![]() ![]() ![]() ![]() ![]()
|
Crise do Fordismo, Sindicalismo e Flexibilidade do Trabalho(Uma Crítica ao Enfoque da Teoria da Regulação) | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Giovanni Alves
Giovanni_Alves@revistapraxis.cjb.net
Doutorando em Ciências Sociais pela UNICAMP, São Paulo.
A partir da década de setenta, os países capitalistas centrais passaram por uma série de transformações econômicas, sociais e políticas, decorrentes, segundo os teóricos da Escola da Regulação, da denominada "crise geral do fordismo". O mundo do trabalho sofreu e sofre uma violenta ofensiva do capital, que põe sob ameaça os próprios fundamentos da "relação salarial fordista", responsável, segundo eles, pelo vigoroso crescimento econômico das economias capitalistas do pós-guerra. Ao invés da "rigidez" da relação salarial fordista, parece instaurar-se uma nova relação salarial do tipo flexível, adequada às necessidades do novo regime de acumulação. A partir daí, surgem várias interrogações sobre as perspectivas do mundo do trabalho (e do sindicalismo contemporâneo).
Em sua obra The Search for Labour Market Flexibility The European Economies in Transition (cujo título original, em francês, é La Flexibilité du Travail en Europe), publicada em 1986 (edição francesa), Robert Boyer nos apresenta um estudo comparativo das principais mudanças ocorridas no mercado de trabalho nos países capitalistas europeus nas últimas duas décadas. Para subsidiar as análises de Boyer, o livro possui, de maneira preliminar, uma série de estudos de caso, análises particulares das transformações econômicas de vários países europeus, desenvolvidos por diversos economistas e pesquisadores teóricos da Regulação (os países estudados são França, Reino Unido, Irlanda, Bélgica, Espanha, Itália e Alemanha).
Este livro surgiu numa época caracterizada por importantes mudanças no mercado de trabalho, resultado da crescente instabilidade macroeconômica dos países capitalistas centrais. O princípio básico que sintetiza tais transformações institucionais é a estratégia da flexibilidade do trabalho, objeto de estudo de Boyer, expressão superior da investida empresarial e governamental contra o sistema fordista de relações salariais.
Logo no início, na introdução, intitulada "Relações Salariais, Crescimento e Crise: Uma Dialética Oculta", ele nos diz que seu objetivo é estudar, de modo satisfatório, o vínculo entre mudanças nas relações de trabalho e desenvolvimento macroeconômico. A pergunta que Boyer tenta responder no decorrer de sua obra é: o que existe de falso e verdadeiro na relação entre métodos flexíveis de trabalho e retomada do crescimento econômico? Portanto, o debate em torno da flexibilidade do trabalho remete à discussão a respeito da superação da crise contemporânea, à emergência de uma nova relação salarial, às possibilidades de retomada do crescimento durável e de um novo modo de desenvolvimento (pensado, segundo Boyer, no horizonte do modo de produção capitalista)1.
O fato é que, se na década de sessenta, as discussões de política econômica nos países da OCDE se concentravam na elaboração de mecanismos monetários e orçamentários capazes de manter o desenvolvimento econômico próximos do pleno emprego e sem inflação, na década de oitenta o cenário macroeconômico se alterou radicalmente: os métodos tradicionais de política econômica estão sendo utilizados de modo restritivo para reduzir a inflação à custa de um crescente desemprego de longo prazo. O objetivo principal de tais políticas econômicas é promover mudanças estruturais que permitam a recuperação do crescimento sustentável da economia capitalista. Ao invés de incrementar o planejamento econômico, a expansão do setor público e do Welfare State, as políticas econômicas ortodoxas acreditam que a recuperação do crescimento econômico possa se dar apenas através do mercado, da desregulamentação e, principalmente, do combate à "rigidez" institucional (sendo que uma das mais importantes é a relação salarial fordista).
O combate à "rigidez" das relações de trabalho, uma maior flexibilidade no mercado de trabalho, tornou-se algo comum à estratégia econômica e política de todos os países capitalistas centrais nos últimos anos (em sua obra, Boyer trata apenas dos países capitalistas da Europa Ocidental). Entretanto, o que interessa para ele, é saber qual a forma específica que a flexibilidade do trabalho assumiu nos diferentes países europeus (como já salientamos, a obra possui uma série de estudos de caso, feitos por diversos autores, que utilizam o instrumental da Regulação, analisando a performance macroeconômica e as mudanças nas relações salariais em diversos países europeus).
Apesar de admitir a simultaneidade das mudanças institucionais nos vários países europeus, Boyer tende a destacar as suas especificidades nacionais. Se existiram diversas configurações de fordismo (e portanto de sistemas fordistas de relações salariais) na Europa, o impacto da crise geral do fordismo sobre cada país europeu não poderia deixar de ter também um caráter diferenciado2. Por exemplo, no capítulo nove, intitulado "Divisão ou Unidade? Declínio ou Retomada?", Boyer destaca que, apesar da "natureza universal da busca pela maior flexibilidade do trabalho", as mudanças que ocorrem no sistema de relações salariais não são totalmente idênticas em todos os países. Diz: "De fato, o desenvolvimento histórico de cada país e a natureza específica de seu contexto social e econômico, tanto quanto sua particular inserção internacional, determinam como ele irá responder à crise". Portanto, salienta que, na corrida pela flexibilidade existe, de fato, a re-emergência de fatores nacionais específicos3.
Não nos interessa, neste paper de pretensões limitadas, determo-nos com exaustão nas minuciosas análises feitas no livro de Boyer sobre o problema da flexibilidade do trabalho nos vários países capitalistas europeus. Os diversos ensaios, contidos na obra são ricos em dados e descrições macroeconômicas de cada país, e o leitor interessado nos diversos casos nacionais deve, certamente, recorrer à própria obra. O que procuraremos salientar, num primeiro momento, é o enfoque geral dado por ele sobre as mudanças institucionais e econômicas que atingem o mundo do trabalho nos países capitalistas centrais. Tais mudanças decorrem da crise estrutural do fordismo, que atinge esses países.
O seu enfoque da Regulação (e da crise do fordismo) possui uma peculiaridade Boyer ressalta, de modo enfático, a importância (e a centralidade) das relações salariais na dinâmica econômica capitalista. Em primeiro lugar, para ele, apenas o método da Regulação propicia perceber os vínculos entre certos tipos de relações de trabalho e o crescimento da economia. O modo de regulação do mercado de trabalho possui um importante papel no crescimento econômico de um país. O boom econômico do pós-guerra é explicado como sendo o resultado de uma configuração fordista da relação salarial, de um modo particular da operação do mercado de trabalho, que contribuiu para o desenvolvimento sustentável. É por isso que analisar hoje a flexibilidade do trabalho é, antes de tudo, considerar as condições (e possibilidades) de uma nova retomada do crescimento de longo prazo. É tratar de um componente essencial para a instauração de um novo modo de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo.
Para Boyer, as relações salariais, e não apenas as determinações tecnológicas, são os elementos centrais da dinâmica econômica do capitalismo. Não foi apenas o fato dos países europeus terem alcançado os níveis de produtividade da economia dos EUA que permitiu a eles o notável crescimento econômico do pós-guerra. Modernos métodos de organizar a produção não explicam, por si só, o sucesso econômico destes países capitalistas. Apenas mudanças nas normas de produção não são suficientes para explicar o padrão de desenvolvimento do pós-guerra. Assim, a passagem do taylorismo para o fordismo, por exemplo, é entendido por Boyer não apenas como uma transformação de natureza tecnológica nas normas de produção, mas como uma mudança fundamental nas relações salariais e modos de regulação (com notável expressão nas normas de consumo), como uma mudança radical no modo de funcionamento do mercado de trabalho, em seu papel central no processo de crescimento e na determinação da atividade econômica4. Foi um novo compromisso entre assalariados, empresários e governos, que permitiu a emergência de mecanismos econômicos pelos quais os ganhos de produtividade são distribuídos, propiciando o processo de crescimento de longo prazo (o que Lipietz denomina de "compromisso fordista")5.
Por isso, ele observa que, o que está subjacente ao crescimento econômico do pós-guerra é uma "dialética oculta" entre o sucesso do keynesianismo e uma forma específica de relações do trabalho (no caso, relação salarial fordista). É tal "dialética oculta" que explica, desde meados da década de sessenta, as mudanças interrelacionadas no sistema de relações salariais, crise econômica e condução das políticas econômicas6.
I - Falência do Sistema Fordista de Relação Salarial e Crise do Sindicalismo Contemporâneo
Os fatores econômicos, salienta Boyer, são mais importantes que os fatores políticos para explicar as mudanças no sistema fordista de relações salariais. Foi tentando entender porque governos de orientação política diversas, como o do Reino Unido, sob Margaret Thatcher, e o da França, sob François Mitterand, passaram a rever suas políticas econômicas iniciais, e implementar mudanças institucionais similares, que ele chegou a tal conclusão. Enfim, as diversas políticas econômicas, seja de socialistas, seja de conservadores, não podem desconsiderar o fato da existência de uma crise estrutural do fordismo, que atinge os mais diversos países capitalistas. Tal crise estrutural do fordismo põem em questão o sistema de relações salariais vigente7.
Outros fatores estruturais poderíamos dizer, fatores de propagação da crise geral explicam, segundo Boyer, a debilitação do sistema fordista de relações salariais. São eles:
a) a deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados;
b) a pressão das empresas para recuperar suas posições financeiras;
c) a crescente competição internacional;
d) o fim do crescimento das economias capitalistas centrais.
Interessa-nos tratar apenas da deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados. É um dos fatores de propagação mais importantes para explicar a falência do sistema fordista de relações salariais, tendo em vista que salienta a debilitação estrutural de um dos sustentáculos do "compromisso fordista": os grandes sindicatos. Ao fazer referência a tal fator explicativo, Boyer está tratando, em última análise, da crise do sindicalismo contemporâneo nos países capitalistas centrais. Ela seria, portanto, um dos principais responsáveis pela crise da regulação fordista8.
Como percebemos, o enfraquecimento do poder sindical significaria, para ele, não uma conseqüência, mas uma das causas da crise do modo de regulação, da falência do sistema fordista de relações salariais. Os componentes da deterioração do poder sindical apontados por ele, são mais de natureza estrutural do que político-ideológica propriamente dita. São resultados da própria maturidade do fordismo (e dos seus limites).
Os componentes da deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, assinalados por Boyer e que passaram a se manifestar em fins da década de setenta e primórdios da década de oitenta nos países capitalistas centrais, são os seguintes:
a) desindustrialização;
b) difusão de formas de emprego características do setor terciário;
c) crescimento do desemprego de longo prazo;
d) diminuição das greves.
A desindustrilização afetou um dos sustentáculos do fordismo: o sindicalismo operário das indústrias mais dinâmicas (cujo exemplo maior é a indústria automobilística). Foi o sindicalismo operário da época fordista que conseguiu, segundo ele, conquistar acordos salariais e leis sociais que, na medida em que se generalizaram, beneficiaram todos os assalariados, em maior ou menor proporção. Entretanto, as bases tradicionais do sindicalismo operário têm sido erodidas, pouco a pouco, pela desindustrialização.
Além disso, outro componente da crise do sindicalismo, expressão desta deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, é dado pela difusão de formas de emprego típicas do setor terciário. O próprio crescimento do setor de serviços (apontado por alguns analistas como a emergência de uma "sociedade pós-industrial") é prova, segundo Boyer, do sucesso do taylorismo na indústria. Afinal, uma produção em massa não seria sustentável sem o crescimento do marketing, das finanças, dos seguros e dos serviços de engenharia. Mas a organização do trabalho e da barganha coletiva no setor de serviços é bastante diferenciada, com o tipo fordista de contrato tendo a concorrência de outros tipos "flexíveis" de contrato: emprego por tempo parcial, emprego temporário e emprego subcontratado. Além disso, os sindicatos estão encontrando problemas em organizar os trabalhadores assalariados do setor de serviços, tendo em vista a dispersão das pequenas unidades de trabalho.
Outro componente desta deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados é o crescimento do desemprego. De 1973 a 1985, as taxas de desemprego pularam de cerca de 3% para 8,5% (na Alemanha) e 21,5% (na Espanha). A ameaça do desemprego tende, segundo ele, a influenciar mais o comportamento operário do que no passado: o desemprego é de longo prazo e não pode ser comparável com o existente na década de sessenta. Portanto, existem condições desfavoráveis para a própria mobilização sindical. Neste caso, outro componente desta crise do sindicalismo contemporâneo é identificada como sendo a diminuição dos conflitos industriais. Os aumentos de salários são vistos, hoje em dia, cada vez mais, como trabalhando contra a manutenção do emprego. Deste modo, as demandas salariais se arrefecem. Além disso, a diminuição do número de trabalhadores sindicalizados é evidência, para Boyer, do declínio do sindicalismo, da falência da negociação coletiva tradicional e das dificuldades de encontrar novos objetivos e meios de ação para os sindicatos9.
Em sua breve exposição dos componentes estruturais da deterioração no poder de barganha dos trabalhadores assalariados, Boyer não inclui, entre eles, a própria flexibilidade do trabalho. Parece estranho omitir tal estratégia patronal e governamental, tendo em vista que é evidente que a flexibilidade do trabalho, sob as mais diversas formas, produz a debilitação do poder sindical, seja no interior da fábrica, seja no próprio mercado de trabalho. É provável que um dos principais motivos que levou Boyer a não considerar a estratégia da flexibilidade do trabalho enquanto um dos componentes possíveis desta deterioração do poder sindical é o fato dele considerá-la, antes de tudo, não como uma causa, mas como uma das conseqüências da falência do sistema fordista de relações salariais. Quer dizer, antes de ser uma das causas da crise do sindicalismo, por exemplo, a flexibilidade do trabalho surgiria post festum, tal como a "ave de Minerva", enquanto estratégia para a retomada do crescimento e superação da crise. Surgiria, portanto, por entre os escombros de um sindicalismo debilitado (e inclusive conivente) ou já incapaz de contrapor-se aos métodos flexíveis de trabalho impostos pelos capitalistas.
II - Flexibilidade do Trabalho e Sindicalismo
A flexibilidade do trabalho, sob as mais diversas formas, é posta por Boyer como a estratégia de superação da crise e de retomada do crescimento de longo prazo. No entanto, ele mesmo reconhece que o conceito de "flexibilidade do trabalho" é assaz ambíguo, de caráter incerto e de efeitos contraditórios. Ela possui, para ele, os seguintes significados:
a) o grau de adaptabilidade das organizações produtivas;
b) a habilidade dos trabalhadores de se moverem de uma tarefa para outra;
c) relaxamento dos constrangimentos legais que tratam do contrato de trabalho;
d) adaptabilidade dos salários à conjuntura econômica;
e) possibilidade das empresas se sentirem aliviadas de encargos sociais e fiscais.
Além disso, a flexibilidade do trabalho possui variações de país para país (ela varia segundo a estrutura de produção, os padrões históricos de relações do trabalho e a linha política adotada pelas empresas e pelo governo).
No capítulo dez, intitulado "Flexibilidade Ofensiva ou Defensiva?", ele procura desmontar, pouco a pouco, uma série de "dogmas" ortodoxos sobre as vantagens da flexibilidade no mercado de trabalho dos países industriais (por exemplo, ele contesta a tese de que métodos flexíveis de trabalho possam significar necessariamente incremento na produtividade ou que a "rigidez" salarial seja a causa do desemprego)10.
De início, a idéia geral de Boyer é contrapor dois conceitos de flexibilidade do trabalho: flexibilidade defensiva e flexibilidade ofensiva.
A flexibilidade defensiva é a flexibilidade de trabalho adotada de caráter imediato, cujo único objetivo é enfrentar as incertezas da crise de rentabilidade. É tão somente um meio de ajustar-se à crise e não um princípio positivo de organização econômica e social. Em síntese, adotar métodos de flexibilidade defensiva num período de crise estrutural é, para Boyer, um retorno a mecanismos de competição típicos do século XIX. Sob a ótica da flexibilidade defensiva, o liberalismo é a única forma legítima de competição e o princípio dominante é o do mercado auto-regulado. O objetivo da estratégia defensiva de flexibilidade é desmantelar as formas keynesianas de intervenção do Estado na atividade econômica (tal como propugnado pelo professor F. Hayek desde 1970). Na prática, tal estratégia de flexibilidade conduz a uma maior segmentação salarial e a divisão da força de trabalho numa plêiade de muitas regulações.
Por outro lado, Boyer contrasta tal tipo de flexibilidade defensiva, com a flexibilidade ofensiva. Neste caso, os métodos ofensivos de flexibilidade do trabalho consideram a necessidade de uma transformação geral de todas as formas de organização social e não apenas da relação salarial , como condição capaz de promover um retorno ao crescimento e uma redução do desemprego de massa. Em vez da ótica defensiva de flexibilidade, ela considera que o desenvolvimento das estruturas econômicas e sociais é amplamente irreversível, o que significa dizer que é impossível um retorno às condições do capitalismo do século XIX. É preciso tratar das novas contradições postas pelos limites do fordismo, pelo desenvolvimento amplo das normas de consumo e de produção (o que não existia antes). Além disso, o sistema competitivo de regulação, vigente no século XIX (e apoiado pelos defensores de uma nova ortodoxia), não era tão eficiente como se propala, acarretando, na sua época, fases alternadas de expansão e depressão, de caráter brutal e pronunciado, além de baixa taxa de crescimento a longo prazo e instabilidade econômica agindo como um freio aos benefícios potenciais de mudanças técnicas etc.
Portanto, a flexibilidade ofensiva procura ir além da mera adaptabilidade conjuntural à crise, procurando superá-la, sem debilitar aquilo que Boyer considera fundamental (e que estava subjacente no suposto consenso fordista): estabilidade macroeconômica, coesão social e preservação do princípio de solidariedade11.
O capítulo onze, intitulado "Uma busca de uma nova relação salarial: complexa e contraditória, mas crucial", é de particular importância, porque trata, depois da apresentação das mudanças estruturais da economia capitalista (e das estratégias empresariais, tais como a flexibilidade do trabalho), da resposta dos sindicatos aos desafios dos novos tempos. É neste capítulo que nos deteremos um pouco mais, procurando sintetizar quais as saídas possíveis para uma nova relação salarial (pós-fordista? neofordista?) vislumbradas por Boyer.
Em primeiro lugar, ele salienta que os métodos de flexibilidade postos em vigor na década de oitenta indicam não apenas simples ajustes na economia capitalista, mas sim, provavelmente, uma total redefinição das relações salariais e de outras formas de organização como um todo, que podem constituir meios alternativos de desenvolvimento capitalista.
De início, ele constata a existência de um aparente paradoxo: as disputas industriais nas últimas décadas têm constituindo-se como uma luta obstinada dos sindicatos em defesa do compromisso fordista. Os sindicatos, que, na década de sessenta, tanto contestaram o compromisso fordista, assumiram na última década, a de oitenta, a sua defesa radical contra os métodos flexíveis de trabalho propostos pelos empresários. Tal atitude dos sindicatos, que celebram as virtudes do período fordista, é devido, em parte, segundo Boyer, às suas dificuldades em apresentar uma proposta alternativa à relação salarial fordista12.
Entretanto, a defesa acirrada dos sindicatos do compromisso fordista não é tão irracional assim. Ele considera a nostalgia dos sindicatos, como algo compreensível numa época de crise estrutural, em que o velho já morreu e o novo ainda não se constituiu num sistema coerente. Além disso, os sindicatos defendem o consenso fordista do pós-guerra porque ele o compromisso fordista se constituiu como a base de suas estratégias, de suas organizações internas, e de sua credibilidade aos olhos dos trabalhadores assalariados. Portanto, por que os sindicatos deveriam abandonar conquistas sociais que são produto das lutas históricas dos operários desde o advento do capitalismo industrial, conquistas sociais que na década de sessenta eram compatíveis com um rápido crescimento não apenas no padrão de vida dos operários, mas dos lucros e investimentos?
Apesar disso, Boyer considera que é cada vez mais difícil manter tal estratégia de defesa do velho compromisso fordista num período de crise estrutural, quando as regularidades econômicas foram radicalmente desestabilizadas. Para ele, os sindicatos que persistem em defender o sistema de relações salariais fordistas tendem a não obter sucesso13.
III - Um Novo Compromisso?
Para Boyer, presenciamos uma nova fase de relações do trabalho. Em comparação com o que havia antes, a atual relação capital-trabalho é baseada em, no mínimo, três condições:
a) um novo acordo visando a obter uma crescente eficiência produtiva através da cooperação entre trabalhadores e empresários;
b) a negociação de concessões recíprocas (tarefas, treinamento, jornada de trabalho, salários etc) em troca da eficiência produtiva;
c) reconhecimento de que existe um leque de formas de organização e de métodos de administração que podem ser utilizados para se alcançar competitividade. A escolha pode ser feita pela empresa após consultar e negociar com os empregados (Boyer observa que a ruptura com o preceito taylorista do "one best way" é obvia).
Apesar disso, para ele, a nossa época é ainda de intensa experimentação, de tentativa e erro na busca de linhas possíveis de um novo sistema de relações salariais14.
Os últimos desenvolvimentos na história das relações de trabalho (demonstrados pelos experimentos da quarta fase) demonstram que o fordismo não pode mais ser considerado o ponto alto da história das relações de trabalho sob o capitalismo. O fordismo está hoje sob fogo cerrado, mais em decorrência das dificuldades financeiras e econômicas das empresa do que do próprio desejo dos sindicatos e dos trabalhadores. Foi a "grande crise" que encorajou uma série de experimentos de relações de trabalho, buscando uma alternativa à relação fordista. Deste modo, para Boyer, a crise não pode ser vista apenas sob o lado negativo, na medida em que destrói a velha ordem. Ela é também positiva, tendo em vista que serve para catalisar, segundo ele, a reconstrução da "sociedade dos assalariados", visando transcender alguns conflitos e contradições que têm obstruído o crescimento desde a segunda guerra mundial15.
Entretanto, ele não admite que já exista um "modelo" acabado de relações de trabalho, capaz de viabilizar um novo modo de desenvolvimento para o capitalismo contemporâneo. Não existe nenhuma garantia que a sucessão de "modelos" (USA, Japão) difundidos pelos especialistas, ou a série de "modelos de ruptura" na área de administração", produzirão, todos eles, uma opção viável ou um novo caminho para o futuro. Depois, a coerência econômica e sócio-política destes esquemas gerais está longe de ter sido testada. Enfim, supondo que este "modelo" fosse completamente integrado e que pudesse ser exportável (o que é duvidoso, segundo Boyer), como poderíamos, pergunta ele, fazer a transição de um sistema fordista para um outro "modelo" sem que ocorra um caos total?
IV - Algumas Considerações Críticas
Ao tratar, en passant, da crise do sindicalismo contemporâneo, ou seja, da deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, Boyer salientou a sua vinculação estrutural com a crise geral do fordismo. A deterioração do poder sindical é, para ele, um dos principais fatores que explicam as mudanças ocorridas nas relações salariais fordistas. Afinal, os grandes sindicatos eram um dos mais importantes fiadores do modo de regulação monopolista, do compromisso fordista que garantiu o boom econômico do pós-guerra. Foram os grandes sindicatos que garantiram, com sua organização no local de trabalho e seu poder político, os salários indexados com a inflação passada, a repartição dos ganhos de produtividade, a garantia de emprego e a hierarquia das qualificações. A deterioração do poder de barganha dos grandes sindicatos operários dos setores mais dinâmicos da economia, como os sindicatos das indústrias automobilística, cujas lutas e acordos salariais serviam como referência para os demais trabalhadores assalariados, facilitou a desmontagem dos princípios básicos das relações salariais fordistas, deixando livre o terreno para a ofensiva do capital, com sua estratégia de flexibilidade do trabalho.
Alguns pontos da análise de Boyer (e da Teoria da Regulação) podem ser objeto de crítica.
Primeiro, o pressuposto da Teoria da Regulação de que teria havido um tipo de "compromisso fordista" (ou "acordo" capital-trabalho).
Segundo, poderíamos questionar a vinculação estrutural, feita por Boyer, entre crise do sindicalismo e crise geral do fordismo (como se durante o período fordista, pelo menos nos EUA, o sindicalismo já não manifestasse seus limites críticos).
Depois, Boyer tende a não perceber que a flexibilidade do trabalho, seja de caráter defensivo ou ofensivo, como ele denomina, contribui, de fato, para a deterioração do poder sindical (pelo menos do sindicalismo de classe, independente das empresas e do governo).
IV.1 - Existiu, de fato, um Compromisso Fordista?
Em sua crítica exaustiva da obra clássica de Michel Aglietta, Crise e Regulação do Capitalismo A experiência dos EUA, Glick e Brenner salientam, por exemplo, que nunca houve um "acordo" capital-trabalho (pelo menos nos USA), que garantisse o crescimento dos salários e do consumo popular em proporção ao crescimento do investimento, dos lucros e dos ganhos de produtividade. Dizem que o capital nunca se resignou a aceitar a parcela do trabalho nos ganhos de produtividade, mas sim lutou com unhas e dentes para limitar o crescimento do salário real. Portanto, é difícil ter havido algo como um acordo generalizado entre os sindicatos e grandes empresas (à la social-democracia sueca), que repartisse a renda entre investimentos e consumo ou entre lucros e salários. Para Glick e Brenner, tal repartição da renda foi produto não-planejado de uma miríade de decisões privadas não-coordenadas das empresas sobre preços e de uma miríade de conflitos entre capital e trabalho sobre os termos de emprego (neste ponto, Lipietz parece estar com a razão quando ressalta o caráter fortuito do fordismo).
Além disso, observam eles, Aglietta já tinha salientado em sua obra clássica, que o denominado "acordo" capital-trabalho representou o resultado da vitória dos capitalistas e a derrota dos sindicatos no processo de luta de classes ocorrido logo após o final da segunda guerra mundial. No final da década de cinqüenta, os capitalistas tinham já reconquistado o controle sobre o local de trabalho que os sindicatos tinham assegurado, temporariamente, através das grandes lutas sindicais das décadas de trinta e quarenta. Deste modo, para eles, diante de uma alteração no balanço de forças de classe a favor do capital, não é surpresa que os capitalistas tenham permitido dispositivos contratuais que garantissem, para os trabalhadores das grandes empresas, uma parcela da riqueza produzida no ápice do boom econômico16.
Finalmente, os salários reais nos EUA, de 1948 a 1970, não conseguiram acompanhar os ganhos de produtividade. Durante o período do boom econômico, o crescimento dos salários permaneceu atrás dos ganhos de produtividade (a não ser durante alguns poucos anos da década de cinqüenta). O próprio Aglietta reconheceu que, durante o período 1958-1966, o cume do boom fordista nos EUA, ocorreu um crescimento espetacular da mais-valia relativa com o incremento de ganhos de produtividade que ultrapassaram de longe o crescimento dos salários reais. O resultado é que, neste período, a lucratividade das grandes corporações industriais cresceu em cerca de 33% ou mais. Deste modo, a época da "barganha coletiva fordista", se existiu nos EUA, foi apenas durante alguns anos da década de cinqüenta17.
IV.2 - O período fordista foi a "idade de ouro" do sindicalismo moderno?
Quanto à crise do sindicalismo, Boyer parece situá-la apenas no bojo da crise geral do fordismo. Ele tende a considerar que, durante o período de consenso fordista, o poder sindical viveu sua "idade de ouro", portanto não passou por nenhuma crise relevante ou não apresentou nenhuma debilidade crítica.
Ora, considerar que a crise do sindicalismo contemporâneo é algo inédito (e que já não estava pressuposta no próprio desenvolvimento fordista) é desprezar as evidências históricas. Por exemplo, nos USA, que ele considera como o país do "fordismo genuíno", a crise do sindicalismo, ou as debilidades do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, assumiu um caráter precoce (com relação aos demais países capitalistas desenvolvidos). A queda da taxa de sindicalização nos USA passa a ocorrer a partir de 1956, portanto no bojo do boom econômico fordista. Ela ocorre, portanto, logo após a derrota dos sindicatos no processo de lutas de classes ocorrido após a segunda guerra mundial (a fusão AFL-CIO, ocorrida em 1954, marca o início de um sindicalismo industrial moderado, conivente com o capital hegemônico).
O próprio Aglietta observou (como indicam Brenner e Glick) que, durante o período de 1958-1961, ocorreu uma súbita mudança nas formas de luta de classes em detrimento dos trabalhadores assalariados. Ocorreu, durante este período, uma aceleração da queda dos custos unitários do trabalho, que propiciou, no período seguinte, juntamente com o incremento da produtividade, um crescimento formidável na mais-valia relativa e um salto espetacular na lucratividade das grandes empresas. A deterioração do poder sindical se inicia, portanto, antes (e é uma das precondições) do boom fordista. Ela já estava implícita no tipo de sindicalismo adequado à lógica de crescimento fordista.
A crise do sindicalismo nos USA possui, é claro, vinculações com as tendências de longo prazo, que se manifestaram de modo precoce no capitalismo norte-americano, como o incremento progressivo do setor de serviços e a diminuição do número de operários industriais (o que levou alguns analistas a salientarem o surgimento precoce, naquele país, de uma sociedade pós-industrial). Possui ainda alguns componentes de caráter sócio-cultural: o poder do capital, da ideologia do mercado e dos valores liberais sempre caracterizaram, mais do que em outros países capitalistas, a cultura e a estrutura da força de trabalho nos EUA (em termos comparativos, o seu índice de sindicalização sempre foi baixo: o maior índice alcançado, por exemplo, foi de 25,4 % em 1954, enquanto na Itália, na mesma época, chegou a 57%, na Alemanha, 54%, e na Inglaterra, 46%). No entanto, a crise do sindicalismo nos EUA é decorrente, em grande medida, dos resultados da luta de classes ocorridos no pós-guerra, da rendição sindical à ingerência do capital no local de trabalho e da debilitação progressivo do seu poder político (o período de força política do sindicalismo norte-americano foi durante as décadas de trinta e quarenta, quando os sindicatos conseguiram um poder de controle relativo sobre o espaço fabril).
Durante o período fordista, o sindicalismo nos EUA se acomodou às concessões do capital (é deste período a consolidação do business unionism). A Teoria da Regulação não deixou de perceber a metamorfose da estratégia sindical quando salientou um dos princípios básicos do compromisso fordista: os sindicatos não pleiteavam mais o controle do local de trabalho (deixando-o portanto sob a completa ingerência do capital) e, em troca, concentravam a sua demanda em cima de salários reais indexados com a inflação passada e participação nos ganhos de produtividade. A mudança da estratégia dos sindicatos determinou, de certo modo, a consolidação de um tipo burocrático de organização interna. Poderíamos dizer, inclusive, que o sindicalismo de negócios é o tipo extremo do modelo de sindicalismo adequado à lógica fordista.
Com a crise capitalista, a partir de fins da década de sessenta, o sindicalismo nos EUA se viu pouco a pouco diante de impasses estruturais derivados, em parte, do tipo de estratégia e organização burocrática consolidada sob o período fordista. Na década de oitenta, sob a ofensiva monetarista (o reagnomics), que promoveu a ruptura do padrão de negociação coletiva fordista, ou o que ainda havia dele, aprofundou-se a crise do sindicalismo norte-americano (demonstrado na queda relativa do índice de sindicalização, que atingiu um dos mais baixos patamares desde o pós-guerra: 16% em 1989). Mas a expressão qualitativa da crise do sindicalismo nos EUA é dada pela incapacidade dos sindicatos de implementarem uma alternativa estratégica de luta contra a desmontagem de direitos trabalhistas conquistados durante as décadas passadas. Sob a crise estrutural, a ofensiva do capital adquiriu nova qualidade, provocando, portanto, o que Boyer considera como sendo a deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, manifesta por uma série de tendências, como a desindustrialização, o desemprego e a difusão de contratos de trabalho precários. Entretanto, não estamos diante de um "raio no céu azul": a crise estrutural do sindicalismo contemporâneo, a deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, é apenas a posição de algo que já estava pressuposto no compromisso fordista.
Portanto, a expansão econômica do capitalismo no pós-guerra, a instauração do "fordismo genuíno" nos USA, deu-se às custas do estancamento relativo do poder sindical. Tal fato ocorreu nos demais países capitalistas cujo crescimento econômico tornou-se notável nas décadas de cinqüenta e sessenta. A ofensiva do capital sobre o sindicalismo de classe no Japão pré-milagre econômico é outro exemplo. Por outro lado, o caso dos países capitalistas da Europa ocidental possui particularidades históricas vinculadas às tradições de lutas operárias e sociais, de partidos operários com força política relativa, que impediram (ou criaram obstáculos) à deterioração formal do poder sindical (pelo menos tal como ocorreu nos USA). Inclusive, o poder sindical se manteve intacto no Reino Unido, por exemplo, durante todo o período fordista (o Reino Unido é considerado, por Boyer, como sendo um "fordismo falho ou defeituoso").
Com a grande crise, a ofensiva do capital adquire um novo caráter e a deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, tende a ocorrer de modo real. Foi exemplar a violenta ofensiva do capital no Reino Unido na década de oitenta, sob o incentivo do governo conservador de Margaret Thatcher (o sindicalismo britânico era um dos mais poderosos do mundo capitalista desenvolvido). A ofensiva do capital sobre o mundo do trabalho ocorre com a mesma intensidade e na mesma proporção da tradição histórica de luta política e organização sindical no local de trabalho dos operários britânicos. Na verdade, as mudanças estruturais na economia capitalista tornaram explícitos os limites intrínsecos do sindicalismo enquanto forma de movimento operário.
Portanto, a análise de Boyer, de certo modo, tende a não situar, em termos históricos, o fato da deterioração do poder de barganha dos trabalhadores assalariados, não percebendo, ou deixando de salientar, as conexões intrínsecas entre fordismo e deterioração formal do poder sindical (na medida em que as demandas operárias se concentram apenas nos salários a esfera do consumo, do fetiche da mercadoria). Além disso, por outro lado, tal tipo de sindicalismo, submisso à forma imposta de organização do trabalho taylorista e subsumido à lógica mercantil, tornou-se adequado (ou contribuiu) para a expansão capitalista do pós-guerra. Enfim, tornou-se uma precondição para o próprio desenvolvimento do fordismo. No entanto, o desenvolvimento do capital conduz à negação de seus próprios fundamentos a crise estrutural (e a deterioração real) do sindicalismo é expressão desta lei geral da acumulação capitalista.
IV.3 - Flexibilidade do trabalho: "golpe de misericórdia" no sindicalismo?
Outrossim, em sua análise, Boyer percebe que a flexibilidade do trabalho, antes de ser causa da deterioração do poder sindical é, pelo contrário, decorrência dele. Ou seja, para implantar os métodos flexíveis de trabalho, as empresas e os governos tiveram que debilitar e impor grandes derrotas aos sindicatos. Enfim, tiveram que "quebrar" os sindicatos e não apenas incorporá-los à lógica da mercadoria. Nos USA, por exemplo, a experiência do choque monetarista sob Reagan, no princípio da década de oitenta, criou um cenário de instabilidade macroeconômica que favoreceu a ofensiva do capital sobre os sindicatos norte-americanos (que não tinham nenhuma organização política para contrapor-se, efetivamente, às injunções das grandes empresas). Sob a pressão das circunstâncias adversas, os trabalhadores organizados tiveram que negociar e fazer concessões salariais em troca da manutenção de seus empregos. No Reino Unido, prevaleceu, por outro lado, além do recurso à política econômica monetarista, os meios impositivos da força (afinal, o sindicalismo inglês era um dos mais fortes, em termos políticos, e reagiu à altura, mas sem muito sucesso). A obsessão do governo conservador de Thatcher em derrotar os sindicatos teve o seu ápice durante a fracassada greve dos mineiros (1984-1985).
Apesar da flexibilidade do trabalho não ser uma das causas primeiras da deterioração do poder sindical, ela tende, num segundo momento, a incrementar ainda mais a crise estrutural do sindicalismo (pelo menos do tipo de sindicalismo autônomo, independente do governo e das empresas). Ou seja, Boyer não percebe, ou não torna claro, que a flexibilidade do trabalho contribui, em última instância, para o processo de debilitação real do poder de barganha dos trabalhadores assalariados. Aprofunda a submissão real da classe operária às injunções do capital em restruturação.
A partir daí, podemos inferir que o tipo de sindicalismo que surge deste novo sistema flexível de relação salarial está mais integrado à lógica da empresa, do capital, dos valores do mercado. É inclusive condutor de um "neocorporativismo", expressão de um novo tipo de defensivismo que mantém continuidade com a estratégia e organização interna vigente sob o período fordista.
Sob a flexibilidade de trabalho ofensiva, na acepção de Boyer (ou o que Lipietz denomina de "implicação negociada"), os trabalhadores assalariados qualificados poderão obter vantagens reais com os métodos flexíveis de trabalho. Eles terão oportunidade e serão capazes de intervir em todos os aspectos da organização do trabalho. Inclusive, como observa Lipietz, o trabalhador qualificado, sob a flexibilidade interna, tenderá a ter um enorme poder de negociação, oriunda da sua maior capacidade de gerir o processo produtivo por inteiro, Eles não devem temer a instabilidade de emprego ou a degradação de salários e de condições de trabalho18. Além disso, eles serão imprescindíveis para a empresa. Como salienta Boyer, uma empresa preocupada com a produtividade e a qualidade de seus produtos não estará interessada em criar instabilidade na administração de sua força de trabalho19. Em síntese, os trabalhadores assalariados serão, deste modo, "parceiros" do capital e defensores da empresa na qual trabalham. Eis a vantagem dos métodos flexíveis de trabalho para a classe operária.
No entanto, sob tais condições, Lipietz reconhece o perigo de difundir-se um tipo de implicação negociada individual, ou a "individualização da relação assalariada". O que significaria a derrocada do sindicato enquanto instituição de negociação coletiva, pelo menos para os trabalhadores assalariados qualificados (do "núcleo central" do mercado de trabalho). Mas ele observa que, a negociação individual tende a não ser adequada a uma forma de organização de trabalho coletivo. Deste modo, para Lipietz, a negociação individual seria incompatível com a otimização das instalações capitalistas. Nesta perspectiva, o sindicato ainda seria imprescindível, enquanto instituição de negociação coletiva do preço da força de trabalho.
O tipo de negociação coletiva é variável pode ser por empresa, como no Japão; por ramo industrial, como na Alemanha ou ainda por inteiro, como na Suécia. Lipietz defende o que ele denomina de "implicação negociada" de forma coletiva e salienta que os países capitalistas que a adotaram são os "vitoriosos" na corrida pelo crescimento a taxa de lucro foi restabelecida, a balança comercial equilibrada (ele salienta o caso do Japão, da Alemanha, dos países do Arco Alpino a Suiça, a Áustria e a Itália do Norte e dos países da Escandinávia. Diz: "os países que tinham escolhido a flexibilização os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a França são hoje países que perdem velocidade.").
Entretanto, o que está subjacente à tal "implicação negociada" é um tipo de sindicalismo neocorporativo, induzidor de um tipo de consciência operária integrada ao princípio de valorização. Tende-se a fragmentar a solidariedade de classe e incrementar os particularismos étnicos e raciais intraclasse. Mesmo em países capitalistas "vitoriosos" tais como a Alemanha, por exemplo, a implicação negociada é privilégio dos operários nativos, enquanto os operários imigrantes, de origem turca, não possuem sindicato e são discriminados pelos próprios operários alemães (e pelos seus sindicatos).
Apesar da organização do trabalho ser coletiva, como observou Lipietz, o capital não considerou indispensável uma negociação coletiva para todos. Muito pelo contrário, a própria implicação negociada é parte do modelo flexível vigente (que difunde os particularismos e a xenofobia no seio da classe operária). No Japão, o sindicalismo por empresa é parte de um sistema industrial que admite a coexistência nas grandes empresas de dois modelos o flexível e o de implicação negociada, na acepção de Lipietz. Só que, nesse caso, o segmento da classe operária discriminada e sub-remunerada são as mulheres e os imigrantes (por outro lado, hoje, começa a aprofundar-se a recessão e a perder velocidade de crescimento os próprios países capitalistas utilizados como exemplo de sucesso da "implicação negociada" no Japão e na Alemanha).
Lipietz é ambíguo em sua posição de defesa da "implicação negociada" (ou da "flexibilidade ofensiva" na acepção de Boyer). Apesar de insistir nesses êxitos capitalistas, afirma não defender a adoção de nenhuma destas propostas alternativas. Diz: "A proposta alternativa não é nem o modelo sueco, nem (ainda menos!) o modelo japonês." E ressalta o sentido tático de tal insistência: "Mas é essencial, quando se pretende ajudar a transformar a realidade, combinar o utopismo (nossos valores, nossa "bússola") com o realismo: a fria análise das possibilidades." E mais adiante deixa claro sua posição: "É preciso lutar para impor ao sistema reformas que o farão funcionar melhor, mas que, a prazo, podem questioná-lo." Ressalta que a "implicação negociada" coletiva (ele destaca o modelo "kalmariano") é um grande passo à frente20.
Mas, apesar de ressaltar a importância da "implicação negociada" envolver o conjunto dos trabalhadores assalariados, e não apenas uma aristocracia operária, Lipietz parece desconhecer, de forma ingênua, a lógica do capital e sua notável capacidade de diferenciar e segmentar a força de trabalho coletiva como forma social adequada à valorização do valor (com as implicações disto para a consciência operária).
IV.4 - Forma social e base material, o "ponto cego" da Teoria da Regulação
O modo particular de interpretar a crise capitalista contemporânea como decorrência da desaceleração dos ganhos de produtividade, ocasionada, em última instância, pelo esgotamento do paradigma taylorista de organização do trabalho (considerado, portanto, a base material do capitalismo contemporâneo), conduziu os teóricos da Regulação (particularmente Lipietz) a se concentrarem na busca incessante de novos modelos de organização do trabalho (e de relações salariais) capazes de restaurar a produtividade, recuperar o crescimento e permitir um novo modo de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo.
A crise capitalista contemporânea, portanto, seria superada pela adoção de uma nova base material, uma nova organização do processo produtivo, no sentido amplo, capaz de abolir a "implicação paradoxal" típica do taylorismo e implantar a "implicação negociada", flexível, na organização do trabalho. Modelo japonês, modelo alemão, modelo sueco seriam as novas formas materiais capazes de indicar a superação da crise capitalista, segundo os teóricos da Regulação.
De certo modo, no raciocínio de Lipietz, parece existir uma profunda incompreensão sobre a especificidade histórica do capitalismo moderno e aquilo que constitui o cerne da modernidade capitalista (indicado por Marx nos Grundrisse): a relação entre forma e matéria. Na verdade, o que molda a configuração societária contemporânea não é a base material, o processo produtivo-técnico, nem as relações salariais (sob a ótica da Teoria da Regulação), mas sim a forma social (o capital). É isto que distingue a produção capitalista de outros modos históricos de produção. Sob o modo de produção capitalista e não importa o tipo de regulação, se concorrencial ou monopolista , a forma social, o princípio da valorização do valor, é que se imprime no processo material. É a partir deste traço específico da historicidade capitalista, desta contradição em processo, que devemos explicar a crise contemporânea e seus desdobramentos particulares.
A partir de um certo nível de desenvolvimento, o sistema capitalista não pode expandir-se sem a instauração da revolução técnica "permanente" no interior de cada forma material. Como salientou Fausto: "Se o capital como forma é não só movimento incessante, mas movimento incessante em expansão, a forma material do capital se apresentará também como um movimento constante"21. Difundem-se hoje, sob as mais diversas formas, inovações flexíveis de organização do processo produtivo que, sob o acicate da revolução técnica "permanente" (a Terceira Revolução Tecnológica), parecem indicar a passagem para uma "nova realidade" societária. Entretanto, o que veio a ser denominado "pós-fordismo" é apenas expressão de novas formas materiais adequadas à valorização do capital (base material entendida não apenas como novas tecnologias, mas como novas formas institucionais), expressão da reposição "radical" da forma social (o capital) na matéria, cujo devir é manifestação necessária de um princípio de produção voltado para a valorização do valor.
Por isso, quando os teóricos da Regulação partem do processo produtivo capitalista, do esgotamento do paradigma taylorista de trabalho, para explicar a crise do capitalismo contemporâneo, cometem um grande equivoco não compreendem algo que faz parte da modernidade capitalista, ou seja, a derivação da base material a partir da forma social o capital. Não realizam esta articulação dialética entre forma e matéria e não compreendem o próprio movimento de constituição da sociabilidade capitalista contemporânea, contraditória, tensa e recorrente. Para eles, portanto, a crise do capital possui como fator de impulsão algo intrínseco à base material a organização "rígida" do trabalho, o taylorismo. Não consideram, portanto, o rebatimento da forma social o capital, sob a base, uma base que a rigor não é mais uma, mas está ou é revolução permanente, de um princípio de produção voltado para a valorização do valor.
IV.5 - Sob o fetiche do capital
Para finalizar, é necessária uma crítica metodológica, de caráter mais geral, à Teoria da Regulação. Em primeiro lugar, o que está subjacente nos escritos dos teóricos da Regulação (cuja maior exemplo é dado pelas análises de Boyer) é a aceitação submissa da perenidade do capital como relação social posta a serviço da valorização do valor. Em última análise, tal modo de pensamento social tende a expressar o "fetiche do capital". Por exemplo, no decorrer de sua obra, Boyer deixa transparecer a sua preocupação com a estabilidade macroeconômica e a unidade social do desenvolvimento capitalista. Ao descrever o que é essencial num "novo modo de desenvolvimento" (para o capitalismo), Boyer diz: "(...) estimular a retomada do crescimento econômico, criação de empregos e preservar o princípio de solidariedade.".2 O horizonte possível para o desenvolvimento social é, portanto, o capital, posto na condição de fetiche societário. Ele é o "mundo encantado" no interior do "mundo desencantado" (utilizando uma expressão de Fausto).
Apesar de Lipietz insistir que não defende a eternidade do capital (ao contrário, por exemplo, do seu "amigo" Gorz), em última análise suas idéias não fogem à regra do espírito intrínseco à Teoria da Regulação23. Para ele, por exemplo, o capitalismo só evolui "de compromisso em compromisso entre o capital e a classe operária."24. A partir daí, o trabalho assalariado (e o capital) tendem a tornar-se, nesta perspectiva, um fetiche perene. O que se modifica apenas é o modo de regulação desta implicação estranhada: ela deixa de ser paradoxal para se tornar negociada... Por isso, resta-nos perguntar se os teóricos da Regulação não tenderam a estar muito mais próximos de Durkheim do que de Marx.
Portanto, uma crítica geral (e epistemológica) à Teoria da Regulação poderia partir, primordialmente, dessa insuficiência dialética (própria da tradição escolástica francesa?), matriz dos impasses teóricos apontados por Francisco de Oliveira em seu prefácio crítico do livro Audácia Uma alternativa para o século XXI de Alain Lipietz. Quais são eles?
Em primeiro lugar, a incapacidade dos regulacionistas de assumir o "transformacionismo inerente ao marxismo" (ou o princípio ontológico da negação da negação). E qual o transformacionismo, na acepção de Oliveira, que o marxismo impõe? Diz ele: "O de que, a partir de seus pressupostos, e sob o acicate da dialética social, os próprios pressupostos sejam negados.".
No entanto, o que se percebe é que esse movimento de transformação nunca aparece em nenhuma obra da hoje vasta produção dos teóricos da Regulação. Como já observamos, em que resulta o esgotamento do compromisso fordista, para Lipietz, por exemplo? Num outro compromisso pós-fordista... e assim por diante. Ou como detecta Oliveira: "Em que dá o esgotamento de um modo de desenvolvimento? Em outro modo de desenvolvimento, com outra organização do trabalho, outro regime de acumulação, outro modo de regulação.". Enfim, para Oliveira, o resultado é bastante próximo do funcionalismo. Ou, noutras palavras, como já salientamos, na perenidade do capital, na tendência de reduzir (e desprezar) a dimensão da negação no processo de constituição do real histórico.
1 - BOYER, Robert. The Search for Labour Flexibility. Clarendon Press, 1988, p. 3.
2 - No ensaio The transformation of the capital-labor and wage formation in eight OECD countries during in the eighties, publicado em 1993, Boyer classificou diversos tipos nacionais (ou variantes) de fordismos: o Japão, configuraria o que ele denomina de "fordismo híbrido", na (ex) Alemanha Ocidental, teríamos um fordismo flexível ou "flex-fordismo", na Suécia, um "fordismo democrático", na Itália, um "fordismo retardatário e imperfeitamente realizado", na França, um "fordismo impulsionado pelo Estado", na Grã-Bretanha, um "fordismo falho ou defeituoso", enquanto que os Estados Unidos seriam o país do "fordismo genuíno" (Apud GUERRA, Cândido Ferreira. "O Fordismo, sua crise e o caso brasileiro". In: Cadernos do Cesit/UNICAMP, 1993).
3 - BOYER, Robert. The Search for Labour Market Flexibility, p. 212.
4 - Algumas análises de teóricos próximos à Teoria da Regulação, como os teóricos da Especialização Flexível, tendem a identificar a passagem para uma nova configuração social do capitalismo apenas como uma decorrência das transformações de natureza tecnológica nas normas de produção capitalista.
5 - BOYER, Robert. Op. cit., p. 6.
6 - Idem. Ibidem, p. 12.
7 - Idem. Ibidem, p. 199.
8 - Idem. Ibidem, p. 203.
9 - Idem. Ibidem, pp. 203-206.
10 - Idem. Ibidem, pp. 223-251.
11 - Idem. Ibidem, pp. 264-265.
12 - Idem. Ibidem, p. 252.
13 - Idem. Ibidem, p. 253.
14 - Idem. Ibidem, p. 257.
15 - Idem. Ibidem, p. 258.
16 - BRENNER, Robert e GLICK, Mark. "The Regulation Approach: Theory and History". In: New Left Review, 188, 1991, p. 93.
17 - Idem. Ibidem, p. 93.
18 - Entrevista com Alain LIPIETZ, intitulada "Verde que te quero verde", In: Teoria & Debate, 15, 1991, p. 67.
19 - BOYER, Robert. Op. cit., p. 256.
20 - LIPIETZ, Alain. Audácia Uma alternativa para o século XXI, p. 93.
21 - FAUSTO, Ruy. Marx Lógica & Política, tomo II. Ed. Brasiliense, 1987, p. 54.
22 - BOYER, Robert., Op. cit., p. 192.
23 - LIPIETZ, Alain. Audácia..., cit., p. 95.
24 - Entrevista com Alain LIPIETZ, cit., p. 65.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 6, Janeiro de 1996, tenha sido proveitosa e agradável.
São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©.
Retornar ao início da página
Clique aqui para acessar a Primeira Página da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para conhecer as Características da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo por Tomos da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo do Tomo 6 da Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar a Lista de Autores publicados pela Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar a Lista de Artigos e Ensaios publicados na Revista Práxis na Internet.
Clique aqui para acessar o Conteúdo por Assuntos da Revista Práxis na Internet.
Para contatar a Revista Práxis mande um e-mail para rvpraxis@gold.com.br
ou leia a Página de Endereços para Contatos.
Para contatar o WebMaster da Revista Práxis na Internet mande um e-mail para: wmpraxis@horizontes.net
|
|
Néliton Azevedo, Editor, WebMaster.
© Projeto Joaquim de Oliveira, 1998. All rights reserved.