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Poesia:

O Labirinto de Pedra-Canga

(A Memória do Anjo)

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Pedro Tierra
Pedro_Tierra@revistapraxis.cjb.net

Poeta. Publicou seis livros, sendo que dois em parceria com Dom Pedro Casaldáliga e musicados por Milton Nascimento (Missa da Terra Sem Males e Missa dos Quilombos).


 

I - O Anjo do Terror

Havia uma guerra distante nas cidades.
Natividade era demasiado longe dela.
Era Sertão sem eira nem beira,
determinado por outras ordenações de tempo e território.
Era Sertão, revel.
 
O estrangeiro era belo.
Irremediavelmente só.
E falava português com acento.
Emanava dele um brilho estranho,
separado das claridades ordinárias da tarde.
Uma luz que subjugava todos os olhares:
aqueles que foram condenados a amá-lo sem esperança
e aqueles, obscuros (de quem falo sem clemência...),
que assombrados pelo imperativo do destino
assumiram a tarefa de destrui-lo algumas horas depois.
 
Foi preso porque era estranho.
Porque não podia ser verdade:
era demasiado belo
para surgir naquele lugar abandonado do mundo,
às cinco horas da tarde.
Foi preso porque não fazia sentido.
Quem poderia decifrar a presença de um anjo
pousado nas ruas de Natividade,
às cinco da tarde,
num dia de dezembro de 1971?
 
Era contra a ordem.
Era sinal de que aquele dia
não deveria ter amanhecido.
Era um escândalo na monotonia da tarde.
Provocava alvoroço. (No peito das mulheres
aquela solidão não se explica)
 
Comovia as moças com seu abandono.
Libertava o riso entre os submissos.
(- Com essa cara...
só pode ser duas coisas:
ou é comunista, ou é francês...
- Como pode alguém voar até aqui
com pés deste tamanho?
Parecem os pés de Antônio Precatão...)
 
Era um erro, o anjo.
Desencontrado. Altivo.
Barba rala. Botas. Mochila.
E uma intolerável liberdade
naqueles olhos de varar
o coração das pessoas, desvendar
suas misérias, paixões, desenganos,
suas poucas gramas de coragem...
 
(- Mas pode ser apenas um jovem...
- Não é daqui. É chegante.
Estranho a este mundo.
- Um sonhador.
- É pura pólvora.
- Um estradeiro, caminhante.
A quem se deve a obrigação do abrigo.
- Traz na bagagem palavras de fogo.
- Mas ele ainda nem falou...
- Falará. E ai dos que se acercarem dele...)
 
Era um erro, o anjo.
Era insuportável.
A ordem foi impelida contra ele.
A severa ordem do medo.
Vestida pela voz de um soldado sertanejo e trêmulo.
 
Interpelado pela ordem,
entregou duas ou três cédulas de identidade,
talvez porque aos anjos não importasse
a utilização de qualquer uma delas...
 
II - O enforcado
 
Foi preso ao fim da tarde.
É certo que havia sol no momento da captura.
As mulheres lhe ofereceram uma rede e cordas,
para que não dormisse sobre o chão úmido,
naquele tempo de chuvas.
Aflitas.
Foram também para se verem nos seus olhos.
Recolher, quem sabe, um fragmento de luz,
de abandono e guardá-lo entre seus segredos.
Talvez tenham tido tempo de jogar queimada
em frente às janelas.
Para serem vistas e amadas pelo anjo,
que estava sereno e só.
Quadriculado pelas grades de madeira.
Por um momento veio vê-las com um sorriso
povoado de enigmas.
Depois, voltado para dentro,
mirava as cordas como se não soubesse
o que fazer com elas.
Como se nunca tivesse dormido numa rede.
Quem poderá decifrar a infância dos anjos...?
 
(...Entre estrelas e flores decepadas,
cobrei a luz que me alumia.
Entre relâmpagos, rebeliões
e a cabeça incandescente de Lúcifer,
voei horizontes de vertigem e delírios:
aquela cartografia anterior ao Dia da Criação.
Anterior à invenção do tempo e suas medidas.
O que busco neste lugar ermo,
senão a fratura por onde escapar
da eternidade que me persegue
e mergulhar na aventura do efêmero?
 
As cidades se levantaram.
Havia um vento
de rebeldia nos cabelos,
varrendo ruas e veias.
 
Era um tempo,
(se tempo algum
me é dado distinguir),
de sentimentos gerais.
 
Como pendão de cana,
que só faz sentido
quando em mar se junta.
 
E venta e brilha plumas de aço
contra o corte verde do canavial.
 
Inumerável, a multidão
golpeava com canções
a pedra imóvel dos quartéis.
 
Os olhos da multidão,
tão agudos
quanto o brilho das baionetas.
 
O que fazer, senão
oferecer meu ombro ao ombro
que avança sobre a rua e sonha?
 
O que fazer, senão
oferecer minhas mãos para empunhar
o molotov e deter a cavalaria?
 
O que fazer, senão emprestar
minha garganta para a canção
ou o grito no centro da praça?
 
O que fazer, senão
convocar o tumulto?
 
E se, por milagre, for possível
construir neste lugar
o confuso sonho de liberdade
e partilha que inunda os olhos
dessas crianças?
 
Que espécie de desesperada esperança
aquela que nutre a palavra
e o gesto desses anjos incendiários?
De que jazidas de esmeralda
líquida a extraem?
 
E quando a algum deles recorro
e indago,
o que recolho é que não importa
o porto,
mas a paixão de navegar...)
 
Afonso, o soldado, deixara-lhe cigarros e fósforos.
Contabilizou, cuidadoso, cada palito, cada cigarro,
como alguém que já cumprira pena em algum lugar.
A cela: grande. Sombria, apesar das paredes brancas.
Chão de ladrilhos,
grades de madeira escura,
escurecidas por muitas medidas de tempo e silêncio.
Voltadas para a rua.
A cidade inteira sabia que o anjo fora preso.
Sabia e vigiava.
Até as pedras.
Alta e sombria, a cela.
Cruzada de fora a fora por um pesado travessão,
de aroeira, talvez.
Inatingível para a fuga ou para a morte.
Aqui, o rigoroso calendário da Terra
regirando seus azuis sobre os abismos
da sombra e das constelações, faz-se vago.
Dissolve aquela noite na memória dos que o amaram
e dos que buscam, determinados,
submergi-lo nos desvãos do esquecimento.
A memória sucumbe.
A palavra deriva, sem norte.
Passados tantos anos, a palavra naufraga.
É faca sem gume.
Derrotada pela ferrugem do olvido.
Há um vazio de tempo, contraditório.
Afonso e Pedrão, o delegado, afirmam
que o anjo anoiteceu e não amanheceu.
As moças – hoje senhoras golpeadas
pela misteriosa beleza do anjo –
recordam vagamente que ele atravessou
mais de uma noite
à espera da morte.
 
Não há notícias de interrogatórios.
De sevícias.
Não houve gritos nem testemunhas.
Foi impossível saber se os interrogadores,
se os agentes superiores da ordem o encontraram vivo.
O guarda deixara seu posto por algum tempo,
para cumprir devoção de condolências
na sentinela do coronel,
morto ilustre...
 
Amanheceu suspenso no ar por uma corda
atada ao pescoço.
Só um anjo, golpeado pela desgraça
ou pela melancolia eterna
seria capaz de voar silencioso
até ao travessão e lançar-se
para a morte, sem deixar vestígio...
 
Assim suspenso parecia ainda mais alto.
O rosto escurecido pela morte
anunciando a aridez de desertos incomunicáveis.
Alguém fez alusão a duas ou três palavras
inscritas com sangue na parede branca.
Ninguém, ao que se sabe, aventurou-se
a decifrar o que diziam.
 
III - O enterro
 
O coronel, idoso, morrera na madrugada.
Todos cumpriram o dever de reverenciá-lo.
Até o guarda, carcereiro do anjo,
foi cumprir a devoção para abreviar de algum modo
a solidão da vigília.
O corpo do coronel está exposto,
banhado com água de cheiro,
guarnecido com flores,
dentro de uma urna de madeira de lei,
chorado em silêncio, com compostura.
Aqui é sertão. Assim se trata a dor.
Cercada.
Sem derramar da vasilha.
 
Quem haveria de cuidar do corpo do anjo?
Quem ousaria desafiar o terror?
Os imperativos do medo, da ordem?
Quem poderia transitar entre os espaços da ordem
vigiados por todos os olhares
e os obscuros reinos da paixão?
As mulheres que lhe ofereceram a rede para o repouso
e as cordas com que se lançou para a morte,
vieram banhá-lo, tocá-lo,
conhecer-lhe a nudez absoluta,
já fria e ainda mais bela,
como se aos anjos a morte poupasse a rigidez.
Descido da corda,
dobrado,
sobre o chão de ladrilhos.
 
Uma delas recolhe a cabeça ao colo.
Penteia com dedos de medo e ternura,
os cabelos do anjo.
Um peso, um calor, um aperto, uma agonia
ardendo contra os seios.
(Até que a morte a converta em cinzas...)
Outra, reclinada sobre o corpo,
abre um a um
os botões da camisa.
Sob os dedos trêmulos, o algodão
que um dia foi branco,
vai revelando o peito magro, o abandono do anjo,
os pêlos ralos entre os mamilos,
a pele morena, curtida,
como convém aos anjos extraviados
sob o sol dos trópicos e dos cinco sentidos...
parece adivinhar o toque
dos dedos demorando-se entre os botões,
a pluma, os poros do torso, o arrepio
sugerindo débeis vestígios de vida...
 
A terceira, a febre nos olhos alumiando
(a luz de Caravaggio...)
a sombra da cela,
as mãos buscando incertas,
aflitas,
pela cintura, os quadris, o ventre do anjo
protegido pelo brim das calças
decifrar uma verdade antiga:
(...Aos anjos lhes dera asas
para o vôo e a vertigem,
mas lhes roubara eternamente o gozo,
o mel da paixão.
Aos humanos, negara-lhes asas
para o vôo,
mas lhes acendera no sangue
a voragem incandescente do amor
e do delírio.
Nos olhos dela adivinho o ventre do anjo:
luminoso deserto...)
 
Está nu.
Pálido. Frágil.
Abandonado ao banho minucioso.
Os olhos cerrados não iluminam
o rosto arroxeado,
as marcas da corda no pescoço.
As axilas, os braços longos,
o ventre deserto e luminoso,
as coxas, os pés que palmilharam
outras eternidades exalam
ao toque dos panos úmidos
e das lágrimas
um impossível perfume
de estrelas maceradas.
Depois,
vesti-lo como a um menino.
Com roupas lavadas,
humildes,
talvez menores do que ele...
 
Elas cuidaram do corpo e, quem sabe,
dos abismos da alma do anjo.
Desafiaram a ordem, o medo,
encomendaram um caixão de madeira ordinária
coberto de pano roxo,
cercaram-no de flores,
(o cerrado é generoso em flores...)
Choraram por ele.
Se não elas, quem choraria sobre o corpo do anjo?
Choraram por ele
diante dos olhos assombrados da cidade.
 
Seguiu o mesmo cortejo do Coronel.
De outro modo, naquela cidade do medo
não haveria cortejo para o anjo.
Quem suspenderia a alça do caixão?
Só as moças e sua paixão sabem
que o corpo do anjo não pesa:
leve corpo de nuvem.
 
Foram sepultados no mesmo cemitério.
O Coronel no túmulo da família.
O anjo em cova rasa,
sob uma cruz de madeira tosca.
Uma cruz de vinhático,
sem lavrar, recorda o coveiro.
Ao anjo, deram-lhe o nome de João Silvino Lopes,
uma de suas identidades terrenas,
para que não sucumbisse aos vermes da terra
sem nome algum
e assim se registrasse no livro dos óbitos.
 
IV - O olvido
 
Dois dias depois do enterro do anjo,
apresentou-se uma rachadura na rua principal.
O cascalho abriu-se.
Seixos arredondados rolaram pro centro da terra,
talvez buscando agasalho,
prevenindo-se contra possíveis tempestades.
A rachadura separou as casas,
dividiu as pessoas.
Apartou a lembrança,
do esquecimento.
 
Na mão direita da rua, as janelas, o rosto,
os olhos assombrados das casas
– e das pessoas... –
foram adquirindo subitamente,
como se acometidos por moléstia contagiosa,
um tom devastado de cinzas.
Perderam toda a nitidez:
retrato antigo na parede,
descolorido pela voracidade da luz.
 
Ao amanhecer, os espelhos negavam o rosto,
o brilho dos olhos, a lembrança do dia de ontem.
Só lhes retribuía um inexplicável sentimento de medo
– por que alimentar uma estirpe de medos,
se eram cúmplices da ordem
no metódico exercício de esquecer? –
e um contorno difuso de culpas,
como areais varridos durante a noite.
Durante anos seguidos de noite... até dissipar-se.
 
Na mão esquerda da rua,
as mulheres que ampararam o corpo do anjo
e lhe deram sepultura,
cumpriam responder aos inquéritos da ordem.
De onde viera o anjo.
Os caminhos e descaminhos do anjo.
O destino que o anjo não cumprira.
Mergulharam nos rios do medo e da lembrança.
Aqui o medo não é miragem.
Retrato desbotado na parede.
Deste lado da rua, o medo se mede em suor,
em mãos trêmulas,
ouvidos desesperados diante do grito.
Em terror.
 
De todo modo, era inútil inquirir,
gritar, ameaçar com os horrores da tortura
e do "desaparecimento".
Nenhuma daquelas mulheres,
mesmo subjugada pelo medo,
saberia indicar os caminhos
e o destino do anjo.
O anjo era sem explicação.
 
- Cuidamos do corpo por caridade.
Para que sobre este lugar não recaísse a maldição
de mortos sem sepultura.
 
O anjo não cabia na pauta dos inquéritos.
Exorbitava.
Pousava fora da compreensão da ordem.
O anjo feriu com sua espada de fogo
o lado esquerdo da rua.
Não fecundou ninguém.
- Atravessou nossas vidas por algumas horas.
Definitivo como uma bênção ou uma maldição.
Feriu o lado esquerdo da ordem.
A memória e seus labirintos.
O lado esquerdo do peito.
O coração de quantos naqueles dias
se encontravam desarmados,
capazes de amar o imprevisto e o desconhecido.
Amar o obscuro.
O que não tinha nome,
o que só trazia um nome suposto.
As mulheres feridas pelo anjo
e os oprimidos de Natividade
– quem saberá por que razões... –
guardaram sua passagem como um cristal.
O vértice de luz com que a memória retalha
a ferrugem do tempo,
essa teimosa vontade de esquecer.
 
V - O labirinto de Pedra-Canga
 
Os labirintos se governam.
Recusam desenhos prévios.
Geram sua própria determinação.
Pedra sobre pedra se constróem
ou se desmancham movidos por mãos humanas
ou assombrações.
 
Sob o sol, varado pelas claridades e pelo fogo,
entre sempre pela esquerda
e percorra o labirinto de Pedra-Canga.
Nichos, recantos, imagens.
A pedra-mãe.
Festa de cores e máscaras.
Quem saberá que força move
as mãos negras de tia Romana,
descendentes de luas, de deuses assírios,
de planetas clandestinos?
O labirinto não é apenas o espaço cingido
pelas pedras do sertão.
É construção de memória e esquecimento.
É outra medida de tempo, de algum modo, intemporal.
Um tempo que não se conta, digital.
Irredutível à exatidão.
Sutil.
Sequer a areia antiga das ampulhetas,
evadindo-se no contorno infinito do vidro,
será capaz de capturá-lo.
De discernir seus desvãos.
 
O esquecimento tem chaves.
A memória tem outras.
Terá alguma chave este labirinto de Pedra-Canga?
Que desígnios revelará?
E se, no silêncio destas pobres pedras,
(tão distantes do mármore...)
deste labirinto singelo e comovedor,
estiverem inscritas as noites e os dias de Natividade?
Tudo o que ocorreu:
a memória e o olvido da cidade?
A coragem e o medo?
A coragem das mulheres que acolheram e amaram o anjo
e a irremediável covardia dos funcionários da vida,
dos que não cumpriram além do expediente
que a vida lhes destinou?
Dos que foram servis diante da ordem
e arrogantes com os que tomaram o partido do anjo.
(os que empreenderam a louca aventura
de atravessar os abismos da rua principal,
a fratura entre olvido e memória?)
 
E se, em cada um destes corredores de Pedra-Canga,
eu estiver pisando as pequenas e as grandes traições
dos que mataram o único anjo que algum dia,
entre todos os dias de sua eternidade,
dispôs-se a pousar sobre Natividade?
E dos que buscaram, em vão, encobrir sua morte?
Dos escravos do medo?
Dos filhos do silêncio?
Dos miseráveis
que se dedicaram a amarelar,
a desbotar a memória da passagem do anjo?
O fio de algodão fiado em fuso
e coxa reluzente de negra
só indica os passos que já cumpri.
De nada vale para avançar.
É apenas um laço tênue
entre a vontade de compreender,
de alcançar as chaves
ou beber a água do discernimento
e o improvável desejo de retornar.
 
E se avanço pelos corredores,
encontrarei a pedra que guarda
a noite da morte do anjo?
Terei nas mãos a chave para decifrá-la?
Ainda me restará alguma noção de justiça
depois do que vivi,
passados vinte anos?
Ou o que terei daqui por diante
serão apenas as premonições de tia Romana,
minuciosas, desenhadas sobre o papel
ou construídas em Pedra-Canga,
os passos que ainda não foram cumpridos,
as hecatombes, o juízo final,
a paz assegurada pela força inexplicável
que determina o contorno do labirinto
e o mover perpétuo de suas linhas,
seus corredores, seus lugares santos?
 
Percorro no labirinto o passado
de medos, misérias, loucuras de Natividade,
ou já piso num tempo que se antecipa
diante dos meus olhos céticos,
gastos pelos holofotes das câmaras
que sepultaram durante anos
silêncio e gritos?
 
VI - O enterro do vazio
 
Faiscar nome de anjo é tarefa de delirantes.
Dez anos depois do silêncio.
Dez anos depois que os rios do medo
submergiram a memória,
munidos de um retrato do anjo,
visitamos os lábios devastados das mulheres.
E só os olhos ainda gritavam a presença do anjo.
Apenas a febre denunciava que aquele
entre duas mulheres, no retrato, era ele.
As palavras deixadas na parede desapareceram.
As cordas, a rede.
As horas com que se mediu sua passagem por aqui
se evadiram.
Mas é ele.
Como foi possível capturar sua beleza
neste retrato acidental, prosaico?
 
O cartório, cauteloso,
deu o primeiro sinal visível
da passagem do anjo: o óbito.
Passou por aqui um anjo vivo.
E foi assassinado porque não deu explicações.
Assassinado? Não. Um suicida.
(Abre-se, pela palavra, no labirinto, outro corredor...)
Um suicida. Como devem ser todos os anjos extraviados.
Alguém se atreve a explicar por que diabos
um anjo viria parar aqui?
Pousar sob o arco inútil da igreja dos escravos?
(Um arco interrompido, em maio de 1888,
porque os negros se julgaram libertos
e seus deuses libertados com eles.
Determinaram que não haveria mais igreja ali.
E o arco guarda uma igreja que não há...)
 
O cartório expediu a certidão de óbito,
apresentando o anjo sob o nome de João Silvino Lopes,
uma de suas identidades terrenas.
Quantos nomes vestirá um anjo durante sua eternidade?
O que fazer com este nome?
E, ademais, um nome suposto?
As teias do medo envolviam as pessoas no seu casulo.
Os rios do medo inundavam as pessoas de silêncio
ou de palavras mortas.
Só os olhos incandescentes das mulheres
ainda gritavam a passagem do anjo.
 
Durante vinte anos palmilhamos o labirinto.
Buscando os ossos.
Encontramos o Campo Santo.
A cruz de vinhático,
como quem encontra uma chave do labirinto.
A cruz de vinhático não era mais uma cruz.
Era uma haste apenas, sem lavrar.
Mas não havia ossos.
Por mais fundo que se revolvesse a terra.
A memória. Nossas paixões.
Os anjos não têm ossos.
São da matéria do vôo.
Embora, na morte, as mulheres tenham
apalpado a nua humanidade do anjo.
A morte lhe dera pele, músculos, abandono.
E uma vaga noção do efêmero.
 
Voltamos de mãos vazias.
Vazio o coração.
Apenas o nome decifrado.
Queimado com fogo no registro dos óbitos:
Rui Carlos Vieira Berbert.
O labirinto nunca se entrega por inteiro.
O que fazer agora com um anjo
de quem só nos resta o nome?
Os anjos não têm filhos.
Para não contrariar sua eternidade.
A quem entregar o anjo?
Meu coração acompanha o cortejo.
E, tão longe de mim,
milhares de sonhos arquivados se dissolvem.
Um fio de esperança – que talvez,
passados vinte anos,
ainda habitasse o peito dos anciãos que geraram o anjo –
se parte.
Por isso é preciso flores.
Vamos sepultar o anjo mais uma vez.
Agora entre os seus.
Meu coração se curva e busca
a face do anjo no ataúde.
Mas só encontro flores.
A face do anjo não se oferece aos meus olhos.
Aos olhos do meu país.
Aqui o labirinto abre mais um corredor.
Interminável?
Assim se enterram os anjos.
Meu coração testemunha
o enterro do vazio.
 
VII - A pedra da memória
 
O anjo terá sido homem?
Que homem terá sido esse anjo,
a quem o sonho conferiu asas invisíveis
aos olhos da ordem?
Que homem terá sido esse anjo encarcerado,
capaz de iludir cadeias,
ainda que pela porta da morte,
derrotar o medo, inventar um gesto de liberdade
nas mãos aflitas das filhas do povo?
 
Como se apartasse das pedras
desses muros de Pedra-Canga,
a voz de tia Romana, baixa, pausada,
anuncia-me: eu soube, desde sempre,
desde outras idades, outras medidas de tempo,
que um dia você, peregrino, aportaria aqui.
Em busca dos ossos.
 
Estremeço. Vinte anos depois,
estarei diante da pedra que guarda
a noite da morte do anjo?
Ou a voz de tia Romana me ilude os ouvidos?
É apenas a brincadeira dos ventos
nos corredores do labirinto?
Inquiro as pedras do muro que me cerca.
O anjo terá sido homem?
O que dizia o sangue das palavras?
Apenas uma alusão imprecisa à Liberdade que perseguia...
As mãos do olvido,
a areia invisível do tempo,
lixaram a parede.
 
Acaso sangram os anjos?
Sangue recende à vida.
É da natureza dos rios, correnteza.
É contingência dos humanos e dos bichos,
estranho à condição dos anjos.
O que vi nos olhos daquela mulher
foi um ventre deserto e luminoso
ou a espiga dourada e terna,
misteriosa promessa de gozo?
 
Houve gritos? Gemidos? Terror?
O corpo dobrado como quem quisesse,
desamparado,
menino,
regressar ao ventre da dor?
Era noite de cegos irremediáveis.
Era carvão.
Todas as velas migraram
para a sentinela do coronel.
As estrelas também.
Vultos. Cordas. Força. Ruídos surdos. Suor.
Rufar de asas. Golpes. Sangue. Estalo.
Correr de corda no travessão.
Pêndulo.
Um corpo pendular suspenso na madrugada...
 
O labirinto nunca se entrega por inteiro.
Recusa desvendar a matéria dos anjos.
Decifrar a dor dessa noite de algemas e facas
e golpes e vultos e o vôo desse corpo
na ponta da corda...
Tenho nas mãos a pedra da memória.
Imperfeita.
Aqui, diante da pedra, sou eu e sou o outro,
dilacerado pelos passos que cumpri. Pela busca.
Pelas armadilhas deste labirinto
que não se esgota em mim
ou na geração de anjos incendiários.
 
O que faço com esta pedra
queimando minhas mãos?
 
Onde deposito esta pedra-chave
no mosaico do rosto
sem desenho prévio,
deste povo de areia
e ventos?
 
Com que pedras, sonhos, vontades,
com que mãos vamos reinventar
a imperfeita verdade
de nossas vidas?
A pedra da memória sorri enigmas
como quem domina o labirinto da história
e me interroga.

Pedro Tierra

Goiânia, Setembro de 1993, vinte e dois anos depois.


Caro Leitor, esperamos que a leitura desta Poesia, pertencente à Revista Práxis número 5, Outubro de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.

São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©.


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