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A Dimensão Política da Tecnologia Rural1 | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Antonio Julio Neto
Antonio_Julio_Neto@revistapraxis.cjb.net
Professor do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação, Setor de Sociologia da Educação, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.
(Artigo baseado na dissertação de mestrado Razão Técnica e Sindicalismo Rural: A Dimensão Política da Tecnologia, defendida em 1994 na UFV)
O desenvolvimento tecnológico sempre esteve associado a transformação sociais e políticas, dos primórdios da Revolução Industrial Inglesa aos dias de hoje, quando as novas transformações tecnológicas apontam para um novo paradigma de análise no campo sociológico e político.
Dessa forma, entendendo a ciência e a tecnologia como produtos de relações sociais de produção, sujeitos a interesses de classes sociais, buscaram-se referências para a interpretação da organização do trabalho no processo produtivo e na instituição sindical. No caso específico do problema em questão, no sindicalismo de trabalhadores rurais assalariados da cana e na proposta de modernização de uma usina sucro-alcooleira.
Assim, buscou-se no pensamento original de Marx e Engels alguns indicativos do processo de introdução tecnológica, bem como no pensamento de Marcuse a dimensão ideológica desta.
I - A Modernização da Agricultura e a Organização Sindical Rural
O processo de industrialização da agricultura brasileira se iniciou nos anos cinqüenta, tendo como justificativa a necessidade de atender às demandas cada vez maiores da população brasileira. A partir de meados da década de sessenta, houve um incremento na busca de novas técnicas de produção agropecuária, com a instalação de diversas empresas multinacionais no Brasil. Esse processo, devido ao seu caráter concentracionista, trouxe problemas sociais para o trabalhador rural. Impulsionado pela favorável conjuntura internacional, o crédito agrícola no período pós-64 foi distribuído aos setores dominantes da agricultura e, atendendo aos interesses do capital industrial, modernizou o campo, trazendo como conseqüência social a concentração da terra, a substituição da mão-de-obra e a conseqüente migração urbano-rural (SILVA, 1979).
As mudanças tecnológicas não podem ser vistas apenas como desdobramentos inevitáveis do progresso técnico, mas também como conseqüências de transformações sociais mais amplas, ou seja, o produto tecnológico é fruto de atividades sociais organizadas e faz parte de estruturas controladas de acordo com interesses dominantes em uma dada sociedade. O avanço tecnológico é decorrente dos interesses das classes dominantes detentoras do capital. As decisões gerenciais de introdução de novas tecnologias são marcadas por um determinado contexto de relações entre o capital e o trabalho.
No Brasil, onde tem um exército ofertante de mão-de-obra, a mecanização do campo, em alguns setores, como a agroindústria sucro-alcooleira, teve um processo retardado no desenvolvimento e aplicação tecnológicos. Porém, as mobilizações de trabalhadores nos anos oitenta, que tiveram como palco os Estados de São Paulo e Minas Gerais, geraram um aumento nos conflitos no campo, e, no caso mais específico dos trabalhadores ligados ao corte da cana-de-açúcar, conquistas sociais e econômicas motivaram um maior investimento na tecnificação do corte da cana por parte das agroindústrias, sendo que em muitas regiões do país já é possível notar uma tendência à utilização de colheitadeiras mecânicas em substituição da mão-de-obra (SGRÉCIA, 1986). Como conseqüência, teríamos a médio prazo uma diminuição numérica dos cortadores de cana com as devidas repercussões sociais.
A organização sindical de trabalhadores rurais se posiciona na luta contra o processo de proletarização do homem do campo, trazendo a discussão para a necessidade da reforma agrária e procurando homogeneizar diferentes formas de relações sociais no campo, enquadrando dentro de um mesmo sindicato categorias diferenciadas no meio rural, tais como assalariados, posseiros, pequenos produtores, meeiros, sem terra. A principal razão para esse enquadramento seria a definição estratégica no terreno político com vistas a dirigir as demandas dos trabalhadores rurais para o seu objetivo principal: a reforma agrária (D'INCÃO, 1984).
Em 1963, nasce a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que, através de seis Congressos realizados, definiu a política sindical para o período. É importante salientar que as proposições apresentadas principalmente após o III Congresso, realizado em 1979, aparecem em oposição à política oficial que vigorava. A organização dos trabalhadores rurais em Minas Gerais tem início nos anos sessenta, sendo que em 1968 é fundada a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais (FETAEMG). O III Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, em 79, também impulsionou a luta em Minas Gerais para movimentos reivindicatórios, afastando-se da política de colaboração com o governo que a organização sindical de trabalhadores rurais vinha mantendo até esse período. Na década de oitenta, a FETAEMG procurou adequar-se à nova realidade política do país e do movimento sindical participando das frentes de luta promovidas pela CONTAG e pelos movimentos PRÓ-CUT (SGRÉCIA, 1986). A estrutura vertical do sindicalismo rural apresenta um controle da FETAEMG em relação aos STR, porém nos anos oitenta a influência da CPT e da CUT é marcante nas lutas dos trabalhadores rurais. No final dos anos oitenta e início dos anos noventa, assiste-se a uma aproximação da FETAEMG com a CUT.
É dentro desse contexto político nacional e sindical que se pode analisar a introdução de novas tecnologias no processo produtivo rural.
II - Tecnologia e Controle
A tecnologia, como ciência aplicada ao processo produtivo, objetiva, no capitalismo, lucro e apropriação privada dos resultados do trabalho, tanto manual como intelectual. Essa apropriação se manifesta por meio de aumento da produtividade do trabalho e pela dominação e exploração social, resultado da divisão social do trabalho e da ideologia científica associada ao processo de modernização econômica. Portanto, se a tecnologia é produto da sociedade que a gerou, ela possui um caráter sócio-político.
Engels, em 1986, descreve o aparecimento do proletariado inglês no início da Revolução Industrial, traçando o paralelo entre o desenvolvimento das máquinas para a consolidação do capitalismo, e as conseqüências que essas traziam para os trabalhadores, demonstrando que as relações econômicas decorrentes desse sistema era a expressão ideológica das relações sociais engendradas. Para Engels, as invenções e o aperfeiçoamento das máquinas, que propiciaram o desenvolvimento industrial, modificaram profundamente a situação dos trabalhadores:
"Estas invenções, que a partir de então foram permanentemente aperfeiçoadas, foram decisivas para a vitória do trabalho mecânico sobre o trabalho manual nos principais setores da indústria inglesa, e toda a história recente desta mostra-nos como os trabalhadores manuais foram sucessivamente desalojados de todas as suas posições pelas máquinas. As conseqüências disso foram, por um lado, uma queda rápida dos preços de todos os produtos manufaturados, o desenvolvimento do comércio e da indústria, a conquista de quase todos os mercados estrangeiros não protegidos, o rápido crescimento dos capitais e da riqueza nacional; por outro lado, o crescimento ainda mais rápido do proletariado, a destruição de toda a propriedade, de toda a segurança de emprego para a classe operária, desmoralização, agitação política, e todos esses fatos que tanto repugnam aos ingleses proprietários. Vimos anteriormente as modificações que uma só máquina, tão primária quanto a Jenny, provocou nas relações sociais das classes inferiores; desde então, já não nos poderá espantar o que pode fazer um sistema de maquinaria automática complexo e aperfeiçoado" (ENGELS, 1986:16-17).
Nessa perspectiva, Engels emprega o conceito de tecnologia como relação social. Com isso, a concepção marxista de luta de classes permite a identificação das implicações da mecanização (1986). Ou seja, a introdução de novas máquinas no processo produtivo, sob o sistema capitalista, traz benefícios à classe detentora do capital, e aos trabalhadores resta a luta pela sua organização autônoma, buscando um novo modelo social hegemonizado pelo trabalho. Assim, para Engels:
'Se a harmonia reinasse na sociedade tais melhoramentos só podiam ser motivo de alegria; mas nessa guerra de todos contra todos, alguns indivíduos apossam-se das vantagens que daí resultam e tiram, deste modo, os seus meios de vida. Qualquer aperfeiçoamento mecânico lança operários no desemprego, e quanto melhor for o aperfeiçoamento mais numerosa é a categoria reduzida a ele" (ENGELS, 1986:158).
Além disso, Engels admite que "A única vantagem que as máquinas trouxeram aos trabalhadores é que elas mostraram a necessidade de uma reforma social que fizesse trabalhar as máquinas não contra os operários mas a seu favor" (1986:163). Nota-se que entre essas afirmações está a questão do desemprego, considerada exclusivamente no âmbito do trabalho manual. O trabalho, como categoria geral, especializa-se com a introdução da ciência no processo produtivo.
Teoricamente, sob o capitalismo, as máquinas entram cm conflito com o trabalhador ao gerar desemprego, criando o "exército industrial de reserva" e principalmente criando um clima psíquico de insegurança nos trabalhadores empregados. Assim, o trabalhador teria, na concepção de Engels (1986), dois caminhos a seguir: a revolta interior e exterior contra a burguesia ou a aceitação de sua condição de miséria.
Em relação à primeira alternativa, surge a organização sindical como elemento dinamizador do processo e como instrumento de proteção ao trabalho. Isto é, a organização do trabalhador deve visar à mudança do sistema, e não a um motim contra as máquinas, como muitas vezes, em desespero, foi a atitude predominante das classes operárias. Nessa luta por maiores conquistas econômicas, sociais e políticas, os trabalhadores, por meio de suas organizações, conquistaram avanços. Porém, onde a organização dos trabalhadores permanece frágil, os detentores do capital colocam a tecnologia a seu serviço, passando a ditar a orientação da produção e a distribuição do processo produtivo. Conforme Engels, "Os operários chamados fiadores finos recebem na verdade um salário elevado porque têm uma associação forte que luta para manter o salário dos fiadores e porque o seu trabalho exige uma aprendizagem penosa; mas os fiadores de fio grosso, que têm de concorrer com as máquinas automáticas não utilizáveis para o fio fino, e cujo sindicato se enfraqueceu com a introdução destas máquinas, recebem pelo contrário um salário muito baixo" (1986:161-2).
Entretanto, é por meio dos estudos de Marx sobre o processo produtivo e as relações sociais de produção que é possível identificar a dimensão da exploração do trabalho na sociedade industrial. A mudança básica serviria aos interesses do capital, não possuindo o caráter neutro e não objetivando, na sociedade capitalista, o alívio do trabalho: "Não é esse o objetivo do capital quando emprega maquinaria. Esse emprego, como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista" (MARX, s.d.:424).
Na análise de Marx, com a introdução da máquina o trabalhador passou a combater o próprio instrumento de trabalho, enxergando nela o fundamento do modo capitalista de produção, levando-o por diversas vezes a destruir a máquina, que representava a forma determinada do meio de produção capitalista. Marx faz a crítica a essa forma de ação dos trabalhadores, pois o combate deveria dar-se no uso social das máquinas: "Era mister tempo e experiência para o trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação capitalista e atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são explorados" (MARX, s.d.:490-1).
Nessa perspectiva, a introdução de máquinas, sob o capitalismo, destrói as condições de existência do trabalhador, transformando um instrumento de trabalho em um concorrente direto deste. A mecanização particulariza a venda da força de trabalho, limitando a habilidade pessoal de manejo da ferramenta especializada, retirando parcela de trabalhadores desse mercado e criando um excedente de mão-de-obra, barateando assim a força de trabalho.
Para Marx, o progresso técnico possui uma variável no movimento social. A máquina não teria a função social de apenas tornar o trabalhador supérfluo, mas teria a função de controlar os movimentos grevistas dos trabalhadores, capacitando os detentores do capital a utilizarem a nova técnica contra as exigências crescentes dos trabalhadores: "A máquina não é apenas o concorrente todo-poderoso, sempre pronto a tornar 'supérfluo' o assalariado. O capital, aberta e tendenciosamente, proclama-a o poder inimigo do trabalhador, manejando-a em função desse atributo. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as revoltas periódicas e as greves dos trabalhadores contra a autocracia do capital" (MARX, s.d.,:499).
Para ilustrar essa afirmação, Marx analisa diversas invenções introduzidas com o propósito de suprir o capital contra os avanços e as revoltas dos trabalhadores. Assim, o capital, com a ajuda da ciência, procura dominar a rebeldia do trabalhador, pois as máquinas teriam também a função social de conter os movimentos grevistas. É sob esse aspecto que se desenvolve a perspectiva social de tecnologia. Ou seja, "A maquinaria, como instrumental que é, encurta o tempo de trabalho, facilita o trabalho, é uma vitória do homem sobre as forças naturais, aumenta a riqueza dos que realmente produzem, mas com sua aplicação capitalista, gera resultados opostos: prolonga o tempo de trabalho, aumenta sua intensidade, escraviza o homem por meio das forças naturais, pauperiza os verdadeiros produtores" (MARX, s.d.:506).
Nesse sentido, o processo produtivo capitalista apresenta contradições. Ele seria alienante pois retira do trabalhador o controle do trabalho, levando-o à reificação; ele geraria lucros a partir da apropriação do trabalho excedente; ele depende do desenvolvimento do trabalho intelectual para a introdução de maquinaria; ele se fundamenta na possibilidade de que o trabalho humano fosse substituído pelas máquinas. Nessa situação de contradição, destaca-se o papel atribuído ao trabalho intelectual, em que "A ciência aparece, portanto, na máquina, como algo estranho e exterior ao operário; e o trabalho vivo desaparece no trabalho objetivado, que atua independentemente. O operário torna-se supérfluo na medida em que sua ação não é determinada pelas necessidades do capital... A atividade do operário, limitada a mera abstração, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da maquinaria, não o contrário. O conhecimento que as partes inanimadas da máquina exigem, desde sua construção, para atuar adequadamente como autômato, não existe na consciência do operário, mas age através da máquina sobre ele como uma força estranha, como um poder da própria máquina" (MARX, citado por MCLLELAN, 1990:320). Nessa perspectiva, a introdução de uma nova tecnologia não está centrada apenas no aumento do lucro, mas na redução do papel do trabalhador no processo produtivo. São duas dimensões que ocorrem simultaneamente, mas com fundamentos explicativos derivados de bases conceituais distintas.
O aumento do lucro é explicado por Marx no processo de extração da mais-valia, em que são diferenciadas duas formas: a mais-valia absoluta e a relativa. No processo de extração da mais-valia absoluta existe o aumento do lucro do capitalista pelo aumento das horas trabalhadas. Na mais-valia relativa, o aumento do lucro apareceria no aumento da produtividade, com a redução do tempo de trabalho necessário. Nesse caso, a forma se daria pela introdução de máquinas no processo produtivo. A maquinaria torna-se elemento fundamental de aumento da produtividade no trabalho, visando à diminuição do tempo de trabalho necessário à produção de uma mercadoria, tornando-se um meio para prolongar a jornada de trabalho para além dos limites naturais humanos. Portanto, o capitalista investe no uso de máquinas industriais, visando, por meio desses, ao aumento do lucro pelo aumento da produtividade no trabalho.
Segundo Marx, "Entendemos aqui por elevação da produtividade do trabalho em geral, uma modificação no processo de trabalho por meio da qual se encurta o tempo de trabalho socialmente necessário para produção de uma mercadoria, conseguindo produzir com a mesma quantidade de trabalho quantidade maior de valor de uso". Dessa forma, a mecanização estaria conjugada com a descoberta e com o aperfeiçoamento de máquinas, visando ao aumento da produção e reduzindo o número de pessoas empregadas no processo produtivo. Em termos econômicos, estaria "propiciando cair o valor da força de trabalho reduzindo a parte do dia de trabalho necessário para reproduzir esse valor" (MARX, s.d.:362).
Sob essa perspectiva, o desenvolvimento da máquina e sua aplicação no processo produtivo torna-se fator determinante para a indústria, pois é a base para o próprio desenvolvimento do capital. Entretanto, a esse processo associam-se as relações sociais. Ou seja, a forma de controle do processo de trabalho e dos trabalhadores. Sob a perspectiva das relações sociais de produção, o próprio capitalismo determina a organização da produção de uma forma cooperada entre os trabalhadores. Essa cooperação seria, para Marx, "a forma de trabalho em que trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes mas conexos" (s.d.: 374).
Assim, o capitalismo, ao criar o trabalho cooperado e social com apropriação privada ou individual, leva a contradição entre capital e trabalho para o processo produtivo da empresa. Porém, essa contradição no trabalho social daria forma a que os trabalhadores se organizassem autonomamente, visando à defesa de seus próprios interesses de classe. O conflito de classes estaria instaurado no processo produtivo. Dessa forma, as relações que os homens produzem entre si, em determinadas condições históricas e sociais, é o espaço dessa luta de classes. O modo dos homens produzirem e reproduzirem a si mesmo, suas relações naturais e sociais, está contido nas relações de propriedade, na divisão social do trabalho e nas relações de produção.
Além das dimensões econômicas e sociais, Marx e Engels (1986) identificam a tecnologia como fator ideológico sob dimensões interdependentes, em que a ideologia procura desvendar a tecnologia por meio de seus interesses específicos de classe, e não possuindo o caráter de neutralidade. Servindo a interesses de classe, aparece o conflito de interesses que somente seria superado pela ação revolucionária da classe destituída da propriedade dos meios de produção. Para isso, o processo de tomada de consciência para a transformação social assume papel central como forma de superação da alienação no processo produtivo com vistas à superação da ideologia de classe dominante.
Como Marx, Marcuse (1982) aborda a tecnologia como força produtiva, porém amplia a sua conceituação ao explorar a dimensão ideológica da tecnologia. Nessa perspectiva, destaca o papel da tecnologia na legitimação do sistema capitalista-industrial, servindo como força de dominação e controle. É nesse sentido que a tecnologia subordina os homens ao processo produtivo tecnológico gerado. O nível de consciência e organização da classe trabalhadora é objeto fundamental para direcionar o uso tecnológico na sociedade capitalista. Sob o jugo do capital, o avanço tecnológico passa a constituir-se em um instrumento de dominação da força de trabalho.
O aumento da produtividade que as novas tecnologias propiciam, seriam, para Marcuse, um fator de alienação da reflexão crítica da classe trabalhadora, tornando-a prisioneira do sistema capitalista e pouco crítica a uma sociedade unidimensional e homogênea, perdendo-se com isso o caráter libertador das teorias críticas. Sob a concepção dialética, em que as idéias não estão separadas das condições sociais e históricas nas quais são produzidas, a ideologia da classe dominante procura a legitimação por intermédio da possibilidade de maior distribuição de bens materiais aos indivíduos que compõem a sociedade, por meio do incremento da produção: "O aparato técnico de produção e distribuição não funciona como a soma total dos meros instrumentos que possam ser isolados de seus efeitos sociais e políticos mas, antes, como um sistema que determina a priori, tanto o produto do aparato como operações de sua manutenção e ampliação... A tecnologia serve para instituir formas novas e mais eficazes e agradáveis de controle e coesão social" (MARCUSE, 1982:18).
A ciência e a tecnologia, portanto, não terão para Marcuse o caráter neutro, sendo parte de um sistema em que a classe detentora dos meios de produção subjuga os avanços tecnológicos aos seus interesses. O conflito de classes é substituído pela noção de progresso para todos, dirigida com a finalidade do comportamento adaptativo de caráter ideológico. Marcuse (1982) faz a crítica a esses conceitos: "Em face das particularidades totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de 'neutralidade' da tecnologia não mais pode ser sustentada. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dada. A sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas" (p. 19).
III - O Estudo de Caso
Utilizando um estudo de caso em minhas análises, verifiquei em pesquisa de campo Lagoa da Prata, MG que os trabalhadores rurais locais começam a organizar-se na década oitenta, devido às transformações sociais e econômicas do período. A nova realidade social é marcada pela consolidação da modernização da agricultura.
O município de Lagoa da Prata emprega sua mão-de-obra rural basicamente na Companhia Industrial e Agrícola do Oeste de Minas CIAOM , uma usina sucro-alcooleira de capital privado. Em 1986, é fundado o sindicato de trabalhadores rurais de Lagoa da Prata, influenciado pela CPT e pelas propostas da CUT. Em 1989 dirige grandes mobilizações que resultam em greves que marcam o período. A evolução desse conflito para situações de mobilizações, greves e conquistas trabalhistas coincide com um período no qual a usina implementa máquinas na colheita da cana-de-açúcar. As mobilizações dos trabalhadores através do sindicato da categoria e a introdução de máquinas no processo produtivo criou um fato concreto da problemática na relação dos movimentos sociais com a tecnologia de uso agro-industrial.
Para a gerência de motomecanização da usina2, a implementação de novas máquinas seria decorrente do avanço técnico, não possuindo relação com o controle político da mão-de-obra e do movimento sindical. Os sindicalistas3 vêem na introdução das máquinas o elemento político como fundamental para a decisão gerencial da empresa.
O nível de consciência e organização da classe trabalhadora é fundamental para direcionar o uso tecnológico dentro da sociedade capitalista a um limite de exploração da força de trabalho e para um entendimento crítico acerca do papel que a tecnologia desempenha na sociedade. Dessa forma, a organização sindical de trabalhadores rurais procurava, no período analisado, encaminhar a luta concreta da introdução de novas tecnologias para o terreno político, buscando romper com a ideologia legitimadora da racionalidade técnica. Fazem proposições políticas com vistas à disputa hegemônica na sociedade, ligando a estrutura à superestrutura e trazendo a questão da luta de classes para a discussão da introdução de novas tecnologias (Ver GRAMSCI, 1978).
IV - Razão Técnica e Ideologia Política
Na investigação realizada, nota-se que a alegação da direção da empresa com vistas à mecanização situa-se no terreno da racionalidade técnica. A modernização da empresa, buscando conciliar o trabalho manual e o trabalho mecânico, é enfatizado pela gerência da empresa como recurso de competição no mercado. Como compensação ao desemprego que poderia advir, o diretor apresenta uma proposta de seleção de trabalhadores, com diversas vantagens profissionais e pessoais aos selecionados. Esta seleção passa a ser considerada, pelo diretor, como o ponto inicial do processo de modernização da empresa.
Pode-se identificar duas vertentes de orientação na introdução de uma nova tecnologia, por parte da direção da empresa: a econômica, onde é ressaltado o caráter puramente técnico de competitividade da empresa ao introduzir máquinas no processo produtivo, e a ideológica, fundamentada na noção de "progresso", com a promessa de melhoria do padrão de vida dos funcionários da empresa, despojando essa tendência de qualquer natureza política.
Com relação aos sindicalistas, nota-se um corte profundo com o conteúdo da entrevista realizada junto a direção da usina. A lógica do capital aparecerá na vertente econômica, porém é ressaltado o fato de que a mecanização da colheita da cana seria causadora de desemprego, o que daria para a usina um poder político de pressão sobre os trabalhadores e o movimento sindical. Questionam a eficiência técnica da mecanização e apresentam esta na sua variável política e ideológica de controle da força-de-trabalho e da organização sindical. Com isso, deslocam o eixo da questão do caráter técnico e neutro para o engajamento político. Questionam a possibilidade da criação de novos empregos e a seleção de funcionários para trabalharem na usina, pois alegam que estas teriam um caráter ideológico. Levando a discussão para o campo da política, discutem a estrutura sindical atual e a reforma agrária como elementos capazes de fazer frente ao uso político das novas tecnologias por parte das usinas. Procuram disputar politicamente o seu projeto hegemônico.
Pode-se analisar que a introdução de uma tecnologia visa ao aumento da capacidade produtiva, reduzindo o papel do trabalhador no processo produtivo, diminuindo o valor da força do trabalho e aumentando a mais-valia relativa ao elevar o domínio dos meios de produção sobre o trabalho. Porém, a lógica do capital possui outras variáveis na introdução de uma nova tecnologia. E a variável ideológica e política transparece na ideologia da racionalidade técnica substituindo o discurso político do controle da mão-de-obra e do movimento sindical.
Essa valorização da tecnologia enquanto discurso racional e objetivo encontra um obstáculo quando se incorpora a essa a variável política, tornando nítidos os interesses de classe, onde a tecnologia toma a forma de ideologia que busca legitimar o sistema, transformando as decisões políticas em decisões técnicas. O processo ideológico de legitimação do sistema tecnológico encontra-se no terreno da disputa hegemônica de interesses de classe na sociedade. Dessa forma, as organizações sindicais apontam o caráter de classe existente na introdução de novas tecnologias.
V - Conclusão
A racionalidade técnica, tornando-se objeto em si mesmo, é fator de questionamento quando analisada nas variáveis sociais e políticas. O conceito neutro de racionalidade científica e tecnológica aplicada à sociedade capitalista, apresenta-se, na verdade, como um fator ideológico da classe dominante. Esse fato, que se estende a todos os setores do capitalismo contemporâneo, traz a discussão da legitimação social numa sociedade de classes sociais antagônicas. O discurso da racionalidade técnica apresenta-se como uma seqüência clara de objetivos para o fim proposto. Dessa forma, a razão e a eficiência capazes de competir no mercado apresentam-se como uma ideologia respaldada na organização do capitalismo contemporâneo em busca de sua legitimação.
Os questionamentos dos sindicalistas e as proposições das organizações sindicais rurais se apresentam em uma dada situação social, na qual objetivos políticos de disputa de projetos hegemônicos são colocados. Dessa forma, os questionamentos dos sindicalistas não se configuram como uma posição contrária às tecnologias em si, mas sim ao uso social que lhe é devido na sociedade capitalista.
A ideologia da racionalidade técnica apresenta-se como insuficiente para responder a demandas sociais, pois carrega em seu bojo as contradições inerentes ao sistema de classes sociais contraditórias que rompem a lógica da legitimação em si. Em todas as formas de organização capitalistas, nota-se a persistência dos problemas sociais gerados pelos conflitos criados e recriados no seu interior, pois o desenvolvimento tecnológico aplicado aos interesses do capital, se cria riquezas, gera também novos problemas de distribuição e ocupação da mão-de-obra. Dessa forma, a ideologia da racionalidade técnica encontra o seu obstáculo no dilema político que as sociedades capitalistas apresentam, e neste dilema as organizações sindicais de trabalhadores rurais devem buscar o questionamento pela ação política, de uma forma classista e autônoma, confrontando as contradições do capital no terreno político, econômico e social.
2 - Entrevista gravada com a gerência da usina, em Nov/92.
3 - Entrevistas gravadas com diretores do sindicato de Lagoa da Prata, da FETAEMG e da CUT-MG, em Nov-Dez/92.
4 - Referências Bibliográficas:
5 - D'INCÃO, M. Conceição. A Questão do Bóia-fria. SP, Ed. Brasiliense, 19.
6 - ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. SP, Ed. Globo, 1986.
7 - GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas. SP, Ed. Martins Fontes, 1978.
8 - LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Porto, Ed. Escorpião, 1974.
9 - MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1982.
10 - MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, s.d., Livro 1.
11 - MENEZES Neto, Antonio Julio de. Razão Técnica e Sindicalismo Rural: a dimensão política da tecnologia (Tese M.S.). Viçosa, DER-UFV,1994.
12 - SGRÉCIA, Alex. Campanhas salariais no meio rural em MG, 1980-1985. X Encontro Anual da ANPOCS, 1986.
13 - SILVA, José Graziano. Progresso técnico e relações de trabalho na agricultura. São Paulo, Ed. HUCITEC, 1979.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 7, Junho de 1996, tenha sido proveitosa e agradável. Obrigado.
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