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| Zumbi 300 AnosPalmares - a Comuna Negra do Brasil Escravista | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Mário Maestri
mariomaestri@revistapraxis.cjb.net
Doutor em História pelo Centro de História da África da Université Catholique de Louvain, UCL, Bélgica, professor de História do Brasil das Universidades de Caxias do Sul e Passo Fundo, membro do coletivo de sócios da Revista Práxis.
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No início do século dezessete, os colonos de Pernambuco viviam, no litoral, em engenhos, fazendas e povoações. No interior, no sul da capitania, encontrava-se uma região agreste, fértil, de clima ameno, de difícil acesso os Palmares. Com elevadas serras e densas matas, por décadas ela acoutou pequenos quilombos, como tantas outras paragens agrestes do Brasil escravista. A invasão holandesa e a resistência dos luso-pernambucanos permitiram que os cativos escapassem, numerosos, dos engenhos para os Palmares. Com o passar dos anos, a confederação dos quilombos de Palmares tornou-se a maior ameaça à ordem escravista luso-brasileira e a mais impressionante saga libertária dos trabalhadores americanos escravizados.
No início, os quilombos palmarinos não se diferenciaram dos existentes em outros pontos da Colônia. As técnicas produtivas eram rudimentares e a divisão social do trabalho muito limitada. Os mocambeiros viviam da agricultura, da caça, da pesca, da coleta. Técnicas artesanais africanas metalurgia do ferro, cerâmica, cestaria etc. eram adaptadas às matérias-primas da região. Os palmarinos não conheciam uma economia de abundância. Porém, em liberdade, viviam, como produtores independentes, condições gerais de existência muito superiores às possíveis nas plantações e engenhos escravistas.
Os maiores quilombos, com mil habitantes, tinham cabanas africanas, até três ruas e eram cercados por paliçadas e fossos. No centro das aldeias, ficavam as instalações comunitárias o conselho, o mercado, a forja, a cisterna ; nas proximidades, as plantações. Era grande a heterogeneidade étnica e cultural. Os angolanos eram abundantes; os iorubas, raros. Os palmarinos falariam uma mescla de português e de idiomas africanos e praticariam credos sincréticos afro-católicos.
As economias dos quilombos não eram complementares. As aldeias viviam independentemente. No início, não houve centralização política entre as diversas aldeias quilombolas. Eram comuns os contatos entre os quilombos e as vilas do litoral. Os mocambeiros fundavam as aldeias a uma distância das vilas que não comprometesse a liberdade conquistada e as trocas com os luso-brasileiros.
Desde fins do século dezesseis, os palmarinos causavam problemas aos escravistas. A primeira grande expedição contra eles foi organizada pelo governador-geral do Brasil, em 1602. Após meses na região, ela voltou afirmando ter destruído os quilombos. Nos anos seguintes, outras bandeiras penetraram os sertões, sem maiores resultados. Os palmarinos internavam-se nas matas, esperando que os escravistas abandonassem a região.
Com a invasão holandesa (1630), os quilombos acolheram milhares de fujões. Os ataques palmarinos aos engenhos sucediam-se, com tal freqüência, que os holandeses organizaram, em janeiro de 1644, uma forte expedição punitiva. Após diversos meses, ela regressou com alguns prisioneiros, dizendo ter destruído uma grande aldeia. Outras expedições foram organizadas, com os mesmos parcos resultados.
Em 1640, a guerra de Portugal contra a Espanha levou a um armistício com a Holanda, que reconhecia, nos fatos, o Brasil holandês. Em 1645, a ruptura dos senhores pernambucanos com os batavos ensejou uma violenta guerra de "libertação nacional", que permitiu novas e maciças fugas de cativos. Em 1654, quando, finalmente, os holandeses abandonaram Recife, as plantações estavam semidesertas e os Palmares regurgitavam de quilombolas.
A expulsão dos holandeses assinalava o fim da "idade de ouro" da produção açucareira pernambucana. A guerra destruíra engenhos e facilitara a fuga das escravarias. Com os holandeses, partiram os cristãos-novos luso-brasileiros com seus cativos e capitais. Eles estabeleceram-se nas Antilhas, contribuindo para o fim do quase-monopólio açucareiro brasileiro. A nova concorrência e os baixos preços internacionais do açúcar dificultavam a importação de cativos africanos. Os colonos voltaram os olhos para os Palmares. A sua destruição pacificaria a capitania e repovoaria os engenhos. A guerra palmarina ocuparia os negros, brasis e brancos pobres que tinham lutado contra os holandeses e não recebiam as recompensas prometidas.
Em fins de 1654, partiu contra os Palmares uma expedição organizada pelo governador de Pernambuco, de poucos frutos. Nos anos seguintes, outras colunas não obtiveram melhores resultados. Os plantadores reiniciaram a custosa importação de africanos. Entre os colonos e os palmarinos, estabeleceu-se uma espécie de paz armada. Em 1667, os palmarinos teriam começado a desferir ataques seguidos contra o litoral.
Em 1672, a administração de Pernambuco organizou uma forte expedição militar. Dividida em três colunas, ela convergiria, de pontos distintos, sobre os Palmares, onde fundaria uma fortificação permanente. As tropas foram desbaratadas pelos quilombolas, que também tripartiram suas forças. Foi a primeira vitória inquestionável dos palmarinos. Um palmarino portando o título de Zumbi capitaneava os exércitos negros.
O esforço militar defensivo ensejara a união dos quilombos em uma confederação. Nascia um rudimentar Estado negro formado pela reunião voluntária de produtores livres no coração do Brasil escravista. O chefe máximo da confederação portava o título de Ganga-Zumba. Laços familiares simbólicos faziam dos outros chefes quilombolas parentes de Ganga-Zumba. A confederação dos quilombos de Palmares teria trinta mil membros. População considerável, para a época.
Preocupava os colonos que a massa escrava possuísse um refúgio seguro e uma liderança capaz de capitanear uma sublevação geral. Nos fatos, Palmares constituía uma alternativa libertária à organização social escravista brasileira, ainda que conhecesse níveis de produtividade significativamente inferiores a ela. Décio Freitas, que melhor estudou os quilombos de Palmares (Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988), historiou esses fatos e registrou mais de quarenta expedições contra o Estado Negro, até o derradeiro combate, em 1694. A sanha contra Palmares registrava a incapacidade dos escravistas de coexistirem com uma organização de produtores livres e a coesão interna da formação palmarina.
O tema da destruição da confederação palmarina angustiava os escravistas. Eles abandonaram pruridos senhoriais e, diversas vezes, negociaram, com os chefes quilombolas, soluções políticas. Administração e colonos se dividiam em torno da alternativa: combater à morte os rebelados ou oferecer a liberdade àqueles que abandonassem os territórios palmarinos.
Um melhor conhecimento das regiões e a mobilização de maiores forças desequilibraram a guerra em favor dos colonos. Em fins dos anos 1670, Ganga-Zumba aceitou a anistia oferecida aos nascidos em Palmares. Os escravistas rompiam, finalmente, a unidade dos quilombolas. Ganga Zumba e alguns milhares de seguidores desceram das alturas dos Palmares e se estabeleceram nos baixios de Cucaú, a 32 quilômetros de Serinhaém.
Sob o comando de Zumbi, a maioria dos palmarinos negara-se a aceitar uma anistia que excluía os cativos fugidos. Em Cucaú, cresciam as divergências. A dissolução da comunidade liderada por Ganga-Zumba comprovou a certeza da alternativa liderada por Zumbi. Não havia possibilidade de convivência entre a produção escravista e uma sociedade de produtores livres.
Os palmarinos lançavam incessantes ataques. Restabelecido o impasse, organizou-se o maior exército colonial desde a expulsão dos holandeses. Nove mil combatentes, comandados por Domingos Jorge Velho, violento paulista preador de brasis, foram enviados contra Palmares. Os palmarinos optaram por desesperada resistência estática. O quilombo de Macaco foi cercado por imponentes paliçadas de madeira, reforçadas com pedra.
A expedição escravizadora partiu carregada de munições e alimentos. O cerco da cidadela deflagrou os combates. Após semanas de assédio, potentes canhões desestabilizaram o confronto. A artilharia luso-pernambucana assinalava o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais da formação escravista, no contexto de relações sociais de produção desumanizadoras. As tropas luso-pernambucanas constituíam uma avançada do império colonial português, peça significativa da divisão internacional do trabalho da época, nas matas palmarinas.
Zumbi comandou uma tentativa de abandono parcial das fortificações, na noite de cinco para seis de fevereiro de 1694. Descobertos, os palmarinos foram obrigados a combater de costas para um precipício, por onde rolaram centenas de guerreiros. O quilombo foi devassado pela manhã e o combate transformou-se em um massacre. Nas semanas seguintes, as tropas coloniais localizaram e destruíram os quilombos restantes. A expedição voltou dos Palmares com uns quinhentos prisioneiros.
Ferido em combate, Zumbi conseguira escapar. Seu esconderijo foi descoberto devido a uma delação. Morto à traição, no dia vinte de novembro de 1695, sua cabeça foi decepada e exposta, até apodrecer, espetada em um chuço, em Recife, como público exemplo. Nos últimos anos, a comunidade negra brasileira organizada comemora, no aniversário da morte de Zumbi, o Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Em 1995, celebram-se os trezentos anos da morte de Zumbi.
Nas Américas, o Brasil foi a região mais acabadamente escravista. Dois terços de nossa história se passaram sob a organização escravista. Nada compreenderemos de nossa civilização se desconhecermos as suas profundas raízes escravistas. A história da escravidão não constitui apenas uma página étnica da história brasileira.
A produção escravista colonial determinou que as classes sociais essenciais do Brasil pré-Abolição fossem senhores e trabalhadores escravizados. Por mais de três séculos, o escravismo foi o grande divisor de água de nosso passado. É geralmente esquecido que todo brasileiro que se encontra, objetiva ou subjetivamente, no campo do trabalho, constitui um descendente sociológico e eventualmente biológico do trabalhador escravizado.
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Castigo de Escravos no Pelourinho - Desenho de Debret
A história da escravidão é a proto-história do trabalho livre no Brasil. O trabalhador escravizado é o ancestral sociológico do trabalhador moderno e livre, seja qual for a sua cor. O trabalhador escravizado determinou nossa história, trabalhando e resistindo à escravidão. As formas de resistência servil foram variadas. Entre elas, destacaram-se a fuga e a concentração de produtores independentes em um ermo qualquer. Isto é, os quilombos e mocambos brasileiros.
Palmares não teria seu sentido exemplar se tivesse sido um acontecimento singular do passado brasileiro. Toda a América escravista conheceu, sempre, em maior ou menor número, cativos fujões. Era comum que eles se concentrassem, quando possível, em pequenas, médias e grandes comunidades de fujões. A confederação dos quilombos de Palmares foi apenas a mais importante concentração americana de trabalhadores escravizados que se libertaram do escravismo através da fuga.
O transcurso dos trezentos anos da morte de Zumbi e do fim da confederação dos quilombos dos Palmares ensejam a celebração da capacidade das classes subalternas de construírem, por mais de meio século, no contexto de ingentes dificuldades, no coração da América escravista, uma alternativa pluri-racial e libertária à despótica e desumana sociedade racista e de classes de então. Não é impertinente a analogia entre 1695 e 1871. A confederação dos quilombos dos palmares foi uma Comuna Negra libertária que resistiu, por longas décadas, à sanha escravista.
A história é uma leitura do passado com os olhos no presente. Nos dias de hoje, a evocação da memória de Palmares é inaceitável para a hegemonia ideológica e política conservadora vigente: o passado deve ensinar ao presente apenas conformismo e resignação à injustiça e à desigualdade sociais. É elucidativa e didática uma reflexão sobre a operação desenvolvida pelos órgãos e instituições policiadoras da ideologia nacional para neutralizarem os eventuais reflexos da evocação do transcurso do trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares.
Já em 1994, alguns balões de ensaio foram lançados. Perscrutava-se a melhor maneira de neutralizar e descaracterizar as comemorações. Alguns artigos foram escritos e pronunciamentos foram feitos sobre a pretensa existência de "escravidão" em Palmares. Pretendia-se sugerir que os palmarinos se vergavam, internamente, ao que combatiam, externamente. Que a exploração seria um componente essencial e natural à própria organização social.
Efetivamente, a documentação conhecida se refere a eventuais status de inferioridade civil de escravos capturados e levados, pela força, para Palmares, pelos quilombolas. Segundo parece, eles assumiriam direitos plenos, iguais aos dos que chegavam por vontade própria, quando levassem um outro cativo para Palmares.
O anestésico historiográfico antipalmarino mostrava-se inconsistente e de problemática ingestão. Era difícil identificar essa forma de servidão militar à escravidão econômica e colonial. De per si, a escravidão era relação econômica em absoluta contradição com Palmares. As cidadelas negras necessitavam manter uma alta coesão social diante dos escravistas. Apenas por serem uma sociedade de homens e mulheres livres os palmarinos conseguiam resistir diante da formação social escravista, econômica e militarmente mais poderosa.
Também se ventilou a possibilidade de reabilitar Ganga-Zumba, o conciliador, contra Zumbi, o destrambelhado xiita. Lá fora, já se fizera o mesmo, com ótimos resultados, com Lênin/Trotsky e Bukarin, em relação à Revolução Russa, com Robespierre/Marat e Danton, em relação a 1789. Essa era uma operação mediática igualmente difícil.
Por um lado, Zumbi era um aniversariante pouco questionável. Morreu resistindo, de armas na mão, diante dos destruidores dos Palmares. Pelo outro, Ganga-Zumba é uma figura de difícil reabilitação. Seu quilombismo de resultados levou sua gente a um impasse desastroso. A história não deixa espaço para questionamentos. Os que permaneceram em Palmares, resistindo, viveram, em melhores condições e por mais tempo do que os que desceram, desarmados, para Cucaú.
A solução ao impasse veio de uma direção inesperada. Havia alguns anos, o dinâmico líder gay Luiz Mott escrevera um breve artigo sugerindo a homossexualidade de Zumbi. Os argumentos probatórios eram quase inexistentes. Mais do que a comprovação histórica do fato, o artigo tinha objetivo didático. Provocar a cultura machista nacional, que dissocia arbitrariamente homossexualidade e coragem pessoal.
No artigo "Antropólogo: Zumbi era gay" (O Globo, 29/04/95), Mott elencou cinco "pistas" para sua tese. Não há registro de que Zumbi tivesse mulheres ou descendentes. Era conhecido pelo nome de sueca. Descendia dos yagas, de Angola, "onde a homossexualidade tinha numerosos adeptos". Zumbi teria sido criado por um sacerdote e, ao ser morto, foi degolado e teve o pênis "enfiado dentro da boca".
Os argumentos eram impertinentes. O não-registro de mulheres e filhos pode dever-se apenas ao silêncio documental. Na África Negra, guerreiros se separavam das mulheres por motivos rituais. Em Palmares, não se falava português castiço. Zumbi era título angolano, e não nome próprio. Sueca podia ser versão aportuguesada de vocábulo africano ou alcunha do último chefe palmarino. A origem angolana não determina orientação sexual. Os yagas eram uma associação militar, e não uma etnia. As populações angolanas tiveram seus homossexuais, como os teve toda a África Negra. De Angola, chegaram heterossexuais, em maior número, e homossexuais, em menor número.
O eventual fato de Zumbi ter sido criado por um padre não comprova nada. Havia clérigos coloniais sodomitas, femeeiros, amancebados e respeitadores do celibato. Finalmente, decapitar, arrancar o pênis e enfiá-lo na boca do inimigo era hábito guerreiro tupinambá, utilizado amplamente nos combates do Brasil colonial. O mercenário Ambrósio Richshoffer participou do ataque a Pernambuco e descreveu, em seu Diário, meio século antes da destruição dos Palmares, uma emboscada indígena: "Quando chegamos ao sítio da peleja, encontramos trinta mortos deitados em uma fileira, (...). Muitos dentre eles tinham as cabeças cortadas; outros, os membros cortados e metidos nas bocas (...)."
As "cinco pistas" de Luiz Mott não permitem "afirmar que o grande Zumbi dos Palmares" fosse "provavelmente (...) amante do mesmo sexo". Mesmo o surgimento de informação documental sobre mulher e descendência, não seria comprovação da heterossexualidade de Zumbi. Três séculos após sua morte, não temos documentação probatória cabal que permita inferir algo sobre a sua sexualidade, fosse ela qual fosse. E, possivelmente, jamais a teremos.
A resistência palmarina foi fenômeno multitudinário. A figura história de Zumbi deve ser compreendida nesse quadro maior. Em pouco ou nada sua sexualidade influenciou a dinâmica daqueles fatos. O próprio silêncio da documentação sobre ela nos sugere sua pouca importância para os acontecimentos.
Era de esperar-se que o artigo de Luiz Mott despertasse apenas as habituais polêmicas acadêmicas, um saudável debate sobre o tema "sexualidade e história" e o inevitável e passageiro aproveitamento malsão da imprensa sensacionalista. Porém, a inesperada oportunidade foi percebida pelos patrulheiros ideológicos neoliberais.
A grande imprensa escancarou-se para o debate sobre a sexualidade de Zumbi, acicatando um falso debate que abriu importante área de atrito entre facções do movimento gay e do movimento negro. Certamente, uma festejada lucratividade marginal de uma operação ideológica que almejava deslocar os holofotes da essência histórica de Palmares: a constituição de um Estado de produtores livres no coração da despótica sociedade escravista americana.
Ainda que resultado de uma instrumentação conservadora, não devemos fugir ao debate travado em torno da sexualidade de Zumbi. Alguns argumentos levantados contra a tese de Luiz Mott necessitam ser fraternalmente discutidos e elucidados. Nei Lopes, Assessor da presidência da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, escreveu um artigo sugerindo, na contramão das teses de Mott, e igualmente sem nenhuma documentação histórica pertinente, a absoluta macheza de Zumbi dos Palmares. Apoiando-se em uma bibliografia velha de meio século, em "Zumbi, muito por cima" (O Dia, 19/05/95), definiu "pederastia (...) lesbianismo (...) bestialismo" e "onanismo" como "vícios" e "relações sexuais contra a natureza", praticamente desconhecidos pelos bantos e africanos, até a chegada dos europeus degenerados.
Nei Lopes sugere gratuitamente que as comunidades palmarinas e quilombolas vivessem numa ortodoxia e mesmice sexual que contentaria um severo dominicano. A ciência tem comprovado que todas as sociedades possuem uma população hétero (majoritária) e homossexual (minoritária), de ambos os sexos. A documentação histórica registra homossexuais na América pré-colombiana, na África Negra Pré-Colonial, na Ásia, na Oceania. Fenômenos históricos essenciais à escravidão determinaram que, possivelmente, as comunidades negras escravizadas e sobretudo os quilombos possuíssem um número superior à "normalidade" de homossexuais masculinos.
Os estudos demográficos assinalam o desequilíbrio sexual do tráfico negreiro. Dos nove a quinze milhões de africanos desembarcados nas costas americanas, dois terços eram homens e apenas um terço, mulheres. Os senhores africanos envolvidos no tráfico vendiam os homens e conservam as mulheres, como esposas. As mulheres determinam a dinâmica demográfica e constituem, nas sociedades domésticas, a base do esforço agrícolas.
Havia carência relativa de mulheres livres na sociedade colonial. A falta de mulheres entre a população escravizada crescia com a monopolização das cativas. Os senhores as utilizavam nos trabalhos domésticos, como concubinas, como prostitutas e, até mesmo, como esposas. Em alguns plantéis escravistas, a escassez de mulheres alcançava níveis dramáticos para os heterossexuais, lembraria, agora com absoluta pertinência, o antropólogo e líder gay Luiz Mott!
O historiador gaúcho Euzébio Assumpção, em um minucioso levantamento demográfico, apontou taxas de masculinidade em torno de 85% nas charqueadas escravistas pelotenses, no Rio Grande do Sul. Sobretudo trabalhadores escravizados do sexo masculino fugiam para aquilombar-se. As fontes históricas registram que as taxas de masculinidade dos quilombos foram ainda mais altas do que as da sociedade escravista. Os cativos fugidos assaltavam fazendas e vilas para seqüestrarem mulheres. As comunidades quilombolas constituíram sociedades de produtores livres e independentes. Baseavam-se no consenso social e não possuíam e não podiam possuir órgãos e instituições sócio-repressivas permanentes. Dificilmente os quilombolas optariam pela castidade radical. Eles certamente estabeleceram estratégias sexuais alternativas.
As práticas sexuais nos quilombos e em Palmares são fenômenos históricos que devem ser analisados sem apriorismos ou reticências de qualquer tipo. Nada que é humano nos deve ser estranho. É crível que a poliandria, o onanismo, o bestialismo e o homossexualismo fossem práticas comuns e socialmente aceitas pelos quilombolas. Temos informações parciais e indiretas sobre tal possibilidade, para alguns casos. Num futuro próximo, com uma documentação mais abundante, os quilombos possivelmente darão igualmente lições sobre a aceitação democrática das opções individuais contingentes ou das tendências sexuais profundas dos seus participantes. Talvez, também nesse domínio, mostrem sua superioridade sobre a sociedade colonial escravista.
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Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, parte da homenagem da Revista Práxis aos 300 anos da morte de Zumbi, pertencente à Revista Práxis número 5, Outubro de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.
São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©.
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