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América Latina no Limiar do Ano Dois Mil
Ainda o Colonialismo

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Werner Altmann
Werner_Altmann@revistapraxis.cjb.net

Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e membro do coletivo de sócios da Revista Práxis.


O descobrimento da América, em 1492, abriu caminho para o estabelecimento, na América Latina, de uma civilização monodimensional, que se estendeu pelos tempos afora como uma totalidade intransigente e destrutiva. Nesse sentido, Leopoldo Zea ressalta a destruição sistemática de povos e recursos considerados selvagens. Segundo ele, a América Latina sofreu a "civilização não como uma forma de incorporar a outros povos (no sentido da tradicional incorporação da chamada barbárie à civilização) mas como uma forma de dominar a natureza, e com isso, seres a quem a humanidade está vetada"1.

Implementou-se, a partir de então, um sistema de exploração mundial que excluiria a grande maioria da humanidade dos benefícios de suas maiores conquistas tecnológicas e materiais. Para isso, redimensionou-se a escravidão, dos indígenas inicialmente e, a seguir, dos negros africanos, violentamente arrancados de sua terra natal.

Os três séculos da etapa colonial foram superados no início do século XIX pela Revolução Independentista, movimento inscrito no quadro geral das revoluções burguesas. Nela, as incipientes e débeis burguesias latino-americanas NÃO conseguiram, no entanto, impor-se hegemonicamente ao movimento como um todo. O resultado foi a manutenção da dependência em relação às metrópoles e a concretização de um Estado Nacional desfigurado à testa do neocolonialismo que persistiria daí pôr diante. O novo tipo de dependência desembocou, no início do século XX (depois do estabelecimento de uma nova divisão internacional do trabalho e com a emergência do capitalismo em terras norte-americanas) no imperialismo fundamentado essencialmente na exportação de capital.

No âmbito do governo norte-americano, na década de 1980, um novo grupo (ou melhor, a "Nova Direita"), que já havia se apossado do Partido Republicano, chegou ao poder com Ronald Reagan. A política dos Direitos Humanos de Jimmy Carter foi, então, de imediato, substituída pelo "realismo pragmático" ou "pragmatismo agressivo", que caracterizaria o governo Reagan e também o de seu sucessor, George Bush. A "Nova Direita", assim, já nada tinha a ver com o tradicional conservadorismo que atuava no marco da legalidade do regime político americano. Ela se caracterizava pela ausência de contradições com esquemas extralegais e até com grupos marginais da sociedade norte-americana, alguns dos quais, inclusive, participaram de forma efetiva do próprio financiamento da campanha eleitoral.

A partir de então, observar-se-ia, com relação à América Latina, uma política externa visando a um aplanamento do terreno, um enquadramento político e econômico, um nivelamento continental, o que implicava, em certa medida, até mesmo o desaparecimento das fronteiras. E a prática dessa política externa emergiria pôr meio de um intervencionismo de extrema agressividade.

No início da década, a vitória da revolução Nicaragüense e o crescimento da luta popular-revolucionária em El Salvador colocaram em xeque a auto-suficiência do imperialismo, cujas respostas foram o bloqueio econômico e até mesmo a efetiva intervenção militar. Mas uma invasão concreta, sem subterfúgios, acabou ocorrendo em Granada (l983), transformada em laboratório de ensaio para uma eventual intervenção na Nicarágua. A invasão perpetrada em Granada foi certamente a mais brutal de que se tem notícia, pois executada num país minúsculo (344 km quadrados) e com escassa população (110 mil habitantes), situado na periferia mais atrasada do Império, sem qualquer embrião industrial (a classe operária era constituída de algumas centenas de pessoas), com uma agricultura de plantation atrasadíssima (a noz-moscada é o principal produto de exportação) e, pôr isso mesmo, com o triplo de sua população emigrada para os EUA, Grã-Bretanha e outras ilhas do Caribe. Granada revelava, no entanto, em princípios da década de 1980, com o movimento Nova Jóia (New Jewel Movement) e o governo de Maurice Bishop, um processo político que se encaminhava para a emancipação nacional. Todavia, e apesar de seu sucesso como esmagamento do processo político democrático granadino, a invasão mostrou dificuldades evidentes, e o maior império do mundo levou uma semana para completar a intervenção. O caráter delinqüencial da ação ficou evidenciado na proibição (nunca antes ocorrida) da cobertura jornalística da invasão, o que se repetiu depois na intervenção de l989, no Panamá, e na posterior guerra contra o Iraque.

Já no episódio da Guerra das Malvinas (l982), houve, a rigor, uma intervenção provocada, em grande medida, pela ingenuidade aventureira dos militares argentinos, os quais imaginaram que, num confronto com a Grã-Bretanha, os EUA tomariam o seu partido contra os interesses da potência industrial envolvida na questão, em nome do Tratado Interamericano de assistência Recíproca (TIAR), tantas vezes invocado para justificar suas intervenções no continente. E o apoio norte-americano à Grã-Bretanha revelou-se decisivo: seus satélites mostraram a posição exata dos barcos argentinos, auxiliando a pontaria perfeita dos mísseis ingleses, o que definiu a guerra a seu favor e permitiu um desfecho rápido para o conflito. O erro fundamental de avaliação dos militares argentinos partiu da crença absoluta na retórica ideológica da aliança americana, como se houvesse efetivamente interesses comuns entre a maior potência do planeta e as periféricas nações latino-americanas. O equívoco básico estava em não perceber que à retórica ideológica se sobrepunham os interesses e necessidades do capital.

Outras intervenções ocorreram ainda em Honduras, de cujo território a Revolução Sandinista foi intensamente fustigada, em El Salvador, onde a intervenção impediu a vitória do movimento popular, e no Panamá, onde, de forma absolutamente inusitada, o Comandante da Guarda Nacional foi caçado em pleno território nacional e levado para a prisão na Flórida. Ainda na mesma linha do "pragmatismo agressivo", a ilha de Cuba continua sendo, ainda hoje, submetida a pressões brutais com o objetivo de sufocar a revolução.

Ademais, no ano de l992, uma decisão inédita da Suprema Corte dos EUA autorizou o governo norte-americano a capturar adversários em qualquer parte do mundo: isto significava que, pela primeira vez na História Mundial, declarava-se, de forma unilateral, a dissolução das fronteiras nacionais. Significava, ainda, uma justificativa, a posteriori, da captura de Manuel Antonio Noriega e de sua condenação a quarenta anos de reclusão, o que eqüivalia, obviamente, à prisão perpétua. Isto evidenciava a mais absoluta agressão a todos os princípios do direito internacional, mormente considerando-se que até hoje a imprensa está proibida de entrevistar o ex-mandatário panamenho.

Pôr outro lado, nas nações de maior desenvolvimento de suas forças produtivas, como o Brasil, a Argentina e o México, podia-se observar um "direcionamento" político. Muitas dessas nações, saídas de ditaduras militares, vivem agora sob regimes legitimados pelo voto. O financiamento vultoso das eleições, muitas delas fraudulentas, se insere no marco deste "direcionamento".

A situação político-institucional destas nações revela, de um modo geral, a existência de um vácuo político pós-autoritarismo, que a crise do projeto neoliberal e sua retórica fazem apenas agravar. Todos esses países estão afogados pela abismal dívida externa, que é, ao mesmo tempo, pôr mais paradoxal que possa parecer inicialmente, o fator, hoje, pôr excelência da possibilidade de aproximação continental. Para os setores dominantes, a saída recrudescedora do neocolonialismo persiste como única possibilidade vislumbrada para a manutenção de sua dominação setorializada. Pôr outro lado, o desaparecimento do socialismo como horizonte político – e, consequentemente, da guerra fria – dá-lhes força de ação.

O governo norte-americano, isto é, a "Nova Direita", tinha, então, pôr meio desse tipo de política com relação à América Latina, acionado um processo de nivelamento em termos de enquadramento político e econômico, para incorporá-la, de forma crescentemente homogênea, ao sistema capitalista e funcionar como bloco subalterno àquele formado pelos EUA e o Canadá, e que tem, como "convidado especial", o México, nação que ascendeu à posição de inequívoca aliada preferencial. Dessa forma, os EUA tentam, a partir de então, fazer frente aos blocos econômicos que com ele rivalizam, ou mesmo já o suplantam, como o protagonizado pelo Japão e a Europa, em fase de unificação.

Surgiu, então, o Mercado Comum da América do Norte a partir do Acordo EUA/Canadá/México (EUCANMEX) ou NAFTA (North American Free Trade Agreement), a sigla que as agências noticiosas se encarregaram de divulgar e a imprensa colonizada de adotar. O tratado, oficializado no começo de 1994 depois de muitas negociações e muitas dificuldades de aprovação no Congresso norte-americano cria uma zona econômica de 360 milhões de pessoas.

A proposta aprovada propunha sua criação em etapas, a serem cumpridas em quinze anos. Os primeiros passos estabelecidos definiam:

1) as tarifas de importação começam a cair até desaparecerem pôr completo em quinze anos;

2) os bancos norte-americanos e canadenses poderão operar no México e comprar bancos mexicanos, até agora protegidos pela lei contra a competição estrangeira;

3) empresas norte-americanas e canadenses poderão comprar 100% do capital de empresas mexicanas (que até então só podiam comprar 49%);

4) o transporte de produtos entre os três países ser  desregulamentado (até então o México exigia que apenas empresas mexicanas atuassem em seu território);

5) executivos de empresas poderão residir e trabalhar em qualquer dos três países sem maiores exigências burocráticas. Todavia, para os demais trabalhadores, continuam as normas anteriores de imigração, isto é, fronteiras fechadas2.

O acordo apontava para o desaparecimento das pequenas e médias empresas mexicanas, o que, dois anos depois de sua assinatura, já se verifica de forma gigantesca. O processo, na verdade, está em pleno andamento: mais de setenta mil empresas pertencentes aos ramos do vestuário e alimentação foram fechadas de l988 a 1992. Além disso, do ponto de vista do mercado de trabalho, havia no México, em l982, um total de 4,5 milhões de desempregados. Dez anos depois, estimativas otimistas assinalavam doze milhões, o que eqüivalia, em 1992, a um terço da força de trabalho do país. Além disso, o salário perdeu, nesses anos, cerca de 60% de seu poder aquisitivo em termos reais3.

Ao mesmo tempo, grande número de empresas norte-americanas e canadenses já iniciavam o processo de transferência para o México em busca de mão-de-obra barata, o que acarretar  a criação provável de seiscentos mil novos empregos, embora com sal rio evidentemente aviltado. Pôr outro lado, essa realidade poder  ter algum significado na crise interna norte-americana. A Califórnia, pôr exemplo, já revela, de uns tempos para cá, sinais de decadência, com níveis elevados de desemprego. A indústria eletrônica do estado, que está transferindo-se toda para o Texas, prosseguirá (juntamente com outros setores industriais) em direção ao México, provavelmente reativando as veredas das "empresas andorinhas" (runaway shops) da década de sessenta. Aliás, cabe ressaltar que os EUA já não podem ser considerados uma nação industrial, uma vez que, nela, predomina de forma considerável o setor de serviços.

De qualquer forma, apenas 4% do comércio exterior norte-americano é feito com o México, ao passo que a recíproca é de 70%, o que caracteriza uma assimetria gigantesca do relacionamento comercial entre essas duas na‡äes4. Todavia, o México, que conseguiu naquele momento que o petróleo não entrasse no pagamento do serviço da dívida externa, não logrou, no entanto, a livre circulação de mão-de-obra. No final das contas, a função fundamental do México, no EUCANMEX, ser  o de ser depósito de mão-de-obra disponível e mercado para os produtos norte-americanos. Pôr isso, a gigantesca crise posterior a março de 1995 acabou ressaltando de forma abismal as conseqüências que já se vislumbravam quando da assinatura do tratado e o México acabou entregando aquilo que tanto procurava preservar: suas reservas de petróleo. O governo dos EUA, pôr sua vez, conseguia, finalmente, aquilo pelo qual tanto insistia e pressionava em obter desde tanto tempo: o petróleo mexicano, que lhe permitir  grandes economias em suas reservas.

Considere-se ainda, de forma geral, que os blocos econômicos estabelecidos na atualidade têm como característica básica a busca da auto-suficiência, o que implica, obviamente, a diminuição das possibilidades de exportação pôr parte da América Latina, e, consequentemente, a redução de suas perspectivas econômicas e o seu empobrecimento, hoje pôr demais evidentes.

De outra parte, a América Latina tem minerais, mão-de-obra disponível e um mercado consumidor não desprezível: o Brasil, pôr exemplo, tem trinta milhões de consumidores, que eqüivalem a toda a população da Argentina ou do Canadá e a duas vezes a da Suécia.

O governo Bush "ofereceu", então, em l990, o Plano Iniciativa para as Américas, propondo uma "zona de livre comércio desde o Alasca até a Terra do Fogo". Estabelecer-se-ia uma área de exclusividade comercial, semelhante à prevista pelo Plano Baynes, que no final do século passado antecedeu à intervenção na Revolução Independentista de Cuba (l895/l898). Verifica-se que, um século depois, a justificativa é a mesma.

A declaração de princípios do Plano informava pretender "criar incentivos para reforçar o crescente reconhecimento latino-americano de que o livre mercado é a chave para o crescimento sustentado e a estabilidade política". Propunha a liberalização de mercados até então regulados exclusivamente pelas legislações nacionais. Dessa forma, "colocar  frente a frente em competição desigual, parceiros econômicos dotados de potenciais diversos e diferentemente armados para ocupar os novos espaços abertos às regras de mercado"5.

O Plano estendia, então, evidentemente, um "sinal" para os demais blocos. A América Latina é considerada área econômica privilegiada. Diante da ascensão do bloco da Comunidade Econômica Européia e do Japão, no Sudeste Asiático, os EUA viam-se compelidos a buscar mecanismos de compensação para garantir os mercados da região que considerassem dentro de sua "zona de influência". Nesse sentido, pode-se considerar que o NAFTA tende a incorporar o Mercosul. Este se constituir , ao sul do continente, num abridor de caminhos para a incorporação ao NAFTA, com o que se conseguiria alcançar os objetivos pretendidos pôr Bush ao propor o Plano Iniciativa para as Américas e o NAFTA poderia então alcançar seu nome definitivo: FTAA (Free Trade Area of the America) ou AFTA (American Free Trade Agreement).

De outra parte, como é sabido, os EUA têm um elevado déficit comercial em relação à América Latina. Dados recentes da UNICEF revelam que as exportações norte-americanas para os países subdesenvolvidos periféricos caíram de 88 bilhões para 77 bilhões de dólares durante a primeira metade da década de oitenta, ao mesmo tempo em que os EUA investiam mais no Canadá do que em todo o conjunto da América Latina6.

Nesse sentido, observe-se que a prática dos EUA, em matéria comercial, Não tem sido a de abertura irrestrita de seu mercado. Protecionismo, subsídios e restrições têm sido medidas constantes. Conforme observou James Petras, "as empresas nacionais foram compradas pôr capitais estrangeiros, mas lhes foi dito que a propriedade nacional não era importante. A livre importação arruinou as indústrias locais, mas lhes foi explicado que isso faria com que as empresas futuras fossem mais competitivas. Em outras palavras, onde os EUA possuem vantagem competitiva sobre seus associados comerciais na América Latina e Europa Oriental, proclamam os benefícios universais do livre comércio"7.

A novidade eventual do Plano Bush estava na proposta de um fundo de inversão e um novo programa de financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para os países que avançassem na eliminação dos obstáculos à inversão estrangeira. Do montante proposto, de trezentos milhões de dólares anuais, a administração Bush se comprometeria com a terça parte, ao passo que o Japão e a Comunidade Econômica Européia deveriam arcar com cem milhões de dólares cada. Em abril de 1992, pôrém, o Congresso norte-americano rejeitou a parte norte-americana.

Veja-se, no entanto, que o valor proposto – e que o governo Bush não conseguiu honrar – tem sido remetido para o exterior pela América Latina em média a cada três dias, sob a forma de pagamento dos juros da dívida externa, o que demonstra a insuficiência da Iniciativa nesse campo, e sem se considerarem os efeitos da própria inflação norte-americana no período.

Nesse sentido, faça-se a comparação com o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), que foi constituído para a estruturação da unidade européia com um capital de doze bilhões de dólares. Observe-se também que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em três décadas canalizou à região aproximadamente trinta bilhões de dólares, portanto menos do que a América Latina paga como serviço de sua dívida externa em apenas um ano.

O governo norte-americano admitiu também, na apresentação do Plano Bush, reduzir a dívida com organismos oficiais norte-americanos, o que tem uma relevância secundária para a maior parte dos países da região. Esses passivos não chegam a doze bilhões de dólares em comparação com os mais de 450 bilhões do total da dívida externa para o conjunto da América Latina, não passando, portanto, de 3% do total da dívida.

Além disso, o Plano propunha a criação de zonas de livre comércio, individuais ou coletivas, mas sob determinadas condições: para participar nessas zonas haveria que se firmar acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com o Banco Mundial. O Plano Bush tinha, portanto, como premissa a vinculação com a questão da dívida externa, arvorando-se os EUA, com isso, a representantes do sistema financeiro transnacional, ao utilizarem a situação de endividamento dos países da região como instrumento de pressão política. A obtenção do "privilégio" de estabelecer relações comerciais com os EUA passaria, dessa forma, pela subordinação aos organismos financeiros internacionais como o FMI e o Banco Mundial.

Considere-se, entretanto, que até hoje esse Plano oficialmente proposto ainda não foi aprovado no Congresso norte-americano e nem o Presidente Clinton, sucessor de Bush, posicionou-se a respeito dele. A América Latina está, pois, como objeto diante de um Plano proposto, não-aprovado e também não-cancelado. Assim, os verdadeiros e monumentais problemas não são atingidos (ficando até mesmo agravados) pôr tais planos. Ademais, é direta a relação entre dívida externa e miséria interna, pois a recessão imposta acarreta o crescimento extraordinário da miséria. Ao mesmo tempo, aumenta, hoje, a desigual distribuição interna da riqueza nessas nações. Ao mesmo tempo, ocorre o crescimento urbano desordenado, a fuga de capitais, a contaminação ambiental, a derrubada das florestas e o intento de "desideologizar" a questão ecológica.

Dados recentes da UNICEF revelam que um quarto de milhão de crianças na primeira infância morrem a cada semana na América Latina, vítimas de enfermidades e desnutrição, de fácil prevenção, o que evidencia que os pobres da América Latina comem cada vez menos e não se nutrem. Consomem biscoitos, batatas, mandioca, milho, carboidratos que as empresas transnacionais fabricam, como também os refrigerantes com muito gás e açúcar. O organismo converte esses carboidratos em açúcar, o que significa energia para o trabalho, mas, como não há a ingestão de proteínas, necessárias ao seu pleno desenvolvimento mental, podemos concluir que o sistema deseja mão-de-obra para não pensar!8

De outra parte, no tocante à dívida externa, estudos realizados pelo Prof. Fausto Burgueño, da Faculdade de Economia da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), chegaram à conclusão de que, de l970 a l987, o México pagou, só de juros, a quantia de 102,5 bilhões de dólares, quando o total da dívida era de 109 bilhões de dólares9. O Brasil, pôr sua vez, de l97l a l989 pagou, também, só de juros, 123 bilhões de dólares. Somente entre l979 e l988, o montante pago foi de 98,772 bilhões. Isto significa que, a rigor, a dívida foi paga apenas com estes juros10.

A dívida externa total da América Latina, ao final da década de oitenta, segundo dados da CEPAL, é de 445 bilhões de dólares. A UNICEF, pôr sua vez, divulgou, em l990, dados sobre os juros que os países periféricos pagaram aos países de capitalismo central no ano de l988: o montante foi de l78 bilhões de dólares11. Isso eqüivale a três vezes o conjunto da ajuda recebida, no mesmo período, dos países de capitalismo central. Considere-se aqui, ainda, o fato de que essa ajuda é bastante unilateral, já que a maior parte dela é concedida aos países que menos necessitam.

O Banco Mundial, pôr sua vez, divulgou, em l990, dados referentes ao pagamento de juros efetuado pelos países latino-americanos nos anos de l988, l989 e l990. Assim, em l988, os países da América Latina pagaram o total de 26,201 bilhões de dólares como juros de sua dívida. Em l989, o montante foi de 26 bilhões e, em l990, de trinta bilhões de dólares12. A UNICEF, pôr sua vez, considera que se fossem computados todos os lucros, remessas de capital e royalties, o montante seria de pelo menos o dobro, isto é, sessenta bilhões de dólares, o que eqüivale a cinco bilhões de dólares pôr mês!13

Esses dados, todavia, não levam em conta a questão da taxa média de juros, que não pode deixar de ser considerada. Até pôr volta de l980, esta era de quatro ou 5% ao ano. Depois de l980 (período Paul Volcker, governo Reagan), ocorreu uma elevação considerável da taxa de juros, com taxas impostas de doze a dezesseis, ou até mesmo l8% ao ano. Assim, os juros passam a correr mais rápido do que a capacidade das economias latino-americanas de obterem superávites.

O presidente cubano Fidel Castro, reportando-se a essa questão, considerou que juros mais elevados que o índice de inflação do país credor configuraria uma extorsão, pois a dívida se constituiria em negócio. Dessa forma, propôs que essa dívida, posterior a l980, deveria ser rejeitada em bloco pelos países latino-americanos. Fidel Castro observou ainda que, ao final da década de oitenta, a exportação líquida de capital da América Latina era de trinta bilhões de dólares anuais – hoje, essa cifra já alcança os quarenta bilhões de dólares (é o que corresponde a três mil toneladas de ouro, enquanto a produção mundial não chega a mil toneladas ao ano. O Presidente cubano concluiu, então, que a exploração é, hoje, maior do que nos tempos da Colônia14. E apesar da contundência destes dados, os governantes latino-americanos sequer têm sido capazes de se reunirem para tratar da questão, preferindo continuar a fazer negociações diretas com o credor específico. O hábito da submissão e da obediência faz com que tentem obter as condições mais vantajosas dos credores, rivalizando, inclusive, entre si, numa tentativa de tirar castanhas do fogo com mão de gato!

Ademais, ainda segundo estudos do Prof. Federico Bolaños, nos anos em que houve mais empréstimos ao México, particulares mexicanos depositaram nos bancos norte-americanos o equivalente a 70% dos empréstimos concedidos ao país15. Conclui-se, então, que a dívida externa latino-americana poderia ser paga substancialmente com os depósitos dos particulares nos bancos dos países credores, especialmente nos EUA. Os bancos norte-americanos, entretanto, já declararam diversas vezes que, em caso de suspensão dos pagamentos, sua resposta seria o "congelamento" dos depósitos particulares. E como os depositantes são geralmente membros da classe dominante ou seus representantes junto aos governos dos países latino-americanos, são os primeiros a colocar-se em oposição à suspensão do pagamento, sendo também os primeiros a exigir que se pague a dívida, já que quem a paga, de fato, são os setores populares.

Há que se considerar, ainda, a questão da queda dos preços reais dos principais produtos de exportação da América Latina, que foi, em média, de mais de 30% na década de oitenta. Assim, o petróleo teve uma redução de 53%, o estanho de 57%, o chumbo de 28% e o ferro de l7%. A juta, a borracha e o café tiveram uma queda de 30%, enquanto a queda do cacau e do algodão foi de 32%. O chá, azeites e o açúcar sofreram uma depreciação de 64%, e o tabaco e a madeira de l0,17%16.

Os dados expostos permitem o estabelecimento de uma relação com a questão do narcotráfico. O governo norte-americano se empenha, inclusive militarmente, pôr meio de ações intervencionistas, no combate à produção da cocaína, e não ataca na mesma medida o consumo dentro de seu próprio território, maior mercado do mundo. Na verdade, a cocaína é atualmente o único produto latino-americano realmente competitivo no comércio internacional. Sob essa perspectiva, é de questionar-se os objetivos norte-americanos, que se dedicam quase que exclusivamente ao combate à produção e não ao consumo. Pôr outro lado, ao alçar-se à condição de poder paralelo, o narcotráfico evidencia, de certa maneira, a falência do modelo neoliberal que se tenta impor ao Estado na América Latina. Em várias regiões do continente, financia atividades de caráter social que deveriam ser garantidas pelo Estado. Em certa medida, participa de movimentos sociais também sob a forma de financiamento, como é o caso do Sendero Luminoso, no Peru.

Sem ignorar que o consumo de drogas é um problema gigantesco nas nações de capitalismo central, com o comprometimento de importantes contingentes de toda uma geração, não é menos verdade também que, nessas nações, grandes interesses econômicos ligados à esfera do consumo estão já plenamente institucionalizados e são de difícil ou impossível remoção.

Assim, a ausência de combate ao consumo garante, nessas nações, a preservação do lucro interno envolvido no consumo das drogas. Desta forma, e considerando-se ainda a vantagem comparativa da cocaína no comércio internacional, não é de surpreender a verdadeira guerra declarada pelo governo dos EUA contra os grandes produtores latino-americanos, configurando-se, então, uma evidente contradição entre o neoliberalismo do discurso e a prática do intervencionismo nessa questão.

Esse é, pois, o único produto latino-americano que não sofre queda do preço real no mercado internacional. Quanto aos demais produtos, observa-se, no entanto, que os países latino-americanos têm de exportar cada vez mais produtos primários para compensar:

1) os baixos preços de seus produtos no mercado internacional, que são regulados pelas corporações transnacionais;

2) o alto custo que devem pagar pelas manufaturas e outros insumos que necessitam importar. E, em meio a tudo isso, pagam ainda o serviço de sua dívida, juros e mais spreads.

Os grupos dominantes na América Latina desejam sempre new money, dinheiro para pagar o serviço da dívida, incrementando-a. E os países pobres recebem, assim, "no papel", empréstimos que nunca podem utilizar, mas que se acrescentam ao montante total dos empréstimos anteriores. E quem paga são os pobres, que jamais se beneficiaram dos empréstimos, mediante as doenças, desemprego, miséria. Se o processo continuar, no fim das contas o horizonte ser  exportar tudo para pagar apenas os juros e spreads da dívida.

Eric Hobsbawm chamou a atenção para a similitude das situações entre os finais dos séculos XIX e XX17. Observa o historiador inglês que, em l900, a humanidade se dividia entre o que ele chamou de Velho Mundo desenvolvido (Europa, EUA, ...), com 33% da população mundial, e o restante vivendo no amplo mundo periférico. Um século depois, em l990, depois de tantas revoluções sociais, Hobsbawm aponta a mesma presença dicotômica entre o Velho Mundo desenvolvido e o mundo periférico, com uma diferença, no entanto: a população do Velho Mundo desenvolvido havia se reduzido a apenas l5% da população mundial. E Hobsbawm conclui, então, pela falência de um sistema que coloca 85% da humanidade em condições subumanas de vida.

Neste quadro encaixa-se, então, a política do nivelamento, do enquadramento político e econômico, a integração subalternizada. Na América Latina, integrada de maneira subalterna, deve haver livre circulação de produtos e não de mão-de-obra, alocação e realocação das indústrias com a fabricação, inclusive, de um componente aqui e outro em outro lugar, o que significa, a rigor, o fim das fronteiras, mas apenas para a circulação dos produtos, e não para a circulação das pessoas. As fronteiras continuarão para impedir que os "nativos" tentem residir nos EUA.

Nesse sentido, veja-se que a CEPAL pensou sempre a partir do pressuposto nacional. Hoje, a Argentina já não tem moeda, percebendo-se, pois, a intenção do desmantelamento do Estado. Ainda que o Estado norte-americano também se ressinta, exerce, no entanto, um papel coercitivo com relação à América Latina, representando, então, o grande capital internacional.

Francis Fukuyama18 tem esta percepção e a aprova. Esta realidade configuraria o fim liberal da História. Em 1992, declarou em Porto Alegre: "A América Latina passou por uma grande revolução na década de oitenta. Caíram as ditaduras militares. Mas a revolução econômica não se completou. Apenas no México, Chile e Argentina. Nesse sentido, vocês brasileiros ainda não estão no fim da História".

O Plano Bush atende a essa realidade e também a representa. E o papel do Mercosul deverá ser esse também, pôr certo. Ao mesmo tempo, a incorporação do Leste Europeu significa ampliação do fornecimento de produtos primários para as nações de capitalismo central, o que reduz a importância econômica da América Latina.

Esta tendência já é comprovável pelos dados disponíveis. Assim, a taxa anual de crescimento das exportações da América Latina e do Caribe foi, entre l980 e l988, de 3,2%, ao passo que os países do Sudeste Asiático tiveram, no mesmo período, o índice de mais de 10%, e o Sul da Ásia (Índia, Paquistão) de 5,4%. Ao mesmo tempo, a América Latina supria, em l981, 14,9% das importações norte-americanas. Em l988, esse índice caiu para l2,l%. E as exportações dos EUA para a América Latina, em l981, correspondiam a 17% das vendas norte-americanas, caindo, em 1988, para 13%19. Conclui-se, então, que essa integração proposta para a América Latina de fim de século é periférica quanto à divisão do trabalho.

Quem pôde propor, inicialmente, a verdadeira integração e solidariedade continentais foi Cuba, temperada pela Revolução. O México, que também já havia passado pôr uma revolução, conseguiu durante um bom tempo barganhar no acordo organizatório do NAFTA (ou melhor, a nacionalidade barganhou), o que é diferente da completa submissão observável no restante do continente nos dias atuais, mas capitulou agora em 1995, ao colocar como garantia suas reservas petrolíferas do Golfo do México.

Assim, os caminhos tendenciais da América Latina, neste final de século, revelam um refluxo conservador que se sobrepõe à base de mobilizações e de lutas populares. Os setores populares persistirão, pôr certo, no empenho pela democratização das estruturas políticas, econômicas e sociais e pela salvação da América Latina em termos de domínio sobre seus recursos e preservação de suas reservas naturais.

O modelo neoliberal, talvez, já esteja em cheque em diversos países, como Venezuela, Peru, Brasil e México a partir do levante de Chiapas. Há caminhos que se apresentam de imediato, com toda evidência, para a América Latina percorrer, tais como:

l) a busca sistemática da integração, baseada no exame da realidade e da Aproximação através dos interesses próprios;

2) a Redução conjunta da dívida;

3) o abandono da falácia do neoliberalismo, que é imposta de fora;

4) a rearticulação do Estado, que deixaria de privilegiar a esfera privada, tornando-se, finalmente, um Estado público com sensibilidade para uma política social para valer.

A busca dos caminhos próprios revelará que libertação e repressão marcharão frente a frente nos mais diferentes rincões do Continente. O recrudescimento de fórmulas mantenedoras e fortalecedoras de estruturas neocoloniais como saída para a crise do capitalismo, que insistam numa Integração subalternizada e que impeçam uma real unidade e a verdadeira emancipação latino-americanas, Não aponta para saídas democráticas. Estas terão de ser forjadas pela Ação dos setores populares na luta contra a atual "ordem" imposta. Frente à Integração colonizada imposta, a reação necessária é a da Integração, da autonomia, da independência, e agora, mais do que nunca, do conhecimento da realidade própria, do estabelecimento dos caminhos próprios, da democracia plena, enfim.


1 - ZEA, Leopoldo. Discurso desde la marginación y la barbarie. México, Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 18.

2 - Folha de S. Paulo, 13/08/92; SP; e Zero Hora, 13/08/92; SP.

3 - Cadernos do Terceiro Mundo, ano XIV, no 151, jun/92. RJ, p. 32.

4 - RICO, Carlos et al.. "Livre comércio: zonas de turbulência". In: Revista Nexos, no 46. México, 1990.

5 - BARBOSA, Rubens Antônio. América Latina em perspectiva: a integração regional da retórica à realidade. São Paulo, Edições Aduaneiras, 1991.

6 - UNICEF. Estado mundial de la infancia. Barcelona, Grafos, 1990.

7 - PETRAS, James. "Comércio dirigido para EEUU, libre para América". In: Semanário Brecha, 13/03/92. Montevideo.

8 - BOLAÑOS, Federico. "América Latina en deuda: costos sociales y poder transnacional". In: Encontro ADHILAC, out./90. São Paulo (mimeo).

9 - Jornal do Brasil, 15/09/87. RJ.

10 - Folha de S. Paulo, 20/03/89. SP.

11 - UNICEF. Op. cit..

12 - Banco Mundial. Informe sobre el desarrollo mundial 1990: la pobreza. Washington, Banco Mundial, 1990.

13 - UNICEF. Op. cit..

14 - Sobre as propostas de Fidel Castro a respeito da questão da dívida externa latino-americana, veja-se, entre outros: CASTRO, Fidel. "La cancelación de la deuda externa y el nuevo orden económico internacional como única alternativa verdadera'. In: Excelsior, 20-21/03/85. México; e "No hay otra alternativa: la cancelación de la deuda o la muerte política de los procesos democráticos en América Latina". In: DYMALLY, Mervin e ELLIOT, Jeffrey. Entrevista. Havana, Política, 1985.

15 - BOLAÑOS, Federico. Op. cit..

16 - Idem. Ibidem.

17 - HOBSBAWM, Eric. "1989: o que sobrou para os vitoriosos". In: Folha de S. Paulo, 12/11/90. SP, p. 3.

18 - Zero Hora, 16/08/92. POA.

19 - Banco Mundial. Op.cit.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 5, Outubro de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.

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