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| Resenha:COUTO, Mia Terra SonâmbulaSão Paulo, Ed. Nova Fronteira, 1995 | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Josenilto Novais
Josenilto_Novais@revistapraxis.cjb.net
Graduado em Letras pela USP, São Paulo.
"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstém-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros". Esse trecho presente na abertura de um livro mais antigo do escritor moçambicano Mia Couto, Vozes Anoitecidas, revela bem o caráter do autor, bem como a relação que sua literatura expressa frente aos fenômenos sociais. Sua postura é de claro enfrentamento frente a tal situação. O autor não a aceita e é mediante sua literatura que ele a procura combater. Com efeito, é através dela que ele penetra em tal realidade, de forma a poder criticá-la. Suas personagens são produtos desse mesmo contexto social, porém, reagem a ele por disporem da perspectiva dos sonhos. O ser miserável existente em sua obra é, sobretudo, um ser que sonha e que alimenta a incansável chama da esperança.
Portanto, o autor projeta às suas personagens o ideal de homem para uma realidade marcada pela miséria e por uma guerra interminável. Mia Couto sabe que não pode e não deve exigir muito desse homem. Assim, sua única exigência corresponde ao desejo de ter um homem sonhador. Sua obra reflete essa tentativa. Porém, ele sabe que não somente os desejos de suas personagens hospedam-se no campo da utopia; o seu próprio desejo de ter um homem sonhador já se constitui, por si só, e perante tal realidade, como um desejo de natureza utópica. Isto, todavia, não invalida a utopia como um dos principais temas de sua obra. Com efeito, o autor sabe que sua literatura é a única forma que ele possui de comunicar-se com a sociedade. E sua literatura, enquanto criação estética, passa necessariamente pelo tecido dos seus próprios desejos, de sua própria utopia.
Em Terra Sonâmbula, a temática é novamente o desfalecimento do ser humano frente à guerra. O autor faz uso desse acontecimento de forma a investigar o próprio homem. Ela é sempre apresentada como pano de fundo. Porém, é a partir de sua existência que se molda a própria existência humana. A consistência das personagens surgem como produto acabado da guerra, da mesma forma que suas ações e seus comportamentos são permeados e intimidados por ela.
A figura do narrador, em fase de extinção, segundo Benjamin, devido ao fim das condições concretas que o sustentam, é resgatada no romance através da personagem Muidinga. E ela não ressurge à toa: ainda segundo Benjamin, "a arte de narrar tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária". Em Terra Sonâmbula, essa dimensão consiste basicamente em alimentar, tanto em Muidinga como em Tanuir, o sentido do sonho e da esperança. No entanto, devido à guerra e às condições objetivas que ela engendra, tanto o sonho como a esperança nunca poderiam ultrapassar a dimensão utópica que lhes eram inerentes.
Em tempo de guerra, o desejo tende a assumir duas configurações básicas: a do pequeno e a do grande desejo. À esfera do pequeno desejo estão ligadas as necessidades vitais básicas e imediatas, como a procura da comida, do abrigo seguro, da proteção frente ao frio e às vezes, da própria vida, uma vez que ela tende a alcançar o ápice de sua negação axiológica. Na esfera do grande desejo situa-se, sobretudo, a esperança de que um dia a guerra chegue a seu termo e liberte novamente as pessoas às suas vidas comuns. Ambas as configurações tendem a existir em tempos de guerra. Porém, com a predominância de uma no tocante a outra. Tal predominância, por sua vez, não ocorre aleatoriamente. Pelo contrário, ela é determinada pela duração do conflito.
Em Moçambique há uma situação de guerra que envolve a sociedade antes e depois da Revolução. Neste sentido, impera no homem a esfera dos pequenos desejos. Sua pretensão é, e sempre será, o fim do conflito; porém, em primeira instância, o homem sonhador é movido e governado pelos pequenos desejos imediatos. No inconsciente desse homem, ele é consciente de que apenas os pequenos desejos podem existir numa realidade de guerra e de miséria. Contudo, mesmo os pequenos desejos tendem, às vezes, a hospedar-se no campo da utopia.
Em Terra Sonâmbula são contadas duas histórias, paralelamente. A personagem Muidinga, totalmente carente de identidade, encontra o diário de Kindzu e passa a ler para seu tio as histórias que os cadernos continham. O autor não faz isso por acaso, sua proposta é estruturar o desejo e o sonho no homem do seu tempo. Primeiro, são apresentados a nós os desejos de Kindzu, como o de ser um Neparama ou o de satisfazer sua amada trazendo-lhe o filho desaparecido. A partir dessa personagem é que o autor estrutura o desejo também na personagem de Muidinga. Este passa a se apaixonar pela vida aventureira daquele. Numa parte da história, Muidinga chega até mesmo a sentir-se atraído pelas mulheres do outro. Totalmente preso a uma localidade, era mesmo natural que ele desejasse o próprio desejo do outro.
A força da tradição é uma instituição social que age no interior do ser humano cumprindo uma função social à medida que molda o indivíduo a um tipo de comportamento aceito e desejável socialmente. A coragem e o medo, a ação e a inação são esferas que naturalmente existem em cada um. Sua finalidade é desenvolver as esferas negativas, como o medo e a inação no interior de cada indivíduo, impedindo-os, portanto, de adotarem posturas condizentes com a transgressão e com a busca do novo.
Portanto, numa sociedade de classes, o indivíduo se defende, essencialmente, em relação à obediência ao estabelecido. Ele é bom quando obediente, e é mau cidadão enquanto seu comportamento for pautado pela desobediência às normas e às regras sociais. A formação do homem provém da moral e da ética social Dessa forma, seu comportamento deve orientar-se para ela como objetivo supremo. O desejo particular pode e deve existir no indivíduo; porém sua natureza deve compor-se da disponibilidade em aceitar, incorporar e servir as regras e normas estabelecidas socialmente. Mia Couto sabe disso e é à luz de tal sapiência que ele constrói as suas personagens.
Em "A explosão do Mbata-Bata", o autor dá-nos um exemplo de como os imperativos ético-morais realizam-se no interior do indivíduo. Sua materialização está amplamente relacionada com a impotência da personagem em transgredir a ordem e buscar o novo.
Ao atravessar o rio, a personagem de Azarias se posta inerte junto à outra margem. Sua disponibilidade de continuar prosseguindo termina porque a força da tradição passa a agir no seu interior de forma mais intensa. E o que marca simbolicamente isso é não somente a sua incapacidade de continuar prosseguindo, mas ainda o respeito que nutria por sua própria servidão. Desde o início, a personagem não avança sozinha rumo à outra margem. Pelo contrário, ela carrega consigo toda a boiada que cuidava, leva consigo todas as suas obrigações servis, leva consigo a constante preocupação em não prejudicar àquele que o escravizava. Ou seja, desde o início, a sua fuga fora marcada pelos limites, uma vez que sua atitude estava pautada pela suprema obediência e respeito aos preceitos sociais.
Ou seja, neste conto, o autor não somente constrói o sonho em suas personagens como demonstra os mecanismos repressivos que cumprem a função social de destruir o sonho no homem. Desde que a personagem tivesse força para a aventura, ela poderia realizar-se na outra margem. A explosão do boi é o que desencadeia o processo de fuga da personagem. Motivado pelo choque, ela alcança a outra margem. Porém, ao findar-se o efeito, ela retorna para suas obrigações sociais.
Nesse conto, o autor faz uma crítica severa ainda que sutil à sociedade moçambicana. Num lado da margem encontra-se um Estado administrado por uma democracia dita popular, num outro está um Estado reclamado pela guerrilha local. Numa margem postam-se os agentes do governo, numa outra, os agentes dos guerrilheiros. De um lado está o tio que o escravizava e o impedia de chegar à escola, num outro a coisa não fica muito clara, mas faz-nos imaginar que pudesse ser o oposto. A questão é que nenhum dos dois lados conseguem contemplar as necessidades da criança. Nenhum dos Estados conseguem de fato responder aos desejos do homem. No primeiro espaço a situação poderia repetir-se, no outro espaço a realidade não propiciaria tudo que a personagem pudesse desejar. Como o garoto fica inerte após alcançar a outra margem, logo ele é forçado a retornar pelas forças reacionárias do espaço a que ele pertencia. Essas forças constituem-se, na visão de Mia Couto, na instituída força da tradição.
O conto é todo constituído numa perspectiva afetiva, uma vez que o narrador assume a visão do pequeno garoto. Uma vez que Azarias não consegue explicar a realidade, ele a ritualiza, mistificando assim também as suas próprias ações. A morte do garoto simboliza também a morte dos sonhos. Todavia, ao morrer é que ele alcança sua verdadeira dimensão. Ao alçar vôo, ele passa a dominar a visão duma totalidade, a totalidade que não fora possível vislumbrar, nem na primeira, nem na segunda, mas sim na margem da liberdade, na "terceira margem do rio".
Em "Os Pássaros de Deus", é de forma sobretudo fantasiosa e alegórica que o conto se inicia, denunciando duas realidades: primeiro, uma realidade de miséria e injustiça social; segundo, outra de crise psicológica, enfrentada pela personagem principal. Essa segunda realidade surge como produto da primeira, e leva a personagem Timba a questionar os valores sociais, a vida e, portanto, a si mesmo.
O local em que ele se encontra era como de costume, o rio. E a própria solidão do rio contribuía no sentido de imergi-lo nesse processo de autoquestionamento. Tudo no rio é constante, a solidão, o barulho das águas, o seu fluxo etc.. E é justamente esse caráter de constância que torna a crise da personagem algo também constante, uma vez que o desperta para o autoquestionamento.
Mas o rio, com seu fluxo, simbolizava algo mais para Timba. Simbolizava a vida em constante movimento. Ele, por sua vez, precisava alimentar-se daquele movimento, uma vez que sua vida era meramente estática em termos de acontecimentos novos e de atitudes que de uma forma ou de outra contribuíssem para atenuar sua miséria material e psicológica.
Mas Timba não se compromete apenas com seus próprios desejos. Os pássaros iam chegando à medida que a personagem passa a desejá-los. Porém, no seu desejo de possuir e de cuidar dos pássaros estava implícita sua proposta de que sua dedicação resultasse no benefício de todos. Desta forma, em seu delírio, Timba se compromete socialmente. A chuva seria para todos, seu benefício seria coletivo.
Nesse conto, a linguagem tende a ser mais ritualizada, mistificada, e faz o autor moçambicano aproximar-se de Guimarães Rosa. A utopia da personagem consiste no desejo de ter chuva. Para tanto, ela se imerge num processo autodestrutivo que, ao mesmo tempo em que traz de volta a chuva, cobra-lhe o trágico preço de sua própria vida.
Mia Couto é único em Moçambique e faz da literatura moçambicana uma literatura única no mundo. Sua proposta consiste em fazer uma autocrítica da revolução. Militante ele é, porém, não aceita passivamente tudo que provém da revolução. Sua luta consiste, como já foi dito, em estruturar no homem o sonho como elemento primordial para sua sobrevivência. À medida que o indivíduo sonha, ele vai além de suas próprias expectativas assumidas. E é nesse sentido que ele aponta em sua obra para a necessidade de sonhar, de criar, de lutar e de romper seus próprio grilhões.
Para o indivíduo ter a plenitude, ele não pode ficar somente no campo do ritual. À medida que o ser se aproxima da ritualização da forma, ele perde a plenitude dos sonhos. A conseqüência direta disso é a animalização desse próprio ser humano. Ele vai automatizando-se e seu comportamento cai na previsibilidade. Para o autor, a vida se apresenta como a mesmice da repetição. Com isso ele luta. Claro que o cotidiano é necessário. Mas viver apenas sob forma ritualizada constitui-se num combate contra nossa própria essência.
Sua obra, portanto, é uma crítica social a uma sociedade reacionária que procura executar no homem a sua capacidade de sonhar e ir além. Nesse sentido, ela se caracteriza também como obra militante. Mas não fica somente nisso. Ao mesmo tempo em que contém um ritual sociológico, ela tem o elemento que leva informação para outros campos. O elemento sociológico presente na sua obra de forma alguma anula seu caráter de obra literária e de arte. Isto se dá posto que esses elementos aparecem em sua obra de forma ritualizada, mistificada e simbolizada na magia do fantástico. Uma verdadeira literatura é aquela que contém o simbólico como elemento primordial. Ao mesmo tempo em que a obra de Mia Couto contém a denúncia sociológica, ela a disfarça e a transforma numa obra de arte. Daí, Mia Couto ser único em Moçambique, daí a literatura moçambicana, tendo-o à frente, ser única no Mundo.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável. Obrigado.
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