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O Que Será Socialismo, Amanhã?

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Paul Singer
Paul_Singer@revistapraxis.cjb.net

Professor titular da FEA-USP, São Paulo.


Introdução

Há quinze ou dezesseis anos, escrevi um opúsculo intitulado O que é socialismo, hoje. Pretendia demonstrar não só que o socialismo "real" era uma contrafação, mas também que a evolução do capitalismo democrático e as conquistas políticas e sociais do movimento operário impunham uma redefinição do socialismo enquanto projeto. Desenvolvi a tese de que o socialismo, ao longo da história, constituiu uma utopia militante que acabou inspirando mudanças significativas do capitalismo. Estas passaram a exigir a reformulação de sua crítica e portanto da utopia dela decorrente. Cada etapa do capitalismo deveria ter a sua versão anticapitalista sob a forma de um socialismo ajustado às aspirações e convicções dos que lutavam por ele.

Hoje estou mais do que nunca convencido dessa tese. A tentativa de Marx e Engels de formular um socialismo "científico" parece-me confirmá-la por inteiro. A cientificidade do socialismo – e eu a escrevo sem aspas – consistia no fato de fundamentar-se na análise crítica que Marx estava desenvolvendo (e deixou inconclusa) do capitalismo. Ao contrário do socialismo "utópico", que costumava ser deduzido das características da natureza humana, o "científico" pretendia ser a projeção lógica (ou dialética) do desenvolvimento contraditório do capitalismo. Ora, de qual capitalismo se tratava? Do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX, que os dois patriarcas do movimento operário vivenciavam. Nenhum deles antecipou que o capitalismo passaria por novas etapas, tanto por obra da Segunda Revolução Industrial quanto pela implantação gradativa mas crescente da democracia política nas economias capitalistas. O capitalismo da segunda metade do século XX é qualitativamente distinto do vivido por Marx e Engels. Logo, o socialismo científico, se quiser ser científico, tem que atualizar-se.

A noção de utopia militante precisa ser esclarecida. O socialismo foi a bandeira do movimento operário, durante mais de cem anos. Deixando de lado as tentativas abortadas das revoluções que deram no estalinismo, a grande realização do movimento operário nos países que se democratizaram foi a institucionalização da cidadania operária e do Estado de bem-estar social. Isso, juntamente com a Segunda Revolução Industrial, transformaram o capitalismo, tornando-o bem diferente do capitalismo analisado por Marx. A mudança essencial foi que, nas economias desenvolvidas, o grosso da classe trabalhadora deixou de ser pobre. O caráter da luta de classes mudou. Deixou de ter sentido apelar a um proletariado que conquistou o bem-estar material e o sufrágio universal, além do direito de ter suas próprias instituições representativas partidárias e sindicais, nos termos do Manifesto Comunista: "Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a perder com ela, exceto as cadeias. Têm um mundo a ganhar." O socialismo enquanto projeto não se realizou, mas enquanto bandeira inspirou lutas que culminaram em transformações quase tão significativas quanto as do projeto.

Para muitos social-democratas e partidários do New Deal, o capitalismo alterado pela democracia política e pelo Estado de bem-estar social já é o próprio "socialismo". Não há mais o que revolucionar. Cabe apenas defender e aperfeiçoar o já conquistado. Essa posição não é a minha. O capitalismo atual, apesar das conquistas operárias, é uma sociedade de classes, em que os valores de igualdade e solidariedade (ou fraternidade) não têm possibilidades de realizar-se. Se quisermos ver esses valores prevalecerem na vida social, temos de formular o projeto de um sistema sócio-econômico muito diferente. Por isso, o socialismo está fadado a ser uma utopia militante. Utopias não se tornam realidade, mas servem de farol aos que dispõem de poder e de vontade para mudar a realidade. Quando uma utopia enquanto bandeira se esgota em função das transformações que inspirou, isso não quer dizer que ela se realizou, mas apenas que a nova realidade precisa de uma nova utopia.

Mas, e o socialismo enquanto projeto? Um cínico diria que ele serve apenas para inspirar os que lutam. Não penso assim. O projeto socialista não precisa ser factível, ele precisa exprimir e refletir o mais fielmente possível a grande aspiração coletiva por uma sociedade melhor que a atual. Por isso, o projeto socialista é a crítica invertida do capitalismo "realmente existente". A crítica expõe as contradições do sistema, contradições entre os valores da cultura dominante (de que os socialistas são parte) e o processo sócio-econômico real e seus resultados. O projeto socialista descreve arranjos sócio-econômicos e políticos que supostamente resolvem essas contradições. Ou seja, ele descreve uma sociedade em que os valores da atual cultura dominante poderiam realizar-se inteiramente ou quase. Ele serve de base para o programa de longo prazo do movimento socialista. O qual, embora de longo prazo, nunca pode deixar de ser um programa de transição. O projeto desempenha o papel vital de configurar o ponto desejado de chegada da transição. Sem tal configuração, nenhum programa estratégico de transformação pode ser formulado.

A factibilidade do projeto socialista dificilmente será posta à prova, porque a realização do programa estratégico altera significativamente o sistema sócio-econômico, e em conseqüência a cultura dominante possivelmente muda, ensejando a necessidade de atualizar o projeto. A cultura dominante é menos mutável que a realidade sócio-econômica e o relacionamento entre as duas é sumamente complexo. Ainda considero insuperável o que Marx disse a respeito: "O conjunto destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. (...) Com a transformação da base econômica, a imensa superestrutura entra mais depressa ou mais devagar em mudança." (Do "Prefácio" de Para uma crítica da economia política) Marx pensava essa mudança do que estou chamando de cultura dominante em termos de revolução social, isto é, de mudança do modo de produção. A experiência histórica recente mostra que a "imensa superestrutura" muda enquanto o modo de produção continua o mesmo, embora transformado. A superestrutura jurídica e política das economias capitalistas mudou com a Segunda Revolução Industrial e a adoção da democracia política. Como resultado, o capitalismo transitou de uma etapa a outra, sem deixar de ser ele mesmo.

Em suma, a história de nosso século exibe mudanças da base econômica e da superestrutura que não têm o alcance revolucionário previsto por Marx, mas são suficientemente amplas para exigir a reelaboração da crítica e do projeto alternativo de sociedade. Por isso, lanço a hipótese de que o projeto socialista, pensado cientificamente, isto é, como projeção dialética do presente levada às últimas conseqüências, só terá factibilidade enquanto inspirador de programas de transição. O mais provável é que a aplicação deste último afete os valores da sociedade em transição, fazendo com que ela reformule o ponto de chegada. A minha hipótese (vejo agora) nega à ciência a possibilidade de prefigurar o futuro além de um limite bem próximo. Não obstante, para construir o futuro precisamos de uma imagem ou projeto desejável. Ele serve tanto de guia para a ação transformadora como para combater os partidários de outros projetos.

A última grande transformação da superestrutura se deu no último quartel deste século, quando o liberalismo enquanto projeto e enquanto utopia ressurgiu das próprias cinzas. Ele parecia morto e enterrado após os pavores da grande crise dos anos trinta e da Segunda Guerra Mundial. Na realidade, sobreviveu nas catacumbas dos pequenos grupos, cujos porta-vozes se notabilizaram na crítica tanto ao "socialismo" real quanto ao capitalismo estatizado pelo seguro social, pela moeda fiduciária e pela política fiscal anticíclica. Ninguém prestou muita atenção enquanto tudo deu certo. Mas, quando a estagflação começou a causar estragos e a classe média começou a revoltar-se contra a carga fiscal, a consciência social deu uma pirueta. Deixou de priorizar o pleno emprego e o desenvolvimento para apreciar valores de uma outra época: lei e ordem, recompensa do mérito revelado em processos competitivos, redução do Estado parasitário e do seguro social, este último não apenas porque custa demais mas porque des-incentiva os pobres a procurar no "trabalho honesto" a solução de seus problemas. Hoje, o liberalismo é o grande adversário do socialismo, enquanto projeto e utopia, nas sociedades capitalistas democráticas. Seu ideário impregna de novo a cultura dominante, enquanto declina a participação do socialismo. Como veremos a seguir, a superioridade do liberalismo está calçada na falta de um socialismo atualizado, dotado de credibilidade.

Etapas do Capitalismo
as duas primeiras revoluções industriais

As etapas do capitalismo estão determinadas pelas transformações sócio-econômicas suscitadas pelos avanços científicos e tecnológicos, sintetizados nas assim chamadas "revoluções industriais, e pelas mudanças da cultura dominante, resultantes daquelas transformações e dos conflitos sociais e políticos que ensejam. Comecemos pelas revoluções industriais.

A Primeira Revolução Industrial (1780-1880)

A Primeira Revolução Industrial (1a. RI) cobre o período entre aproximadamente 1780 e 1880. Como se trata de processos de conquista de novos conhecimentos e sua aplicação à vida econômica e social, a divisão em etapas é sempre artificial. Cada avanço decisivo é precedido por logros menores mas indispensáveis, num fluxo sem solução de continuidade. Mas a análise histórica exige a distinção de mudanças qualitativas; o momento da mudança pode ser artificial, mas é revelador. Portanto, tomemos as datas como aproximações de períodos em que o processo de desenvolvimento das forças produtivas mudou de natureza.

Por volta de 1780, conseguiu-se, pela primeira vez, após muitas tentativas, fabricar motores a vapor eficientes que passaram a substituir com vantagem a força do homem, do animal, da gravidade da água em queda e outras na movimentação de diferentes máquinas, sendo as mais importantes a de fiar, o tear mecânico e a locomotiva, além da aplicação original às bombas usadas para retirar água das minas. O surgimento da chamada "máquina a vapor" suscitou a invenção de uma série de máquinas, adaptadas a este motor. Surgiu assim um novo modo de produzir que conhecemos como "industrial". Ele se caracteriza pela produção em série de modelos padronizados, em velocidades inalcançáveis pela movimentação de membros de corpos humanos ou de animais. O que se torna possível pela substituição desses membros por mecanismos acoplados a motores, movidos por energia artificialmente captada e dominada pelo homem. O homem deixa gradativamente de ser agente direto do processo produtivo para tornar-se o mestre criador e controlador de autômatos, que cada vez mais se encarregam das tarefas produtivas.

A 1a RI apenas inicia esta transformação revolucionária em seletos ramos de produção, mas isso basta para desencadear mudanças econômicas e sociais profundas. A produção de mercadorias começa a substituir diferentes formas de produção direta para o consumo, embora uma grande massa de pobres continue a viver de sua própria produção de alimentos, roupas e utensílios. A produção para o mercado se generaliza e as relações de produção e de intercâmbio, que ela suscita, tomam o lugar da produção e do consumo doméstico, no seio da família extensa. As relações entre os homens tornam-se indiretas e impessoais, intermediadas pelo linguajar da moeda e limitadas pelo exclusivo interesse econômico. O relacionamento entre as pessoas se cinde entre um âmbito público – o mercado – e outro privado e íntimo, sendo que neste último continuam valendo as identidades, as idiossincrasias e os sentimentos comunitários de inclusão e de exclusão.

Essa mudança econômica e social redefine o que se conhece como nação. Esta não se identifica mais pela dinastia governante e pela religião oficial, nem pela uniformidade étnica e lingüística de seu povo. A nação passa a ser sobretudo o espaço onde cidadãos participam da mesma divisão de trabalho, fazendo e cumprindo contratos, acumulando capital. A forma como adoram Deus, a língua com que se comunicam, o modo como formam famílias e o relacionamento entre seus membros – tudo isso passa a integrar o espaço inviolável da privacidade do cidadão. Este passa a ter direito à liberdade de se auto-realizar, tanto no mercado e no âmbito político, como na vida pessoal e familiar. Começam a desaparecer as diferenciações por herança familiar, por religião, por cor e por sexo e naturalmente os privilégios que estas diferenciações originavam. Liberdade e igualdade dos indivíduos face aos grupos comunitários tradicionais passam a ser os valores primordiais do mundo que a revolução industrial (que ninguém imaginava ser a primeira de uma sucessão) estava trazendo à luz.

O alvor da 1a RI não por acaso coincide com a Revolução Francesa, cujo ideário exprime com precisão os valores funcionalmente correspondentes à economia de mercado, que se torna ao mesmo tempo hegemônica e cada vez mais capitalista. A revolução industrial torna a intensidade de capital pré-condição para a eficiência produtiva e portanto para a competitividade no mercado. Industrialização significa construção de sistemas produtivos grandes e dispendiosos. Em uma palavra: concentração do capital, portanto dominação do processo produtivo pelos que monopolizam a acumulação do capital. A classe capitalista clama pela liberdade de empreender, de livremente importar e exportar, investir e desinvestir, empregar e desempregar. A emancipação do indivíduo e a igualdade de todos perante as mesmas regras, sejam estas do jogo do mercado ou do corpo de leis, fazem todo sentido para a nova classe dominante, que pela primeira vez na história não pretende ser, enquanto empreendedores, classe governante. A burguesia percebe que o Estado tem que ser neutro face à competição nos mercados e que por isso os que governam têm que estar livres de qualquer ligação espúria com capitais particulares. Surgem assim agrupamentos profissionais novos, entre os quais os políticos profissionais e os administradores públicos, que substituem a aristocracia nas funções governamentais.

Durante essa etapa inicial do capitalismo industrial, todas estas transformações se processam com exasperante lentidão para quem as saúda e com fantástica rapidez para quem as abomina. Objetivamente, elas levam o final do século XVIII e os primeiros quatro quintos do século seguinte para enraizar-se, formando uma nova economia e uma nova cultura dominante, na Europa Ocidental e Central e na América do Norte. E mesmo nessa restrita parte do mundo, a resistência do velho continua intensa, sendo em grande parte eliminada apenas com a Primeira Guerra Mundial (1914-18). Na periferia, constituída pela Europa Oriental e pela América Latina, a revolução industrial e as mudanças que acarretava apenas começavam, por volta de 1880, a tomar pé em centros urbanos. No Brasil, o grande obstáculo paralisante, representado pela escravidão, ainda não fora derrubado. No Japão, transcorria a Revolução Meiji. Nos continentes asiático e africano, predominava o colonialismo europeu, que trazia a conta-gotas o capitalismo industrial e suas instituições.

A cultura política dominante, que se consolidou na etapa da 1a RI, era a do liberalismo. Sustentava a liberdade econômica, política e cultural do indivíduo e o governo representativo dos cidadãos plenos, ou seja, detentores de renda ou de propriedade. "Obviamente" do sexo masculino e chefe de família. O sexismo deve ser atribuído a valores muito tradicionais, então ainda não superados. A exclusão dos direitos de votar e de ser votado da maioria destituída dos requisitos econômicos tinha outro caráter. Objetivava dar à classe economicamente dominante o direito de escolher os governantes, para assegurar harmonia entre ambos os poderes. Era motivada também pelo medo justificado de que, se as classes destituídas de renda e/ou propriedade tivessem direitos políticos, os utilizariam para apoderar-se das alavancas de poder estatal e com elas restringir, mutilar e no limite eliminar as prerrogativas dos proprietários do capital.

No fim dessa etapa, a burguesia se encontrava em vários países, particularmente na Alemanha, entre dois fogos: de um lado, a oposição conservadora, apoiada pela coroa e pelo clero, tendo no campesinato dominado pela tradição uma base de massas; do outro, insistindo na aceleração das mudanças e sua universalização, o jovem movimento operário ideologicamente ainda confuso, mas sendo capaz de formular a utopia socialista e de organizar-se internacionalmente para difundi-la aos quatro cantos do mundo. Mas essa dificuldade era dos políticos e formadores de opinião. Os capitalistas continuavam a acumular capital e a assombrar o mundo com suas últimas criações, entre as quais o telefone, o telégrafo, o saneamento básico e a assepsia para proteger-nos dos micróbios, que acabavam de ser descobertos por Pasteur. Os operários podiam festejar suas primeiras conquistas institucionais: a limitação legal da jornada de trabalho e o direito de formar sindicatos, negociar contratos coletivos e fazer greve. E nos USA, já dispunham do sufrágio masculino quase universal.

A Segunda Revolução Industrial (1880-1970)
a transformação da infra-estrutura

As inovações, que marcam o início da 2a RI, resultam de amplo desenvolvimento científico imediatamente anterior e por isso são numerosas e muito diversificadas: o motor a explosão, logo a seguir aplicado à criação de veículos automóveis por terra – carros de passageiros, ônibus, caminhões – e por ar – dirigíveis e aviões; geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, aplicada à iluminação, ao aquecimento e à refrigeração, como força motriz e na eletroquímica, nas telecomunicações etc.; criação de novos materiais artificiais e em seguida sintéticos, com aplicações em quase todos os ramos industriais; além do cinema, do rádio, da televisão e de outros meios de comunicação de massa. Etc., etc., etc..

Apesar da amplitude das mudanças econômicas e culturais originadas na 2a RI, elas podem ser caracterizadas como continuação expandida e aprofundada das oriundas da 1a RI. Foi por isso que Marx, que teve pouco reconhecimento em vida, foi um dos grandes mestres espirituais do mundo nesse século. Suas teorias foram todas forjadas durante a 1a RI e, não obstante, eram incrivelmente atuais face aos desdobramentos da 2a RI. É que Marx soube detectar as transformações verdadeiramente revolucionárias, pelas quais o mundo iria passar nos cem anos seguintes, entendendo-as como desenvolvimentos necessários da lógica do capital.

Quando se inicia a 2a RI, a produção material estava longe de ser integralmente industrializada. Elementos artesanais ainda se combinavam com elementos industriais em cada processo produtivo. Quase tudo precisava de acabamento manual, o que exigia destreza e capacidade de julgamento do trabalhador, que tinha de ser capaz de operar tanto com máquinas quanto com ferramentas manuais. Com os avanços da 2a RI, esses elementos artesanais foram sendo gradualmente substituídos por processos mecânicos, levando a um estreitamento crescente da área de decisão do trabalhador. Neste sentido, uma ruptura importante foi a metodologia, descoberta por Taylor, de subdividir e simplificar cada uma das tarefas manuais até que elas possam ser desempenhadas "mecanicamente" pelo trabalhador, transformado assim num êmulo da máquina.

Outra ruptura fundamental deveu-se a Henry Ford, que inventou a padronização total dos componentes de um produto complexo como o automóvel, tornando possível sua produção em série e graças ao seu barateamento, o seu consumo em massa. O fordismo colocou ao alcance do povo os bens duráveis, o que revolucionou o padrão de consumo popular e alienou ainda mais o produtor direto da compreensão e do controle do processo de produção. O conhecimento técnico passou a ser apanágio de um novo tipo de empregado, o engenheiro, diretamente ligado à direção da empresa. A aplicação em grande escala do taylorismo e do fordismo permitiu melhorar a paga do produtor direto, mas piorou muito suas condições de trabalho. Estas passaram a ser objeto de disputas entre os capitalistas e os sindicatos de trabalhadores.

Do ponto de vista do relacionamento social e do avanço cultural, o revolucionamento do consumo foi decisivo. Até a 2a RI, os bens duráveis – casas, carruagens, mobílias, relógios, armas etc. – eram artigos caros, acessíveis apenas aos abastados. O povo os adquiria, quando possível, de segunda mão e passavam de pai para filho. Em cada lar, a dona de casa liderava uma equipe feminina de produção, responsável pela alimentação e pelo vestuário de todos. Mesmo nas cidades, plantavam-se hortas e se criavam pequenos animais nas casas dos pobres. Isso pouco mudou durante a 1a RI, mas foi progressivamente extinto ao longo da 2a RI. O consumo de mercadorias se generalizou e se diversificou. A incessante criação de novos produtos para o consumo passou a ser uma das fontes do dinamismo da acumulação. E as equipes femininas de produção para o autoconsumo doméstico foram desativadas, liberando seus membros para o mercado de trabalho.

A transformação da mulher em assalariada deu-se em duas ondas: uma que vai das décadas finais do século XIX à grande crise dos anos trinta; e a outra que começa nos anos sessenta e ainda prossegue. Quebrou-se assim o vínculo de dependência econômica do homem, do pai primeiro e marido depois, e portanto desapareceu a base material da subordinação feminina. A grande luta emancipatória do feminismo desencadeia-se também em duas etapas, mais ou menos coincidentes com as ondas acima referidas. A primeira busca a emancipação civil da mulher e a sua plena cidadania política, e a realização destes objetivos é crucial para a instauração da democracia. Esta exige longas lutas, em que socialistas e feministas enfrentam a resistência do capital e do conservadorismo tradicional. Finalmente, o sufrágio universal é adotado, em 1900, pela Austrália e depois sucessivamente pelos outros países "civilizados". No Brasil, ele data de 1932 sendo exercido pela primeira vez na eleição da Assembléia Constituinte de 1934.

Outra transformação importante foi a concentração e centralização do capital, antecipada mas não testemunhada por Marx. Durante a 1a RI, a única empresa de dimensões realmente grandes que surgiu foi a ferrovia, que por isso mesmo inaugurou duas inovações institucionais decisivas: a sociedade por ações ao portador, negociadas diariamente em Bolsas de Valores e a administração burocratizada, a cargo de um staff hierarquizado de empregados. Com a 2a RI, multiplicaram-se as firmas gigantescas, operando múltiplas plantas industriais, armazéns, frotas de veículos, linhas próprias de comunicação etc., em grande número de países. O gigantismo do capital foi provocado pelos ganhos derivados do aumento da escala de produção e possibilitado pelo encurtamento das distâncias resultante do desenvolvimento do transporte à longa distância e das telecomunicações.

A concentração do capital fez surgir um complexo sistema financeiro para canalizar a poupança de milhões de famílias às sociedades anônimas em permanente expansão. E aos governos em crônica necessidade de tomar empréstimos. O capital se desdobra funcionalmente em capital produtivo, capital de intermediação comercial e financeira e capital em sua forma pura, etérea, de valor líquido, que se concretiza provisoriamente em qualquer uma das formas precedentes. O outro lado dessa transformação é a cisão entre a propriedade e a gestão dos grandes capitais. Em lugar do "capitão da indústria", proprietário e dirigente da empresa, surge o "executivo", um assalariado regiamente pago, contratado pelos proprietários para dirigir a empresa. Mas, os proprietários, ao contrário do que se divulgou – e mesmo Galbraith (em O novo estado industrial) omitiu – não saem de cena. Continuam presentes nos Conselhos de Administração das grandes firmas e, através dos "grupos controladores", vigiam os executivos e conforme os resultados podem substitui-los. Além disso, se a firma não alcança lucratividade suficiente, ela pode ser objeto de uma tomada hostil de controle por especuladores da Bolsa, que, se exitosos, reorganizam a firma ou simplesmente a fecham para alienar com lucro seu patrimônio. Em todo caso, o capitalismo dos "executivos" não apresenta a solidez dos capitais administrados pelos donos, que continuam dirigindo autonomamente as empresas médias e pequenas.

Surge uma nova "classe média", formada a partir dessa burguesia gerencial das grandes firmas e engrossada pelos profissionais de nível superior assalariados, pela cúpula do funcionalismo público, do ensino superior e de entidades não-lucrativas. Os trabalhadores se dividem em duas classes distintas: uma pequena burguesia de autônomos e pequenos empresários, que participam diretamente da atividade produtiva e um proletariado assalariado de trabalhadores diretamente produtivos, indiretamente produtivos e improdutivos. Nas economias avançadas, que ostentam todos os avanços da 2a RI, o grosso dos trabalhadores, pequenos burgueses e proletários, gozam de padrão de vida alto em relação tanto ao seu passado com aos trabalhadores do Terceiro Mundo. Ao contrário do previsto por Marx, a estrutura de classes em vez de simplificar-se e polarizar-se, diversificou-se e complicou-se. Nesses países, o proletariado tornou-se proprietário de bens modestos mas significativos – casa, carro, título de clube etc. – e a pobreza se restringe a uma minoria composta por grupos em geral desavantajados e estigmatizados.

Política e mudança da cultura dominante – capitalismo x "socialismo real"

Isso basta como descrição das mudanças econômicas e sociais, que fundamentaram os eventos políticos e a transformação da cultura dominante, ocorridos desde o alvorecer deste século. Na história da humanidade, o século vinte é sem dúvida o século das revoluções. A série começa com a revolução de 1905, que abalou o Império Russo de ponta a ponta, prossegue com as revoluções de 1910 na China e no México, e culmina com as revoluções russas de Fevereiro e Outubro de 1917. Esta última se destaca porque ela não só termina um sistema político e inicia outro; pela primeira vez o poder é tomado por um partido social-democrata que se propõe a abolir o capitalismo e em seu lugar instaurar o socialismo, como via de transição ao comunismo. Surge a União Soviética, de economia centralmente planejada e poder político ditatorialmente exercido por um partido único. O socialismo, aspiração humanista e utópica dos que se opõem ao capitalismo, transforma-se em poucas décadas em "realidade", que aos poucos se desnuda como o oposto da utopia, que continua inspirando a massa de militantes nos países capitalistas.

Com a vitória da Revolução de Outubro, o próprio conceito de revolução muda. Revoluções do mesmo molde da de Outubro se multiplicam durante e após a Segunda Guerra Mundial: Iugoslávia, Albânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Checoslováquia, Grécia, China ... Como são os resultados que contam e não o método, valem também as revoluções fajutas, impostas burocraticamente pelas tropas soviéticas de ocupação. Mas, continuam abundantes as revoluções autênticas, vitoriosas ou não, no Vietnã, na Indonésia, nas Filipinas, em Cuba, na Argélia, em Quênia, Angola, Maputo, Nicarágua ... Praticamente não se passa ano algum, entre 1945 e 1980, em que não se tenha iniciado alguma revolução em algum país do Terceiro Mundo ou em que pelo menos várias tenham prosseguido em longas e sangrentas guerras civis.

Não há necessidade de passar em revista aqui as numerosas conseqüências desse rosário de revoluções de diferentes espécies. Basta referir-se ao essencial. Durante a 1a RI, o liberalismo reinou incontesti como a ideologia do novo modo de produção; o passado tradicionalista resistia, mas fadado a ceder terreno quase sem cessar. Sob a égide do liberalismo, acabou-se com o tráfico negreiro e se aboliu a escravidão nas Américas. Sob a bandeira do liberalismo e do nacionalismo, refizeram-se os mapas das Américas, com a conquista da independência pelas colônias européias e depois o mesmo ocorreu na Europa, com a independência da Grécia, depois da Itália e da Alemanha. O desafio do socialismo ao liberalismo era ainda tímido, doutrina de uns poucos círculos radicais, com expressão política insignificante. A Primeira Internacional, de Marx, só fez sentir sua presença na Europa por ocasião do episódio da Comuna de Paris, em 1871. Foi um relâmpago prenunciador, mas sem conseqüências maiores imediatas. A hegemonia liberal continuaria incontesti por mais quarenta e tantos anos.

O desafio do socialismo toma corpo na última década do século XIX, quando a luta pelo sufrágio universal polariza as atenções em todos países adiantados e se funda a Segunda Internacional. Esta já reúne partidos com representação parlamentar, imprensa própria, aliados sindicais potentes e sobretudo em crescimento. A Internacional percebe a ameaça de guerra mundial e se propõe como tarefa primordial evitá-la. Em 1914, a tentativa fracassa espetacularmente. O proletariado de todos os países beligerantes se lança na carnificina mútua e abandona suas lideranças pacifistas. A Internacional se desfaz e a idéia do socialismo parece naufragar para sempre. Mas, na realidade, o que ocorre é o contrário. Com a Revolução de Outubro, conseqüência direta da Guerra, a utopia socialista renasce das cinzas, mais radical e mobilizadora do que antes. A partir da consolidação do poder autodenominado de "soviético" no antigo Império Tzarista, é a hegemonia liberal que soçobra.

O período de entre-guerras é marcado pela ascensão dos radicalismos de esquerda e de direita. Comunismo e fascismo disputam espaço em todos os países, mas é o último que alcança o poder na Itália e na Alemanha. Em países periféricos da Europa Sul, Central e Oriental e da América Latina, regimes autoritários com inclinações fascistas se instalam. (No Brasil, o Estado Novo de 1937 a 1945 foi um destes regimes). A democracia, sucessora legítima do liberalismo, parece sitiada nos países anglo-saxônicos, escandinavos e alguns latinos (França, Bélgica, Suíça, Chile ...).

A polarização do mundo entre o nazifascismo e o comunismo parecia inevitável. Mas, mais uma vez, as aparências enganavam. A Segunda Guerra Mundial foi iniciada pelas grandes democracias do ocidente europeu, declarando guerra à Alemanha hitlerista, em resposta à invasão da Polônia. Stalin desmoraliza a União Soviética ao fazer uma aliança de última hora com Hitler e tem que aceitar o socorro das potências democráticas (EUA e Reino Unido) quando o seu aliado o ataca de surpresa, em 1941. No final, o grande confronto é entre a democracia e o nazifascismo. Stalin se junta aos Aliados, dissolve a Terceira Internacional e proclama a guerra como sendo de "libertação nacional". A vitória aliada destrói o nazifascismo e a democracia surge como a proposta de um Mundo Livre.

No pós-guerra, o "comunismo" se firma na Europa apenas onde se dá a ocupação pelas tropas soviéticas. Em compensação, torna-se uma utopia militante muito atraente sobretudo na Ásia, onde a vitória da Revolução Chinesa em 1949 tem enorme repercussão. Na América Latina, nenhum dos partidos comunistas alcança crescimento significativo, a não ser episodicamente. Isso muda com a vitória da Revolução Cubana, em 1959, que desencadeia uma série de tentativas análogas no resto do continente. Na África, a luta pela independência ainda dura décadas, só triunfando completamente com a vitória nas colônias portuguesas, em 1974. Muitas forças anticolonialistas se aliaram à União Soviética e, quando foram vitoriosas, instalaram regimes análogos ao "socialismo real".

O período final da etapa marcada pela 2a RI parece, à vista dos contemporâneos, polarizado pela Guerra Fria entre os blocos liderados pelos USA e pela URSS. Numa perspectiva de 25 anos depois, outras coisas parecem mais significativas. Estas são os acontecimentos internos aos dois blocos, que explicam as transformações que ambos sofrem.

Comecemos pelo bloco do "socialismo real", que sabemos termina em colapso, provocado não por agressão externa, mas pelo completo fracasso em realizar seus objetivos proclamados. O período 1945-70 assiste à expansão do bloco com a incessante adesão de mais países onde revoluções são vitoriosas. Ao mesmo tempo, explodem levantes e revoltas – Berlim e Alemanha Oriental em 1953, Polônia e Hungria em 1956, Checoslováquia em 1968, Polônia em 1970 –, que desmascaram todas as pretensões democráticas e populares que o "socialismo real" alimentava universalmente. O totalitarismo reinante nesses países permite que a fachada oficial se afaste inteiramente da realidade experimentada pelos que neles vivem. Mas o totalitarismo sucumbe ao cansaço e possivelmente ao nojo dos que devem sustentá-lo. Nada mais devastador que o relatório de Krushev sobre Stalin, exposto num congresso partidário em 1956 e deixado ao serviço secreto dos EUA para ser informalmente divulgado no exterior. Ao mesmo tempo, o retorno de milhões de ex-internados em campos de trabalho forçado aos seus antigos lares torna a verdade conhecida em toda sociedade soviética.

A partir da morte de Stalin, em março de 1953, põem-se em prática sucessivas reformas, todas tentando dar racionalidade e eficiência à economia centralmente planejada, e legalidade e alguma realidade ao exercício da cidadania na URSS e satélites. Após cada reforma, a falta de resultados permite aos conservadores retomar o poder e restabelecer o que se tentara reformar. Nesse jogo se consome toda uma geração. Em 1970, o bloco soviético aparece ao Terceiro Mundo como o grande protetor das revoluções populares, como a cubana e a vietnamita. Mas, no Primeiro Mundo, o fascínio pelo "socialismo real" já tinha acabado e os poucos simpatizantes que restam se consolam com o pensamento de que ele afinal deve ser superior ao que o capitalismo reserva aos países do Terceiro Mundo.

No Primeiro Mundo, e crescentemente em países do Terceiro também, surge uma esquerda que recusa o "socialismo real" e se engaja em lutas com agenda própria. Ela reúne setores do movimento operário e sobretudo do movimento estudantil, a mobilização dos negros americanos contra o racismo e o ressurgimento do feminismo, após quase trinta anos de hibernação. Tudo isso culmina em 1968, com o Maio de Paris, os eventos de Tlateloco no México e Córdoba na Argentina, os levantes estudantis no Brasil e de negros em várias cidades americanas.

Política e mudança da cultura dominante – a crise do liberalismo

Precisamos agora voltar no tempo à década de trinta, para descrever o declínio do liberalismo nos países capitalistas. Essa década assistiu à pior crise da história do capitalismo, condicionada em última análise pelo descompasso entre as transformações econômicas, trazidas pela 2a RI, e a imobilidade institucional, assinalada pelas tentativas heróicas de restabelecer o padrão-ouro internacional após o término da Primeira Guerra Mundial. Entre o estabelecimento deste padrão, nos anos setenta do século XIX, e o pós-guerra dos anos vinte deste século, o mundo se tornou muito mais interdependente em função tanto da intensificação do comércio internacional como do aumento dos fluxos internacionais de capital. O padrão-ouro era um sistema de coordenação internacional dos sistemas monetários, regido pelos fluxos de ouro entre os países e administrado informalmente pelo Banco da Inglaterra. Este desempenhava essa função em virtude da hegemonia britânica na economia mundial, que acabou ruindo definitivamente durante a Primeira Guerra Mundial.

A crise foi ao mesmo tempo econômica e financeira. Esta última ocasionou brutal contração do crédito, reforçada pelas políticas monetárias oficiais cujo objetivo era evitar que retornassem as elevadas inflações dos períodos da guerra e do pós-guerra. Verificou-se uma fantástica deflação de 40% nos USA entre 1929 e 1932, enquanto caia o consumo, a produção e o emprego. A crise se espalhou pelo mundo inteiro e cada país procurava melhorar sua situação pela desvalorização da moeda e os conseqüentes aumento da exportação e diminuição da importação. Em 1931, o padrão-ouro foi definitivamente abandonado e cada país tratou de fechar-se ao comércio mundial. As políticas econômicas se afastavam da ortodoxia liberal, o que correspondia à derrota dos políticos liberais na disputa pelo poder. A ascensão da direita fascista ou fascistóide em tantos países se deveu, em boa parte, à débâcle da economia liberal nesses mesmos países.

Na Suécia e nos EUA, a esquerda democrática reformista chegou ao governo e começou a desenvolver pragmaticamente políticas econômicas anticrise, com intervenção ativa do Estado na acumulação do capital e na distribuição da renda. Para os socialistas da época e mesmo da geração seguinte (a minha), essas tentativas careciam do glamour dos planos qüinqüenais de Stalin, a cujo êxito se atribuiu a performance excepcional da economia soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, a análise retrospectiva hoje (1995) reconhece na gestão da social-democracia sueca e no "New Deal" de Roosevelt um alcance revolucionário. Inclusive porque o intervencionismo estatal foi praticado em plena democracia. Hitler e outros ditadores da época – inclusive Getúlio Vargas – também foram por esse caminho, mas nunca prestaram contas a ninguém e por isso não desenvolveram uma justificativa de princípios para sua conduta. Os social-democratas suecos e os Democratas norte-americanos ganharam sucessivas eleições à base de sua política, sendo sempre contestados pelos defensores do antigo consenso liberal. Por isso, inauguraram um modelo ideológico, que ficou sendo a nova ortodoxia após a Segunda Guerra Mundial.

Esse modelo tomou o nome de "keynesiano". Keynes, paralelamente a Gunnar Myrdal e Michael Kaletski, desenvolveu a teoria de que o nível de atividade de uma economia nacional nem sempre se equilibra em nível ótimo, mas pode ser conduzido a este nível mediante políticas adequadas de gastos públicos e de emissão de moeda. A importância de Keynes é que se tratava do mais conhecido e prestigiado economista liberal do mundo, que assim rompia com a teoria econômica liberal e em seu lugar propunha outra. Ao publicar a Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, em 1936, Keynes tinha plena noção de que estava desencadeando uma revolução teórica, como escreveu em carta a Bernard Shaw. E, de fato, ajudado pela enormidade da crise, Keynes reverteu o consenso e contribuiu, talvez mais do que qualquer outro, para promover o ajustamento superestrutural de que o capitalismo carecia.

Política e mudança da cultura dominante – o novo consenso

A contribuição mais direta e concreta de Keynes à reformulação institucional foi mediante sua participação no conclave de Bretton Woods (USA), em 1944, em que se criaram novos sistemas internacionais de pagamentos, de financiamento de projetos de longo prazo e de comércio, institucionalizados em órgãos intergovernamentais: o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio). Para o primeiro, Keynes tinha preparado um projeto específico, que os americanos menosprezaram. Mesmo assim, o que se instituiu inovava em princípios: em vez do banco central da potência hegemônica administrar o sistema, a tarefa foi entregue a um órgão intergovernamental, em que todos os países tinham voz e votos, ponderados pelo seu peso político e econômico. Os USA tinham preponderância, mas abriram mão do seu poder de mandar sozinhos para partilhá-lo com os demais países.

Com a criação da ONU e do sistema de órgãos intergovernamentais ligados a ela, inclusive os criados em Bretton Woods, surgiu um sistema político internacional capaz de controlar e regular a internacionalização dos capitais privados. Com isso, foi possível no pós-guerra reverter a tendência de fechamento das economias nacionais sem expor o mundo ao risco de nova crise semelhante à dos anos trinta. Esse risco era a principal preocupação dos economistas mais ilustres e possivelmente a principal esperança dos que desejavam o advento do socialismo. Levou mais de vinte anos para que uns e outros se convencessem de que o contínuo agravamento das crises de conjuntura não era uma fatalidade nesta etapa do capitalismo.

Mas, a sensível melhora do ciclo de conjuntura no derradeiro quarto de século da etapa da 2a RI (1945-70), em quase todos os países, não se deveu apenas à regulação política dos intercâmbios internacionais, mas também a políticas anticíclicas praticadas em cada país. Aí houve também ruptura com o passado. Passaram-se leis nos principais países capitalistas em que se declarava como um dos principais objetivos governamentais a manutenção do pleno emprego. Revogava-se assim o consenso anterior, de que o mais importante dever de qualquer governo era manter fixo o valor em ouro de sua moeda e jamais gastar além da receita. Aliás, revogava-se toda noção de Estado mínimo, em cujo lugar se construía-se o Estado de bem-estar social. O seguro social abrangente e universal começa a ser desenvolvido em diferentes países, impulsionando crescente participação estatal no PIB.

Outra mudança importante é a constituição de um expressivo setor produtivo estatal, que surge em países industrializados mediante a nacionalização de setores estratégicos como energia, transporte, telecomunicação, mineração etc., e em países em desenvolvimento mediante a criação de tais setores pelo Estado. Esse processo se dá em alguns países sob a égide de governos de esquerda, que se lançaram à nacionalização inspirados no projeto socialista de "socialização dos meios de produção". No Brasil, o monopólio estatal do petróleo foi instituído em 1953, após ampla e polêmica campanha popular, em que a esquerda se empenhou profundamente com a mesma inspiração. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, de países europeus e do Terceiro Mundo.

A cultura dominante mudou sobre a questão do papel do Estado e do mercado. O liberalismo foi substituído por uma concepção mista, que combinava valores liberais e valores socialistas, sob denominações tais como economia social de mercado, planejamento indicativo da economia, Estado desenvolvimentista ... Essa mudança, sem dúvida fundamental, deve ser atribuída não só ao aprendizado proporcionado pelo enfrentamento à crise dos anos trinta, mas também à prática da democracia política. Esta acabou sedimentando um equilíbrio político-partidário na maioria dos países em que partidos moderados de direita e de esquerda se revezavam no poder. O desafio socialista ao capitalismo acabou sendo absorvido na evolução institucional do pós-guerra. Mesmo os partidos conservadores, quando retornavam ao governo, não procuravam desfazer tudo o que os esquerdistas tinham feito anteriormente. Atendiam com isso a opinião pública, tendente a convergir no centro e a premiar eleitoralmente os candidatos mais moderados.

Essa, pode-se dizer, foi a primeira mudança da cultura política dominante desde o início do capitalismo industrial. Ela não se limitou à questão do papel do Estado e do mercado. Mudou também em relação à democracia política, que fora polêmica e se tornou consensual. Após a Segunda Guerra Mundial, nenhuma força política que aspirasse seriamente ao poder se apresentava como antidemocrática. Sufrágio universal, direitos humanos, igualdade racial e de gênero, liberdades políticas etc., passaram a ser valores quase consensuais. A prova disso é que, por toda parte, os regimes não-democráticos erguiam fachadas democráticas, pretendendo serem democracias "especiais" ou simplesmente mentindo. Se a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude, não há dúvida de que a democracia era tida como virtude por quase todos.

A década dos sessenta, que assinala o final da etapa da 2a RI, assiste ao auge da influência do paradigma socialista sobre a cultura dominante. Ao lado dos partidos e sindicatos que formam o tradicional movimento operário, surgem movimentos de libertação de amplos setores da sociedade: o novo feminismo, que visa a completar a emancipação da mulher no inter-relacionamento pessoal na família, no trabalho etc.; o movimento negro e de outras minorias raciais contra a discriminação; o movimento pacifista, voltado especificamente contra a Guerra do Vietnã nos USA e contra o armamento nuclear na Europa; e o movimento ambientalista. O que esses movimentos todos têm em comum é o reforço dos valores democráticos e de solidariedade humana, que sempre inspiraram o socialismo. A cultura política dominante retém os fundamentos liberais, mas sobrepõe a eles a valorização da igualdade e da correção das injustiças que se cometem contra os mais fracos e discriminados. Uma transição talvez demorada mas segura da democracia capitalista à democracia socialista parecia estar delineando-se como uma perspectiva provável.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 8, Março de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

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