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Estado e Capitalismo segundo Engels
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Octavio Ianni
Octavio_Ianni@revistapraxis.cjb.net
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UNICAMP, São Paulo, e de Sociologia na Pontifícia Universidade Católica-SP.
No mundo moderno e contemporâneo, o Estado está sempre na base da vida dos indivíduos e das coletividades, assim como das nações e nacionalidades. É a síntese das suas identidades e diversidades, bem como das suas complementaridades e antinomias, expressando as recorrências e as seqüências que movimentam uns e outros em todas as esferas da vida social. Muito do que são os trabalhos e os dias, as atividades e as lutas, ou as realizações e as ilusões de uns e outros, muito de tudo isso aparece nas configurações e nos movimentos do Estado. Ele está presente e ativo não só como síntese e símbolo, mas também como ingrediente e agente sempre presente no tecido da vida social e no jogo das forças sociais. É no Estado que a sociedade civil se expressa, em seu todo e em suas partes, seja porque esta o constitui seja porque ele a constitui. Desde que se forma a sociedade forma-se o Estado, como se um não pudesse existir sem outro, ainda que suas relações sejam sempre simultaneamente integrativas e contraditórias, ou harmônicas e antinômicas.
Desde Maquiavel e Blodin a Bobbio e Rawls, passando por Tocqueville, Marx, Engels, Weber, Schmitt e muitos outros, há sempre algo do fascínio ou do horror pelas formas que o Estado adquire ou pode adquirir: monárquico ou republicano, absolutista ou bonapartista, nazista ou fascista, despótico ou benevolente, social democrático ou socialista, entre outras. Como produto e condição das configurações e dos movimentos da sociedade civil, o Estado está no centro das atividades e das reflexões de uns e outros, como síntese das condições e possibilidades ou impossibilidades, das identidades e diversidades, recorrências e seqüências, complementaridades e antinomias.
Sob vários aspectos, o Estado moderno e contemporâneo pode realmente ser visto como uma surpreendente obra de arte; uma obra de arte coletiva. Muito do que há de dramático ou épico nas configurações e nos movimentos da sociedade civil pode adquirir contornos mais nítidos, ou mesmo exacerbados, no Estado, nas formas que assume o Estado. "Napoleão disse uma vez, diante de Goethe, que nas tragédias do nosso tempo a política substituiu o destino das tragédias antigas... O fim e o poder do Estado é algo irresistível, a que todas as particularidades devem submeter-se"1.
O pensamento de Marx, Engels e seus seguidores mais criativos sempre revelou uma preocupação central com o Estado, empenhando-se em conhecer a sua origem, organização, funcionamento e transformação. Empenha-se em desvendar as articulações e os antagonismos entre a sociedade civil e o Estado, sempre compreendendo classes, grupos, partidos, movimentos, correntes de opinião, alianças, controvérsias, antagonismos. Parte do reconhecimento de que o Estado é um produto da dinâmica e das tensões que se desenvolvem na sociedade, mas reconhece que o Estado pode impor-se e sobrepor-se à sociedade, à medida que expressa as forças que predominam nesta. Isto significa que o Estado começa a revelar-se uma instituição produzida na trama das relações, ou no jogo das forças sociais, sempre reconhecendo que as relações e as forças movem-se, rearticulam-se, transformam-se ou rompem-se. Assim, refletir sobre as configurações e os movimentos do Estado é sempre refletir sobre as configurações e os movimentos da sociedade. Mas cabe sempre reconhecer que, em essência, é a sociedade que constitui o Estado, como uma das suas instituições fundamentais. "A superstição política é a única que nos nossos dias pensa que a vida civil é um resultado do Estado, quando, na realidade, é a vida civil que mantém a coesão do Estado"2.
Tanto é assim que as configurações e os movimentos da sociedade explicam as continuidades e as rupturas, os desenvolvimentos e os retrocessos, as guerras e as revoluções; ainda que tudo isso se tornaria ininteligível sem a presença do Estado, como produto e condição.
A preocupação com a centralidade do Estado na sociedade moderna e contemporânea, isto é, na sociedade burguesa ou capitalista, está presente tanto em Marx e Engels como em Gramsci e Mandel, passando por Kautsky, Lênin, Trotsky, Rosa de Luxemburgo, Hilferding e outros. São vários e fundamentais os temas que polarizam os escritos e as controvérsias desses e outros autores; tanto no âmbito do marxismo como no das polêmicas com autores e teorias alheios. Estes são alguns dos temas freqüentes: Estado e sociedade civil, classes sociais e lutas de classes, Estado e capital, democracia e tirania, reforma e revolução, soberania e hegemonia, capitalismo e socialismo. Tudo que diz respeito à sociedade, em seu todo e em suas partes, ressoa no Estado, como produto e condição.
Nem sempre as contribuições de Marx, Engels, Lênin, Gramsci e os outros são congruentes entre si. As ênfases são diversas, podendo recair sobre aspectos econômicos, políticos ou outros. Alguns refletem sobre o Estado tomado principalmente como comitê administrativo das classes dominantes. Há ênfase nos aspectos econômicos, compreendendo a aliança Estado e capital. Assim como há ênfases no aspecto político, tendo-se em conta a teoria da revolução. Em vários casos, no entanto, como ocorre com Marx, Engels e Gramsci, há a preocupação de esclarecer as dimensões históricas e teóricas da gênese, organização, funcionamento e transformação do Estado. São contribuições fundamentais para a teoria do Estado burguês, ou capitalista. Ressaltam os contrapontos, as articulações e as contradições que movem a sociedade civil e o Estado, tomados em conjunto e em suas múltiplas e distintas particularidades.
Na obra de Engels há contribuições notáveis para a interpretação do Estado, no que se refere a sua origem, organização, funcionamento e transformação. São contribuições que esclarecem aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e outros do Estado, tanto em suas especificidades como em suas relações com a sociedade.
Um dos pontos principais das análises de Engels diz respeito ao Estado como um produto e condição das contradições de classes. Chama a atenção para as diversidades, desigualdades, tensões e contradições sociais, sempre presentes e ativas na sociedade, como responsáveis pela gênese e as formas do Estado. Em síntese: "O Estado o regime político é o elemento subalterno, e a sociedade civil o domínio das relações econômicas o principal. A idéia tradicional, cultuada também por Hegel, era a de que o Estado é o elemento determinante, e a sociedade civil, o elemento condicionado por ele. De fato, as aparências levam crer que seja assim... Na história moderna, a vontade do Estado obedece, em geral às necessidades variáveis da sociedade civil, à supremacia desta ou daquela classe, e, em última instância, ao desenvolvimento das forças produtivas e das condições de intercâmbio"3. "Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida"4. "O Estado não é senão o poder total organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em face das classes exploradas, dos camponeses e dos operários"5.
O Estado é uma instituição da sociedade civil, podendo tanto expressá-la mais ou menos amplamente como subordiná-la; inclusive oprimi-la. Em todos os casos, subsiste sempre a interdependência e a tensão entre ambos, sem esquecer que o Estado não é monolítico; e muito menos a sociedade civil, já que esta se move todo o tempo na trama das relações sociais e no jogo das forças sociais, traduzindo interdependências e antagonismos das classes sociais, dos grupos sociais e das outras coletividades que constituem e movimentam a sociedade civil. "O Estado corporifica o primeiro poder ideológico sobre os homens. O poder do Estado é o órgão criado pela sociedade para defesa de seus interesses comuns contra os ataques internos e externos... O Estado, depois de adquirir poder independente frente à sociedade, cria, rapidamente, uma nova ideologia. Nos políticos profissionais, nos teóricos do direito público e nos juristas que cultivam o direito privado, desaparece por completo a consciência da relação com os fatos econômicos. Como, em cada caso concreto, os fatos econômicos precisam tomar forma de motivos jurídicos para serem sancionados na forma de lei, e como, para isso, é necessário considerar também, logicamente, todo o sistema jurídico, pretende-se que a forma jurídica seja tudo, e o conteúdo econômico, nada. O direito público e o direito privado são considerados dois campos independentes, com desenvolvimento histórico próprio; esses campos não só permitem, mas exigem, por si mesmos, uma construção sistemática, sendo necessária, conseqüentemente, a eliminação de todas as contradições internas"6.
Outra contribuição particularmente importante de Engels se expressa na interpretação do bonapartismo. Toma o bonapartismo como uma forma de organização e direção do poder estatal produzida em situações de crise de hegemonia. Com freqüência, no jogo das forças sociais, ocorrem conjunturas em que nenhuma classe está em condições de estabelecer a direção do poder estatal e, por conseqüência, a direção da sociedade. Quando ocorre uma crise de hegemonia, o que pode acontecer em diferentes conjunturas da sociedade de classes, o bonapartismo tende a apresentar-se como solução. Baseado da estrutura jurídico-política do Estado burguês, e na vasta burocracia pública, civil e militar, que impregna amplamente o conjunto da sociedade, o bonapartismo logo se revela o recurso ideal, mais ou menos eficaz. E, como ocorre em várias épocas e em diferentes sociedades, a conjuntura crítica bonapartista pode amadurecer em um novo bloco de poder, tanto quanto dar origem a outra conjuntura crítica, revolucionária ou contra-revolucionária. "Há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo império alemão da nação bismarckiana: aqui, capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados 'junkers' prussianos"7.
Nesse sentido é que a história moderna e contemporânea, principalmente esta, está permeada de regimes políticos de estilo bonapartista, ainda que com denominações diversas: bonapartismo, bismarckismo, cesarismo e outras. "Pode-se afirmar que o cesarismo exprime uma situação em que as forças em luta se equilibram de modo catastrófico, isto é, equilibram-se de tal forma que a continuação da luta só pode levar à destruição recíproca... O cesarismo é progressista quando a sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, mesmo com certos compromissos e medidas que limitam a vitória; é reacionário quando a sua intervenção ajuda a força reacionária a triunfar, também neste caso com determinados compromissos e limitações que têm um valor, um alcance e um significado diversos, opostos aos do caso precedente... No mundo moderno, as forças sindicais e políticas, com os meios financeiros incalculáveis de que podem dispor pequenos grupos de cidadãos, complicam o problema. Os funcionários dos partidos e dos sindicatos econômicos podem ser corrompidos ou aterrorizados sem que haja necessidade de ações militares em grande estilo, tipo César ou 18 Brumário"8.
A verdade é que o bonapartismo é uma vocação persistente nas sociedades capitalistas. "O bonapartismo é, afinal de contas, a verdadeira religião da moderna burguesia"9. Com ele, o poder parece ser exercido como se não o fosse pela própria burguesia ou a composição de classes na qual ela predomina.
Na medida em que se desenvolve o capitalismo, o que sempre intensifica e generaliza a concentração e a centralização do capital, logo surgem corporações, monopólios, trustes, cartéis, em âmbito nacional e transnacional. Alguns são privados e outros do poder público, sem prejuízo de alianças entre ambos. Há empreendimentos que exigem grande volume de capital, tecnologia complexa, força de trabalho especializada e longo período de maturação, assim como há os que estão diretamente relacionados a serviços públicos essenciais ou urgentes. Nesses casos, o Estado é levado a organizar empresas ou corporações, em moldes de monopólios, trustes ou cartéis. É assim que o Estado se apresenta como capitalismo coletivo, algo que surpreende e fascina tanto setores sociais dominantes como subalternos. "As forças produtivas, contudo, convertendo-se em propriedade das sociedades anônimas e dos trustes, ou em propriedades do Estado, não perdem sua condição de capital. No que diz respeito às sociedades anônimas e aos trustes, isso está mais do que evidente. O Estado moderno, por outro lado, não passa de uma organização criada pela sociedade burguesa para defender as condições gerais do modo capitalista de produção contra os ataques, tanto dos operários, como de capitalistas isolados. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passarem para a sua propriedade, tanto mais se converterá em capitalismo coletivo, e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuarão sendo operários assalariados proletários. A relação capitalista, longe de se extinguir com estas medidas, tornar-se-á mais intensa"10.
Aqui surge um paradoxo da maior importância, por suas implicações práticas e teóricas. Cresce a presença direta e indireta do Estado na economia, propiciando a reprodução ampliada do capital. O aparelho estatal torna-se crescentemente complexo e ativo na economia, não só como capitalismo coletivo, mas também pelos in-puts e economias externas que propicia aos setores produtivos privados nacionais e estrangeiros. Propicia ou avaliza facilidades e recursos financeiros nacionais e estrangeiros para o setor produtivo privado nacional e estrangeiro. Aumenta a participação direta e indireta do Estado na dinamização e orientação das forças produtivas e das relações de produção. Na mesma proporção em que cresce a importância quantitativa e qualitativa do Estado na reprodução ampliada do capital, o vasto aparelho estatal se torna um imenso consumidor. Induz a produção não só de equipamentos, máquinas e outros produtos manufaturados , como de agropecuários e minerais; e torna-se um poderoso comprador e indutor da produção de equipamentos militares. O armamentismo pode ser um importante "setor produtivo" e um eficaz artifício para dotar o bloco de poder de um braço armado eficiente e subserviente. A crescente burocracia civil e militar torna-se um imenso sorvedouro de mercadorias, o que favorece os setores produtivos nacionais e estrangeiros, além do estatal. Assim, está em curso uma aliança mais direta e altamente dinâmica entre o Estado e o capital, o que tende a fortalecer e dinamizar o poder do bloco de poder.
Agora, a burocracia pública, civil e militar, deixa de ser mero aparelho administrativo para tornar-se também uma poderosa tecno-estrutura estatal. Forma-se uma vasta tecno-estrutura estatal, mobilizando não só profissionais altamente capacitados e de todas as especialidades, mas mobilizando também recursos tecnológicos de todos os tipos, para diagnosticar, programar, projetar e por em prática diretrizes e empreendimentos; no fim do século XX, uma tecno-estrutura altamente agilizada pela mobilização das técnicas eletrônicas e dos procedimentos informáticos.
Na medida em que o Estado se torna capitalista coletivo, desenvolvendo-se também como complexa e poderosa tecno-estrutura, nesse momento a burguesia parece tornar-se uma classe social supérflua. "Ao mesmo tempo em que as crises demonstram a incapacidade da burguesia para continuar dominando as forças modernas da produção, a transformação das grandes empresas de produção e transporte em sociedades anônimas, trustes e em propriedade do Estado revela que a burguesia já não é indispensável para o desempenho destas funções"11. Em outros termos: "A trajetória econômica da sociedade moderna tende a uma concentração cada vez maior, à socialização da produção em empresas gigantescas, cuja direção já escapa das mãos dos capitalistas isolados"12.
Neste ponto é que se situa a hipótese de que a progressiva estatização da economia produziria as condições "formais" para a transição ou a ruptura, na direção do socialismo. "A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução para o conflito; mas já abriga em seu seio o meio formal, o recurso para se chegar a ela"13.
Essa hipótese influenciou muitos, em todo mundo, e não somente Lênin e Stalin. Imaginava-se que o capitalismo de Estado poderia ser uma forma de superação do capitalismo privado, na direção do socialismo. Muitos empenharam-se no nacionalismo econômico, compreendendo o anti-imperialismo e a industrialização substitutiva de importações como o caminho da emancipação, da revolução nacional e social. Acreditaram que a emergência do Estado como capitalista coletivo reduzia a importância das classes dominantes, tornando-as supérfluas; que assim se agravariam as contradições entre as forças produtivas e as relações de produção, já que a estatização seria uma espécie de "socialização" antecipada do processo produtivo, o que poderia por em causa ou mesmo romper as relações capitalistas de produção.
Mas essa hipótese esquecia a preliminar de que o Estado capitalista está sob o controle direto e indireto das classes dominantes, ou dos blocos de poder nos quais elas predominam. E o que estava acontecendo com a crescente estatização da economia era precisamente o fortalecimento do bloco de poder, com um monopólio direto e indireto ainda mais amplo do aparelho estatal pelas classes dominantes e seus associados, solidários ou subservientes. Este é um significado fundamental da formação e do desenvolvimento da tecno-estrutura estatal, acompanhada da ilusão de que o Estado paira acima da sociedade, dirigindo-a como se fosse a expressão do todo.
É claro que havia a hipótese de que a estatização da economia, o nacionalismo econômico, a industrialização substitutiva de importações ou a transformação do Estado em capitalista coletivo poderia reduzir ou eliminar a influência do imperialismo, das injunções externas adversas aos interesses ou às reivindicações populares. Mas as classes dominantes sempre mantiveram e mantêm vínculos com os setores imperialistas, ou os governos que os representam. Elas sempre manifestaram resistência aos setores populares nativos e empenho em apoiar-se em forças conservadoras internas e externas. Aliás, as burguesias "nacionais", na maioria dos países formados com a descolonização nas Américas, Ásia, Oceania e África, em geral revelaram e revelam escasso ou nulo compromisso com a nação. Priorizam suas relações com classes ou setores de classes dominantes dos países dominantes.
À medida que corre a história e alarga-se a geografia, com o desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo pelo mundo, mais se desenvolvem as conexões entre o capital e o Estado. As empresas, as corporações e os conglomerados transbordam das fronteiras nacionais, movimentando forças produtivas e impulsionando as relações capitalistas de produção, dinamizando e alargando mercados. A reprodução ampliada do capital, implicando os processos de concentração e centralização em escala mundial, torna as empresas, as corporações e os conglomerados cada vez mais poderosos, influentes e abrangentes. Influenciam não só as políticas econômicas mas as próprias estruturas do poder estatal. Tanto é assim que o Estado é submetido a várias reformas ou restruturações, de maneira a tornar-se mais ágil, eficiente, moderno ou racional, geralmente induzido pelas exigências da reprodução ampliada do capital; ou pelas exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido por Banco Mundial.
É assim que o Estado se torna forte, poderoso e impositivo, aparecendo como força responsável pelas configurações e pelos movimentos da sociedade civil. É como se ocorresse uma inversão histórica e lógica, de tal maneira que o Estado parece instituir, movimentar e orientar a sociedade. Surge o fetichismo do poder estatal, como se este fosse descolado e independente da sociedade civil. Tanto que os indivíduos e as coletividades, assim como as classes sociais e os grupos sociais, os partidos políticos e os movimentos sociais ou as nações e as nacionalidades são continuamente levados a crer que essa é a realidade. O Estado aparece como demiurgo, como o começo e o fim da vida pública e privada de uns e outros, sem o qual todos ficam na ilusão de que estão no limbo.
É claro que a força e o poder do capital aumentam com o desenvolvimento do capitalismo pelo mundo afora. Desenvolvem-se as forças produtivas e as relações de produção em escala mundial, provocando mudanças lentas e drásticas, ou setoriais e radicais, em tribos, nações e nacionalidades de todo o mundo. À medida que se expande o capitalismo pelos continentes, ilhas e arquipélagos, tanto se transformam as condições de vida e trabalho com as quais se defronta como aumenta a força e o poder do capital; isto é, a força e o poder dos que detêm a propriedade ou administram as suas aplicações, os seus movimentos e as suas influências pelo mundo.
No âmbito do capitalismo mundial, quando se intensificam e generalizam os movimentos das forças produtivas e das relações de produção, o Estado permanece confinado às fronteiras nacionais. Ele tende a perder força, capacidade de negociação e até mesmo parte de sua soberania, diante da vigência e abrangência da reprodução ampliada do capital em escala global. É óbvio que os Estados mais poderosos, ou propriamente imperialistas, podem preservar ou mesmo expandir sua influência além das fronteiras. Com isso, colocam-se as condições de negociação com empresas, corporações e conglomerados transnacionais. Podem compor-se com as exigências e os movimentos do capital. Nem por isso, no entanto, estarão isentos de pressões, influências ou acomodações, segundo os dinamismos da reprodução ampliada. No que se refere aos Estados menos poderosos, é óbvio que as exigências do capital se impõem de maneira mais aberta, frontal e avassaladora. São obrigados a realizar a reforma, a restruturação ou a modernização, de modo a se ajustarem às exigências do novo ciclo expansivo do capitalismo pelo mundo. Daí a novidade dos mercados emergentes ou países emergentes, como se muitos estivessem no limbo. É assim que as nações, ou as economias nacionais, tornam-se províncias do capitalismo global, o que implica novo tipo de "aliança" entre o capital e o Estado; ou nova modalidade de subordinação do Estado às exigências da reprodução ampliada do capital. "O velho modelo do Estado nacional burguês como a entidade delimitada, com relações externas, que deve agir em conformidade com os padrões internacionais, de maneira a desenvolver os seus compromissos econômicos e políticos externos, e que recebe destes um impulso adicional para as atividades estatais, esse modelo tornou-se insustentável, em face do processo real da acumulação internacional... Um sistema internacional não é a soma de muitos Estados, mas ao contrário o sistema internacional consiste de muitos Estados"14.
Essa dinâmica não é simplesmente internacional, mas transacional, ou propriamente global. "Entender o desenvolvimento do Estado nacional não é uma questão de analisar os determinantes internos e externos, mas observar as implicações da existência do Estado nacional como momento da relação global do capital. Obviamente, implica, em primeiro lugar, que o desenvolvimento de qualquer Estado nacional específico somente pode ser compreendido no contexto do desenvolvimento global das relações sociais capitalistas, das quais é parte integrante"15.
O capitalismo, visto como modo de produção e processo civilizatório, tanto forma como transforma a nação. Há uma época em que esta se torna o espaço por excelência das forças produtivas e das relações de produção, ou da reprodução ampliada do capital. Espaço por excelência mas não exclusivo, já que desde o princípio o capitalismo se constitui como um modo de produção e processo civilizatório alheio a fronteiras de qualquer tipo. Ainda que se desenvolva mais aqui e menos acolá, portanto de modo desigual e até mesmo contraditório, ainda assim o capitalismo forma-se e transforma-se em âmbito mundial. Mas o que era predominante nos primeiros séculos da sua história aos poucos se revela secundário. Aos poucos, a nação se torna uma província do capitalismo mundializado. À medida que se dinamizam as forças produtivas pelo mundo afora, a nação se revela um espaço necessário e indispensável, mas não exclusivo. "O capital tende... a arrasar toda barreira especial oposta ao tráfico, isto é, ao intercâmbio, e conquistar toda a Terra como seu mercado"16. O que já ocorria no passado, no século XX revela-se avassalador. Rompem-se fronteiras e barreiras, geográficas e históricas, culturais e civilizatórias, independentemente das diversidades e especificidades de uns e outros. Não se trata de imaginar que as barreiras e fronteiras são simplesmente apagadas ou extintas; apenas rompem-se ou re-arranjam-se, já que o globo terrestre se torna o espaço por excelência da reprodução ampliada do capital.
Sim, o Estado continua a estar na base da vida dos indivíduos e coletividades, tanto quanto das nações e nacionalidades. Mas já não é mais o mesmo dos primeiros tempos da história da sociedade burguesa, ou do capitalismo. No fim do século XX, a sociedade civil nacional está sendo inserida e recoberta pela sociedade civil mundial, da mesma forma que o Estado nacional está sendo inserido ou recoberto por estruturas regionais e mundiais de poder. Não se anulou o Estado-nação, mas modificou-se a sua situação; ou o seu lugar na dinâmica da história. Reduziram-se ou alteraram-se mais ou menos drasticamente as suas condições de soberania. As exigências da interdependência, da integração regional ou da restruturação do aparelho estatal alteram não só as condições de soberania mas também as relações entre as tendências ou potencialidades da sociedade civil e as do Estado. No fim do século XX, mais uma vez, mas em moldes diferentes de épocas anteriores, ocorre um divórcio mais ou menos drástico entre a sociedade e o Estado. As classes sociais e os grupos sociais estão sendo levados a elaborar novas práticas e novas teorias sobre as condições e as possibilidades de construção de hegemonia.
Na medida em que o capitalismo se globaliza, globalizam-se as forças produtivas e as relações de produção. Desenvolvem-se em escala mundial os processos de concentração e centralização do capital, não só como predomínio das corporações transnacionais, mas com a formação de áreas, regiões ou blocos, subsumindo as nações. Globalizam-se as classes sociais e os grupos sociais, assalariados e proprietários, etnias e raças, gêneros e gerações, na medida em que se lançam ou são forçados a lançar-se no âmbito da sociedade global em formação. Esse o cenário em que as classes dominantes, ou os blocos dominantes, constituem-se e organizam-se, agem e impõem. Esse o cenário em que as classes subalternas e os grupos subalternos se constituem, são levados a organizar-se, sem o que não poderiam agir e impor-se. Na mesma medida em que a globalização do capitalismo constitui as classes, os grupos ou os blocos de poder dominantes em escala mundial, nessa mesma medida se criam as condições e as possibilidades de que as classes e os grupos subalternos sejam desafiados a organizar-se, reivindicar e lutar. Para isso, no entanto, cabe também a estas e estes reconhecerem que o palco da história deixou de ser apenas, ou principalmente, a sociedade nacional ou o Estado-nação; reconhecendo que esse palco já é também, e muitas vezes principalmente, a sociedade mundial.
1 - HEGEL, Georg Willhelm Friedrich. Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal. Madrid, Ediciones de la Revista de Occidente, 1974, p. 499. Tradução de José Gaos.
2 - MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa, Editorial Presença, s/d, p. 182. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, João Paulo Casquilho e José Bittencourt.
3 - ENGELS, Friedrich. "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã". In: Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico e Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. SP, Editora Fulgor, 1962, p. 127. Tradução de José S. de Camargo Pereira e Maria H. R. Caldas de Oliveira.
4 - Idem. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. RJ, Editora Civilização Brasileira, 1979, p. 193. Tradução de Leandro Konder.
5 - Idem. A Questão do Alojamento. Porto, Caderno para o Diálogo, 1971, p. 127. Tradução de Ribeiro da Costa.
6 - Idem. Ludwig Feuerbach... Cit., pp. 128-129.
7 - Idem. A Origem da Família... Cit., p. 194. Consultar também MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. SP, Editora Escriba, 1968.
8 - GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. RJ, Civilização Brasileira, 1968, pp. 63-64. Tradução de Luiz Mario Gazzaneo.
9 - ENGELS, Friedrich. "Engels a K. Marx, carta de (Manchester) 3 de abril de 1866". In: Marx e Engels, Selected Correspondence. Moscou, Progress Publishers, 1965, p. 177.
10 - Idem. Do Socialismo Utópico... Cit., pp. 76-77.
11 - Idem. Ibidem. P. 76.
12 - Idem. "Classes sociales Necesarias y Superfluas". In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Escritos Econômicos Vários. México, Editorial Grijalbo, 1962, p. 315. Tradução de Wenceslao Roces.
13 - Idem. Do Socialismo Utópico... Cit., p. 77.
14 - BRAUNMUHL, Claudia von. "On the Analysis of the Bourgeois Nation State within the World Market Context". In: State and Capital (A Marxist Debate). Londres, Edward Arnold, 1978, pp. 162. John Holloway e Sol Picciotto (Editors).
15 - John Holloway, "La Reforma del Estado: Capital Global y Estado Nacional". In: Perfiles Latinoamericanos, Ano 1. México, Flacso, 1992, pp. 21-22.
16 - MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Critica de la Economia Política (Borrador) 1857-1858. México, Siglo Veintiuno Editores, 1972, vol. 2, p. 31. Tradução de Pedro Scaron, José Arico e Miguel Murmie.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável. Obrigado.
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