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História e Literatura: O Quatrilho 1

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Mário Maestri
Mario_Maestri@revistapraxis.cjb.net

Sócio da Revista Práxis, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (UFRGS), e Doutor em História pela Université Catholique de Louvain, Bélgica.


Em tempos imemoráveis, História e Literatura nasceram como ser único. Mitos e epopéias cantados pelo rapsodo aos atentos ouvintes uniam magicamente os atos de relatar, registrar, explicar e sublimar experiências humanas essenciais. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de consciência do homem de sua existência social, Literatura e História diferenciaram-se, especializaram-se e terminaram dando-se as costas e negando, pretensiosamente, o patrimônio genético original.

No século XIX, Auguste Comte ensinava, em seus Opúsculos de Filosofia Social, que o estado teológico e o estado metafísico das ciências tinham por denominador comum a predominância da imaginação sobre a observação. As ciências sociais e a historiografia, se quisessem elevar-se ao cobiçado nível das ciências exatas, deveriam proibir-se de viver em promiscuidade com o aleatório, com o fortuito, com o subjetivo2. Compreende-se a rejeição da Historiografia positivista à Literatura, tida como produto do arbítrio errático do escritor.

Para a Historiografia, o ato de relatar em prosa tornou-se apenas uma forma da apresentação do conhecimento historiográfico. Espécie de técnica auxiliar, de baixa extração, que finalmente poderia ser superada com o surgimento da mal-denominada História Quantitativa, certamente o mais acabado produto do programa positivista elaborado para a Historiografia, no século XIX.

Na contramão, mas no mesmo sentido, a prosa ficcional contemporânea propõe um radical rompimento e estranhamento com o real vivido e com o mundo social objetivo, buscando uma radical ruptura da ficção como reflexo artístico do mundo real. A destruição do tempo e do espaço como fatores unificadores do relato, a despreocupação com a verossimilhança, verdadeira angústia do relato em prosa desde suas origens, a fusão e a interpenetração do mundo consciente e do inconsciente, do real e do mágico, das experiências vividas e das oníricas etc., rompem aparentemente as amarras da literatura contemporânea com a realidade social em favor do monólogo interior, das descrições psicológicas, do nonsense etc.

Apesar do fabuloso desenvolvimento e especialização, nos últimos milênios, História e Literatura, gêmeos idênticos, possuem traços e características essenciais, que denotam facilmente a origem comum. Ambos registram, expressam e explicam – cada um ao seu modo – a experiência humana.

Construída com as palavras, as idéias, os sentimentos, os temas, as preocupações de uma época etc., a Literatura é um poderoso registro sobre esta, por mais que pretenda dela autonomizar-se. Há muito, a teoria literária assinalou a autonomia relativa do texto em relação à vontade consciente do autor e a invasão e a determinação da obra ficcional pelo mundo social em que ele está inserido. Com pertinência, Samira Mesquita lembra o inevitável registro, no texto ficcional, da época em que foi produzida: "a ficção, por mais 'inventada' que seja a estória, terá sempre, e necessariamente, uma vinculação com o real empírico, vivido, o real da história. O enredo mais delirante, surreal, metafórico estará dentro da realidade, partirá dela, ainda quando pretende negá-la, distanciar-se dela, 'fingir' que ela não existe"3.

A neutralidade, a cientificidade e a onisciência absolutas são pretensões desmedidas e desmentidas da Historiografia. Muitas vezes, elas são encobertas precisamente por recursos e técnicas do relato em prosa. A impressão do leitor de que os fatos historiográficos relatados são objetivamente verídicos aumenta quando eles são apresentados, por si mesmo, sem a intervenção explícita do narrador4. Em geral, a diluição do narrador no texto historiográfico é um recurso literário utilizado em forma inconsciente pelo historiador.

Entre as íntimas e diversas inter-relações da História e da Literatura, destaca-se a vocação da ficção em prosa, sobretudo do romance histórico, para apreender, descrever, sintetizar e explicar fenômenos do passado. Tradicionalmente, a Historiografia vê o romance histórico como uma invasão impertinente da literatura ficcional na leitura do passado, mundo que seria possível ser desvelado apenas com o instrumental epistemológico do historiador, jamais pela arbitrária imaginação do ficcionista.

A intrusão impertinente do romance histórico no campo da Historiografia aumentaria sobretudo porque ele cria um mundo ficcional que se apresenta e é percebido pelo leitor como um passado dinâmico, recriado, quase vivido. O que diluiria a fronteira intransponível que separaria a obra do historiador e do ficcionista.

Em boa parte, a má-vontade da Historiografia com a ficção histórica se deve a um compreensível "despeito". Não raro, o romance histórico contribui fortemente para a formação das representações dominantes de uma comunidade sobre o passado. A capacidade operacional do romance histórico de influir na formação das visões gerais sobre o passado de uma comunidade é questão fundamental, ainda mais porque o seu sucesso de público não possui relação direta com sua fidelidade à realidade histórica objetiva, categoria estranha à ficção.

É importante a tradição do romance histórico no Rio Grande do Sul. A trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, constitui uma das mais felizes e bem realizadas aventuras faccionais brasileiras. Creio que Érico Veríssimo tenha contribuído, mais do que qualquer historiador, para fixar a visão da população gaúcha sobre suas origens. Em 1985, com a publicação de O Quatrilho, José Clemente Pozenato realizou, para a Serra e para a sociedade colonial italiana, o que Érico Veríssimo fizera para a Campanha e para sociedade pastoril sulina.

Salvo engano, não há estudo comparando essas duas obras e suas determinações sobre a formação da consciência da população gaúcha sobre seu passado. Não pretendo fazer, nem mesmo sinteticamente, uma reflexão sistemática sobre tal problema. Limitarei minha apresentação a uma leitura, do ponto de vista do historiador, de O Quatrilho, que procure contribuir para a discussão sobre como e em que sentido o romance pode também constituir uma expressão essencial da realidade social por ele abordada.

Nos últimos anos, avolumam-se trabalhos historiográficos de qualidade sobre a Região Colonial Italiana5. Temos hoje uma visão bastante precisa da história e dos mecanismos essenciais desse fenômeno. De 1875 a 1914, oitenta mil imigrantes partiram do norte da Itália para o RS, expulsos pela fome de pão e de terras. Oito mil km² da semi-desabitada Encosta Superior do Nordeste gaúcho, imprestáveis ao pastoreio, foram loteados e financiados a baixo preço. Tratava-se da única e excepcionalmente bem realizada ampla reforma da estrutura fundiária ocorrida até hoje do Rio Grande do Sul.

O processo da colonização deu-se através da formação de colônias, subdivididas em léguas, travessões e lotes coloniais. A divisão da terra gerou uma dinâmica economia de pequenas unidades agrícolas e artesanais voltadas à subsistência e ao pequeno comércio – a colônia. Os lotes eram desenformes quanto ao tamanho – 30% tinham menos de dez ha; 10%, mais de cinqüenta –, à fertilidade e ao acesso à água e aos mercados. Os núcleos coloniais possuíam centros urbanos e mantinham contatos, bastante precários, com as cidades sulinas.

Os colonos trabalharam sobretudo para manter-se. Poucos enriqueceram. Quando os filhos cresciam e havia terras acessíveis, abriam-se novas colônias. Se não houvesse condições para adquiri-las, partia-se para as cidades. Praticava-se uma divisão familiar, sexual e etária das tarefas. Havia uma forte exploração do trabalho feminino. Plantavam-se arroz, batata, feijão, aveia, cevada, milho, trigo, uva etc. Criavam-se galinhas, porcos e muitos filhos. Eles asseguravam e ampliavam a força de trabalho familiar.

Ao chegar ao Brasil, em média, a família colonial tinha 2,3 filhos. Em 1920, crescera para 7,8 membros. Uma pequena produção de vinho, cachaça, graspa, banha, toucinho, salame, presunto, manteiga etc. abastecia a família e os centros urbanos vizinhos. O excedente da produção financiava a compra de sal, roupas, ferramentas etc. Os comerciantes – primeiro nacionais, logo italianos – vendiam o que o colono não produzia e compravam e distribuíam o excedente da produção parcelária nos mercados próximos e distantes. Os colonos entregavam as reservas monetárias aos comerciantes, por juros baixos. As grandes casas comerciais acumulavam as riquezas geradas pela produção colonial. A seguir, essa acumulação financiou a industrialização da região.

No campo e nas cidades, desenvolveu-se um ativo artesanato. Pequenas empresas beneficiavam a produção rural, fabricavam ferramentas etc. Com a Primeira Guerra e a interrupção das importações exigidas pela produção colonial, desenvolveram-se empresas de porte na região. Em parte, sufocaram a produção artesanal. A historiadora Loraine Giron, em As sombras do Littorio, lembra que, nos anos vinte, a Região Colonial encontrava-se estruturada em classes e integrada à economia nacional6.

Nessa época, grandes industriais e comerciantes ocupavam o cume da pirâmide social. A classe média era formada pelos pequenos e médios empresários e artesãos; técnicos, profissionais, funcionários, etc. A escassez relativa de terra gerara uma classe operária urbana com fortes laços rurais. Mais de trezentos mil colonos – seis mil com menos de dez ha – dominavam demográfica, mas não política e economicamente, a região.

No início do século, na bucólica e conservadora Região Colonial Italiana, na Linha Tapera, no interior de Gramado, dois casais associaram-se, sob um mesmo teto, para explorar uma colônia, um moinho, uma pequena casa comercial. A perigosa convivência levou a um amor adulterino e à fuga dos amantes, em 1907. Apenas o inesperado desenlace dessa história banal impediu que ela caísse no esquecimento. Por necessidade ou conveniência, os esposos traídos juntaram prosaicamente os trapos, fundaram nova família, misturaram os sobrenomes dos filhos, e mandaram a vida para frente7. Décadas mais tarde, o causo colonial inspiraria um romance de sucesso – O Quatrilho, lançado em 1984 pela Editora Mercado Aberto, de Porto Alegre.

Não é objetivo desta análise abordar as importantes e eventuais determinações das experiências vivenciais do autor na gênese da obra ficcional. Entretanto, não posso deixar de realçar o estranhamento e o distanciamento iniciais de Pozenato da sociedade colonial tradicional, em dissolução, retratada em seu romance8. O que certamente lhe facilitou a compreensão dos fenômenos específicos e essenciais do mundo do imigrante italiano sulino e sua recriação ficcional.

O sobrenome do autor de O Quatrilho certamente enganou mais de um leitor. Ao menos, esse foi meu caso. José Clemente Pozenato não é filho da zona colonial italiana. Seu pai, Girolamo Pozenato, natural de Nova Vicenza, mudou-se, com cinco anos, para Conceição do Arroio (Osório), dando partida ao que o filho caracterizaria mais tarde como o "início do afastamento" e do "rompimento" intencionais com a "cultura dos imigrantes italianos". Sua mãe, Deotila da Silva, gaúcha de Santo Antônio da Patrulha, descendia de açorianos e contava ter uma "avó índia 'caçada no mato a cachorro'".

José Clemente Pozenato nasceu no Planalto Gaúcho, em São Francisco de Paula, para onde se mudara o casal em 1938. Essa é uma região tradicionalmente dedicada ao pastoreio e à agricultura. O autor confessa que, durante a infância, Caxias era uma cidade e uma região que se localizavam em "algum lugar remoto do espaço" e que tinham, para ele, algum significado apenas por ser o "nome da terra" do "pai".

Girolamo, que completara sua aculturação aportuguesando o nome para Jerônimo, homenagearia José Clemente Pereira, um dos patriarcas da independência brasileira, quando do batizado do primogênito do casal Pozenato/Silva. Homem de sua época, perfeitamente incorporado ao universo cultural gaúcho e lusófono, ele compreendia o mundo e a cultura de origem italiana como uma espécie de "excrescência dentro da cultura brasileira". José Clemente Pozenato jamais escutaria o pai pronunciar uma "palavra em Vêneto" e viveria os primeiros anos regalado pelos pratos de "cuscuz com leite, adoçado com 'açúcar amarelo'", pelas "pamonhas douradas" e pelos "doces de polvilho", preparados pela mãe.

Aos doze anos, Pozenato mudaria radicalmente de environnement cultural ao ingressar no seminário, em Caxias. Registra a experiência existencial que viveu devido a tal mudança: "Não me esqueço do impacto, que hoje sei ter-se tratado de um choque de culturas. Não tanto por causa da polenta cotidiana e do radite amargo, mas principalmente da linguagem e de uma certa, para mim, brutalidade no trato." Seus colegas eram, todos, "oriundos de italianos e a maioria falava em dialeto vêneto".

Sacerdote na zona colonial italiana e, a seguir, professor e pesquisador universitário, Pozenato aprofundou seu conhecimento da cultura da região – que confessa não sentir ainda plenamente como sua –, identificando e descobrindo nela uma tensão e uma profundidade inicialmente despercebidas. "A dureza do trato, que tanto havia me incomodado, ou era uma casca de proteção, escondendo a sensibilidade ferida, ou, quando real e efetiva, se explicava pela própria vida cheia de privações"9.

José clemente Pozenato aventurou-se, muito cedo, no mundo das Letras. Seu intenso e profundo conhecimento – primeiro vivencial e, a seguir, teórico – do mundo colonial não podia certamente deixar de influenciar sua produção literária. Em verdade, essa realidade se tornaria o centro de sua obra. Após alguns livros de poesia, ensaios e uma novela policial de sucesso, tendo como cenário a região – O Caso do Martelo10 –, inspirou-se nos casais trocados para escrever um romance de fôlego.

Utilizo aqui o termo inspiração com certo receio. Veremos que a leitura de O quatrilho sugere o quão pouco a inspiração – a besta feroz da ciência positivista – pode contribuir na produção de uma obra ficcional. Paradoxalmente, para uma visão ingênua, essa categoria, a inspiração, encontra-se ligada, indissoluvelmente, à produção literária ficcional e é absolutamente estranha à obra historiográfica. Essa inverdade desenvolveu-se sob o silêncio cúmplice de historiadores e de ficcionistas. Os primeiros, interessados em sugerir um caráter essencialmente científico e não subjetivo da obra historiográfica. Os segundos, interessados em pôr em evidência uma essência subjetiva e não-racional da produção ficcional.

A trama novelesca – a troca de casais ocorrida na vida real – ocupa o primeiro plano da narrativa, envolvendo ardilosamente os leitores, do início ao fim de O Quatrilho. Entretanto, em ledo engano caem aqueles que crêem encontrar ali o fulcro do romance. O romance pode até ter uma cativante história de amor, mas não é, em nenhum caso, um livro sobre uma história de amor.

O troca-troca colonial constitui um artifício manhoso. O autor almeja objetivo maior: a síntese e a explicação faccionais do mundo colonial italiano sulino, no início do século, em algumas de suas determinações essenciais. Nesse sentido, sem se confundir, os objetivos do romance acotovelam-se, em algum momento, com os das ciências sociais, em geral, e da Historiografia, em particular.

O quatrilho pode quase ser lido como um trabalho historiográfico. Nos sonhos, nas reminiscências e nas decisões dos personagens, o autor refere-se às grandes razões do movimento multitudinário que levou os sem-terra do Velho Mundo a deixarem a península amarga, onde a terra era dos senhores e multidões de camponeses e trabalhadores rurais conheciam a fome negra dos despossuídos. Para referir-se a essa e outras realidades, as reflexões e os sentimentos dos protagonistas ou as sugestões do narrador assumem um caráter aforístico.

As mais magistrais páginas do romance são dedicadas à reconstrução do dia-a-dia da zona rural italiana. Pozenato conduz os leitores através de uma minuciosa visita aos mais escondidos cantos das pequeninas colônias. Revela, com minúcias, os hábitos, os costumes, os valores de uma família de imigrantes no começo do século. A hierarquia familiar. A divisão das tarefas. A partilha dos frutos do trabalho. O alto valor de uma mula, de um saco de milho, de uma boa galinha poedeira.

Porém, ao contrário do cientista social, que arrola, descreve, disseca, hierarquiza e generaliza os fatos históricos, fugindo da individualização, para alcançar o geral, o ficcionista – no caso Pozenato – seleciona e anima ficcionalmente fatos e personagens, em profunda conformidade com a experiência histórica real, para alcançar, através do individual, o mesmo universal.

Envolvidos pelo romance, os leitores despertam de madrugada, participam do rústico café colonial – pão, açúcar preto, café e leite já misturados. Acompanham o núcleo familiar no esforço diário, na roça, no trato dos animais, na poda, na colheita da uva. À noite, apiedam-se dos jovens colonos, sem forças, nem mesmo, para lavarem os pés, antes de deitarem-se.

Seguindo o autor, os leitores participam de um concorrido "filó" – o simples serão colonial – alegrado com pipoca, batata-doce cozida nas cinzas e o inebriante vinho quente com canela. Sentam à mesa mais farta preparada para reconfortar o sacerdote extenuado pela longa viagem apostólica no lombo duro de sua mula: postas douradas de leitão, fatias de queijo rústico, travessa de taiadele, salada temperada com vinho tinto e toucinho. Essas cenas privadas de uma família colonial não são apenas verossímeis –, elas sintetizam práticas sociais gerais e essenciais da comunidade colonial na época abordada. Constituem o registro ficcional de levantamentos e conhecimentos etnográficos, antropológicos e históricos.

Pozenato descreve o mundo colonial com a sensibilidade do ficcionista e com o rigor do cientista social, não se entregando, jamais, a idealizações piedosas. Sobretudo seus personagens secundários são mulheres envelhecidas precocemente, vergadas por uma vida de trabalho sem fim que só a morte interrompe. São homens alquebrados aos cinqüenta anos, que vêem, abatidos, nas mãos maltratadas das esposas, o fracasso das esperanças da juventude. Através deles, o autor recria o cenário social essencial do mundo colonial.

O olhar de Pozenato invade também o mundo urbano. Obedecendo ao direito do minorasco – que entrega a colônia e o sustento dos pais ao filho mais jovem –, Ângelo Gardone, o grande protagonista, muda-se para Caxias, a vila colonial que se ensaia como cidade. A discriminação dos colonos pela burguesia colonial e a incapacidade do pequeno e hábil artesão de tornar-se industrialista são fenômenos abordados e delineados, muitas vezes, apenas com uma rápida pincelada, com contenção e propriedade.

A historiografia da Zona Colonial Italiana desvelou a importância do comerciante na acumulação de capitais na região. No romance, grande espaço ficcional é dado ao comerciante: ao pequeno, que atende a picada, e ao grande, que se movimenta em Caxias. Momento alto de O Quatrilho é o primeiro contato do atemorizado Ângelo Gardone com o rico, esperto e pouco honesto comerciante Ambrósio Batiston, de quem compra a desejada colônia. Na figura e no sucesso de Gardone registram-se igualmente a evolução, possível, do pequeno bodegueiro em grande comerciante, assim como o fracasso, igualmente possível, do pequeno mercador, obrigado a render-se ao competidor mais atilado e mais poderoso.

Pozenato foge de qualquer visão maniqueista do mundo. Os personagens de O Quatrilho encontram-se acima do bem e do mal. Protagonistas e antagonistas, heróis e anti-heróis trocam-se as vestes. A crueza das contradições sociais descritas são apenas mitigadas e encobertas pela profunda ironia e simpatia com que o autor trata seus personagens. O leitor acompanha com quase carinho a descoberta pouco ética de Ângelo Gardone – pelos caminhos tortuosos e pragmáticos do rústico mas esperto colono –, de que o passaporte para o sucesso econômico, o país da cucagna, a América da abundância paradisíaca, não era o duro e honesto trabalho da roça.

Gardone moleiro. Gardone comerciante. Gardone transportador. Gardone usurário. Cada metamorfose de Gardone na direção do sucesso afasta-o mais do Gardone pequeno e esforçado colono. Nesses fatos, como em todos os outros, não se registra a aventura de um homem singular. Trata-se de uma radiografia animada de uma categoria social. Os protagonistas fundamentais de Pozenato são comumente individualizações de categorias sociais essenciais do mundo colonial italiano, descritas nas suas determinações fundamentais.

O Quatrilho é um romance rural, sobre o mundo rural. O autor registra os atos quotidianos do produtor colonial. Mas, sobretudo, reconstrói o universo espiritual que essa sociedade engendrou. Pozenato revive velhos provérbios e aforismos da região, descreve situações, comportamentos e reflexões insólitas, revela os pensamentos mais íntimos e inesperados dos personagens. Nesse processo, deixa, mais uma vez, o leitor atento entrever a acumulação de conhecimentos sobre a cultura e a história da região que pressupôs o romance. Ou seja, desvela que O Quatrilho alicerça-se em uma observação, análise e estudo detidos do mundo descrito. Em outras palavras, o autor revela-nos que, para ser ficcionista, teve que ser, também, cientista social.

Pozenato introduz os leitores em um mundo regrado pela dureza, pela simplicidade e pelo acanhamento da pequena produção familiar patriarcal. Um universo onde a rusticidade e a estreiteza da vida material calejam e determinam as relações afetivas. Uma realidade onde um filho passa a vida sem se abrir com o pai e desespera-se se obrigado a desfazer-se de uma boa mula. Um mundo em que o colono é obrigado a sobrepor sua função de pequeno proprietário ao papel de pai e de marido, tornando-se, antes de tudo, pai-patrão e marido-patrão.

Pozenato não veste apenas seus personagens com as indumentárias dos principais protagonistas coloniais. Traça também um sensível retrato de suas realidades afetivas e espirituais, definindo, magistralmente, a consciência e a ideologia possíveis nesse mundo singular. Dá um conteúdo sociológico e histórico – e portanto universal – a um caso singular e banal. A mera incompatibilidade afetiva, causa provável, na vida real, da troca de casais, metamorfoseia-se, em O Quatrilho, em desacertos existencial e social profundos de personagens socialmente exemplares.

Na leitura de Pozenato, todos ganharam com a troca de pares. Massimo, o elegante e irrequieto artesão e ex-seminarista, dado a leituras e seduzido por fugaz passagem pela cidade, encontra alma-irmã na bela, coquete e decidida Teresa, que o acompanha no caminho da urbanização e da elevação cultural e social, apenas esboçado pelo autor. Porém, maior ainda era a necessidade – ainda que inconsciente –, de Ângelo Gardone de Pierina.

No seu processo vertiginoso de acumulação mercantil, o ativo colono Gardone necessitava de uma companheira pragmática, com "os pés no chão", voltada para a conquista dos bens materiais desse mundo, experta em pintos, em chocas, em amassar pão. Necessitava de uma companheira que o secundasse no processo vertiginoso de acumulação originária que empreendia.

Por muito tempo, a sombra da economia pastoril se projetou hegemonicamente sobre a cultura gaúcha. Os primeiros historiadores que se voltaram sobre o passado do Rio Grande do Sul, analisaram-no a partir do gaúcho e da fazenda, pivô humano e núcleo sócio-econômico dessa experiência histórica. Érico Veríssimo problematizou e consolidou ficcionalmente a proposta da democracia pastoril gaúcha gerada pelos grandes fazendeiros e articulada pela historiografia tradicional, numa das mais ambiciosas, encantadoras e bem realizadas aventuras da literatura brasileira – O Tempo e o Vento.

Em seus 120 anos de história, a Zona Colonial Italiana tornou-se o segundo pólo industrial sulino, após Porto Alegre. Esse sucesso econômico refletiu-se na política. Os nomes de alguns dos últimos governadores atestam a maioridade e a integração dessa imigração à comunidade hóspede – Peracchi, Brizola, Meneghetti. Tal processo não podia deixar de expressar-se na Historiografia e na ficção. Já assinalamos que, atualmente, é muito rica a Historiografia da imigração italiana no RS e no Brasil. Não raro, tende à idealização e romantização piedosas do fenômeno imigratório, que repetem a reconstrução hagiológica da história da sociedade pastoril gaúcha.

Porém, na literatura, no caso de O Quatrilho, a colônia não imitou a fazenda. Pozenato não escreveu uma saga ficcional do triunfo do imigrante. Sem pudor, ele desvelou, ficcionalmente, a história da ocupação da Encosta Superior do Planalto gaúcho, sem escamotear as suas contradições e tristezas. Jamais o colono – o grande personagem e tema do romance – é tratado como herói épico. Ao contrário, sua história equilibra-se entre o trágico e o picaresco. Talvez por isso, a conclusão subterrânea do livro seja triste. Os quatro protagonistas – Maximo e Teresa, Ângelo e Pierina –, ao formarem os novos pares vencedores, abandonam, pela cidade – São Paulo e Caxias –, o mundo rural que os vira nascer.

Nesse sentido, Pozenato sugere que as mesmas forças que haviam tornado possível o sonho do pequeno proprietário agrícola solapavam inexoravelmente as bases objetivas de um equilíbrio social e humano mais desejado e idealizado do que realmente vivido. Ao encerrar O Quatrilho, assinala explicitamente que a história contada, o caso dos casais trocados, fora sempre apenas um recurso. Interessava-lhe registrar as vidas das multidões anônimas de homens e mulheres que viveram simplesmente, sem grandes aventuras, vergados pelas tristezas, elevados pelas alegrias, da dura e rústica vida colonial.

Georg Lukács lembrava que um grande romance histórico surge geralmente do encontro de um romancista de sensibilidade com um grande tema11. Parafraseando o crítico húngaro, diríamos que O Quatrilho é o fruto de um verdadeiro caso de amor: o de um grande escritor com a sua terra de adoção, a zona colonial italiana sulina. Dessa paixão, nasceu uma magistral radiografia ficcional de um mundo que praticamente já se perdeu no passado.


1 - Este artigo foi produzido a partir de uma Conferência apresentada no Seminário de História e Literatura (Universidade de Caxias do Sul, Secretaria Estadual de Cultura e Biblioteca Pública do Estado), na Casa da Cultura, a 12 de setembro de 1995.

2 - CONTE, Auguste. Opúsculos de Filosofia Social, 1819-1828. Porto Alegre, Globo/EDUSPS, 1972, p. 86.

3 - MESQUITA, Samira Nahid de. O Enredo. São Paulo, Ática, 1994, 3a edição, p. 14.

4 - LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo: ou a Polêmica em Torno da Ilusão. São Paulo, Ática, 1994, 7a edição.

5 - Cf. entre outros, os trabalhos de: DE BONI, Luis A; COSTA, Rovílio; GIRON,Loraine Slomp; IOTTI, Luiza H.; MANFROI, Olívio; PELLENDA, Ernesto; RAMBO, Balduino; RIBEIRO, Cleodes Piazza J..

6 - GIRON, Loraine Slomp. As Sombras do Littorio: o Fascismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Parlenda, 1994.

7 - Cf. ESPERANÇA, Clarice. "'O Quatrilho' real não teve final feliz (Entrevista à Ary Trentin)". In: Zero Hora, 3 de outubro de 1995. Segundo Caderno, p. 1.

8 - Regina Ziberman, em Roteiro de uma Literatura Singular (Porto Alegre, UFRGS, 1992, p. 76), lembra que a trilogia O tempo e o vento, sobre as elites pastoris sulinas "só pode surgir quando os pilares que sustentavam aquele grupo começaram a ruir".

9 - POZENATO, José Clemente. "Uma história do Brasil". In: Nós, os ítalo-gaúchos (Org. MAESTRI, Mário). Porto Alegre, UFRGS, 1996, pp. 112-115.

10 - POZENATO, José Clemente. O Caso do Martelo. Porto Alegre, Ed. Mercado Aberto, 1994.

11 - Cf. LUKÁCS, Georg. Le Roman Historique. Paris, Ed. Payot, 1965.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável.

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