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| Resenha:SOARES, Jô O Xangô de Baker StreetSão Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1995. 350 págs. | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Ronald Rocha
Ronald_Rocha@revistapraxis.cjb.net
Sociólogo, membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, da Editoria da Revista Práxis, do Conselho de Colaboradores da revista Crítica Marxista e do Conselho Deliberativo da revista Teoria e Debate.
Jô Soares já possui uma certa experiência com as palavras impressas. Escreveu, primeiramente, O Flagrante. Depois, O Astronauta sem Regime. Posteriormente, colaborando com Luís Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes, O Humor nos Tempos de Collor, percorrendo assim uma trajetória humorística das mais refinadas e talentosas do País. Agora, no seu primeiro romance, calca-se nos padrões da literatura policial, mas cede à tentação de satirizar um dos clássicos do gênero.
A trama é tecida em torno de uma criatividade impulsionada pela recente sugestão pós-moderna de inserir na História o elemento ficcional, com a intenção precípua de produzir, não elementos dramáticos, a exemplo de Shakespeare ou Ibsen, mas uma espécie de simulacro. Eis que o roubo de um violino Stradivarius deixa o Império em situação delicada e leva D. Pedro II por sugestão da divina Sarah Bernardt, que fazia uma série de apresentações no Brasil , a convidar Sherlock Holmes para uma temporada na então capital, o Rio de Janeiro. Paralelamente, no painel sócio-cultural da carioca belle époque, ocorre uma sucessão de crimes tenebrosos. Tal enredo, que Stanilau Ponte Preta chamaria de "samba do crioulo doido", é a senha para um texto saboroso, capaz de hipnotizar o leitor e prender o seu fôlego durante um fim de semana, pois a próxima página é sempre vista como assunto de urgência.
O livro, por intenção prévia, carece de pretensão especificamente literária. Os personagens são habilmente desenhados, mas lhes falta densidade psicológica, com a única exceção do serial killer, cujo impulso criminoso é precedido, como no Eça de Queiroz de Contos, por excitações na forma de um "frêmito de alegria" passando "na luz do paraíso", só que demoníaco. Há um texto sofisticado e mesmo erudito, mas cujas tensões foram expurgadas pelo formalismo. Extrapolando semelhante opção para o campo social mais amplo, a reconstituição da sociedade passada soa como simples suporte pitoresco para uma evolução estereotípica de tipos que, mesmo provocando empatia pela situação que os envolve ou pela reflexão crítica de que podem ser objeto, não vivem de fato. Por exemplo, as posições republicanas e abolicionistas jamais passam de curiosidades ambientais. Não se impõem como conflitos humanos. Todavia, foi assim que o autor preferiu construir a sua impiedosa crítica dos costumes.
A reconstrução intelectual do Rio da segunda parte do século passado, nos estertores da escravidão e do Império, é fruto de uma pesquisa interessante, pano de fundo em que o autor assenta o propósito de ridicularizar o provincianismo da classe dominante, o francesismo da elite cultural, o favoritismo nas instituições públicas, os títulos nobiliárquicos, as teorias racistas em voga na criminologia e o machismo. Não é por acaso que a única coadjuvante poupada pelo sarcasmo e portadora de personalidade acaba sendo Chiquinha Gonzaga. E que, entre os integrantes do núcleo central do enredo, só Anna Candelária, mulata e corista, mantém-se digna e a salvo da irreverência narrativa: é integralmente honesta nos seus sentimentos, entrega-se aos próprios valores com generosidade ilimitada e tem altivez. Mesmo amando, recusa o deslumbramento semi-caipira de morar no exterior e o machismo de anular-se para ter marido: "Em Londres eu ficaria como um peixe fora d'água. Quanto tempo duraria nosso amor em meio a uma terra estranha? (...) Tenho a minha profissão, sou independente demais para ser apenas uma esposa."
Obviamente, a Pompa e circunstância do estilo inglês, na qual Elgar se fixou para compor seu conhecido ciclo de cinco marchas militares, conforma um prato cheio para o autor. É impiedoso com o doutor Watson, que, de tranqüila referência para os vôos da imaginação e o excentrismo de Holmes, torna-se um consumado idiota. O famoso detetive, de figura luminar do raciocínio dedutivo, torna-se um desastrado, apenas salvo do inferno do sarcasmo pelas suas singulares simpatia e pureza, que o autor pela indulgência que unicamente os leitores de Conan Doyle podem compreender justificou imprimindo em Holmes uma disponibilidade aos costumes caboclos.
Engana-se quem vê na crítica mordaz uma indisposição de móveis subalternos, xenófobos. Quando a empáfia de Watson sofre um golpe mortal com a inesperada incorporação da entidade pomba-gira, é a suposta superioridade anglo-colonialista sobre povos dependentes que naufraga. Quando Sherlock faz uma dedução atabalhoada, não há fracasso da razão, mas sim da lógica por assim dizer cartesiana, onde o real surge como fruto de uma causalidade linear logo, de uma "dialética" mecanicista que só reconhece a conexão unilateral , muito ao contrário da síntese de Marx nos Grundrisse, que se refere à "rica totalidade com múltiplas determinações e relações".
Há, em O xangô ..., uma empatia complexa com as façanhas do detetive inglês. A escolha do paradigma revela o fascínio por um "homem da lei" para quem a inteligência predomina sobre a violência e, por conseguinte, o processo civilizatório deve impor-se à barbárie repressiva. Sobretudo quando, a partir do início deste século, as máquinas estatais sofreram o impacto da espionagem onipresente, do terrorismo brutal da ideologia fascista, da opressão tornada consensual pelos instrumentos midiáticos e da cristalização irracionalista na filosofia dominante. Holmes seduz como símbolo de uma época em que a defesa da ordem, mesmo sendo conservadora e no caso vitoriana , reuniu condições histórico-sociais únicas de poder ser refinada e ainda portada por indivíduos racionais.
No entanto, Jô Soares se afasta de Conan Doyle, cujo estilo sempre caminha na zona indefinida onde a ingenuidade corre o risco de ser confundida com ironia. Multiplica então pela enésima potência os elementos de humor britânico nas situações cotidianas da investigação, gerando a incrível sucessão de pequenos desastres e grandes gafes: a camada de breu que recobre as crinas do arco de violino é confundida com resíduos da Mr. Brewster Pommade, usada em puro-sangue de corrida; um broche de ouro é visto como a "significativa" mancha da gema de ovo; as marcas de banais pingos de chuva na lapela de um recepcionista são tidas como provocadas por um copo d'água balançado pelos tremores da moléstia de São Vito; a caligrafia "feminina" de uma carta é interpretada como atributo imanente à condição de mulher.
Todavia, insatisfeito, vai muito além. Troca os detalhes ambíguos pelo escracho explícito. Quem sabe por carecer de intimidade com semelhante forma de gozação, pouco européia, Wittgenstein tenha sugerido, com exagero evidente, que "humor" é "uma concepção de mundo". Mas se tal "espírito" ao menos tiver algo a ver com a concepção de vida pela qual os seres humanos abordam o cotidiano, Jô Soares terá escrito um livro profundo. E se, de fato, como notou Baudelaire, "somos todos mais ou menos loucos", suas páginas nos dizem respeito. Nada elementar meu caro Watson!
Caro Leitor, esperamos que a leitura desta resenha, pertencente à Revista Práxis número 6, Janeiro de 1996, tenha sido proveitosa e agradável.
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