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Crítica ao Praticismo "Revolucionário" | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Sergio Lessa
Sergio_Lessa@revistapraxis.cjb.net
Professor da Universidade Federal de Alagoas, membro das editorias das Revistas Práxis e Crítica Marxista.
Com o predomínio das tendências históricas contra-revolucionárias por décadas seguidas, num ambiente social fetichizado e marcado por crises e tragédias antes inimagináveis não apenas as duas guerras mundiais, a guerra fria etc., mas também a crise econômica endêmica que se arrasta desde os anos setenta , a concepção de mundo (Weltanschauung) cotidianamente predominante absorveu um fatalismo e um misticismo que obstaculizam momentaneamente o impulso ao desvelamento do real, que é imanente e essencial à subjetividade humana. A vida social, fetichizada pelo capital em grau extremo, terminou por particularizar uma forma específica, historicamente determinada, da relação típico-universal entre subjetividade e objetividade na práxis humana: nas atuais condições, a absorção do novo socialmente produzido é uma exigência prática para a reprodução do capital; porém, e ao mesmo tempo, é uma impossibilidade teórico-ideológica quase absoluta em se tratando de desvelar as novas potencialidades, objetivamente postas pelo desenvolvimento social, para a emancipação humana.
Um período histórico contra-revolucionário tem, também, esta conseqüência: altera a relação entre as categorias mais essenciais da práxis humana, tornando-a brutal e desumanamente conservadora, mesmo em um período histórico, como o capitalismo contemporâneo, cuja forma de ser é a incessante produção objetiva e ampliada de novas possibilidades de sociabilidade.
Sobre esse conjunto de questões, deteremo-nos num próximo artigo. Aqui nos interessará um aspecto específico dessa problemática: as alterações, decorrentes do predomínio histórico da contra-revolução, na relação entre teoria e prática no interior da práxis política que se propõe revolucionária.1 O que, em si, já é quase um paradoxo, pois num período contra-revolucionário há apenas efetivações parciais normalmente, muito parciais e fugidias de intenções revolucionarias, já que a revolução propriamente dita não está na ordem do dia. Enquanto efetivações muito limitadas, é natural que o conceito de revolucionário perca clareza e tenha os seus limites camuflados por uma prática que deseja, mas não pode, efetivar a revolução. O termo revolucionário, por isso, não tem como deixar de ser, até certo ponto, ambíguo. Contudo, esperamos que, por vivermos todos essa ambigüidade, sua utilização neste artigo consiga delinear com a clareza minimamente necessária o universo a que nos referimos.
Nos dias em que vivemos, há uma concepção teórica comum à maioria das pessoas que se propõem revolucionárias: ao tratar da relação entre a prática para continuarmos imprecisos "transformadora" e a teoria, a prática é fetichizada até transformar-se na esfera produtora e resolutiva da teoria. Como se os problemas teóricos colocados pela prática revolucionária pudessem ser resolvidos no interior da própria prática, sem qualquer esforço teórico.
Paradoxalmente, esse desprezo pela teoria vem sempre acompanhado pela repetitiva reafirmação da sua importância. "Sem teoria revolucionária não há revolução", repete-se com freqüência. Contudo, as mesmas pessoas que o fazem justificam o abandono de todo esforço teórico com a desculpa de que a quantidade e a urgência das tarefas impedem o estudo.
Em poucas palavras, a forma de agir dos que se propõem a revolucionar a vida consubstancia uma radical separação entre a teoria e a execução. Na imediaticidade cotidiana da enorme maioria das pessoas, a reflexão teórica e a prática política são hoje antinômicas.
Com o abandono do esforço teórico, a cada geração os "revolucionários" são mais ignorantes e exibem uma maior estreiteza na sua concepção de mundo. São crescentemente incapazes de apreender a essência do processo histórico, perdendo-se nos seus meandros fenomênicos e fugazes. Sem a compreensão do mundo em que agem, suas práticas são marcadas pelo taticismo, pela absoluta falta de estratégia.
Como foi possível que a prática revolucionária, que já foi portadora de teoria da melhor qualidade, tenha involuído, dando origem a um praticismo cujas potencialidades revolucionárias apenas existem no desejo de quem o reproduz?
Um Pouco de História
Como ocorre com quase tudo que é decisivo neste século, também ao tratar dessa questão temos que retroagir aos primeiros anos da Revolução Russa. Quando da tomada do poder pelos bolcheviques, em 1917, ninguém sequer imaginava a possibilidade de construir-se o socialismo, de forma isolada, na atrasada Rússia2.
Em poucos anos, contudo, a situação se transformou profundamente. Já em meados dos anos vinte, esgotaram-se as potencialidades revolucionárias abertas pela I Guerra Mundial e se iniciou um novo ciclo de expansão capitalista. Através de idas e vindas que não podemos examinar aqui, de uma luta interna encarniçada que levou ao patíbulo os melhores revolucionários russos (e muitos de outros países)3 do início do século, saiu vitoriosa a tese rigorosamente antimarxiana de que seria possível construir o socialismo em um só país e, mais ainda, de que na Rússia Soviética efetivamente se construía o socialismo!
Com a vitória do estalinismo, a produção teórica predominante entre os marxistas e os partidos comunistas pelo mundo afora passa a seguir a orientação de Moscou: ordem soviética era sinônimo de socialismo. Todo questionamento desse dogma é denunciado como ideologia burguesa. Mesmo durante os anos mais cruéis do estalinismo e até após o XX Congresso do PCUS, quando se reconheceu que as "denúncias burguesas" estavam muito próximas à verdade criou-se o mito das "deformações" no "socialismo" soviético para que continuasse a ser possível defendê-lo enquanto socialismo!
Essa é uma virada histórica decisiva para o problema que examinamos. Quando os revolucionários assumiram como tarefa defender o país dos sovietes enquanto socialista, as suas elaborações teóricas se resumiram em tentar provar ser socialismo o que gritantemente não passava de uma nova forma de exploração do homem pelo homem. Deixaram de produzir ciência para mistificar a realidade. O desvelamento do real passa a ser cada vez mais difícil e, por fim, torna-se uma impossibilidade: como investigar o real se esse apenas fornecia indícios os mais veementes de que socialismo e ordem soviética não eram sinônimos? Como manter intacto o dogma e, ao mesmo tempo, fazer ciência, desvendar o real?
O marxismo, de teoria revolucionária que, dotando os homens de uma consciência superior do seu em-si, propunha-se a possibilitar que a humanidade conscientemente fizesse a sua história, converteu-se, em poucas décadas, na ideologia (no sentido pejorativo do termo) de um Estado opressor dos trabalhadores. De ciência à falsificação do real: este o triste e cruel destino do marxismo do século XX4.
Ao viver esta tragédia, o marxismo deixou de se enraizar em Marx e deitou novas raízes nos "teóricos" do século XX: Stalin, Zdanov e caterva. De marxismo se reduziu ao marxismo vulgar, sendo castrado de todo o seu potencial revolucionário. Exceções à parte, Lenin, Gramsci, Trotsky e Lukács, entre poucos outros, cada um à sua maneira, pagaram também grandes tributos teóricos, práticos e pessoais, a esta tragédia.
Vale salientar que nem todos os marxistas se tornaram estalinistas. Não apenas os trotskistas, mas também vários setores dos comunistas de esquerda e dos anarquistas de esquerda rejeitaram o estalinismo e o combateram. Contudo, a herança teórica e prática que deixaram é irrisória.
A Práxis Estalinista e o Novo Militante
À medida que o estalinismo foi configurando-se, tanto o modelo de militância como as características dos militantes se alteraram.
Do militante se exigia, agora, duas características fundamentais: "disciplina", para o estalinismo sinônimo de obediência, e "crença", carente de toda reflexão crítica, nos mitos que vão sendo produzidos. As estruturas partidárias e a da Internacional Comunista, tornaram-se cada vez mais burocratizadas e rígidas. O processo de seleção dos militantes tem como pedra de toque a docilidade com que se adaptam às mudanças de curso inerentes ao taticismo estalinista5. Difunde-se a concepção de que o militante seria um soldado da revolução que, tal como em um exército burguês, deve obediência cega e imediata aos seus chefes. O taticismo e a concepção militarista se dão as mãos.
Essa obediência cega e imediata, por sua vez, era justificada pela concepção de que a teoria da revolução, após 1917, estava finalmente completa. Se Marx e Engels haviam conduzido a teoria revolucionária tão longe quanto possível, sem conhecer uma revolução vitoriosa; Lenin, após 1917, suprira as carências. Teoricamente, sabia-se como fazer: Stalin e os dirigentes estalinistas eram os herdeiros desse conhecimento e, por isso, era preciso apenas obediência, dedicação e força de vontade para que a revolução mundial fosse vitoriosa. Todo questionamento, na hora do combate final, era supérfluo e prejudicial: obediência cega, disciplina férrea, dedicação integral e total.
Abre-se, assim, um período que Claudín, num importantíssimo livro, caracterizou como "paralisia teórica"6. No momento em que o movimento revolucionário enfrentava uma situação rigorosamente inédita, jamais examinada teoricamente (a consolidação isolada de um governo revolucionário em um país atrasado, semi-"feudal" e semi-"asiático"), firma-se a concepção de que não há mais nada a ser investigado, cabendo apenas colocar em prática o conhecimento já adquirido pelos bolcheviques. Justamente quando os revolucionários se confrontavam com uma evolução do real completamente imprevista, vence a concepção de que todo o conhecimento para a revolução já havia sido produzido e que, por isso, ação e disciplina era tudo que deveria ser exigido do revolucionário.
Ao chegarmos à década de trinta, os velhos militantes, aqueles que haviam sido forjados no período anterior, quando a iniciativa pessoal e a capacidade de pensamento crítico eram qualidades fundamentais, vão sendo rápida e sistematicamente eliminados do movimento comunista. Não apenas os dirigentes que não se amoldaram ao poder estalinista foram assassinados. Também os dirigentes intermediários e mesmo militantes de base foram perseguidos, mortos e expulsos dos PCs. No contexto da ascensão do fascismo europeu, em não poucas circunstâncias, militantes que divergiam da linha oficial eram simplesmente eliminados ao negar-se a eles a proteção e apoio necessário para a vida clandestina que levavam. Relatos dramáticos desse período podem ser encontrados, tanto do ponto de vista do militante de base como de um alto dirigente7, e não há necessidade de recontá-los.
Nessa enorme tragédia que se abate sobre o movimento comunista, encontramos o primeiro momento da disjunção entre teoria e prática que caracteriza o praticismo contemporâneo. A prática política vai assumindo uma forma que repele, desestimula, dificulta e, por fim, torna cotidianamente impossível a investigação teórica. Pela primeira vez na história do movimento revolucionário, teoria e prática estavam cindidas no cotidiano dos militantes.
Pari passu a essa disjunção entre prática e teoria, ocorre um outro processo, a ela intimamente articulado. Com o esgotamento da crise revolucionária dos anos vinte e os primeiros movimentos de estruturação do que viria a ser chamado, posteriormente, de Estado do Bem Estar Social, a luta política nos países capitalistas avançados é cada vez menos luta de massas contra a exploração capitalista8 e cada vez mais a disputa burocratizada pelo poder no interior dos aparelhos políticos (partidos, sindicatos, associações etc.): os militantes vão deixando de ser autênticos revolucionários para se converterem em aparatchiks, ou seja, funcionários burocráticos de estruturas estalinistas ou reformistas (não nos esqueçamos de que, grosso modo, o estalinismo é contemporâneo à gênese e ao apogeu do Estado do Bem Estar Social), que há muito abandonaram a luta contra a exploração do homem pelo homem. Esses dois processos (a cisão teoria-prática e o abandono da luta revolucionária) se determinam reflexivamente, evoluem como faces de uma mesma moeda9.
Semprún tinha Razão: a "Dialética" se transformou na Arte do Embuste
Sem a compreensão do momento histórico, conseqüência da paralisia teórica que atinge o movimento comunista, apenas é possível traçar táticas de curto prazo. Com isso, as reviravoltas políticas se sucedem e são justificadas como acertadas continuações das igualmente justas linhas anteriores10. É pífio o argumento de fundo a que sempre se recorre nessas ocasiões, mas suficiente para convencer o obediente militante estalinista: a concepção dialética da história "prova" que as coisas, com o tempo, transformam-se "em seu contrário". Assim, as reviravoltas são imprescindíveis. Cabe apenas, "dialeticamente", demonstrar como elas são corretas.
A dialética, que Marx concebia como o movimento do próprio real, transformou-se na "Arte e na maneira de sempre se cair de pé", nas palavras de Semprún11. Não importa quais as incongruências do taticismo, a dialética se encarrega de justificá-las com os sofismas e os subterfúgios mais descarados. A dialética se resume, agora, a uma arte de argumentação pela qual o "teórico autorizado" extrai dos clássicos (também autorizados) citações que lhe permitem demonstrar "dialeticamente" que o quadrado é redondo, que o branco é preto.
Uma mentalidade questionadora do real, curiosa, inquieta, investigadora, criativa; uma mentalidade revolucionária, enfim, era algo rigorosamente incompatível com o estalinismo. Para a burocracia que se encastelou no poder na URSS e na própria estrutura da IC, é uma questão de vida ou morte impedir que verdadeira ciência seja feita pelos revolucionários. Crer, ao invés de pensar, acatar ordens sem questionar, não ter curiosidade, não investigar o real, são as "qualidades" que a burocracia estalinista exigia dos militantes, pois elas são fundamentais para que seu próprio poder (e os enormes privilégios a ele associados)12 sobreviva.
Com esse processo, a teoria produzida pelos revolucionários sofre uma involução decisiva. Com Marx, mas ainda no início do século, o marxismo é capaz de se apropriar da melhor ciência burguesa, criticá-la e desenvolver o conhecimento humano. Em suma, o marxismo era então capaz de expressar a consciência humano-genérica em patamares superiores e por isso ele ocupava um lugar de destaque no desenvolvimento da humanidade. Ao chegarmos nos anos trinta, encontramos uma situação radicalmente diversa. A produção marxista se reduziu ao marxismo vulgar, incapaz de produzir ciência e arte. Não passa de má propaganda, de produção teórica que visa deformar a realidade para justificar a nova forma de exploração do homem pelo homem que surgia na URSS.
Nesse quadro triste para os revolucionários, duas figuras teóricas de primeiro plano emergem: Lukács e Gramsci. Não que eles tenham passado incólumes pelo estalinismo, mas certamente não foram estalinistas na acepção plena do termo. Como a defesa de Gramsci e Lukács já foi feita anteriormente, e com mais competência do que poderíamos fazer,13 deixo aqui assinalado esse fato, com dois objetivos. O primeiro, lembrar que, mesmo na situação mais difícil, um indivíduo pode, se o quiser, contrapor-se à maré montante. Isso será importante para a conclusão deste artigo. Em segundo lugar, para lembrar que, ainda que o marxismo vulgar esteja enterrado pela história, nem todo marxismo no século vinte foi vulgar, restando ainda muito a ser explorado, aproveitado e desenvolvido da obra principalmente, mas não apenas, desses dois autores. Contudo, o fato de uma corrente tão promissora e criativa, no início do século, quanto o marxismo, com toda a importância política que teve na história recente, poder exibir, décadas após, apenas dois pensadores de peso, é um sintoma gritante da crise que sobre ela se abateu.
O Voluntarismo
A disjunção entre prática e teoria, e a transformação historicamente correlata dos militantes em meros aparatchiks, introduzem uma modificação decisiva na prática política revolucionária. Esta, de expressão de uma prévia-ideação portadora do para-si do gênero humano (e se não o fosse jamais seria revolucionária no sentido marxiano da expressão), involui para um voluntarismo cego que, também ele, será característico do praticismo dos nossos dias.
No universo estalinista, contudo, a justificação teórica do voluntarismo sempre foi um problema. Pois a concepção estalinista segundo a qual a história é o desdobramento automático das leis objetivas infra-estruturais, não cabendo aos indivíduos e à subjetividade qualquer papel histórico decisivo, é incompatível com a postulação da necessidade da ação dos indivíduos. Se o socialismo é considerado uma decorrência inevitável do desdobramento objetivo das leis do desenvolvimento do capital, seria desnecessária a atividade dos revolucionários para que a história o atingisse. Ao negar o papel ativo dos indivíduos na história atividade esta plena de mediações, entre elas as lutas de classe , o estalinismo chegou a um passo de justificar a completa passividade do indivíduo frente aos destinos da humanidade.
Essa atitude "passiva", legitimamente decorrente da concepção teleológico-naturalista da história, típica do estalinismo, foi condenada pelo movimento comunista enquanto "liquidacionismo". Um dos elementos da complexa reprodução da burocracia que tomou o poder na URSS e nos PCs é a presença, em escala mundial, de um "exército" de militantes obedientes, disciplinados, e muito ativo. Cada ordem deveria ser obedecida cegamente e, também, com a máxima dedicação. Para os poderosos do movimento comunista era, pois, necessário colocar a "dialética" em ação para demonstrar como a inevitabilidade do socialismo não se opunha ao voluntarismo que exigiam da militância.
Sendo breve, a quadratura do círculo é feita da seguinte forma. É verdade, dizem eles, que são as leis da história, e não a atividade humana, que fazem o destino humano. Contudo, essas mesmas leis garantem que, na sociedade capitalista, as contradições sociais levariam ao desenvolvimento de um movimento revolucionário, o qual, por isso, corresponderia às leis mais profundas da história. Logo, o fazer a revolução pelo militante é uma decorrência necessária da história e o militante deve cumprir o seu destino, já traçado pelas leis férreas da história, com o objetivo de acelerar o caminhar da humanidade ao paraíso soviético.
O extremado voluntarismo é justificado, por um lado, com a desculpa de ser ele decorrente das leis objetivas infra-estruturais do desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, a crença do militante na inevitabilidade da revolução, sem a qual o voluntarismo não resistiria a tantas derrotas, é sustentada pela concepção teleológica da história do estalinismo. Pela mediação da concepção de que a ação revolucionária é uma expressão das leis mais profundas da história, a tese segundo a qual o desenvolvimento histórico inevitavelmente desembocará no comunismo é articulada com o extremado voluntarismo peculiar ao militante estalinista. Novamente, a "dialética" cumpre o seu papel: "demonstra" o impossível. Ou seja, que a ação do militante é fundamental para a história, ainda que a história seja feita pelo movimento dos complexos infra-estruturais e não pelos atos humanos.
Por esse viés teórico penetra, na ideologia estalinista, aquela que será, ao lado da ignorância, a sua característica prática mais evidente: o extremado voluntarismo. O desejo e a vontade enquanto substitutos de uma compreensão ontológica do processo histórico, a fé no "destino socialista da humanidade", a crença na infalibilidade dos altos dirigentes, acima de tudo de Stalin, são consideradas qualidades indispensáveis. Contudo, não porque o indivíduo faça a história, mas porque, ao moldar sua individualidade dentro desses parâmetros, o militante nada mais faz do que cumprir conscientemente as leis infra-estruturais. O indivíduo é reduzido a mero suporte da história. O revolucionário é um revolucionário porque o momento histórico (a crise capitalista, a existência de Stalin e do movimento comunista) o fez desse modo. E, ao construir-se dentro dos parâmetros estalinistas, ele nada mais faria senão seguir as determinações históricas mais profundas.
Essa é uma concepção que não resiste a uma crítica teórica mais séria. Contudo, no universo estalinista, como correspondia às suas necessidades ideológicas mais profundas, ela acabou por tornar-se uma verdade inquestionável e se firmou como um dos dogmas decisivos da prática política "transformadora".
Voluntarismo, concepção teleológica da história e disjunção entre teoria e práxis política são os traços mais importantes da forma da práxis política sob o estalinismo. Veremos como essas mesmas características, sob novas formas, estão presente hoje no "praticismo revolucionário".
O Praticismo e a Teoria: o Caso Brasileiro
Se a construção, por Stálin, do "homem novo socialista" e dos comunistas enquanto feitos de uma "têmpera especial de aço" tem algum significado14, certamente se refere à criação de uma geração de revolucionários, a mais numerosa que o movimento comunista jamais teve, marcada pela rígida obediência às instâncias burocráticas superiores, pela incapacidade de raciocínio próprio, pela total carência de espírito crítico e de iniciativa. Uma geração conformada, pois carente de toda curiosidade, e mítica, pois crente em dogmas. Um militante que age e não pensa é o resultado de um movimento comunista que produz mitos, mas não ciência. Que, com essa degenerescência, os revolucionários contribuíram para a gênese e a estabilidade da atual onda contra-revolucionária não é nenhum fato surpreendente.
Nos dias em que vivemos, e em especial entre a geração de militantes que surgiu no Brasil após a derrocada da ditadura, o praticismo estalinista passou por algumas alterações significativas. O desaparecimento da rígida estrutura burocrática da III Internacional e dos partidos comunistas diminuiu a pressão por uma rígida obediência e pela vida espartana dos militantes das gerações anteriores. A busca do "prazer" até já é considerada revolucionária, num hedonismo pobre e inconseqüente na maior parte das vezes.
Outra modificação significativa é que a concepção teleológica da história do marxismo vulgar, tal como "teorizada" por Marta Harnecker e Politzer, ganha uma nova coloração mítica ao ser apropriada pela Teologia da Libertação e pela esquerda católica.
Um terceiro elemento teórico-ideológico importante na conformação do praticismo contemporâneo é a influência nada desprezível das teorizações, herdeiras da crise do marxismo europeu, que desenvolvem as raízes irracionalistas do estruturalismo, propugnam a "morte do sujeito" e se dirigem à pós-modernidade. Tanto na sua forma inicial, quando as individualidades são reduzidas a meros suportes dos movimentos das estruturas, como na sua fase de máximo desenvolvimento, quando a negação do ativo papel histórico dos homens conduz à negação do processo histórico enquanto portador de uma racionalidade imanente, elas contribuem para a consolidação dos elementos teleológicos, fatalistas e místicos já atuantes entre os revolucionários. Acima de tudo porque, ao disjuntarem o indivíduo da sociedade e a subjetividade da objetividade, tais teorias convertem em "mistério" a existência dos indivíduos, e da subjetividade da qual são portadores, enquanto demiurgos da história, com todas as mediações cabíveis entre eles e as classes sociais. Entre os praticistas, essas teorias contribuem para a consolidação do fetichismo da prática e das concepções que ignoram o papel decisivo da teoria para o rompimento da ordem burguesa.
Apesar dessas modificações, muito mais de forma que de conteúdo, o praticismo contemporâneo é um dos mais autênticos herdeiros do legado estalinista. Dele herda não apenas a separação entre o "fazer prático" e o "fazer teórico", entre a teoria e a prática, mas também o seu misticismo, fatalismo, reformismo e ignorância. Em outras palavras, ainda que, após décadas de crise e involução teóricas, o marxismo vulgar seja uma espécie ideológica em extinção, embora sua reprodução seja cada vez mais restrita a uns poucos nichos na esquerda e, nas universidades, o que dele subsiste sejam formulações já modificadas e de tal forma degradadas que se aproximam do liberalismo15, entre nós a alternativa à crise da vulgata marxista não tem sido a elaboração de uma autêntica teoria e uma práxis revolucionárias, mas a consolidação de uma nova forma do velho praticismo.
Desconhecedores da história, mesmo da história brasileira mais recente, os praticistas são incapazes de um projeto estratégico. Não lhes resta outra alternativa, por isso, senão responder aos acontecimentos correndo atrás dos fatos como o jumento atrás da cenoura: não há possibilidade de alcançá-los.
Isso tem duas conseqüências fundamentais para a nossa discussão. Frente à incapacidade para entenderem o momento histórico, assim como para compreenderem a si próprios, os revolucionários terminam por fazer, da necessidade, virtude: como são incapazes de se constituírem enquanto uma alternativa estratégico-global ao mundo burguês, passam a compreender o "fazer político" como a busca de uma eficiência cotidiana no enfrentamento com a burguesia, centrando todos os seus (parcos) esforços teóricos na busca de uma alternativa ao poder burguês que não implique a revolução. Raciocinam eles que, se temos que ser alternativa à burguesia, temos que saber como administrar o Estado burguês melhor do que a própria burguesia, mostrando assim ao "povo" (pois, a essa altura, a centralidade da classe operária já foi perdida) que os revolucionários são confiáveis e, por isso, a eles deve ser entregue o poder político.
Não percebem que esse reformismo não tem a menor possibilidade de sucesso, pois administrar o Estado burguês tem apenas um significado histórico possível: colocar-se a serviço da burguesia. Pequenas melhorias na administração pública, aqui e ali, são os melhores resultados possíveis de colocar-se a serviço dos donos do capital, e tais "sucessos" apenas reforçam a ordem burguesa! Com isso não queremos sugerir uma condenação in totum da luta parlamentar, mas apenas sublinhar que, no horizonte praticista, ela jamais deixará de ter esse conteúdo essencial.
Esse reformismo político, inerente ao praticismo contemporâneo, não é sua única conseqüência. Ao correr atrás dos fatos como o jumento atrás da cenoura, a militância se transforma numa roda viva que torna o estudo uma atividade impossível. Como toda ação é desprovida de uma orientação estratégica, apenas um enorme volume de prática pode manter o militante à tona na luta política. Busca-se, antes de mais nada, conquistar ou manter "postos" em sindicatos, associações ou nos poderes Legislativos e Executivos. Isso requer uma politicagem cotidiana, de conchavos e articulações, que exaure as suas energias. Além disso, nas "frentes de massa", a luta por um lugar ao sol não é menos esgotante, tornando o cotidiano impermeável à "prática teórica". Ao invés de o revolucionário elevar o nível teórico das massas oprimidas (ou, se isso não é possível em todos os momentos históricos, ao menos de suas lideranças), o praticista termina por rebaixar-se ao nível cultural a que a alienação burguesa reduziu os trabalhadores.
Desse modo, os pretensos revolucionários tal como ocorreu no estalinismo são individualidades cuja reprodução social se dá sem qualquer reflexão teórica digna do nome. Cegos, sem enxergarem a essência da realidade, articulam suas atividades tendo por eixo aspectos fugazes, fenomênicos, secundários, do processo histórico: o reformismo a que nos referimos acima se articula, de forma reflexivamente determinante, a uma prática ineficiente, tanto do ponto de vista reformista como do revolucionário. Nas irônicas palavras de Lenin, limitam-se a "contemplar os traseiros da classe operária", a correr atrás dos fatos.
As derrotas, mesmo de seus limitados objetivos reformistas, sucedem-se numa sucessão e intensidade infinitas. Elas, contudo, ao invés de levarem ao questionamento de suas concepções, e à superação teórico-prática do praticismo, têm um efeito exatamente inverso. Ao invés de produzirem indivíduos sedentos de entender o mundo para que possam explicar os insucessos e, assim, superá-los, as derrotas reforçam a concepção segundo a qual o praticismo é decisivo para a revolução, ainda que não seja capaz de saber por quais mediações a sua ação poderá conduzir a ela.
Isso ocorre porque a avaliação das derrotas é feita no interior da ideologia do praticismo, marcada pelo voluntarismo e pelo fatalismo de raiz estalinista e atualizada formalmente pela teologia da libertação. A "fé" na revolução e a inabalável crença na importância da prática praticista, sedimentadas por uma concepção teleológica da história que sintetiza em concepção de mundo a ignorância vigente, tornam impossível a crítica ao praticismo a partir do seu interior. Tal como as testemunhas de Jeová, o praticista não consegue desenvolver o seu para-si e por isso não pode superar a si próprio. Será, talvez, extinto pela história, mas jamais poderá superar a si próprio.
Frente à crítica das suas insuficiências, a forma mais comum como se apresenta essa impossibilidade de o praticismo elevar-se ao seu para-si é a pergunta: "então, o que fazer?" A resposta óbvia, "romper com o praticismo", é inaceitável ao horizonte praticista, pois este concebe o "pensar", o "estudar", o "refletir" como não-fazer, como não-atividade. Ao praticista contemporâneo surge como enorme surpresa o fato de Marx ter passado quinze anos "praticando" cotidianamente, muitas horas por dia, o estudo teórico mais puro para escrever uma obra, de enorme importância "prática", como O Capital. Ou então de Lenin, em plena I Guerra Mundial, com a enorme tarefa de reorganizar o movimento revolucionário desarticulado pela traição dos líderes da II Internacional que aderiram ao belicismo de suas classes dirigentes, com a enorme urgência "prática" de salvar os trabalhadores que se matavam nas trincheiras, ter dedicado meses a fio a estudar ... Hegel! Estudar, pensar, refletir, é uma atividade tão "prática", para os revolucionários, como organizar um piquete ou uma eleição sindical. E, após décadas de praticismo, essa atividade "prática" adquiriu tal urgência que apenas o estreito universo praticista pode considerar o estudo e a reflexão como não-atividade, como não-prática. Não se trata, obviamente, com este jogo de palavras, de justificar o puro academicismo. Ele também parte da degradação da consciência contemporânea. Mas apenas de salientar a forma cotidiana pela qual se apresenta a rigorosa impossibilidade de o praticismo elevar-se ao seu para-si, a inviabilidade de superação do praticismo "por dentro".
Nesse ambiente, constitui-se um dos pilares da ideologia praticista: as derrotas são, todas elas, inevitáveis, tão inevitáveis como a revolução que brotará, Deus sabe lá como, da ação irrefletida e cega dos que pretendem transformar o mundo. Tal fatalismo é o traço ideológico fundamental que permite à enorme maioria dos militantes sincretizarem a crença em Deus, ou em alguma forma de misticismo, com o marxismo (obviamente sob uma forma degradada e domesticada pelo alienado senso comum)! Algo como se o pensamento marxiano pudesse ser dissociado em uma parte filosófico-materialista, esta sim atéia e equivocada, e uma porção histórico-política, articulada pelo conceito de luta de classes, que deveria ser aproveitada para pensar o mundo que vivemos. Marx, desprovido de seu fundamento ontológico, pode coabitar com Deus a mesma concepção de mundo!
Ação sem teoria, vida cotidiana carente de toda reflexão teórica, reprodução ampliada da ignorância a cada geração, prática política taticista e reformista, transformaram-se no modus vivendi dos militantes políticos. Os revolucionários, de seres essencialmente curiosos e inconformados com o "destino", converteram-se, pela mediação do estalinismo, em meros praticistas, ignorantes, fatalistas e reformistas, que há muito perderam contato com a tradição revolucionária. A forma de práxis política resultante dessa degenerescência é o praticismo de nossos dias.
Nesta medida e neste sentido, para os praticistas, a prática se transformou na instância única de produção e de resolução dos problemas teóricos. Eles levam até às últimas conseqüências a concepção estalinista segundo a qual toda teoria revolucionária deve voltar-se aos problemas "práticos" colocados pela luta de classe. Como por "problemas práticos" eles entendem apenas a imediaticidade fenomênica do processo histórico, a pseudo-teoria que produzem é incapaz de abarcar determinações essenciais, universais da realidade. Pode ser tudo, menos uma teoria revolucionária. Voltados cegamente à prática, cultivam convicções e não o espírito crítico e investigador, acumulam experiências mas não conhecimento, repetem-se ao infinito, independentemente de quantas derrotas venham a sofrer. São, enfim, individualidades que desdobram uma relação com a totalidade social marcada pela incapacidade em apreender o real. São místicos hiper-ativos que crêem na revolução, mas não revolucionários.
Por que "sem Teoria Revolucionária não há Revolução"?
Esta frase de Lenin, de O que Fazer?, perdeu completamente seu significado original ao ser infinitas vezes repetida pelos praticistas. Afinal de contas, a que ela se referia?
Para Marx, não há atividade humana que não seja uma síntese de pensamento e transformação do real. Toda e qualquer ação humana é, na concepção marxiana, uma transformação do real orientada por uma prévia-ideação. Em poucas palavras, a especificidade ontológica do ser social está na sua capacidade de teleologicamente transformar o real.
Tanto a atividade humana mais primordial, a transformação direta da natureza para a produção de valores de uso, como a atividade social mais desenvolvida, como a luta política ou a produção de obras de arte, são sempre e necessariamente sínteses de prévias-ideações com as determinações causais do mundo objetivo. A consciência, nessa medida e sentido, é órgão e médium decisivo da reprodução social: sem ela não há mundo dos homens.
O desenvolvimento de uma objetividade social cada vez mais densa, ao invés de diminuir, aumenta a importância da subjetividade. Esse complexo fenômeno pode ser introdutoriamente compreendido se nos ativermos ao fato de que, até para a produção da mercadoria mais simples, nas sociabilidades mais evoluídas é necessária uma cadeia de ações práticas e coordenadas entre diferentes indivíduos. Essa coordenação exige que eles sejam convencidos a agir de modo apropriado. Para isto, são necessários a gênese e o desenvolvimento de relações sociais, que atuam diretamente sobre a subjetividade. Tal é o fundamento último da origem do direito, do Estado, dos costumes, da moral, da ética etc.. Uma parte ponderável das energias humanas é consumida nesse trabalho de moldagem das subjetividades para que elas se comportem, nas mais diversas situações, da maneira socialmente esperada.
A indissociabilidade entre teoria e ação na práxis humana, segundo Marx, tem seu fundamento na concepção de que, ao contrário do ser natural, o mundo dos homens é um construto humano. Enquanto a natureza se desenvolve de acordo com sua causalidade própria, cujo desdobramento se dá com a ausência da consciência, o mundo dos homens pode existir apenas através da transformação conscientemente orientada do real. Tudo no ser social exibe uma gênese, existência e reprodução apenas possíveis através de ações humanas que objetivam prévias-ideações. A objetividade humana, ao contrário da natureza, é composta não por simples objetos, mas por objetivações, diria Lukács em sua Ontologia do Ser Social16.
Essa indissociabilidade entre pensamento e ação, entre prévia-ideação e objetivação, entre a teleologia e a causalidade social, é que permite a Marx afirmar que é o "ser material do homem que determina sua consciência". As necessidades socialmente construídas pelos homens, através da transformação teleologicamente posta do real, impulsionam os homens à busca de uma compreensão cada vez mais aprofundada da realidade. Como essa busca se dá tendo em vista possibilidades e necessidades socialmente produzidas em cada momento histórico, as concepções do real que a cada momento os homens podem alcançar são também distintas, historicamente determinadas. Pensamento e ação, compreensão do real e transformação do mesmo, subjetividade e objetividade são, em Marx, momentos distintos que apenas podem existir em insuperável articulação no mundo dos homens. Isto porque, acima de tudo, o ser social é uma síntese entre subjetividade e objetividade, entre teleologia e causalidade.
Se isto é verdadeiro para toda e qualquer atividade humana, em se tratando da prática revolucionária a importância da subjetividade é ainda maior.
A revolução é um fenômeno que surge com a sociedade capitalista. Apenas na transformação do feudalismo em capitalismo o desenvolvimento do gênero humano atinge patamares que permitem aos homens "tomar a história em suas mãos". Ou seja, que permitem aos homens uma atividade social mais rica, a qual comporta a prévia-ideação de um novo projeto social, e a prática correspondente para, através da tomada do poder político e do terror revolucionário, destruir o velho e construir o novo.
Entre os inúmeros fatores históricos indispensáveis para a destruição da velha ordem, dois são decisivos para o tratamento do nosso tema. O primeiro: é absolutamente necessário a identificação das potencialidades de transformação revolucionária inscritas no real. O que requer o conhecimento do real de modo a poder delimitar, no complexo movimento da vida cotidiana, aqueles elos sobre os quais atuar para que a transformação da totalidade social seja viável.
Em segundo lugar, para a transformação dessas potencialidades em atos é decisivo que as pessoas sejam convencidas não apenas da sua necessidade, mas também da sua viabilidade. Ou seja, além do conhecimento aprofundado do real, é fundamental a luta político-ideológica, no seu sentido mais amplo, para convencer as pessoas a agirem não do modo tradicional como o fazem, mas de modo inovador, de forma a revolucionar as suas vidas.
Nessa medida, entre o velho e o novo se interpõe uma mediação decisiva e ineliminável, segundo a concepção marxiana, que é a subjetividade. A importância do momento subjetivo para as revoluções, segundo Marx, pode ser melhor compreendida se nos detivermos sobre a peculiaridade dos momentos revolucionários em relação à vida cotidiana. No dia a dia, as pessoas agem impulsionadas pelas determinações oriundas, em última análise, da reprodução do capital. O operário vai à fábrica e age como se o lucro do patrão fosse produzido pelo capital e não pela sua força de trabalho. A dona de casa compra a mercadoria como se isso fosse um ato natural e inevitável, como se a vida não pudesse ser de outra forma. As relações monogâmicas de casamento e a propriedade familiar a ela associada impõem-se no dia-a-dia como se fossem as coisas mais naturais, inevitáveis. As determinações da vida regida pelo capital ganham uma fatalidade e uma ahistoricidade quase absolutas. Desse modo, a reprodução do capital termina por penetrar, através de inúmeras mediações, nos atos humanos mais irrisórios e cotidianos, determinando a reprodução social com uma intensidade desconhecida das sociedades pré-capitalistas. Nunca a reprodução da vida material jogou um peso tão grande na determinação da totalidade social como ocorre na sociabilidade burguesa.
Reconhecer este fato, contudo, não significa concordância com a tese, de fundo althusseriano e marxista vulgar, segundo a qual tudo na sociedade burguesa é determinado pelo capital e, por isso, tudo é ideologia capitalista. A sociabilidade burguesa é uma forma particular de afirmação histórica do gênero humano e, por isso, possui no seu interior realizações que certamente não serão extintas junto com as relações capitalistas. Reconhecer esse fato não implica na adoção de um projeto reformista, mas este é um assunto que não tem cabimento tratar neste momento.
No dia-a-dia, portanto, e no capitalismo mais do que em qualquer sociedade anterior, as relações sociais objetivas, notadamente aquelas oriundas da esfera econômica, assumem uma importância decisiva, são o momento predominante da reprodução social. Tal situação, contudo, passa por uma mudança qualitativa em um momento revolucionário. Este se caracteriza pelo fato de as contradições sociais terem alcançado tal grau de maturidade que instauram a potencialidade objetiva de superação da velha ordem. Esta potencialidade, latente na vida "normal" capitalista, passa por um salto de qualidade e adquire uma existência social reconhecível em ampla escala. A sociedade perde o seu funcionamento cotidiano "normal" e entra em crise, o comportamento cotidiano dos indivíduos não mais reproduz os mandamentos do costume, da moral, da tradição, da sexualidade, para não dizer das relações econômicas estrito senso, como respeito à propriedade privada, ao direito de herança etc..
Essa crise, contudo, ainda não é a revolução. Para que as potencialidades revolucionárias sejam convertidas em realidade, é necessário uma intervenção consciente dos homens, de modo a superar o velho em novo. Os revolucionários, nesses momentos históricos, devem ser capazes de convencer que a melhor alternativa aos problemas sociais é a transformação revolucionária do real: do contrário, a desorganização da reprodução da vida material, inevitável em tempos de crises, termina por conduzir a penúrias ainda maiores que as da velha ordem e, desse modo, o antigo regime termina por impor-se novamente. Todas as revoluções até hoje conheceram momentos em que, após a tomada do poder, a crise econômica, a fome e a miséria originaram um forte movimento contra-revolucionário, ao qual os revolucionários opuseram o terror.
Nenhuma revolução pode ser explicada, nos seus desdobramentos internos, a não ser por essas variações da disposição subjetiva das massas para agirem com, ou contra, a velha ordem. Quem se dispuser a explicar, por exemplo, as fases da Revolução Francesa, ou de 1917 na Rússia, diretamente a partir das "transformações das determinações infra-estruturais", ver-se-á diante de uma total impossibilidade. Nesses momentos, o peso do momento subjetivo é determinante e por isso a luta ideológico-política é a prática social decisiva nas revoluções. Enfim, nos momentos revolucionários, a história será determinada não pela reprodução do capital, mas pela determinação dos homens em agirem no sentido de construir o novo ou repor o velho.
Neste sentido e medida, se em nenhuma prática social, se em nenhum momento da vida cotidiana, prática e teoria estão absolutamente dissociadas, para a prática revolucionária a teoria possui uma dimensão ainda mais significativa. Pois, sem a posse de uma concepção de mundo que permita tanto a crítica da sociedade burguesa, quanto a proposição de uma viável sociabilidade socialista, será impossível ganhar o coração e as mentes das pessoas para a revolução no momento em que esta for posta, em escala social, como possibilidade objetiva.
Em suma, "Sem teoria não há revolução" porque, no plano mais geral, não é possível transformar a realidade sem o momento da prévia-ideação, sem a mediação da consciência. No plano mais restrito, porque sem o conhecimento da sociedade capitalista não é possível identificar as formas historicamente determinadas em que se apresentam, a cada momento particular, suas potencialidades revolucionárias. E, sem essa identificação, nenhuma estratégia e tática revolucionárias dignas do nome pode ser elaborada.
Conclusão
O fenômeno do praticismo "revolucionário" é tão extenso em sua abrangência e abarca um período tão longo de tempo que parece indicar que na sua base está uma alteração significativa na relação entre aquilo que Lukács chama de "período de conseqüências" de uma objetivação e a constituição da próxima ideação. Não é este o momento para entrarmos nessa discussão, mas uma tal alteração parece indicar que, nos momentos em que predomina a contra-revolução, como os que vivemos, a práxis social, incapaz de superar os limites imediatos do real, termina por ser também incapaz de produzir, em larga escala, prévias-ideações que sejam portadoras das potencialidades do novo objetivamente presentes na realidade. Incapaz de enxergar para além das misérias cotidianas, a concepção de mundo que o homem é capaz de produzir nesses momentos históricos é perpassada pelo fatalismo, pelo misticismo e pelo conformismo. Se isso for verdade, o praticismo "revolucionário" seria então a manifestação, na esfera da práxis revolucionária, dessa transformação de fundo na relação entre o "período de conseqüências" e a constituição das prévias-ideações. As complexas questões aqui aludidas obviamente não podem ser tratadas de modo adequado no espaço desta conclusão, mas a elas voltaremos oportunamente.
O que desejamos, ao tocar neste complexo de questões, é evitar toda compreensão praticista e voluntarista desta problemática: os revolucionários se transformaram em praticistas reformistas não apenas porque assim optaram, mas porque são, eles também, o resultado de uma processualidade histórica que ajudaram a construir, se conscientemente ou não aqui pouco importa. O estalinismo, mediação histórica tão decisiva para a transformação dos revolucionários em praticistas, é um dos aspectos decisivos da constituição da maré contra-revolucionária em que vivemos. Ele foi uma das mediações históricas que propiciaram vitórias decisivas ao capitalismo porque, entre outras coisas, desarmou teoricamente o movimento revolucionário.
Por isso, e sendo breve, o praticismo contemporâneo não tem a menor possibilidade de transformar-se, por si só, em uma prática efetivamente revolucionária. A concepção de mundo que lhe é inerente possui traços místicos, teleológicos e fatalistas que o aproximam muito mais das formas religiosas de consciência do que de uma reflexão científica do real. Cercado pela miséria civilizatória da contra-revolução, o indivíduo que deseja revolucionar a vida se percebe emaranhado num círculo vicioso: sua práxis obnubila a reflexão teórica, e "sem teoria não há revolução". Preso no "círculo de ferro" da fetichizada racionalidade do mundo burguês, o indivíduo típico se transforma em um novo tipo de místico (mantém a militância porque "crê" na revolução, ainda que não saiba explicá-la) ou em um ex-militante que se deixa seduzir pelo individualismo vigente.
Contudo, em que pese a intensidade e a amplitude das tendências históricas contra-revolucionárias sob as quais vivemos, ao contrário do que pode conceber o pobre horizonte teórico praticista, elas de modo algum são onipotentes, restando sempre uma margem de manobra para que ainda que limitadamente, pois sem contar com condições históricas favoráveis indivíduos com elas rompam e desdobrem existências que se oponham, para permanecer no nosso tema, ao "círculo de ferro" do praticismo.
Sendo o praticismo resultante de um processo histórico construído também pelos estalinistas, e não um resultado fatal e inevitável da processualidade histórica, é possível aos indivíduos uma margem de liberdade para, se assim quiserem, escapar, ainda que parcialmente, desta determinação mais genérica.
Estas considerações remetem ao fato ontológico de fundo que, no mundo dos homens, não há situação concreta que não ofereça diversas alternativas de respostas para a ação dos indivíduos nela envolvidos. Certamente, ao circunscrever tanto as necessidades como o horizonte de possibilidades para respondê-las, a realidade é predominante na determinação do agir individual. Contudo, já que tanto as determinações mais genéricas, como aquelas mais singulares, apenas podem vir a ser e reproduzir-se através dos atos cotidianos dos indivíduos socialmente existentes, tanto as necessidades como os horizontes postos pelo real podem ser alterados, dependendo das respostas objetivadas. Trotsky se referia a este complexo de questões ao afirmar ser tarefa dos revolucionários "alargar as fronteiras do possível". Não há situação em que a esfera da liberdade esteja absolutamente excluída.
As vidas de Gramsci e Lukács demonstram com clareza a que conjunto de problemas nos referimos. Ambos, mesmo sob o pior cerco estalinista, mesmo com a opção de continuarem no interior do estalinismo, Lukács em Moscou e Gramsci nas prisões fascistas, foram eles capazes de produzir o melhor marxismo, em obras densas e complexas, que recusam o marxismo vulgar e alargaram "as fronteiras do possível". A opção individual, a decisão de levar avante a investigação teórica, a convicção pessoal de cada um da importância decisiva das idéias para o movimento revolucionário, foi um elemento decisivo (certamente não o único, mas é o que nos interessa agora) para que suas obras servissem de balizadores do melhor marxismo contemporâneo.
Não há dúvidas de que eles pagaram um preço elevado à realidade em que viveram. Suas obras são respostas a uma situação de cerco, suas vidas marcadas pela situação histórica. Mas esse fato não elimina o que acima apontamos: mesmo em situações de extrema dificuldade, a decisão pessoal joga um papel decisivo na configuração da vida de cada indivíduo, na construção da cada individualidade e na sua articulação com o desenvolvimento histórico.
Tal espaço de liberdade é da maior importância para a discussão do complexo problemático do qual nos ocupamos. Pois evidencia que, mesmo sendo o praticismo um fenômeno tão generalizado, que sugere uma correspondência com a alteração mais geral das conexões internas à prática social devido ao prolongado predomínio de tendências históricas contra-revolucionárias, a contraposição a ele é possível no espaço de liberdade (sempre limitado em situações contra-revolucionárias, mas não menos real) aberto às decisões individuais. Sem que os indivíduos assumam a responsabilidade histórica da crítica ao praticismo e do estudo, não há qualquer possibilidade de acumulação teórica que permita, num momento histórico mais favorável, que autênticas ações revolucionárias venham a substituir nossas limitadas realizações.
A decisão de não reproduzir o praticismo, imediatamente sempre individual, é permeada pelas maiores dificuldades, pois significa contrapor-se à cotidianidade dos partidos, sindicatos etc.. Significa alguma forma de isolamento social. A ruptura com a cotidianidade sempre produz alguma forma de isolamento. É uma decisão que não é desprovida de conseqüências nas mais diversas áreas da subjetividade. Todavia, não há como amenizar esse, digamos assim, desconforto a ela inerente. É o preço a ser pago para que a teoria revolucionária possa sobreviver aos dias negros que vivemos.
Em suma, o praticismo "revolucionário" é a forma que assumiu a prática "transformadora" após anos de contra-revolução e estalinismo. Ele se caracteriza por, no plano teórico, subsumir de forma mecânica e absoluta a teoria à prática, de tal modo que o fazer cotidiano é encarado como a única esfera, ao mesmo tempo, produtora e resolutiva da teoria. Com o abandono da teoria daí decorrente, o taticismo e o reformismo passam a ser a característica política marcante dos praticistas. A crítica científica ao mundo burguês é substituída por uma crítica que se restringe à esfera fenomênica mais superficial, podendo embasar apenas propostas tímidas de reformas parciais do capitalismo.
No plano "prático", o praticismo se caracteriza pela hiper-atividade cega dos militantes. Um voluntarismo extremado se articula com a incapacidade em analisar teoricamente tanto a atuação revolucionária quanto a realidade em que ela ocorre, levando o militante a correr atrás dos fatos, numa dinâmica onde estudar significa perder tempo. Como a luta de massas não mais se faz de forma direta (e este é um dos traços do momento contra-revolucionário que vivemos), mas através da mediação do burocratizado aparelho sindical e partidários (seja ele PT ou organizações menores, como PSTU, PC do B etc.), a luta por espaço no interior destes aparelhos substitui a militância dos revolucionários junto às massas. A predominância prática da luta mediada pelos aparelhos burocráticos termina, também, por burocratizar e estreitar a visão de mundo dos militantes. Além disso, a luta pelo poder no interior dos aparelhos possui uma dinâmica de tal forma frenética que, quem dela participa, não consegue desenvolver uma efetiva reflexão (as poucas exceções apenas confirmam a regra). A hiper-atividade cega se recoloca, aqui também, em um outro nível: os dirigentes são tão praticistas como os militantes de base, na enorme maioria dos casos.
Superar ao menos parcialmente este quadro (já que uma completa superação depende, para sermos breves, de uma mudança do caráter contra-revolucionário do período histórico que atravessamos) é condição imprescindível para que a teoria revolucionária possa reproduzir-se com a qualidade mínima indispensável à sua sobrevivência. E, nessa superação parcial, a importância da decisão individual não poderia ser exagerada. Se os revolucionários passarem a produzir mais e melhor teoria, talvez sobrevivamos como uma corrente teórica significativa neste final de século. Mas, se continuarmos a reproduzir o praticismo como temos feito por décadas, a atual geração de praticistas será tão somente um elo a mais no trágico processo de degenerescência do marxismo neste século.
1 - As discussões com Ivo Tonet, ao longo de anos, de convivência, foram fundamentais para o desenvolvimento desta reflexão. As observações pontuais de Ronald Rocha ajudaram a corrigir os seus erros mais graves. A ambos os nossos agradecimentos.
2 - Não desejamos, com isso, negar o caráter nacional das revoluções, nem o fato de que os passos iniciais da transição para o socialismo poderão ocorrer em países isolados. A fonte mais interessante para esse debate por ocasião da Revolução de 1917 são ainda as minutas das reuniões do CC bolchevique daquele ano. Cf. The Bolcheviques and the October Revolution; Londres, Pluto Press, 1974.
3 - Victor Serge, em Memórias de um revolucionário (Companhia das Letras), é um autor indispensável para a compreensão da postura dos "velhos" revolucionários para com os rumos inimaginados que tomava a Revolução Russa.
4 - O processo de degenerescência do marxismo enquanto ciência é muito mais mediado do que este esboço sugere. Papel decisivo, por exemplo, joga a leitura positivista de Marx feita por teóricos da II Internacional na passagem do século XIX ao XX. Contudo, não podemos deter-nos sobre esse aspecto da questão.
5 - Cf. LUKÁCS, G.. Carta sobre o estalinismo. Portugal, Seara Nova, 1978.
6 - A Crise do Movimento Comunista. Há uma edição brasileira, mal feita. Quem puder leia o original, em espanhol, que é uma obra-prima. (Editora Ruedo Iberico) O reconhecimento dos méritos de Claudín e, logo a seguir, de algumas obras de Semprún, não deve velar nossa discordância com a evolução posterior de ambos para a social-democracia.
7 - Cf. VALTIN, Jean; Do Fundo da Noite, livro esgotado, mas que posso fornecer fotocópia aos interessados, e também SEMPRÚN, J.; Autobiografia de Federico Sanchez e Que Belo Domingo, ambos facilmente encontrados nas livrarias.
8 - Nesse contexto, há um outro aspecto que é necessário mencionar: a atualidade da revolução se desloca do cenário europeu para o asiático, e sua forma e conteúdo perdem o caráter proletário para se converterem em lutas nacionalistas e camponesas.
9 - Cf. CLAUDÍN; op. cit., e FORCADELL, C.; Parlamentarismo y bolchevización; Espanha, Ed. Critica, 1978.
10 - Para citar apenas o caso mais escandaloso: entre 1933 e 1941, Hitler foi considerado como aliado informal (1933), inimigo da humanidade (1935), amigo do socialismo e amante da paz (1939) e novamente inimigo da paz e do socialismo (1941)!
11 - Cf. Que Belo Domingo.
12 - Cf. SEMPRÚN, J.. Autobiografia de Federico Sanchez.
13 - Cf. TERTULIAN, N.; "Georg Lukács e o estalinismo"; In: Revista Práxis no. 2; Belo Horizonte, Projeto, 1994, e OLDRINI, G.; "Gramsci e Lukács avversari del marxismo della II Internazionalle"; In: Giornale Critico della Filosofia Italiana, maio-agosto 1991 (a fotocópia do mesmo pode ser obtida junto ao Centro de Documentação Lukács da Universidade Federal de Alagoas).
14 - Sobre isto, veja-se a interessante reflexão de Semprún em Que Belo Domingo.
15 - Cf. LESSA, S.. "Lukács e o marxismo contemporâneo"; In: Temáticas no. 1/2; IFCH-UNICAMP, 1993.
16 - LUKÁCS, G.. Per l'ontologia dell'essere sociale. Roma, Ed. Riuniti, 1976/81, II**. p. 353.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 4, Julho de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.
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