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| Resenha:MÉSZÁROS, István Beyond CapitalTowards a Theory of TransitionMonthly Review Press, 1995. 994 págs. | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Daniel Singer
Daniel_Singer@revistapraxis.cjb.net
Correspondente europeu do periódico The Nation e colaborador da Monthly Review.
Após o colapso do Muro de Berlim e da União Soviética, muitos na esquerda parecem ter engolido a idéia de que não há alternativa ao capitalismo. O debate se tem limitado ao que pode ou, antes, não pode ser alcançado nos seus limites. Esse é um livro contundente, com uma mensagem diametralmente oposta: o que deve ser abolido não é apenas a sociedade capitalista clássica, mas a regência do capital enquanto tal. De fato, o exemplo soviético prova que não é suficiente "expropriar os expropriadores" se não se remover pela raiz a dominação do trabalho sobre o qual repousa o domínio do capital. Uma alternativa existe, ou melhor, pode ser forjada, desde que seja radical e fundamental.
István Mészáros é especialmente qualificado para uma tal análise global. Jovem assistente de Georg Lukács, após a invasão soviética partiu de sua Hungria nativa para a Inglaterra e, por isso, não tinha qualquer ilusão acerca do neo-stalinismo. Ao contrário de muitos imigrantes da Europa Oriental, ele não se encantou com a riqueza ocidental a ponto de esquecer os seus princípios. Dessa perspectiva privilegiada, como catedrático de filosofia na Sussex University, ele examinou o mundo através de um ângulo marxista crítico, produzindo estudos tão valiosos como A Teoria da Alienação em Marx (edição brasileira pela Zahar) e The Power of Ideology. Ainda assim, Beyond Capital é sem dúvida sua obra-prima. A ambição dessa obra pode ser mensurada pelo agudo significado do título. Para livrar-se do capital, deve-se destruir seus fundamentos, não apenas sua superestrutura. Mas também é necessário ir para além do Das Kapital. Em primeiro lugar, porque Marx nunca completou seu projeto, deixando sem escrever capítulos cruciais acerca do Estado e o comércio mundial. Em segundo lugar, porque no século que se passou desde a morte de Marx o capital revelou uma inesperada adaptabilidade e uma perigosa capacidade de sobrevivência, apesar de sua etapa ascendente já ter passado.
Para desenvolver sua argumentação, Mészáros teve que definir a natureza da regência do capital, ou o que ele bem denomina seu metabolismo. Baseia-se na dominação do capital sobre o trabalho alienado, no predomínio da troca sobre o valor-de-uso. É impulsionado pelo imperativo da expansão, mas também se apoia na divisão hierárquica do trabalho. Em suma, é um sistema com sua própria lógica e coerência; remover apenas uma parte não é suficiente. Os revolucionários russos eliminaram os grandes proprietários, mas não atacaram a estrutura hierárquica através da transferência do poder ao povo trabalhador, aos "trabalhadores associados". Após um tempo, o velho mecanismo de extrair o excedente através de meios essencialmente econômicos foi substituído por outro baseado principalmente no poder político, deixando os trabalhadores em muitos aspectos mais dominados do que nunca. É por isso que, quando suas tentativas finalmente falharam, os chefes russos tiveram facilidade em reconduzir a história para um domínio mais clássico do capital. Uma vez mais, a ênfase na coerência interna do sistema e na sua interdependência também explica porque os esforços feitos na Europa Oriental para, de dentro, gradualmente mudá-la, estavam destinados ao fracasso: reformas de modo algum alteram seu metabolismo. Desse modo, a análise explica tanto o colapso do neo-stalinismo como a bancarrota da social-democracia.
Mészáros sublinha o papel jogado pelo Estado, já que o seu crescimento desde a época de Marx é responsável em larga medida pela capacidade do sistema capitalista absorver oposições e amortecer contradições. As estórias que circulam acerca do desaparecimento do Estado não passam de contos de fada. Ele não mais pode ser o instrumento que já foi para estimular a produção, à la Keynes, ou para promover o bem-estar social. Contudo, ele continua sendo em larga medida o pilar do sistema capitalista, que entraria em colapso do dia para a noite se ele desaparecesse. A dimensão internacional, a globalização, é ainda mais importante. Mészáros cita uma interessante passagem na qual Marx se questiona sobre se uma revolução socialista na Europa Ocidental não seria "necessariamente esmagada nesse pequeno canto do mundo, já que, num escopo mais amplo, o desenvolvimento da sociedade burguesa está ainda ascendente"; (p. XII) ele sugere que a falência das revoluções se deve essencialmente a esse espaço que o capitalismo ainda tinha para desenvolver-se. Hoje, tendo conquistado territórios tanto no interior como fora de suas fronteiras, pode ser que esteja no fim de suas reservas.
De fato, por já algum tempo o capitalismo perdeu sua função "civilizatória" como um duro porém eficiente organizador do trabalho, e uma boa parte do livro é ocupada pelas descrições dos efeitos danosos dessa sobrevivência artificial. O sistema depende, para continuar, cada vez mais do desperdício, da "obsolescência planejada", da produção de armas e do desenvolvimento do complexo industrial-militar. Contudo, ao mesmo tempo, seu impulso incontrolável à expansão tem provocado conseqüências catastróficas para as reservas naturais e para o meio-ambiente. Tudo isso não evita que o sistema produza "trabalho supérfluo", ou seja, desemprego em massa. E, como a sublinhar a gravidade da atual crise, nos últimos vinte anos o capitalismo tem cancelado todas as concessões que, sob o nome de Estado do Bem-Estar Social, deveriam justificar sua existência. Esse não é, contudo, o tipo de livro que ao final de tal descrição prevê o colapso inevitável do capitalismo e a sua sucessão pelo socialismo. Tudo o que ele diz é que os tempos estão maduros para forjar uma alternativa socialista genuína. Ele nem afirma a certeza de que a oportunidade será aproveitada, nem elimina a possibilidade da humanidade estar dirigindo-se ao suicídio.
Eu resumi, grotescamente, o que o livro desenvolve com sofisticação teórica, enorme riqueza de informações e passagens vivamente polêmicas. Nem todo ele é de fácil leitura. O autor escreve com claridade e perspicácia, particularmente quando com desprezo desqualifica lacaios do sistema como "Companheiro de Honra de Margareth Thatcher, Friedrich von Hayek", ou os vira-casacas pertencentes à "liga da esperança perdida" uma expressão inventada por Merleau-Ponty que, pouco depois, coincidentemente, aderiu ao clube. Partes mais abstratas, contudo, requerem uma maior atenção. A língua inglesa não é tão impermeável, antes está desacostumada a expressar idéias abstratas. Nesse sentido, Mészáros melhora a cada texto, mas o problema não pode ser eliminado completamente.
Em que pese toda a sua complexidade, Beyond Capital é uma construção cuidadosamente coerente, que se desdobra com rigor lógico de Hegel a Hayek, permitindo a descoberta de horizontes completamente inexplorados. Os longos comentários sobre os escritos de Lukács são muito mais que o caso de um discípulo acertando as contas com seu antigo mestre. Eles são necessários para demonstrar como, ao fixar-se na concepção do socialismo num só país, e no partido como instrumento da transformação social, mesmo um pensador tão refinado como o autor de História e Consciência de Classe não poderia fazer justiça à tragédia da Europa Oriental. Eu fiquei particularmente impressionado com o modo pelo qual Mészáros inclui ecologia e libertação feminina no projeto socialista, não como uma manobra por votos de uma esquerda mística, mas porque eles naturalmente pertencem um ao outro. Apólogos do sistema afirmam que a globalização significa que o American Way of Life gradualmente se espalhará por todo o globo. Imagine o que seria a China ou a Índia com famílias com o desperdício e o consumo típicos da classe média americana!
Tais tresloucados absurdos podem ser evitados apenas se a administração da economia for tomada pelos "produtores associados", colocando a qualidade acima da quantidade, o valor-de-uso acima do valor-de-troca, e baseando sua política econômica não na exploração do trabalho, mas no acréscimo de "tempo livre". Para as mulheres, o caso é ainda mais grave. Uma das premissas marxistas é que o proletariado é a única classe vitalmente interessada na abolição das classes. Essa vocação emancipatória pode ser questionada com base em que uma classe trabalhadora, com contornos variados, pode ter seus interesses próprios. As mulheres, por outro lado, representam metade da humanidade; é impossível colocar a igualdade como prioridade programática e estar dissociado da luta delas. E, ainda mais, a busca de uma genuína igualdade para as mulheres leva ao questionamento da família nuclear e a função que ela exerce na sociedade.
Beyond Capital não está para além das críticas. Acho que Mészáros subestimou o papel do atraso russo na tragédia soviética apesar de eu concordar totalmente com ele quando afirma que, mesmo que a revolução acontecesse num país avançado, os sérios problemas que envolvem a passagem "para além do capital" precisariam ainda ser enfrentados. Outros leitores encontrarão outros pontos de desacordo. Seria, contudo, do maior valor se a discussão se centrasse no que o livro tem de particularmente original sua tentativa de delinear uma via para a sociedade socialista. Sabiamente, o autor não nos fornece nenhuma chave mágica nem receitas. Contudo, a partir do contraste fundamental que ele delineia entre a regência do capital e aquela dos "produtores associados", pode-se tirar conclusões acerca da natureza do movimento político que poderá avançar para a transição.
Ele não pode ser primariamente parlamentar porque o capital é essencialmente uma força extra-parlamentar. Deve ser impulsionado de baixo, porque uma das suas tarefas principais é atacar a estrutura hierárquica. Está destinado a ser internacionalista, já que as soluções são obviamente globais. Todavia, a lição mais preciosa desse livro é o confronto entre dois "metabolismos" fundamentalmente opostos. A regência do capital é apresentada como um sistema integrado que inclui toda sorte de estruturas construídas ao longo do tempo. O projeto socialista deve ser do mesmo modo abrangente. Não que todos os seus objetivos possam ser atingidos de uma vez. Mas o movimento terá que iniciar a jornada com uma visão tão global quanto o escopo do capital. E o ataque à divisão hierárquica do trabalho, assim como o fenecimento do Estado, terão que se iniciar desde o primeiro momento, se é que a nova tentativa não deva ser deformada como as suas predecessoras. O que permanece a ser encontrada é a passagem da teoria à práxis, a solução para o velho dilema socialista: como se mobiliza as pessoas no interior das estruturas da sociedade atual, ao mesmo tempo em que se oferece respostas que vão para além dos seus limites.
Eu gostaria de qualificar esse livro de um monumento marxista, contudo monumentos são associados ao passado, enquanto Beyond Capital é muito mais um trabalho para o futuro, uma ferramenta, um instrumento para a luta. Para as questões levantadas no parágrafo acima, Mészáros provavelmente responderia que o que importa é que as condições estão agora mais do que maduras para a busca de uma solução socialista, ao mesmo tempo em que a forma que assume uma organização política depende em muito da natureza e do alcance do movimento social. Neste estágio, em que é enorme o abismo entre, por um lado, a imensidade das tarefas e os perigos do seu não cumprimento e, do outro, as fraquezas políticas e teóricas da esquerda perplexa, a publicação de tal livro, não apenas profundo em suas análises, mas também tão apaixonadamente inspirado pela simpatia com os despossuídos e suas lutas por libertação, pode ser um sinal de que o renascimento do socialismo pode estar mais próximo do que pensamos.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável. Obrigado.
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