Sergio Lessa
Sergio_Lessa@revistapraxis.cjb.net
Professor da Universidade Federal de Alagoas, membro das editorias das revistas Crítica Marxista e Práxis.
Esses trabalhos falam sobre o que pode ser chamado de crise do império norte-americano.
Entre 1993 e 1995, um número excepcional de livros, se considerados os anos imediatamente anteriores, foram publicados nos USA acerca deste tema. Além dos dois aqui resenhados, outros obtiveram alguma ressonância no mercado editorial americano: Fear of Fallig the inner life of the Middle Class, de Barbara Ehrenreich (Harper Perenial, 1990), Prisioners of the American Dream, de Mike Davis (Verso, 1986, mas que recebeu sua quinta edição em 1991) e In Retrospect: the tragedy and lessons of Vietnan (Times, 1995), por Robert MacNamara. Eles serão resenhados nos próximos números da Práxis.
O primeiro aspecto excepcional desse fato está em que a tese de que a crise americana é algo mais que uma simples crise conjuntural deixou de ser um discurso característico da esquerda e passou a ser empregado por intelectuais liberais, de centro, como é o caso de J. Madrick, ou mesmo de direita, claramente identificados com o establishment, como é o caso de MacNamara. Isso tem duas conseqüências imediatamente perceptíveis. Primeira: a afirmação de que os USA e o império por eles polarizado passam por uma crise estrutural deixa de vir articulado com um discurso de esquerda que, ao menos sugere, quando não afirma explicitamente, a necessidade da superação do capital. Segunda: que esse tema passa a ser politicamente palatável para setores cada vez mais amplos da intelectualidade acadêmica norte-americana.
A domesticação da tese dos revolucionários de que a crise americana é uma crise estrutural, no sentido de dissociá-la do anticapitalismo a ela antes inerente, caminha lado a lado com sua crescente difusão. E esse fato pode revelar-se importante no desenvolvimento futuro da consciência, tanto da elite, como dos trabalhadores norte-americanos, acerca do período histórico em que vivem. E as conseqüências políticas desse fato não podem ser desprezadas, pois estão intimamente associadas, por exemplo, ao crescimento que se pode divisar da direita norte-americana na esteira do aumento das tensões e contradições sociais geradas pela crise prolongada.
Neste sentido, os livros de Madrick e Adler são muito instigantes. Eles são muito distintos entre si. The End of Affluence, de Madrick, é um ensaio no qual uma enorme quantidade de informações e dados econômicos são exibidos, no puro espírito do empirismo anglo-saxão contemporâneo, para comprovar que a crise por que passa a economia norte-americana é uma crise estrutural. Segundo Madrick, a crise que se iniciou em 1973, com a crise do petróleo, marca o fim do modelo de industrialização norte-americano, que se baseava na existência de um enorme mercado consumidor interno e praticamente monopolizado pelas indústrias autóctones. Tal mercado, sempre segundo Madrick, foi a base que possibilitou o desenvolvimento da economia de produção de massa o fordismo e é o resultado da evolução histórica dos EUA como nação.
Tal evolução histórica teria possibilitado um desenvolvimento tendencial ascendente desde o século XVIII, o que, por sua vez, teria resultado em uma concepção de mundo ao mesmo tempo otimista (a vida sempre tenderia a melhorar e a riqueza seria cada vez maior) e individualista (o trabalho duro e o esforço individual seriam sempre compensados pela riqueza privada), base da democracia e do conservadorismo que, para Madrick, marcam o "espírito" americano.
Contudo, segundo o autor, após a Segunda Guerra Mundial, várias nações do mundo ganharam acesso ao mercado americano, principalmente a Europa e o Japão; e com isso a indústria norte-americana perdeu a sua principal vantagem no mercado mundial: o monopólio sobre o seu enorme mercado. Com o acesso ao mercado americano, tais nações terminaram por desenvolver um modo flexível de produção que possibilita uma concorrência vitoriosa com as próprias indústrias norte-americanas. A partir de então, a crise se instala na economia norte-americana, gerando um desemprego crescente, tensões sociais agravadas pelos cortes nos investimentos sociais governamentais devido ao gigantesco déficit público, crescente desequilíbrio na distribuição de renda e retração do mercado consumidor.
A peculiaridade dessa crise, diferente do que ocorreu, por exemplo, em 1929, é que ela se instalou não por um crash econômico, mas por uma queda persistente da taxa de crescimento econômico, que passou do patamar de quase 3,5% para 2,4% ao ano. Isso significa que, em 1994, o PIB dos USA teriam sido doze trilhões de dólares maior do que foi se a taxa histórica ao redor de 4% houvesse sido mantida. Essa perda, de pouco mais de 1% ao ano, ainda que pouco significativa por um curto período de tempo, acumulada ao longo de vinte e poucos anos tem um efeito devastador e os dados que Madrick fornece são impressionantes; por exemplo, que 6% dos adultos do sexo masculino estão na prisão ou em liberdade condicional , sem, contudo, exibir uma contundência que leve o americano médio a aceitar medidas radicais para seu enfrentamento.
Como resultado, a cada ano a crise se aprofunda ao mesmo tempo em que os sucessivos governos, pressionados por uma opinião pública que deseja uma saída miraculosa e indolor para uma crise cujas origens não entende, são incapazes de enfrentar as causas estruturais da mesma. Com isso, o discurso demagógico, racista, segregacionista e mesmo fascistóide, que insiste em apontar como causas da crise os seus efeitos morais e políticos a desagregação familiar, o enfraquecimento dos verdadeiros valores americanos, a difusão das drogas e do amor livre etc. ganham espaço e impedem que a população tome consciência do que de fato se passa. O que, para Madrick, nada mais é que a necessidade imperiosa de redimensionar-se as expectativa de riqueza e consumo da população para um patamar compatível com a nova taxa histórica de crescimento do PIB.
O que Madrick nos fornece é uma visão "de dentro" da sociedade americana sobre a sua própria crise. Neste sentido, sua ingenuidade chega, por vezes, a ser absurda. Por exemplo, ele não consegue explicar como e porque a Europa e o Japão tiveram acesso ao mercado norte-americano ao longo dos anos sessenta, nem porque nenhuma política fortemente protecionista pode ser, agora, adotada pelo governo norte-americano. Escapa-lhe por completo e aqui seu norte-americacentrismo cobra um elevado preço o enorme peso, na crise contemporânea, do desenvolvimento, a partir do Japão, de uma forma de gerenciamento da produção que possibilita a extração de uma taxa de mais-valia muito superior à extraída nos EUA, o chamado toyotismo. Ele sequer menciona o peso político e social da crise dos anos 1966-73, marcada pela derrota americana no Vietnã e pelo caso Watergate. O chamado Terceiro Mundo, e a fonte de divisas que ele significa para o Império Americano, apenas é citado uma vez no livro, e em um único parágrafo, ao tratar da crise mexicana.
Contudo, apesar das debilidades, é um texto repleto de informações e dados estatísticos muito ricos, articulados por uma visão de conjunto da evolução da crise americana, que nos permite uma ampla visão, tanto do em-si da crise como também da percepção que dela têm setores da intelectualidade liberal norte-americana. Por seus méritos e fragilidades, merece ser lido.
Já o trabalho de William M. Adler é uma reportagem, em forma de livro, da saga de uma família de negros do Arkansas, uma região agrícola do delta do Mississipi, pobre como o nordeste brasileiro, que no final dos anos setenta é expulsa para Detroit. Lá encontra uma cidade devastada, em que bairros inteiros foram abandonados por seus antigos moradores, na esteira da crise da indústria automobilística americana. Casas dos antes prósperos trabalhadores da Chrysler, de três quartos ou mais, agora desertas, podiam ser compradas diretamente da prefeitura por preços ao redor de três mil dólares. Nesse clima de desolação e crise, os Chambers iniciaram um pequeno negócio de venda de maconha que, rapidamente, transformou-se num gigantesco empreendimento. O próximo passo foi a adaptação desse esquema de distribuição de drogas ao novo e devastador produto: o crack.
A organização dos "negócios" nessa nova fase, mostra Adler à saciedade, é a encarnação possível, hoje, do típico Americam Dream: lucros acima de tudo, sem qualquer consideração ética ou moral que não aquela do "negócio". A solidariedade entre os traficantes é aquela que existe entre os negociantes: um apoia o outro na hora da necessidade, apenas e exclusivamente na medida em que isto é um "bom negócio" "good business". Assim, quando um traficante não consegue entregar a partida de cocaína acertada, um concorrente pode emprestar-lhe parte de seu estoque, desde que isto seja "good business".
A racionalidade da organização na compra, no processamento, na distribuição das drogas e na lavagem dos lucros é a mesma de um negócio qualquer. E, por isso, os Chambers obtêm um sucesso estrondoso. Chegam a possuir um prédio inteiro alugado exclusivamente para a venda de crack. Os andares são organizados segundo o tamanho da pedra que o consumidor deseja adquirir. Há também andares e salas reservados àqueles que desejam consumir ali mesmo a droga. Um esquema de alarmes e vigilantes avisa quando a polícia está chegando, e procedimentos de segurança, treinados repetidas vezes, garantem que, nessas circunstâncias, toda a droga será jogada no poço dos elevadores e os traficantes se dirigirão ao último andar, um andar limpo de drogas e consumidores, para evitarem a prisão. No seu apogeu, o esquema chega a gerar 350 mil dólares por semana, e os Chambers se enriquecem. E que novos ricos!
O livro se inicia com a descrição da chegada dos Chambers em Lee County, sua cidade natal, para a formatura de um membro mais jovem da família no colégio, com uma caravana de Cadilacs e uma exibição de riqueza inimaginável para os moradores da pequena vila. Os antigos humilhados e despossuídos, expulsos pela miséria, retornam nadando em dinheiro, numa vingança que, em sua forma e conteúdo, é expressão pura da ironia do American Dream na era do crack e da crise.
O dia-a-dia de trabalho duro nos campos de Arkansas é substituído por um outro cotidiano, não menos duro, mas muito mais lucrativo, na cidade industrial em decadência. Os autênticos valores do individualismo e do calvinismo, que marcam o que Madrick, em The End of affluence, denomina "espírito" americano, revelam, nos Chambers, sua outra faceta: se o período de expansão econômica deu origem à burguesia e à classe média tão típicas dos EUA, o período da crise tem nos Chambers a expressão de sua parcela mais dinâmica, ou seja, aquela parcela que tira leite de pedra e, mesmo em tempos de crise, é capaz de amealhar milhões em poucos meses, ainda que seja com a venda de drogas. Mas, como o capitalismo tudo iguala enquanto mercadoria, o fato de acumular riqueza pela venda de drogas acaba sendo, ao final de contas, apenas um detalhe quase sem importância.
O livro de Adler é, acima de tudo, uma brilhante reportagem. Está longe de ser um ensaio de análise sociológica ou política. Deixa de perguntar-se pelas causas mais profundas das causas que consegue localizar: a miséria de Arkansas e a decadência de Detroit. Não consegue, por isso, colocar os resultados de sua investigação na perspectiva mais global da totalidade na qual se insere enquanto particularidade. Contudo, tal como o livro de Madrick, é um belo mergulho no ambiente de crise em que se debate o império norte-americano.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável. Obrigado.
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