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Marxismo versus marxismo

(Reflexão Epistemológica e Histórica Sobre a Natureza do Marxismo) 1

Karl Marx, pintura

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Fernando Moyano
Fernando_Moyano@revistapraxis.cjb.net

Membro da Editoria da revista Alfaguara, Montevidéu, Uruguai.


Trecho da peça de teatro 'Galileu Galilei' de Bertold Brecht: André: 'Não crê o Senhor, mestre, que a razão se impõe mesmo sem nós?' Galileu: 'A razão só se impõe na medida em que a defendamos. O triunfo da razão só pode ser o triunfo dos racionais'.

Fim das ideologias, fim do marxismo, fim do socialismo, fim das utopias, fim da história. Um sem fim de fins nesta curva da história deste final de século, um bombardeio de vulgaridades ideológicas produzidas em série como qualquer produto industrial moderno. De diversos modos, mas sempre respondendo ao mesmo fim: nada deve mudar para que tudo siga como está.

Muito ativos nessa produção ideológica vulgar são os chamados "esquerdistas renovadores", ou seja, aqueles que pretendem ser portadores de idéias "novas" quando na realidade apenas trazem a idéia de abjurar o próprio objetivo da transformação revolucionária da sociedade. Fazem qualquer coisa para posarem de desideologizados, pós-modernos e renovados, com a mesma arrogância e superficialidade com que há poucos anos se reivindicavam revolucionários, comprometidos, solidários e, por que não o dizer, "marxistas".

"A queda do 'socialismo real' provocou uma rápida fuga de dogmáticos de diversos antigos 'credos', 'seitas' marxistas para um antimarxismo tão mecânico e irrefletido como eram as suas antigas crenças. E fogem – naturalmente – em direção ao 'progresso' e à 'modernidade', e predicam um novo catecismo – desta vez neoliberal – com o fanatismo dos conversos e o dogmatismo intacto."2

A reconstrução do projeto revolucionário exige – como dizemos no Uruguai – que "coloquemos a bola no chão", ou seja, que expliquemos claramente como vemos a situação do próprio marxismo nestes momentos em que tanto se fala de crise, precisar as categorias conceituais que são produto da história concreta que nos precede. Os marxistas revolucionários de hoje herdamos um riquíssimo universo conceptual construído por gigantes, mas também o manuseio, a tergiversação e a falsificação de pessoas de estatura muito distinta.

A diversidade de significados do termo "marxismo" que pode ser constatado nos debates políticos e teóricos, não é apenas uma confusão. Sem dúvida o é, mas é também a manifestação da diversidade própria do fenômeno mesmo do marxismo, que se desenvolve em planos distintos.

I - A Que Nos Referimos Quando Falamos de Marxismo?

Como teoria, como qualquer construção conceptual, o marxismo inclui um critério de verdade, uma fronteira. Este critérios aparece no discurso político sob a forma de sentenças: "isto é marxismo, aquilo não é marxismo". Esta disputa pela legitimidade da invocação da qualidade de marxista pelas correntes é coisa conhecida entre nós.

Porém, para além da forma dogmática que estas sentenças podem assumir em alguns casos, nenhuma teoria, ciência ou construção conceptual, seja ela dogmática ou não, pode existir sem um critério de verdade que defina uma fronteira e atue como elemento estruturador. Isto é, um "regime de verdade" ou uma "política geral da verdade" (Foucault), no sentido de um regime de pensamento e um dispositivo de poder para sancionar o verdadeiro e o falso. O necessitar de um critério de discriminação e fronteira é próprio de toda teoria. O que, por sua vez, define o dogmatismo é seu tipo particular de critério de verdade, que se apoia em um vínculo rígido e cego entre a atividade que se refere à teoria e a própria teoria.

No marxismo não há um único critério de verdade: há vários. Há uma diversidade de construções teóricas e, portanto, uma pluralidade de marxismos. Sabemos que esta idéia pode soar estranha aos que pensam em um "verdadeiro" marxismo como tendo uma homogeneidade intrínseca à prova de diferenciação e cada diferenciação como heresia. Porém, isto significa negar a natureza dialética do próprio marxismo que, como todo fenômeno social, só pode existir em função de sua própria luta interior.

A coexistência entre estes distintos "marxismos" não tem sido pacífica, como já dissemos. Pelo contrário, a legitimidade de cada corrente é ferozmente disputada. Aos marxistas, não lhes agrada nada o que os outros que se dizem marxistas dizem ou fazem, muito menos se o dizem ou falam em nome do marxismo. A vida do marxismo tem sido a história de um severo e interminável autojulgamento, um custoso processo de autoconstrução, que contém uma parte inevitável de autodestruição.

O marxismo não é apenas uma construção conceptual, uma teoria. Certamente o é, mas também é uma realidade empiricamente dada, um conjunto de correntes de pensamento e de movimentos políticos atuantes, que tem por referência a teoria marxista, que legitima ou tenta legitimar sua atuação a partir desta teoria.

Sem deixar de ser, como toda ciência, uma atividade social produtora de conhecimentos, o marxismo é também, como toda ideologia, um instrumento de estruturação e projeção de práticas sociais concretas, um corpo conceptual destinado a organizar uma luta social determinada, a legitimar ou tentar legitimar, apoiando, no status desta teoria, a ação de movimentos políticos concretos, direções políticas, lideranças, representações e usurpações.

Ciência ou ideologia? Tal recorrente dilema existe apenas do ponto de vista metafísico e maniqueísta que supõe que a boa ciência deve depurar-se de toda má ideologia, e que este processo é a própria razão de ser da ciência. Definitivamente, é a herança da filosofia da Ilustração que impregna de positivismo o pensamento teórico geral, e vela o fato de que a atividade concreta da ciência, como da ideologia, da religião, da superstição ou da arte, é uma atividade de caráter social. Quer dizer, a ciência não pode desprender-se da sua condição de ramo da produção social – um ramo cujo objetivo é a produção social de conhecimentos, e que sequer é a única forma social desta produção. Menos ainda poderia se desprender desta condição de fenômeno social o "socialismo científico", se pretende ser a compreensão científica de um fenômeno social e de um projeto revolucionário. "Se a ideologia é a falsa consciência alienada de uma sociedade alienada, a ciência desta sociedade é inseparável de sua ideologia. Não existe ainda uma ciência que seja verdadeira e totalmente desalienada; apenas pode ser o produto finalizado de uma sociedade desalienada. Mas podemos vislumbrá-la, assim como podemos representar mentalmente a libertação humana, uma vez advertidos de nossa falsa consciência."3 No interior do marxismo parcialmente alienado de hoje em dia, devemos precaver-nos de nossa própria falsa consciência e não permanecer presos e encantados com a "dialética" à la Politzer4, no reducionismo ideológico e na ilusão da onipresença da ideologia.

Podemos colocar este tema nos termos que o fazem Stephen A. Resnick e Richard D. Wolff: "O que é a teoria marxista? Como distinguirmos as teorias marxistas entre si e como as diferenciamos das teorias não-marxistas? Ou, em termos formais, qual o status da teoria marxista enquanto teoria, ou qual é o status epistemológico da teoria? Colocamos este problema em razão da tendência amplamente difundida entre os marxistas de imitar os não-marxistas na hora de ignorar a epistemologia, de realizar o trabalho teórico sob a pretensiosa negativa de refletir sobre o como e o porquê se fizeram os supostos epistemológicos concretos implícitos e que influem profundamente em seu trabalho". Pelo que consideramos um abuso dos conceitos de "corte epistemológico", "novo paradigma" ou similares, há correntes marxistas que têm tendido a pensar que sua condição enquanto tal os separa definitivamente da alienação ideológica própria da sociedade burguesa. Isto os leva a subestimar os problemas de como se manifesta esta alienação ideológica no campo do próprio marxismo. Se, portanto, o termo "marxismo" tem um duplo significado, também o tem a qualificação "marxista".

Explicaremos esta idéia tomando o exemplo de Stálin e os juízos de valor que sobre ele têm sido feitos. Uma edição espanhola do conhecido livro de Marcuse, 'O Marxismo Soviético', tem uma ilustração caricatural com três rostos: Marx, Lênin e Stálin. É Stálin um "marxista"!? Os marxistas revolucionários temos sempre dito que Stálin foi um antimarxista, no sentido de que o eram tanto sua ideologia burocrático-conservadora, como sua prática bonapartista em muitos aspectos abertamente contra-revolucionária. Mas esta colocação, mesmo sendo correta, não esgota o problema.

Stálin faz parte do que, parafraseando um termo em voga, chamaremos de "marxismo real" ou "marxismo realmente existente", entendendo por isto o marxismo como realidade social, movimento realmente existente. Faz parte deste fenômeno quem na cena histórica trata de utilizar a teoria marxista como forma de legitimar sua prática.

II - A Contradição Principal do Marxismo Vivo

Estes dois aspectos do marxismo são contraditórios entre si. Marxismo construção conceptual (teoria, métodos de análise e projeto) versus marxismo conjunto de movimentos sociais e políticos concretos (correntes de pensamento que se reivindicam marxistas e buscam legitimar-se em tal teoria). Esta contradição pode ser ou não antagônica, mas não pode deixar de estar presente.

Quando dizemos "não pode deixar de estar presente", fazemo-lo no sentido dialético de considerar a unidade teoria-prática como uma unidade contraditória, e necessariamente conflituosa, ainda que possam ser diversos os níveis deste conflito.

Há aqueles, como os estalinistas (ou a Igreja medieval, antes, à qual o estalinismo tanto se assemelha), que estruturam um discurso que esgrime fortemente uma suposta imagem de correspondência total entre sua teoria, prática e institucionalidade. Ambos fazem questão do caráter absoluto desta correspondência. Na verdade, trata-se de uma mistificação que oculta a realidade de expropriação do pensamento por uma casta sacerdotal hermética. O dogmatismo na teoria é a expressão e o instrumento do despotismo no interior do movimento social, já que a teoria é um alimento básico da prática política cotidiana. Romper com o estalinismo é também romper com este tipo de colocação de dogmatismo eclesiástico dentro do marxismo, e com a metodologia idealista que lhe é própria.

No outro extremo, distanciado desta pretensa e falsa correspondência imóvel e absoluta entre teoria e prática, há situações nas quais o movimento real e a teoria se opõem de forma total e irreconciliável, e as demandas da vida do movimento real não se satisfazem na teoria congelada. Há crises ideológicas, cismas, enfrentamentos, fundação de novas correntes e movimentos.

Porém, entre estes pólos é mais freqüente ver os distintos matizes das situações cotidianas, em que movimento e teoria se opõem permanentemente, em uma contradição de tensão variável, porém com a qual se vive, ainda que geralmente se viva dizendo que assim não se pode viver, como é comum escutar nos círculos militantes. Teoria e movimento real viajam desencontrados, adiantando-se uns em relação aos outros, invertendo-se esta relação no momento seguinte etc.

Com freqüência, a prática cotidiana se depara com situações novas, não trabalhadas no simbólico: não há conceitos para elas. O militante encontra o desassossego de não ter uma teoria de referência confiável. Aparecem então como respostas, em parte também como via de escape para esse desassossego, o dogmatismo (a teoria é perfeita) ou o praticismo (nenhuma teoria serve). Quando esta situação entra em crise, pode acontecer que se a supere por meio de uma renovação teórica e prática, com seus conseqüentes conflitos. Recordemos, por exemplo a derrota da revolução quando da ascensão do fascismo e do nazismo. Trotsky analisou lucidamente esta conjuntura, assinalando as falhas teóricas como um dos fatores desta derrota.

Tenhamos presente que não é o mesmo aquilo que queremos que o marxismo seja – já que enquanto projeto tem sempre um componente prospectivo e de desejo – e o que realmente é no concreto da arena social. Nossa proposta é, pois, analisar esta contradição a partir do próprio método marxista de análise, para ver por que há correntes que são perseguidas e marginalizadas, ou que se encontram no poder, por que distintos aspectos da teoria original de Marx são menosprezados, reivindicados, privilegiados, exagerados, deformados ou esquecidos. Quando dizemos analisar este fenômeno por meio do próprio método marxista, queremos dizer interpretar o significado destes avatares teóricos na luta social: que contradições sociais se expressam através da teoria e nesta dialética de distintos planos e momentos.

Marx, no "Epílogo" da segunda edição de O Capital, explica os avatares do desenvolvimento da economia política enquanto ciência a partir da luta de classes tal como ocorria na Inglaterra, França e Alemanha de então. Tal método analítico é obviamente generalizável ao conjunto das ciências sociais, que compartilham com a economia política a implicação na luta social que tentam compreender. E também, ainda que isto não seja óbvio para os marxistas em muitos casos, é também extensível ao marxismo realmente existente.

Tentaremos agora explicar esta idéia, aplicando-a a uma rápida visão em perspectiva da história do desenvolvimento do marxismo.

III - Dupla História do Marxismo

A transformação da obra de Marx – que é uma investigação teórica e um projeto – na doutrina de um movimento social real é um processo. Na segunda metade do século XIX, e quando da sua morte, Marx é um dentre outros socialistas. Há um movimento socialista na Europa Ocidental que toma Marx como um teórico importante, mas que, porém, não se reivindica marxista. O próprio Marx dizia "eu não sou marxista".

Logo após a sua morte, e na época de Kautsky, inicia-se um processo em que um partido político, o Partido Operário Social Democrata Alemão, apropria-se da teoria de Marx como construção teórica, para, a partir dela, legitimar sua prática política, já que toda organização política necessita legitimar-se em uma construção teórica. Este processo vai alterar radicalmente o status da teoria marxista.

A fundação do primeiro partido operário doutrinariamente marxista contém muitos fundamentos. Entre outras coisas, é um modelo de partido a ser adotado não apenas pelos partidos operários, mas também pelos novos partidos burgueses que tiveram que disputar na rua com os partidos operários: organização, institucionalidade, imprensa, aparelho etc. Esse novo tipo de partido político não será apenas uma corrente de opinião como se concebiam os "partidos" até então. À nova forma institucional, partido que é tanto uma corrente de opinião quanto uma estrutura institucional, pode-se aplicar a fórmula de Umberto Cerroni: "um programa mais uma máquina organizativa".

Ao mesmo tempo em que tal partido adota a teoria marxista para estruturar-se, transforma e modifica esta construção teórica, rescreve-a em função das suas próprias necessidades políticas e das contradições das forças sociais às quais esta organização política representa, bem como de seu momento histórico.

A classe operária alemã vive então, como em toda Europa Ocidental, um processo de formação, extensão, maturação, consolidação como classe, de formação de sua consciência, construção de ferramentas políticas, conquista de espaços políticos na sociedade. Porém, além disso. vive um processo de diferenciação interna, gênese de uma aristocracia e burocracia operárias e, por último, a integração predominante ao projeto imperialista das burguesias destes países (cooptação). Deste modo, este período termina na Alemanha com a criação, não de um partido, mas de dois, um majoritário reformista; e outro minoritário revolucionário e, posteriormente, a liquidação de ambos pelo nazismo, com o consentimento ao menos parcial das massas operárias. Coisas similares ocorrem, com certo atraso e variação, no resto da Europa.

A cooptação destes setores majoritários das classes operárias dos países centrais por sua integração ao sistema imperialista, foi acompanhada de uma profunda crise do marxismo, como não poderia ser de outro modo, tanto no terreno do movimento prático como no da formulação teórica. Esta crise questionou a própria validade do projeto do socialismo operário, quer dizer, o próprio conceito de socialismo começou a perder circunstancialmente significado.

"Desde o final do século XIX, a social-democracia alemã interpreta Marx em termos economicistas. A concepção mecanicista linear de uma cadeia que, partindo da técnica, passa pelas forças produtivas, as relações de produção e a consciência de classe, predomina sobre as análises dialéticas de Marx quando considera a relação entre infra-estrutura e superestrutura. Kautsky populariza a ideologia mecanicista... Ocorre que a classe operária do centro está impregnada de ideologia burguesa: tal como a burguesia, aceita a alienação fetichizada da mercadoria e do economicismo... A idéia de um partido como consciência exterior do proletariado, uma elite que possua a consciência social e a aplique, é o produto de uma adesão da classe operária européia, desde 1870, ao 'marxismo'. A alienação operária, aceita a partir deste momento – enquanto até então o operariado ainda aderia às utopias comunistas –, tem como conseqüência, nos partidos denominados marxistas, a separação entre a teoria e a prática, a liquidação da filosofia da práxis em benefício do dogmatismo economicista."5

Obviamente, tal processo não avança em uma única direção. Pelo contrário, aparecem também, na tradição revolucionária continuadora do projeto original de Marx, as correntes que se opõem a esta degradação. Rosa de Luxemburgo é um primeiro elo de um movimento levado avante pelos principais lutadores revolucionários de nosso tempo.

De passagem, assinalemos que o modelo organizativo deste primeiro partido operário de massas de reivindicação marxista, que tanto influiu sobre o leninismo e todo o movimento revolucionário, está hoje também sob questão. Claus Offe, a quem consideramos em última instância um discípulo atual de Rosa de Luxemburgo, tem realizado uma crítica muito interessante deste modelo organizativo. Hoje deveríamos dizer que se necessita não apenas de um "programa mais uma máquina organizativa" (que aplique tal programa), mas inclusive também de um dispositivo de elaboração coletiva, tão do princípio quanto for necessário para esse programa e todas as suas implicações.

Neste processo de recuperar a continuidade do conteúdo revolucionário original do marxismo, o próprio projeto revolucionário vai refundando-se e conservando-se, atualizando-se, ampliando-se e construindo-se. O "marxismo revolucionário" não é algo que se tenha mantido igual a si próprio, nem uma corrente homogênea, mas uma gama de tendências em luta, que também vão sendo descartadas e superadas pelo processo histórico.

Quando dizemos "marxismo revolucionário", não recorremos a este termo no sentido de pretender que exista um marxismo revolucionário verdadeiro versus um falso marxismo reformista, já que estaríamos assim negando as idéias acima expostas. Reivindicar a tradição do marxismo revolucionário não supõe colocar-se como "dono do verdadeiro marxismo", nem deixar de discordar com muito do que tem sido dito pelos seus expoentes, nem deixar de reconhecer muito do que tem sido alcançado por outras correntes de pensamento, digam-se marxistas ou não.

Continuando com nossa visão retrospectiva da história do marxismo, pode-se perceber que, ao sair desta primeira crise, o marxismo passa, entre outras coisas, por uma mudança no seu centro de gravidade.

IV - O Começo da Grande Marcha

Na Rússia, uma recém surgida classe operária começa a importar da Europa Ocidental este marxismo de corte kautskiano, para logo desenvolver outra variante, em um processo conflituoso e a partir da matriz populista do movimento revolucionário russo dos anos anteriores. Ao adquirir vida própria, o marxismo revolucionário russo aborda os problemas do movimento revolucionário precedente, pré-operário de certa forma. Para tanto, lhe é imprescindível reeditar os debates precedentes, adquirindo sua raiz social e nacional, e sua identidade própria dentro do marxismo. O populismo revolucionário russo da segunda metade do século XIX é um exemplo, pela negativa, do vínculo necessário entre o pensamento teórico e o movimento real. Bebendo do marxismo, do socialismo operário da Europa Ocidental de seu tempo, e de outras correntes de pensamento filosófico e social, configura um produto híbrido, eclético, que pretende "adaptar", ou tomar "não-doutrinariamente" o marxismo, de um modo que recorda os populismos e os ecletismos teóricos mais recentes, porém com mais força, criatividade, alcance e espírito heróico. (Tais foram os casos, digamos de passagem, de experiências recentes na América Latina de amplos movimentos revolucionários que pretendendo "inovar" em matéria teórica e de ação, caíram na reedição parcial daquele populismo, como no caso do chamado "foquismo". Para superar este primitivismo não basta a simples crítica teórica, ainda que estivesse baseada no marxismo teórico; para tanto se necessitou da experiência prática.)

Aquele populismo revolucionário russo terminou prisioneiro de um romantismo anti-realista e abstrato. Apenas quando surge na Rússia uma vigorosa luta operária é que o pensamento teórico consegue acertar contas com todos os debates abertos na "ação social", surgindo uma corrente madura do marxismo. O vínculo entre o populismo revolucionário utópico e o marxismo revolucionário que o desloca, é muito mais rico e fecundo que a enganosa proximidade, muito mais formal e aparente, entre este e o "marxismo" legal, oportunista, reformista e liberal, que se tornará matriz das ferramentas políticas, não do proletariado, mas paradoxalmente, da burguesia russa nos anos seguintes.

Esta dialética de importação, transformação e autonomização do marxismo na Rússia é um processo singular dentro do desenvolvimento global do marxismo, que veremos ser reeditado de diversos modos e em diversos tempos e cenários. Cedo dá origem a um novo centro de gravidade. Encontrará mais tarde os limites de seu desenvolvimento criador, seus problemas e deformações próprios. Será superado, também, a partir das periferias que, ao mesmo tempo, ajudou a nascer e travou.

Não é casual que a gênese a partir do movimento revolucionário populista precedente e predominantemente pequeno-burguês, tenha um eixo de sucessão na integração da Rússia ao mundo "moderno", o problema de "saltar etapas" ou não. Um fio condutor liga Herzen e Tchernitchesvky, seu socialismo baseado na comunidade agrária primitiva russa e as polêmicas entre populistas e marxistas legais. Encerrado este tema com o início do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, a polêmica desemboca como um delta em um conjunto de temas que marcam toda a nossa época. A revolução operária em um país onde a burguesia não havia completado a sua função histórica que cumpriu em outros cenários porta temas cruciais: o papel do capitalismo nacional e seus limites, da classe operária na revolução que se aproxima, a política de alianças, as expectativas na revolução operária nos países avançados, o tipo de desenvolvimento a encarar etc. Por trás destes temas está a discussão de fundo sobre o papel histórico real da burguesia, e do próprio capitalismo em nossa época, ainda hoje longe de estar encerada. O leninismo foi um sujeito histórico, mudou a história da Rússia e do marxismo no mundo porque alcançou uma solução para este problema que, como todas as soluções, revelou-se incompleta. A história se encarregaria de demonstrar suas carências. O marxismo revolucionário teve que resolver o problema da originalidade do seu próprio percurso, e não se limitar à cópia das colocações políticas desenvolvidas nos centros precedentes. Este processo de autonomização brotaria também dos partidos com os quais se confrontou, um revolucionário e outro reformista, porém neste caso o revolucionário substituiria o reformista. Posteriormente, as contradições da sociedade russa provocaram também uma crise que abarcou, de modo igual, o movimento real e a teoria.

V - O Marxismo Realmente Existente do Socialismo Realmente Existente

No balanço crítico do chamado "socialismo real", o marxismo revolucionário tem combatido a idéia defendida tanto pelos liberais burgueses como pelo revisionismo social-democrata, de atribuir ao marxismo a "autoria intelectual" dos crimes estalinistas. Esta tergiversação tem sido contestada de diversos ângulos:

a) No ideológico, porque as idéias e práticas estalinistas não são marxistas, mas antes antimarxistas: "socialismo em um só país", supressão da democracia operária, coletivização vertical e forçada etc., todas estas foram formulações totalmente afastadas do pensamento marxista original;

b) No metodológico, fazendo a crítica da "crítica" idealista ao socialismo real. Em definitivo é uma colocação idealista hegeliana o que repetem os social-democratas ou "renovadores", que vêem em uma idéia perversa ou equivocada da mente de um homem ou de um punhado de homens, a causa última do fenômeno histórico de décadas, a degeneração do projeto socialista e a vitória do estatismo burocrático. É uma colocação que reduz tudo à força onipotente de uma idéia malévola, pela qual quase meia humanidade foi aprisionada. A idéia tudo pode, os homens nada podem. Até o dia em que eles, os "renovadores", novos prometeus intelectuais, com sua "crítica" do socialismo real, libertem a humanidade desta praga;

c) No analítico, pondo o fenômeno sobre os seus pés. Isto significa dar à ideologia burocrática seu significado de manifestação de fenômeno histórico real. A idéia do partido único, que o estalinismo atribui falsamente ao marxismo, é a racionalização da ditadura burocrática, sua forma ideológica alienada para mascarar a usurpação do poder operário. A idéia do socialismo em um só país é a racionalização da claudicação parcial ante o imperialismo, buscando a tolerância mútua. E assim sucessivamente. Isto significa compreender o fenômeno teórico através do fenômeno real, explicar o desvio teórico pela história, e não a história pelo desvio teórico. O estalinismo é também uma reconstrução da obra de Marx, uma adaptação que se apropria desta construção teórica como uma operação a mais dentro da sua estratégia de poder. O faz com alto poder de distorção. Suas aberrações teóricas são tão conhecidas quanto seus crimes práticos, ainda que tenham a aparência mais farsesca do que trágica. Falsificação ou recorte dos textos de Marx e Lênin, arbitrariedades aparentemente absurdas como a de proibir qualquer investigação sobre o "modo de produção asiático", textos escolásticos estabelecendo as "leis gerais da dialética", etc. Tudo isto é coerente com a coletivização forçada, a traição da revolução em vários países, ou o assassinato de quase todo o Comitê Central bolchevique que fez a Revolução de Outubro. Falsifica a teoria, da mesma forma que falsifica as fotos documentais dos fatos da revolução, por exemplo, ao ocultar o papel de Trotsky neste episódio.

Não defenderemos aqui uma ótica "fundamentalista" ("afastaram-se" dos textos originais e "por isso"...). Tentamos compreender como um todo o fenômeno político e social do estalinismo e seu tipo particular de construção teórica. Todo ele é derivado do amplo processo da revolução operária de nosso tempo e, enquanto tal, uma derivação degradada. Mas a revolução proletária real não pode deixar de possuir derivados degradados. Estes fenômenos fazem parte do mesmo processo histórico e dos limites determinados pelas condições históricas.

Como síntese, parece-nos adequada a seguinte colocação de Boris Kagarlitsky em uma entrevista publicada em Cuadernos del Sur (Buenos Aires, dezembro 1991): "Para este caso particular (o estalinismo) se aplicaria o conceito de 'reação termidoriana' sugerido por Trotsky. O Termidor foi uma espécie de contra-revolução surgida da revolução e, por sua vez, produto desta. Não foi, então, uma revolução produzida do exterior da revolução a que criou a nova burocracia e as estruturas autoritárias que finalmente acabaram estrangulando-a. Tratou-se de um processo ao mesmo tempo dialético e trágico, no qual não se pode negar a responsabilidade dos bolcheviques. O estalinismo não foi, pois, introduzido desde o exterior do bolchevismo, mas antes se desenvolveu no seu interior, provocando por sua vez sua destruição."

Não busquemos a causa da excrescência no afastamento do projeto. É mais frutífero considerar óbvio que toda realização prática se distanciará até certo ponto do projeto pela própria dinâmica dos processos históricos e tentar, então sim, compreender a realização do projeto a partir de seu drama global. Isto não significa, tampouco, considerar inevitável – e, em última instância, justificar por esta via – as deformações. Pelo contrário, o papel da teoria revolucionária é compreender a natureza das causas objetivas destes desvios, para enfrentá-las. Compreender o avatar teórico como parte do avatar histórico é devolver a este sua verdadeira dimensão. Da mesma forma, recuperar a teoria para o projeto revolucionário é um passo indispensável para reconstrui-lo novamente, como tantas vezes aconteceu, à luz da experiência vivida.

VI - Como Estamos?

Mais do que a história do estabelecimento da deformação burocrática estalinista e o revisionismo pós-estalinista que a continua, interessa-nos a situação presente a partir do colapso deste sistema burocrático. Mais do que a história do marxismo revolucionário europeu, interessa-nos a história das correntes revolucionárias surgidas no Terceiro Mundo nas últimas décadas. Mais do que as questões gerais sobre o status teórico do marxismo, interessa-nos suas aplicações às lutas de classe cotidianas, como podemos usar suas idéias na análise da situação do militante concreto. Mais do que ocorreu com Marx, o que ocorre conosco. Mas a confusão teórica, e o ataque ideológico da burguesia (o de sempre, porém hoje com "renovadores" à frente) que procura enterrar todo projeto revolucionário, obrigam-nos a estas incursões. Devemos ocupar-nos destas questões que nos interessam menos, para que as outras possam ser abordadas com solidez. Nossa abordagem pode, então, desdobrar-se em algumas idéias concretas.

1 - A deformação burocrática do marxismo tem sido de grande envergadura, amplos alcances, contaminando muitas correntes revolucionárias. "Socialismo em um só país", ou "campo socialista", são formas discursivas em que se manifesta sua conivência ao menos parcial com o imperialismo, que inclui formas mais explícitas como o Pacto de Ialta, mas também outras mais indiretas, como as racionalizações das práticas reformistas e oportunistas inventando "etapas" ou "burguesias nacionais". O problema é que morto o cachorro não se extermina a raiva. Muitos desses fósseis teóricos constrangem o pensamento político no campo popular. É este, em realidade, o pensamento "ancorado no passado" que devemos combater: os restos deste pseudomarxismo morto, que para muitos continua conservando a legitimidade do "marxismo", legitimidade usurpada em condições que já desapareceram.

2 - Apesar de todas estas condições adversas, o marxismo revolucionário tem encontrado caminhos renovadores na "rebelião desde as bordas do mundo" (como disse Lin Piao): a revolução desde as formações sociais do capitalismo periférico que abarca toda a segunda metade deste século e que não foi enterrada. Este movimento produz um enorme arsenal teórico e prático, que tem renovado amplamente o marxismo (basta ver, por exemplo, o maoísmo), mas que em muitos aspectos continua marginalizado.

3 - As últimas décadas têm sido especialmente ricas em abordagens acadêmicas do marxismo, talvez refúgio frente às frustrações dos movimentos de massa nos países centrais. Contudo, em que pese a importância destas contribuições, e a despeito de que a "consciência chega à classe operária de fora", nada acontece com esta produção intelectual. Temos adiante o como incorporar estas ferramentas à luta. A própria riqueza de toda essa produção teórica nos obriga a isto.

4 - Por outro lado, causa consternação ver a triste mediocridade das idéias que campeiam entre os "políticos" do movimento popular. Assim como a Igreja tem tentado administrar seus textos sagrados diante das evidências de um mundo em permanente renovação, as castas sacerdotais da política burocrática tentam adaptar-se sem mudar radicalmente, com um discurso mais afetado. Lamentavelmente, os militantes, incluindo muitos verdadeiros revolucionários, acostumaram-se a pensar segundo clichês, e o mesmo texto sagrado diz branco, negro, acinzentado, mais ou menos, quem sabe, mas sempre diz "quem pensa é outro e não tu". O resultado é um destrutivo desprestígio da teoria.

5 - Se não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária, tampouco o há sem projeto revolucionário. O modelo burocrático, como receita de imitação, foi um rebaixamento deste projeto. Porém, sua queda não deixa de produzir um efeito desagregador sobre a luta das classes exploradas. "As pessoas lutam por suas esperanças", disse Stokely Carmichael. As simples necessidades pontuais, por agudas que sejam, não gerarão um projeto revolucionário. A esperança revolucionária deve organizar-se em torno de um projeto revolucionário de envergadura, e este projeto deve ser reconstruído. É impossível convocar hoje as amplas massas de explorados e oprimidos à luta contra o capitalismo sem um projeto revolucionário que inclua um ajuste de contas com nosso próprio passado e com as experiências frustradas.

6 - Não supomos que para a luta revolucionária cotidiana seja necessário esperar haver sido reconstruído um sistema teórico completo. Mas, para começar, há ao menos que apreender a prática da produção teórica cotidiana. O pensar sem medo de transgredir ou profanar – medos típicos da época de tirania burocrática , sem medo da confrontação, do dissenso inevitável em qualquer elaboração coletiva. Sem tampouco o praticismo, que esconde a negação ignorante da teoria.

Romper com as âncoras do passado é navegar novamente sem a pretensão de já ter fixado para sempre o rumo e a meta precisa. O desaparecido semanário Marcha, que Carlos Quijano publicava em Montevidéu, adotou para si aquela divisa: "Navegar é preciso, viver não é preciso". Também se pode dizer na forma adotada pelos versos de Machado6:

"Cuatro cosas tiene el hombre
que no sirven en la mar.
Ancla, gobernalle y remos,
y miedo de naufragar."


1 - Texto apresentado no Congrès Marx International, Paris, Setembro de 1995.(NT) Tradução: Sergio Lessa.(NE)

2 - ITURRASPE, Pancho. In: Nueva Sociedad, maio-abril, 1991.

3 - AMIM, Samir. "Em elogio ao socialismo". In: Monthly Review, Setembro, 1974.

4 - Politzer é o autor do mais bem sucedido manual de filosofia do estalinismo, Princípios Elementares de Filosofia. Membro do Partido Comunista Francês, morreu nas mãos da Gestapo durante a II Grande Guerra. (NT)

5 - AMIM, Samir. El desarrollo desigual. Ed. Fontanella, Barcelona, 1974.

6 - Antonio Machado (Sevilha 1875 – Collioure 1939), poeta progressista espanhol, autor dos livros Solitudes, 1903, e Paisajes de Castilla, 1912. (Nota do Webmaster).


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 6, Janeiro de 1996, tenha sido proveitosa e agradável.

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