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| A Cara do Brasil | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Maria Orlanda Pinassi
Maria_Orlanda_Pinassi@revistapraxis.cjb.net
Professora de Sociologia na UNESP de Marília, São Paulo, membro do coletivo de Sócios da Revista Práxis, colaboradora da revista Crítica Marxista, ex-editora da Revista Reforma Agrária.
A Conferência dos Divinos (1867) foi um dos muitos panfletos publicados para fazer troça das fusões partidárias e das alianças temporárias de adversários políticos, que se tornaram tão comuns desde a segunda metade do século XIX no Brasil. Bastava trocar o nome do antecessor referido na estrofe para o seu humor cáustico ganhar atualidade, mesmo depois de 130 anos de ensaios e experimentações políticas. Fatos ocorridos em Agosto de 1995 comprovam que a desfaçatez dessa prática política, já tradicionalmente combinatória, não é anacrônica e continua fazendo estragos.
Foi, também, justamente naquele mesmo mês de Agosto, que perdemos Florestan Fernandes. Ficaram, entretanto, as suas brilhantes contribuições para o entendimento daquilo que torna "ambíguos e vacilantes", "diluídos e débeis" os fatores e as condições histórico-sociais do nosso desenvolvimento, daquela indisposição perene de provocar rupturas. Florestan Fernandes nos revelou aspectos fundantes da mentalidade brasileira, sua essencialidade, em que alguns traços específicos não necessariamente desvios vêm sendo protagonizados por um de seus mais brilhantes alunos.
Em campos opostos, Florestan e Fernando Henrique Cardoso (FHC) cultivaram respeito mútuo, mas enquanto aquele nos lega persistência crítica, esse outro toma os rumos da cooptação e da resignação. Isso não é mera questão de forma, mas de conteúdo, cuja base se define, pela opção ideológica, pela visão de mundo que, há um bom tempo, os distingue. Partindo para os fatos mundanos, a retórica se afigura.
O desfecho do caso provocado pelo Banco Econômico da Bahia, mais do que mera casualidade, põe às claras uma certa essência do projeto neoliberal brasileiro, que não é do presidente da República, nem do senador Antônio Carlos Magalhães (ACM), mas das oportunidades e circunstâncias que operam sobre ele. Neste episódio, FHC representa o Fausto da contemporaneidade brasileira, enquanto que ACM o Mefisto que suas ambições merecem. Esse Fausto, que deseja ver liberadas as "nossas potencialidades produtivas desde que "combinadas com benefícios sociais", esbarra no tridente das oligarquias, ao assumir-se enquanto servo de uma realidade inelutavelmente prisioneira do que houve e ainda há de mais grotesco na nossa história.
O Brasil, sempre apto a aclimatar e reelaborar as tragédias modernas, atualiza seu pacto com a modernidade promíscua pelas mãos de FHC; não pode, porém, como jamais se pôde por aqui, prescindir da intermediação do passado nefasto, pedra angular da nossa forma material e espiritual de expressão burguesa.
No entanto, o caso Econômico é muito mais do que qualquer outro desmando com sentido regionalista, assim como o fato, mais do que sensação jornalística fartamente explorada como algo pontual, contextualizado, tem amplo sentido histórico. Além de envolver um grupo financeiro de alcance nacional, evidencia o quão deve ser corriqueira a remessa de valores para o exterior via bancos fictícios que "lavam" dólares e quão duvidoso se torna o processo de privatização promovido pelo Estado, já que parte significativa das ações da COPENE foram adquiridas exatamente por tal grupo. Ora, escândalos financeiros e corrupção não são privilégios do Brasil. Vejam-se os casos do Japão e da Inglaterra, por exemplo. São, no entanto, escandalosamente brasileiras as soluções arranjadas por aqui. Estatizar um banco de capital privado, saneá-lo através da sangria dos cofres públicos, parecem etapas que contradizem a marcha neoliberal. Isso não é nada. O grave é que, ao ser devolvido ao setor privado (provavelmente para os mesmos que o degeneraram) e acobertar triangulação escusa na compra de patrimônio público, o moral da história é que o Estado está, em verdade, pagando pelo que vendeu. Ou seja, os bobos somos nós. Essas, no entanto, não são anomalias, nem devem surpreender. É tão somente uma transparência, um resultado atualizado de velhas fórmulas baseadas em alianças e conciliações pelo alto, das "ações, reações, transações", conforme consagrou José Justiniano da Rocha em Duas Palavras acerca da Atualidade.
Essa ordem de coisas vem sendo reproduzida ipso facto pelo governo que aí está, independentemente do nome que se dá aos bois. Não importa também se o motivo da discórdia entre os poderes constituídos dos que põem a cabeça para fora às eminências pardas tenha sido o Econômico ou qualquer outro. Importa, sim, a forma pela qual vem sendo conduzido o seu desfecho. Ao que tudo indica, é grave uma situação que continua a curvar-se diante de hábitos e valores cultivados pelas elites políticas da nossa história. Prepotência senhorial, mandonismo, impulso afetivo, sentimento regionalista, desde a formação do Estado em 1822, são características metaforizadas pela arrogância acadêmica, pela elegância estrangeira, por métodos, regras e normas impessoais. Disso resulta a vontade indecisa, de que fala Florestan em A Revolução Burguesa no Brasil, cujos efeitos "dependiam da reprodução em larga escala do status quo ante". O convívio estreito entre passado e presente, sem o prevalecimento de um sobre o outro, forjou uma política que absorveu o liberalismo como pura ideologia, em flagrante abstração da realidade. Se, hoje, a fórmula é a mesma, por que haveria de ser diferente com o neoliberalismo?
Esse múltiplo, imbricado e composto de afirmação e negação cordial compõe um quadro de desequilíbrio social sem precedentes na história moderna. Somos muito mais ricos e muito mais miseráveis do que jamais fomos antes. Dizer, no entanto, de um intelectual da envergadura de FHC, que ele é tão somente a arrogância vaidosa e desavisada dos recalcitrantes perigos de uma aliança, que certamente não teve objetivos tão somente eleitorais, é subestimar a sua capacidade de participar ativa e conscientemente de um projeto bastante expressivo. É subestimar a sua capacidade de fazer uma leitura nada ingênua dessa desigualdade social. Se estivesse no Primeiro Mundo, muito provavelmente seus companheiros de política seriam menos truculentos e mais respeitosos com seu notório saber. No entanto, o sentido perverso, tomado por essa propalada sabedoria, está no fato de alugar-se a um projeto de inspiração neoliberal, mas que é brasileiro, temperado com dendê (e outros condimentos mais ou menos indigestos). Para além das suas pretensões, não consegue superar o sentimento continuísta nele contido, cuja parceria ele não pode negar. Seu projeto é o mesmo projeto de ACM, mas, por ser brasileiro, esse projeto é relativamente falso e relativamente verdadeiro. Neste sentido, FHC e ACM são lados opostos de uma mesma moeda. A hipótese de que seus interesses pudessem divergir, com toda a certeza, freqüentou tanto as bases do PSDB, como do PFL. Mas, o preço pago pelo fisiologismo é que ele emplaca antes as semelhanças do que as diferenças quanto às causas que abraça. A ilusão de que daí surgisse algo qualitativamente novo foi a de muitos que votaram nessa fusão indefinida: da massa manipulável aos muitos que inclusive tínhamos na conta de "bons conselheiros", de críticos dos arcaísmos brasileiros. Portanto, a idéia passada pela imprensa de que o doutor honoris causa paulista foi derrotado pelo sinhozinho baiano não contribui para compreender os fatos. Isso é falso na medida em que ambos estão comprometidos com algo que está para além dos seus próprios interesses imediatos. Esse algo se reveste da nossa insuperável dependência à economia mundial, para a qual pouco importam os meios que venham garantir a acumulação de riquezas.
A título de conclusão, gostaria de levantar uma ou duas questões que me vieram após a leitura de uma aula ministrada pelo presidente ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade de Coimbra, cuja versão sintetizada foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 27 de agosto de 1995. Se fosse analisá-lo de ponta a ponta, provavelmente precisaria de muito mais espaço do que aqui disponho. Saliento tão somente que, apesar do seu amplo saber acerca do que vieram a ser os campos da esquerda e da direita no Brasil e na América Latina ele faz uma didática digressão informativa a respeito , sua explicação para os dias de hoje é obnubilada não pelo cargo que ocupa, mas pelo enredamento ideológico que constrói e no qual está envolvido até o pescoço. É impressionante a qualidade que imprime à narrativa discursiva do poder. Não há nela mais desculpas esfarrapadas, mentiras ingênuas, conversas para boi dormir, aquele jeito brasileiro de ser cínico frente às tragédias. Os argumentos são fundados numa realidade "nua e crua" há, sim, desigualdade e injustiça social, há, sim, problemas institucionais ; afinal, "importante para o funcionamento da economia é não tanto a diferença entre ricos e pobres, entre capitalistas e assalariados, mas entre setores sociais organizados, que incluem importantes setores das classes trabalhadoras e médias, e setores não organizados" (Idem). Porém, com o apoio inestimável dos meios de comunicação, conseguiu, em poucos dias, uma performance irreparável ao derrotar a greve dos petroleiros, anulando, através dos instrumentos manipulatórios da mídia, todo o esforço de mobilização dessa categoria considerada uma das mais fortes em todo o país. Isso, ao mesmo tempo, anula ou modifica o conceito que até agora foi dado à organização de trabalhadores, porque, muito embora o seu prosaísmo negue, há, nesse seu projeto, uma prática que se evidencia na intenção de desmantelar o nexo da luta sindical.
Isso o afirma como personagem presidencial mais inteligente, mais elegante e mais polido do que seus antecessores, consciente de que a sua função tem sido a de promover a reintegração do Brasil na nova ordem mundial. No fundo, trata-se de administrar as graves crises internas e passá-las, ad referendum, à tutela da crise internacional contemporânea. Esse não é um presidente popular ou popularesco, como tantos outros que compuseram a galeria dos presidentes brasileiros. Ele é sério; sabe o que fala ao nos dar lições de como o Brasil pode safar-se, através de fórmulas globalizantes, do seu retrocesso crônico. Aí reside a sua tragédia porque, da mesma forma como os demais presidentes, lidera uma transitoriedade que jamais se consolida. Ao contrário do que sempre se acreditou, é mais do que hora de assumir que o nosso capitalismo, sem ser necessariamente atrasado, é, como sempre foi, contemporâneo de um sistema do qual é parte conduzida, mas inalienável.
Além do mais, o problema não se resolveria, como pretende seu escudeiro Gianotti, com o "realinhamento das esquerdas para empurrar o governo para o lado de uma política capaz de fomentar o desenvolvimento e a igualdade social". (Folha de São Paulo,20/8/95) Esse governo que aí está já fez sua opção ao aliar-se com o que há de mais retrógrado na sociedade brasileira, ao submeter-se às oligarquias prepotentes, ao reprimir a luta dos trabalhadores, ao implementar uma política econômica recessiva. Seu tempo de falar em desenvolvimento e justiça social, seu tempo de iludir já acabou. Resta a eles e somente a eles, conduzir o que ainda possa ser contornado. Às esquerdas é incumbida a tarefa de apontar, sim, seus equívocos e arbitrariedades, não no sentido de "empurrá-lo", mas para deixar claras as diferenças que os separam.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 6, Janeiro de 1996, tenha sido proveitosa e agradável.
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