves problemas a serem elucidados. O maior deles, talvez, seja o seu aparente corolário: o movimento revolucionário, a perspectiva histórica do proletariado, seria o locus social da produção de uma concepção de mundo que superaria os limites burgueses. O fato de o movimento revolucionário chegar ao final deste século carente de tal concepção de mundo é uma forte evidência contrária a Lukács. Há que se reconhecer, contudo, que a incapacidade de os revolucionários produzirem uma autêntica Weltanschauung – para sermos concisos – científica, de modo algum comprova a capacidade da burguesia em faze-lo. Por outro lado, algumas décadas de degenerescência do movimento revolucionário talvez seja um período de tempo muito curto para desautorizar uma tese com tal escopo histórico.

Mesmo assim, não há como negar-se a questão, por si só decisiva: por que uma concepção de mundo autenticamente revolucionária, capaz de captar as determinações decisivas da totalidade social e de conferir sentido histórico à existência humana, não é mais, hoje – repetimos: nem sempre foi assim –, produzida pelos revolucionários? Por que os revolucionários sequer assumem tal objetivo como prioritário? Por que esse empreendimento, tão decisivo, sequer faz parte do horizonte de preocupações do revolucionário típico dos nossos dias?

Algumas das mediações contemporâneas que operam nessa incapacidade de os revolucionários construírem uma Weltanschauung revolucionária nós já examinamos, do ponto de vista da relação teoria-prática, no ensaio Crítica ao Praticismo "Revolucionário" (Práxis no 4). Agora trataremos de um outro aspecto dessa mesma questão, qual seja, que tal incapacidade teórico-ideológica dos revolucionários é uma forma particular das processualidades alienantes mais gerais que marcam a sociedade contemporânea. O problema mais geral que agora desejamos investigar pode ser sintetizado pela pergunta: quais são as mediações decisivas pelas quais, mergulhados num período contra-revolucionário e numa sociabilidade intensamente fetichizada, a práxis revolucionária tem obstaculizada sua capacidade de produzir uma concepção de mundo verdadeiramente científica, que supere as limitações da Weltanschauung burguesa?

I - Alienação e Praticismo

Frente à rapidez das transformações por que passa o mundo contemporâneo, à profundidade da crise atual e à sua amplitude no tempo e no espaço, a reprodução das individualidades tem consubstanciado uma desesperada fixação ideológica no já-existente como ponto de apoio estável para a sobrevivência em um mundo tão mutável e efêmero. Confrontada com o agravamento das tensões e contradições sociais (não apenas entre ricos e pobres, não apenas entre cidade e campo, mas também entre as nacionalidades, com o surgimento de conflitos armados prolongados e extremamente violentos), assombrada pela derrota histórica do projeto revolucionário soviético, a qual tem atuado como poderosa prova da alegada perenidade do capital, a consciência típica dos nossos dias procura no idealismo e no misticismo um solo estável sobre o qual repousar.

Após o período em que se sonhou que o American way of life representaria o radiante futuro aberto a toda humanidade, e que o Welfare State representaria a abolição da miséria social, chegamos a uma situação exatamente antípoda. O futuro é agora identificado com dias piores e com desastres ecológicos irreversíveis, e a impossibilidade de os indivíduos manterem o padrão de vida material conquistado no período de prosperidade pós-guerra (e, no Brasil, nos anos do "Milagre Econômico") se reflete num sentimento de insegurança e temor quanto aos dias que virão. A reação ideológica "normal", típica, cotidiana, a essa situação se manifesta em profundo desejo de parar o tempo, segurar o presente e impedir o futuro de aproximar-se. Tal como ocorreu com o mundo helênico, que no seu apogeu só podia antever o desastre da decadência e, por isso, tornou-se profundamente conservador, nos dias em que vivemos, um conservadorismo de amplo espectro toma conta da sociedade com base na constatação – superficial e pobre, sem dúvida, mas nem por isso menos real – de que a evolução imediata do mundo só pode assumir a forma de aprofundamento da crise e das dificuldades.

O operário que, em meio à crise, ainda mantém seu emprego, deseja antes de mais nada diferenciar-se do seu companheiro de pior sorte, imaginando que, desse modo, possa sobreviver à crise sem passar pela humilhação e carências do desemprego. No desespero que sempre acompanha a percepção de que a crise não tem solução, o operário busca segurança afetiva na ilusão de que ele, que ainda está empregado, é melhor enquanto indivíduo que aquele que foi desempregado. Mera ilusão, a ser desfeita na próxima rodada de desemprego, ou então quando se der conta do enorme acaso que possibilitou a ele, e não ao seu companheiro de bancada, manter o trabalho. Ilusão também fundamentalmente burguesa, pois alicerçada na concepção de que a sociedade é palco de lutas e disputas entre indivíduos das quais os mais capazes sairão vencedores – e que, por isso, as saídas aos problemas de cada um são sempre particulares, individualistas.

Os burocratas sindicais têm tirado proveito dessa evolução da consciência dos trabalhadores em direção à uma visão fragmentada e individualista de mundo para implementarem políticas reformistas e de capitulação frente ao capital, políticas das quais as câmaras setoriais são a expressão mais acabada. Eles apostam na fragmentação da classe operária resultante da crise para dissolver a consciência de classe e, desse modo, impedir a oposição revolucionária dos trabalhadores ao capital.

Não nos interessa, aqui, adentrar na discussão acerca do movimento sindical, a não ser como exemplo de uma tendência de fundo dos processos alienantes contemporâneos: frente à insegurança da crise, frente à constatação de que o mundo está desmoronando, a consciência cotidiana típica busca um ponto de apoio que permita algum conforto afetivo e ideológico, ainda que passageiro. A necessidade ideológica dessa busca é tamanha que as pessoas tornam-se inacreditavelmente capazes de crer em fantasias absolutamente desprovidas de sentido. Não apenas nosso operário é capaz de crer que ele é melhor que os outros e que, por isso, terá seu emprego garantido; não apenas o dirigente sindical é capaz de acreditar que jogando na fragmentação da classe trabalhadora estará garantindo melhores dias para os seus liderados – como, ainda, as pessoas voltam a acreditar em Deus, destino, anjos, energias cósmicas e tudo aquilo que é esoterismo!

O irracionalismo tem aqui um solo social bastante propício para o seu desenvolvimento e, por isso, crise, idealismo e misticismo têm andado juntos hoje em dia.

Em suma, as intensas transformações que assistimos nas últimas décadas, que refletem uma incrível potencialização das forças produtivas, ao invés de alargarem os horizontes teóricos e políticos, culturais e afetivos, têm resultado em um profundo conservadorismo. O que agora nos interessa, para a análise a que nos propusemos, é que uma das facetas mais decisivas desse conservadorismo é a sua inerente necessidade de reduzir o novo a apenas uma nova forma para manter o velho.

Detenhamo-nos sobre esse ponto.

II - A Produção Social do Novo

A produção social do novo é uma absoluta necessidade ontológica em se tratando do mundo dos homens. Ao contrário do que ocorre na natureza, onde a reprodução é, predominantemente, a reprodução do mesmo (exceções feitas às mutações biológicas, ao nascimento e à morte), no mundo dos homens até mesmo a reprodução do velho impõe a produção do novo.6 Reproduzir o velho é, sempre, uma possibilidade entre outras, e a sua efetivação tem por mediação ineliminável uma escolha, uma decisão entre alternativas. Requer, em suma, um pôr teleológico. Nesse sentido preciso, a continuidade social possui como órgão e médium a consciência dos indivíduos humanos. É pela mediação da consciência (que, no imediato, é sempre consciências de indivíduos concretos que vivem num hic et nunc historicamente determinado), que se dá o processo de acumulação que particulariza a reprodução social. Como Lukács demonstrou cabalmente, a consciência é um componente essencial do ser social; está muito longe de ser, como quer o marxismo vulgar, mero epifenômeno da sua processualidade imanente.

Essa participação essencial da consciência no desenvolvimento histórico, contudo, só ocorre no interior de um complexo social: a práxis dos indivíduos. Apenas no contexto dos atos individuais a consciência pode ser o médium e o órgão da reprodução social. Tomadas em suas totalidades, tanto os complexos sociais parciais, quanto a história humana, são rigorosamente desprovidos de qualquer teleologia; o desenvolvimento de cada um deles é puramente causal.7

Fixemos esse ponto porque ele será de fundamental importância: ao transformar o real, os homens criam ininterruptamente o novo. E isso ocorre nas duas instâncias decisivas: tanto na consciência (através dos novos conhecimentos/habilidades) quanto no plano objetivo (produção de novas possibilidades e necessidades). É nessa capacidade de criação do novo, inerente à transformação teleológica do real, que Lukács, após Marx, localiza uma das particularidades ontológicas decisivas do mundo dos homens frente à natureza. Apenas no ser social é possível que o novo criado pela práxis interaja tanto com a causalidade já existente quanto com as subjetividades envolvidas, de tal modo a desencadear um processo de desenvolvimento da sociabilidade que é, em si, infinito. Essa produção do novo, portanto, fruto espontâneo da práxis social (pois ocorre mesmo que dela os homens não possuam consciência), é uma determinação ontológica essencial do mundo dos homens8.

Sem produção do novo, portanto, não há vida social. Contudo, como esse novo é apropriado pela práxis social? As potencialidades, sempre novas, são apropriadas enquanto novas possibilidades para o desenvolvimento global do gênero humano, dos indivíduos e das relações sociais genéricas? Ou então, são apropriadas pela práxis coletiva enquanto novas formas para manter-se as relações sociais já existentes, o velho? No primeiro caso, temos a apropriação normal, típica, da práxis social: a nova objetivação, o novo objetivado, serve como ponto de apoio para o desenvolvimento futuro.

No segundo caso, temos a apropriação típica dos processos alienantes contemporâneos. A sociedade de consumo, e o seu culto pela novidade, são exemplos disso a que nos referimos. O culto da novidade, em nosso mundo em rápida transformação, nada mais é senão a mediação pela qual ideologicamente se constrange, aos limites do antigo, as novas possibilidades que objetivamente são produzidas.9

O culto conservador da novidade tem uma conseqüência teórica que, para o estudo do praticismo contemporâneo, é decisivo. Por um lado, como é necessário que o novo seja incessantemente produzido, pois essa é a forma de ser da reprodução do capital contemporâneo, é indispensável que ele não apenas seja reconhecido enquanto novidade, como também que os conhecimentos necessários à sua produção sejam produzidos em um ritmo cada vez mais frenético. O desenvolvimento do conhecimento do real, em especial das ciências da natureza, ocorre de modo cada vez mais intenso e acelerado. Com uma intensidade cada vez mais rápida, o novo tem que ser reconhecido e, enquanto tal, incorporado ao conhecimento anterior para que o próximo novo possa ser produzido.

Por outro lado, para que a Weltanschauung conservadora não seja rompida, para que o velho possa continuar como limite referencial para a forma conservadora de reproduzir-se em um mundo mutável, é decisivo que o novo seja reduzido, em suas potencialidades, à mera novidade. Ou seja, é indispensável que o novo, que poderia ser o germe de profundas transformações do mundo, seja apropriado pelas individualidades de tal modo que o novo se limite a ser uma nova forma do velho.

Essa castração das potencialidades transformadoras do novo implica em uma operação teórico-ideológica falsificadora: falsifica o em-si do real em movimento de modo a convertê-lo, sempre e em cada instante, em meramente uma nova forma do velho. O conhecimento científico, nesse contexto, avança dentro de fronteiras que expressam, por um lado, a necessidade social de conhecer-se teoricamente o novo e, por outro, a necessidade de conceber-se esse novo conhecimento de modo a restringi-lo à mera capacidade técnica em manipular o real, impedindo-o de cumprir sua função ideológica mais ampla de contribuir para uma Weltanschauung que incorpore as novas potencialidades inscritas no desenvolvimento humano-genérico.

Para que isso seja possível, não apenas as ciências humanas têm que ter seu desenvolvimento restrito quase que exclusivamente a técnicas operativas de verificação de situações sociais específicas, particulares, concebendo como "não-científicas" as investigações acerca da totalidade social e das suas categorias genéricas; como também as ciências exatas e naturais devem ser fragmentadas e especializadas, diminuindo em muito a possibilidade de generalizações no sentido de converter suas descobertas em elementos de uma Weltanschauung revolucionária. A manipulação do real passa a ser concebido como o verdadeiro objetivo do conhecimento, que assim se restringe a uma função meramente instrumental – deixando para a Weltanschauung predominante a integração conservadora do novo ao velho modo de ser e de se reproduzir.

Nos processos de ideação, essa situação mais geral se expressa no fato de o novo socialmente produzido ter obstaculizada sua ação sobre a consciência dos indivíduos que participaram (direta ou indiretamente, não importa) de sua produção. Os indivíduos, nas imediaticidades de suas vidas, encontram-se numa situação paradoxal: agem produzindo o novo, suas existências são permeadas pelas mais novas e diferentes necessidades postas socialmente pela insuperável pulsão do capital para produzir o novo – e, contudo, frente a esse mundo mutável de cuja produção eles participam, são dominados por uma Weltanschauung conservadora que, no máximo, pode apenas reciclar as velhas respostas. Tais respostas, por serem velhas, são débeis, ou seja, apenas por fugidios momentos parecem atender à nova situação. Passado o impacto ideológico da novidade, a insuficiência fundamental das respostas volta a revelar-se. E isso leva o indivíduo a um sentimento de angústia ao defrontar-se novamente com a mesma vida carente de sentido, o que, por sua vez, provoca uma busca frenética por uma razão para viver. Novas justificativas e explicações são necessárias a cada momento e, como ao indivíduo apenas novas formas das velhas respostas são oferecidas pela ideologia dominante, não resta a ele senão uma nova angústia, um pouco mais de bebidas e drogas, um pouco mais de soníferos à noite, e uma nova busca desenfreada por justificativas. Tais buscas, nesse contexto, são a base tanto do misticismo que grassa a olhos vistos, como também das efêmeras tentativas de elogiar o fugaz como condição humana, como fez o pós-modernismo.

Essa busca frenética é um dos traços particulares do processo contemporâneo de individuação e, por isso, se expressa nos mais diferentes setores da práxis social. A nós, aqui, interessa a conexão desse fenômeno mais geral com o praticismo revolucionário.

Na particularização desse fenômeno mais geral entre os indivíduos revolucionários, podemos iniciar com a constatação de que, na sua imediaticidade, esse agir frenético se mantém, quando não é potencializado. Tanto na universidade, nos sindicatos e nos partidos políticos, quanto nos demais movimentos sociais, as individualidades que se propõem tarefas transformadoras são, na enorme maioria dos casos, marcadas por um ativismo extremo.

A utilização de termos como "radical" e "transformação do mundo", de evidente ambigüidade, não é casual. Por vivermos um período no qual a revolução saiu, em escala social, do horizonte visível de possibilidades, o programa de ação dos que se pretendem revolucionários traduz esse fato, na enorme maioria das vezes, adotando um aparato conceptual cada vez mais frouxo e pouco delineado. Não são mais revolucionários comunistas que se propõem a um programa historicamente definido: abolição da propriedade privada, do Estado e da família monogâmica como mediações inelimináveis para a emancipação humana do jugo do capital. Pelo contrário, são ativistas que propõem uma transformação indefinida e pouco clara, pela qual as "desigualdades sociais" (e não mais a exploração do homem pelo homem) serão amenizadas.

A mediação que pretendem utilizar para a abolição das "injustiças" também é pouco definida. A luta de classes permanece uma mediação importante mas, na maioria das vezes, os ativistas pensam em constituir uma "hegemonia" através do desenvolvimento da cultura, da educação e da organização das massas, num lento processo de acumulação através do qual as massas oprimidas tomariam consciência do que são e das suas tarefas libertadoras. Em suma, um ativismo portador de uma prévia-ideação pobremente elaborada e que, ao invés de respeitar as determinações do ser-precisamente-assim a fim de transformá-lo, funda-se predominantemente em uma condenação moral do status quo.

O ativista que se propõe revolucionário, nos nossos dias, é marcado, em primeiro lugar, por um ativismo cego, no sentido de que não é orientado por uma teleologia portadora de uma Weltanschauung que dê conta das determinações do real. Tal como em outros setores da práxis, aqui também as respostas alcançadas são quase que imediatamente negadas pela existência social, de modo que o ativista se defronta cotidianamente com o problema de como justificar o novo no interior de sua conservadora concepção de mundo. Tal como no conjunto da práxis social, também na luta político-ideológica dos revolucionários o novo é produzido cotidianamente, mas sua ação sobre a consciência é obstaculizada pelos processos alienantes.

O fundamental desse processo já foi por nós analisado no artigo já citado, da Práxis no 4. O aspecto que agora nos interessa é a sua conexão com os processos alienantes hoje predominantes. O decisivo dessa conexão está no fato de o ativista revolucionário médio ter perdido a capacidade de aprender com as experiências práticas. Analogamente ao que ocorre, hoje, com a práxis social "normal", também entre os revolucionários os processos alienantes impedem que o novo socialmente produzido venha a desalojar a Weltanschauung dominante. Tal como ocorre no conjunto da práxis social, o novo é ininterruptamente produzido pela práxis dos ativistas, mas é absorvido pelas subjetividades enquanto meras novidades, enquanto simples formas novas do velho. Entre os ativistas, acima de tudo as derrotas (que evidenciam a inoperância das concepções que estão cotidianamente orientando as ações) são ideologicamente castradas de todo o seu potencial questionador e subvertedor da ideologia "revolucionária" dominante, e são "corretamente interpretadas" de modo a serem absorvidas pelas velhas concepções de mundo como momentos impulsionadores do fortalecimento e ossificação das antigas concepções. A mediação desse processo é, na maior parte das vezes, o tratamento "politicamente correto" das derrotas, de modo a transformá-las em reafirmação das "crenças" predominantes, impedindo que elas coloquem em questão as concepções teóricas que orientaram a ação derrotada.

Com isso, o ativismo de nossos dias se tornou impermeável à elaboração de uma Weltanschauung verdadeiramente científica e revolucionária, no sentido mais amplo e abrangente que a ele deram Marx e Lukács. O real deixou de ser um problema para transformar, a priori, numa demonstração inquestionável da veracidade das concepções dominantes entre nós, revolucionários. Tal como no conjunto da sociedade, entre os revolucionários a nossa Weltanschauung também deixou de cumprir a função principal de ser patamar para apoiar o desenvolvimento futuro, e se transformou numa camisa de força ideológica para impedir que o novo, que entre os revolucionários tem assumido a forma predominante de derrotas, interfira de modo a questionar os desencontros entre as concepções dominantes e o real. Sem conseguir questionar a sua concepção de mundo, não resta aos ativistas – analogamente ao que encontramos no conjunto da sociedade – senão a alternativa de deformar o real de modo a encaixá-lo artificiosamente na ideologia dominante: ao invés de fazer ciência, de desvelarem o real, os ativistas e seu praticismo constróem fantasias cada vez mais fantásticas para que possam justificar, de forma crescentemente mítica, sua própria existência. Para que isso seja possível, a reprodução ampliada da ignorância, a qual nos referimos em nosso artigo já citado, é uma exigência absoluta: por isso, a cada geração, tornam-se cada vez mais esgarçados os liames entre a experiência revolucionária já acumulada e o presente.

III - Praticismo e Individuação

Nesse movimento em direção a uma concepção mítica de mundo e de uma justificação quase religiosa de seu modo de ser, os ativistas revolucionários reproduzem a tendência social predominante nos processos de individuação. Se os indivíduos "normais", fragmentados em sua existência, desconectados da consciência humano-genérica, frente às incertezas e inseguranças, buscam aplacar suas angústias em visões mágicas da vida e do universo; os ativistas revolucionários, tendo obstaculizado, pelas processualidades alienantes que entre nós predominam cotidianamente, o questionamento das suas concepções de mundo, terminam por perder-se em um praticismo marcado por uma concepção fatalista e mítica da evolução histórica.

Esse fatalismo e misticismo que "crê" na revolução e na sua inevitabilidade, é uma mediação ideológica imprescindível para que a transfiguração do novo em novidade assuma, entre os ativistas revolucionários, o papel de obstáculo a que as derrotas e fracassos se transformem em fermentos questionadores das concepções teóricas, políticas, filosóficas e ideológicas. Na visão de mundo dos ativistas, as derrotas nunca são derrotas, porque são sempre passos preparatórios da vitória revolucionária final, que certamente virá; pois (pergunta o nosso ativista típico) como se pode ser revolucionário se não se acredita na inevitabilidade da revolução? A práxis "revolucionária", carente de ciência, passa a ser ideologicamente sustentada pela crença no "futuro". E, desse modo, as derrotas do hic et nunc serão convertidas em vitórias pela "necessária", "inevitável", vitória "final".

A dialética, de movimento do real na acepção marxiana, transforma-se numa técnica argumentativa para, ao transformar a derrota objetiva em vitória subjetiva, castrar o potencial questionador dos fracassos. Aquilo que Lukács denominou intentio recta, o impulso inerente à práxis, para o desvelamento cognitivo das determinações decisivas do existente, é bloqueado pela conservadora forma de ser do ativista típico. E ela corresponde, em momentos decisivos, ao movimento mais geral dos processos alienantes da práxis contemporânea: o bloqueio do potencial revolucionário do novo socialmente produzido na elaboração de novas prévias-ideações.

Lukács, em sua Ontologia, demonstrou em detalhes em que medida o processo de individuação tem por essência a qualidade das relações que o indivíduo estabelece com a totalidade social. A relação do indivíduo consigo próprio, sua mais profunda intimidade afetiva, psicológica, é traspassada pela sua conexão com o mundo que o cerca, com todas as complexas e, em grande medida inexploradas, mediações que permeiam a elevação das meras singularidades biologicamente dadas em individualidades portadoras de autênticas personalidades.10

Não há, mesmo nessa esfera mais individual, singular, do desenvolvimento social, qualquer elemento, momento, estrutura, ou que nome se queira dar, da personalidade, que não seja historicamente construído pela relação do indivíduo com o ambiente social em que vive – e, pela mediação desse, com a totalidade da história humano-genérica. Em outras palavras, não há nenhum limite a-histórico para o desenvolvimento das individualidades.

Trotsky disse, uma vez, que a tarefa do revolucionário é "alargar as fronteiras do possível". Por trás desse belo aforismo está tanto a concepção de que não há limites históricos que não possam ser superados pelos homens, já que todos eles são resultantes do agir humano, como também a que toda ação humana é historicamente condicionada e, nesse sentido, limitada pelo passado.

Há, ainda, um outro aspecto desse aforismo agora particularmente interessante: na história de uma individualidade, do desenvolvimento de suas potencialidades, tem um peso decisivo a qualidade dos limites com os quais ela se confronta. Se são limites que dizem respeito ao desenvolvimento humano-genérico, a individualidade tende a desenvolver e incorporar de forma cada vez mais consciente suas articulações com o gênero. Num momento revolucionário, em que os problemas cotidianos são confrontados com as grandes alternativas históricas, as individualidades tendem a incorporar os elementos genéricos decisivos e, desse modo, superam a sua particularidade imediata. Contudo, se, pelo contrário, a cotidianidade é predominantemente marcada por tendências reacionárias, são tão pobres e estreitos os limites ideológicos e materiais para o desenvolvimento das pessoas que suas personalidades tenderão a ser mesquinhas, individualistas e de horizontes estreitos. Nessas circunstâncias, a dimensão particular de cada individualidade se empobrece ao converter-se em pólo dominante da relação que o indivíduo desdobra com a história.

Assim como um momento revolucionário cria condições peculiares para o desenvolvimento pessoal, um período marcadamente contra-revolucionário impõe pesados limites ao processo de individuação. Fundamentalmente porque, ao contrário dos períodos revolucionários, a sociabilidade contra-revolucionária vela ideologicamente a necessária e insubstituível conexão ontológica entre a história de cada um e o destino do gênero humano. Tal velamento, nos dias de hoje, faz com que os indivíduos desdobrem as suas relações com o gênero de forma dicotômica, reproduzindo a cisão da individualidade em citoyen e bourgeois. A dimensão pública e a privada são cindidas, esgarçadas; e a articulação prática entre elas, uma necessidade já que o indivíduo continua a ser uma unidade, é dada pelos interesses privados e mesquinhos do burguês médio. É o caráter de proprietário privado (ou de não-proprietário) a mediação prática que conecta, cotidianamente, o indivíduo ao gênero humano. E, todas as vezes – e elas não são poucas – em que as necessidades autenticamente humanas se chocarem com as necessidades de acumulação de capital, serão estas últimas que predominarão sobre as primeiras.

De modo análogo ao que ocorre na relação entre os processos alienantes mais gerais e o praticismo, essa perda ideológica da conexão da vida de cada um de nós com os destinos da humanidade também atua na individuação do revolucionário típico.

Os ativistas contemporâneos típicos são marcados por uma dupla e tensa relação com o estado atual do mundo. Por um lado, manifestam-se contrários aos aspectos mais aberrantes e chocantes das alienações contemporâneas. Se consideram lutadores contra as injustiças e desigualdades sociais. Ao menos no discurso, colocam suas vidas ao serviço da liberdade e da transformação social.

Por outro lado, dominados teórica e praticamente – ou seja, ideologicamente – pelo praticismo "revolucionário", terminam prisioneiros de um universo de horizontes estreitos e pobres, e assumem a perenidade do capital como uma imposição insuperável da realidade. Sem serem capazes de uma Weltanschauung que desvele a essência do capital e de seu predomínio atual sobre todas relações sociais, terminam por assumir – equivocadamente – que a presença universal do capital em todas as relações sociais significa a impossibilidade histórica de sua superação. Num equívoco ideológico muito comum, a extensão espacial é transmutada em extensão temporal; a hoje real universalidade do capital é transfigurada em falsa perenidade no tempo.

Sem poder, na sua práxis cotidiana, efetivar a revolução, sobrevivendo em um ambiente social profundamente contra-revolucionário, o ativista típico de nossos dias desdobra uma curiosa forma particular da cisão citoyen-bourgeois. No discurso, e em alguma medida sinceramente, afirma que predominam em suas ações os interesses humano-genéricos. Contudo, em medida significativa, a "carreira" de militante se tem tornado uma forma de ascensão social. Nas disputas políticas ou sindicais, conforme vão despolitizando-se pelo predomínio da contra-revolução, cada vez mais os interesses imediatamente pessoais são elevados a primeiro plano. Uma derrota significa a perda de uma bela sinecura, ou então o retorno à linha de produção: ambos os casos, uma verdadeira tragédia pessoal nos dias em que vivemos.

Por essa mediação, a afirmação de uma intenção humano-genérica nas suas ações revela-se, de fato, a forma ideológica de afirmação de seus interesses de bourgeois, de ente privado: afirmar-se revolucionário é o discurso que auxilia na manutenção de seu cargo na burocracia partidária ou sindical, com os privilégios decorrentes. Afirmar-se um revolucionário – ou um indivíduo preocupado com o coletivo – é ideologicamente a defesa da sua ação enquanto burocrata que busca a manutenção dos seus privilégios pessoais.

Desse modo, o praticista típico, na sua vida pessoal, no seu projeto pessoal de vida, na qualidade das relações que estabelece com o gênero humano, na estreiteza de horizontes resultantes dos processos alienantes, termina por reproduzir, a seu modo, as medíocres e pobres individualidades peculiares à sociedade burguesa, tipicamente dicotômicas e tão duramente criticadas por Marx, em A Questão Judaica.

Todos nós estamos acostumados a conviver com exemplos cotidianos desse fenômeno. Mas nem sempre foi assim, mesmo em passado mais recente. Há algumas décadas atrás, seria inconcebível, e passível da mais dura crítica pública, o comportamento de um "companheiro" que utilizasse os recursos do sindicato para pagar sua conta telefônica ou encher o tanque de seu carro. Hoje, dado o "realismo" político predominante, é criticada como insensata e irrazoável a proposta de uma crítica pública ao dirigente sindical que levou o telefone do sindicato para sua casa, ou que usa para fins pessoais o carro do sindicato – ou, ainda do dirigente político que barganha com vereadores uma "propina" para a votação de determinada lei que interessa à administração "revolucionária". A saudável concepção de que o recurso público não deve ser utilizado para fins privados – uma concepção, é bom que se diga, longe ainda de uma verdadeira e autêntica ética revolucionária, ainda que muito superior à moral pragmática dos dirigentes "revolucionários" típicos de nossos dias – , é duramente rejeitada como inocente e inoperante, e substituída prática e teoricamente pela práxis média do burocrata do Estado burguês.

De críticos contundentes de qualquer forma de utilização privada da coisa pública, nossos dirigentes "revolucionários" agem como se fossem partidários da tese de que a corrupção corresponde à essência insuperável do homem e que, por isso, para administrar com eficiência, é necessário tolerar e, portanto, ser cúmplice, quando não participante direto de algum grau de corrupção. A mediação ideológica dessa transformação tem sido o abandono da proposta revolucionária e sua substituição pelo projeto de aperfeiçoamento do capitalismo.11 Tal projeto, com todas suas variantes, implica sempre na manutenção da concepção de que a sociedade é o espaço de negociação entre indivíduos que são concebidos como essencialmente egoístas e mesquinhos, como mônadas na acepção tipicamente liberal-burguesa do termo. Essa concepção dualista do mundo dos homens é a base social da práxis típica do burguês médio, que a todo momento afirma a validade moral de algumas regras para, sempre que possível, violá-las tendo em vista seu proveito pessoal. Exatamente o mesmo comportamento tem o nosso dirigente que vai à televisão pregar a mais rígida honestidade e moralidade no trato da "coisa pública" para, na privacidade do seu gabinete, elaborar projetos ou mascarar concorrências para favorecer empresas que financiaram sua eleição – ou, pior ainda, participar do superfaturamento de obras com o pretexto de financiar o caixa-dois das campanhas. Ou então, do nosso reformista mais honesto, que recebe financiamentos eleitorais de empreiteiras notoriamente envolvidas nos esquemas mais poderosos de corrupção e decide ser "politicamente correto" (pois necessário para vencer a eleição) silenciar sobre esse fato.

Istvan Mészáros12 tem toda razão: não há como escapar parcialmente da regência do capital. A proposta de controlar o capital resulta, apenas, em o capital colocar sob sua égide quem o queria controlar. A individualidade revolucionária que se propõe a, estrategicamente, conviver com o capital, termina por consubstanciar sua personalidade pela mediação da dicotomia bourgeois/citoyen. Nosso tribuno do povo se converte, desse modo, em um burocrata do Estado (ou do partido, ou do sindicato: aqui a diferença é pequena). Seu horizonte ideológico abandona a amplitude e alcance da história do gênero humano e se reduz aos problemas técnicos postos pelo gerenciamento cotidiano do aparelho de Estado (ou das disputas pelo poder no interior dos sindicatos e estruturas partidárias). A política perde sua dimensão estratégica (isto é, sua dimensão genérica) e se reduz a uma habilidade técnico-burocrática de articulação no interior dos pequenos jogos de poder. Sutilmente, as propostas políticas são elaboradas como momentos desse jogo, e não mais como projetos para intervenção revolucionária na luta de classes. Quantas greves e iniciativas políticas todos nós já assistimos serem propostas – ou negadas – com o único objetivo de vencer uma eleição sindical ou uma disputa partidária, com total desprezo pelos destinos dos seres humanos envolvidos?

Sem poderem efetivar uma práxis de longo alcance histórico, perdido o horizonte revolucionário, os praticistas terminam prisioneiros da cotidianidade burguesa. Como o ser determina a consciência, os estreitos limites da práxis resultam, de modo típico, em individualidades cujos interesses são igualmente estreitos. Essa é a razão pela qual nossa atividade política se divorciou de toda atividade cultural. Não foi o sectarismo de esquerda que inviabilizou a vida cultural dos militantes, antes foi o reformismo de direita – entre suas variantes, o stalinismo – que, ao reduzir o horizonte do militante aos limites burgueses, ao desconectar a vida cotidiana dos revolucionários dos grandes dilemas históricos, terminou por abolir, no período contra-revolucionário em que vivemos, o interesse pela arte, pela filosofia ou pela ciência. Perdida a conexão ideológica com o gênero humano, o ativista já não mais se interessa pelo seu passado ou por suas grandes realizações. No final do século passado, Fausto, de Goethe, era um best-seller entre as publicações dos sindicatos social-democratas alemães. A queda do padrão cultural e ideológico do movimento sindical e revolucionário tornou esse um fato inimaginável nos dias de hoje. Uma práxis limitada conduz a uma consciência de interesses limitados: daí a histórica incapacidade do praticismo em efetivar o que nossos burocratas chamam de "política cultural" – ou, o que ainda é mais terrível, superar sua própria ignorância.

Em suma, sem conceber sequer pensar para além do capital, as ações dos revolucionários perdem todo caráter estratégico. Estes se perdem na disputa tática, imediata, do poder pelo poder nas instituições da sociedade burguesa. Sufocados pelas alienações contemporâneas, enquanto militantes (citoyen) degeneram de tribunos a burocratas, no dizer de Lênin; e, enquanto entes privados, proprietários nem que seja da sua força de trabalho (bourgeois), buscam na militância a sua ascensão social.

Nesse momento, o praticismo "revolucionário" revela sua outra faceta: se ele é fundado pelos processos alienantes que dominam a sociabilidade atual, se ele é uma particularização, no campo da práxis revolucionária, das alienações mais gerais hoje predominantes – e sem deixar de sê-lo –, ele também exerce uma função justificadora da forma de ser da camada social específica e bastante homogênea de ativistas sindicais e político-partidários. Para sermos breves, que essas considerações já se alongaram para além do previsto, termina por constituir-se, também, em ideologia dos novos burocratas sindicais e políticos.

O desenvolvimento da burocracia sindical e partidária, nas décadas posteriores à ditadura militar, forneceu a base social imediata para o desenvolvimento da ideologia praticista. Dado o caráter do capitalismo nacional, e à incompletude fundamental de suas classes decisivas, essa burocracia, que nasceu como expressão do limite (ainda que a burocracia prefira apresentar-se como expressão da pujança) do movimento real das massas trabalhadoras pós-ditadura militar, converteu-se rapidamente em apêndice do Estado junto à sociedade civil, e jamais no contrário. A lógica do Estado burguês passa a ser a lógica interna dos sindicatos e partidos políticos – já que o aperfeiçoamento do Estado é assumido como a razão de ser da luta dos "revolucionários". Os sindicatos se limitam a viver em função das datas bases e, os partidos, das eleições.

Em outras palavras, a reprodução social ampliada do praticismo "revolucionário" tanto é fundada pelos processos alienantes essenciais à forma de ser da sociabilidade regida pelo capital como, também, conta com uma camada social diretamente interessada no seu desenvolvimento, composta pelos tribunos que degeneraram em burocratas. Por corresponder às tendências históricas hoje determinantes da reprodução social e das individuações, e por contar com um grupo social diretamente interessado em sua reprodução, o praticismo "revolucionário" se impôs como "senso comum" do revolucionário típico.

Ao olhar a sociedade em que vive, os "companheiros" que o cercam, o ambiente ideológico em que se encontra, o praticista típico perdeu até mesmo a noção do que é ser revolucionário. Seu objetivo de lutar por uma sociedade mais justa está simbioticamente articulado a um projeto pessoal de ascensão social através dessa luta. Representar os companheiros de trabalho, ou do bairro, coincide com o ato de elevar-se socialmente frente a eles, a tornar-se candidato a regalias e privilégios ideológicos e, na maior parte das vezes, também materiais. A isso está reduzida, hoje, em parte considerável, nossa geração de ativistas.

Essas anotações introdutórias de modo algum pretendem ter esgotado, ou mesmo explorado suficientemente, os complexos problemáticos que emergem da particularização das alienações hoje predominantes sob a forma do praticismo "revolucionário". A afirmação da potencialidade de elaboração de uma Weltanschauung científica que supere as realizações burguesas apenas pode ser comprovada de forma cabal com a sua transformação em ato. Em que pesem as contribuições as mais significativas de Gramsci e Lukács, de Tertulian, Oldrini e Mészáros, entre poucos outros, seria tresloucado afirmar que podemos divisar a efetivação de uma concepção de mundo verdadeiramente revolucionária. Penso que mais próximo à verdade, nos dias em que vivemos, seria a afirmação oposta: perde espaço social a elaboração voltada à superação da concepção burguesa de mundo.

Contudo, a existência massacrada pelo capital, e os seus processos alienantes que, no presente, têm obstaculizado a elevação do novo socialmente produzido à elementos questionadores da Weltanschauung dominante, mesmo entre os revolucionários, não é a forma essencial, final, do desenvolvimento humano. É apenas uma forma particular de objetivação do ser humano num momento dado da história, marcado pela profunda crise do capitalismo e do movimento revolucionário.

Como diz Lukács em sua Ontologia, é um equívoco imaginar que os processos alienantes contemporâneos sejam uma "condition humaine", correspondam à essência a-histórica, à natureza mais profunda, dos homens. A generalização à essência genérico-universal da particular forma de ser dos homens em um dado momento histórico é um procedimento ideológico-justificatório bastante comum.

Desejamos apenas, como conclusão, salientar, uma vez mais, a incompatibilidade entre a forma de militância hoje predominante entre os ativistas e os desafios postos aos revolucionários nesta quadra de contra-revolução. Por não mais se ter como perspectiva visível a construção do para-si do gênero humano, a atividade revolucionária se restringe à luta imediata pelo poder nas mais diversas instituições. A luta pelo poder, por sua vez, desprovida de um conhecimento do existente que lhe permita identificar as determinações essenciais do momento e sobre elas intervir, resume-se a ações carentes de estratégia que apenas podem ter a forma de uma frenética busca cotidiana de meios para impedir que os outros tomem o poder. O caráter frenético, irrequieto e angustiado da vida cotidiana sob os processos de alienação se apresenta, na forma de ser do ativismo revolucionário, como um praticismo que equivocadamente converte a prática na fonte e no locus resolutivo de todas as questões teóricas.

A prática pela prática, e a resolução dos problemas práticos pela intensificação do ritmo desta prática – e não pelo desenvolvimento do conhecimento do real –, é a dinâmica que reduz a capacidade de elaboração teórica e de questionamento das concepções dominantes, quer sejam elas as burguesas, ou as pertencentes à Weltanschauung predominante entre os que se pretendem revolucionários. Nessa medida, o praticismo "revolucionário" é a mediação prática que particulariza, entre os militantes, os processos alienantes mais gerais centrados na absorção do novo enquanto mera forma nova do velho. Nesse sentido e nessa medida, o praticismo "revolucionário" é uma expressão particular das tendências alienantes genéricas que predominam na sociabilidade contemporânea.

Isso não significa, contudo, que o praticismo "revolucionário" não possa ser superado, até mesmo hoje em dia, quando vivemos em meio a um momento histórico contra-revolucionário. Certamente, sem a superação do capital, não há como ficar totalmente imune aos processos alienantes capitalistas. Mas, mesmo nas situações mais adversas, há superações parciais que podem e devem ser objetivadas, há sempre algo significativo a ser feito nessa esfera, como demonstram os exemplos de Gramsci e Lukács.


1 - LUKÁCS, G. "Marx y el problema de la decadencia ideológica". In: Marx y el problema de la decadencia ideológica. Siglo XXI Editores, 1981, pp. 40-ss..

2 - Idem, Ibidem, p. 31.

3 - Devemos essa expressão a Ivo Tonet, bem como não poucas passagens dessa reflexão. Gostaríamos de lembrar – e agradecer – àqueles que nos honraram com suas observações sobre o ensaio Crítica ao Praticismo "Revolucionário" (Práxis no 4). Muitas delas foram incorporadas ao presente texto, como seus autores não terão dificuldades em reconhecer.

4 - LUKÁCS, G., op. cit., pp. 35-s..

5 - É evidente que em uma generalização dessa ordem as exceções são, e devem ser, postas de lado. O que não significa que não existam, e que, enquanto exceções, não tenham sua importância. Repetimos: tratamos nesse ensaio dos revolucionários típicos de nossos dias.

6 - Idem. "La Reproduzione". In: Per una Ontologia dell’Essere Sociale, vol. II. Roma, Ed. Riuniti, 1981 (A tradução desse capítulo, bem como do capítulo "O Trabalho", pode ser obtido, em fotocópia, no Centro de Documentação Lukács, Biblioteca Central, Universidade Federal de Alagoas, Campus A. C. Simões, Maceió/AL.). LESSA, S. Sociabilidade e Individuação, EDUFAL, 1995, em especial capítulo I; e, do mesmo autor, A Ontologia de Lukács, EDUFAL, 1996, pp. 13-ss., bem como "Reprodução e Ontologia em Lukács", in: Trans/forma/ação, no 17, UNESP, 1994.

7 - LESSA, Sergio. Sociabilidade ..., cit., onde investigamos as conexões ontológicas que, segundo Lukács, operam na reprodução social.

8 - Idem. A Centralidade do Trabalho na Ontologia de G. Lukács (Tese doutoramento, UNICAMP, 1994).

9 - É óbvio que o momento predominante dessa redução do novo à novidade é a reprodução do capital, mas também é evidente que aqui temos espaço apenas para mencionar esse fato, já que a análise desse aspecto nos conduziria para além do objeto deste ensaio.

10 - Ao mesmo tempo universais (pois determinadas historicamente) e singulares (não há duas personalidades iguais). LUKÁCS, G. La Reproduzione, cit.. E também LESSA, S., Sociabilidade ..., cit..

11 - Certamente as desigualdades individuais aqui são acentuadas, e ainda mais significativas porque dizem respeito à essência das individualidades envolvidas. Para não cometermos injustiças, vale realçar que nem todo reformista é um corrupto, assim como nem todo "revolucionário" é um incorruptível. Tais exceções, contudo, não invalidam a afirmação do papel ideológico mediador dessa degenerescência que tem sido exercido pelas teses reformistas.

12 - MÉSZÁROS, I. Beyond Capital. Londres, Ed. Merlim Press, 1995.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 8, Março de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

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