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Nacionalismo, Antipopulismo e Modernidade:Além do Falso Debate | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Lúcio Flávio de Almeida
Lucio_Flavio@revistapraxis.cjb.net
Professor do Departamento de Política da Pontifícia Universidade Católica-São Paulo, PUC-SP, e membro do coletivo de sócios da Revista Práxis.
No interior do espólio político e intelectual legado pelo populismo no pré-64, o nacionalismo ainda avulta como uma questão pendente. Não faltaram aqueles que, em nome do movimento operário, descartaram o nacionalismo como um traste indesejável. Ideologia que consagrava uma política de colaboração de classes, pedra de toque de uma aliança espúria do movimento operário com o populismo em crise, opção catastrófica em nome da qual os principais grupos de "esquerda" abandonaram a tarefa de atribuir uma organização autônoma à classe operária, o nacionalismo teria arrastado o movimento popular rumo ao abismo de 64.
Por outro lado, apesar do grande impacto que aquela ideologia exerceu, são poucos os atores sociais que, tendo participado ativamente das lutas do período, nela se reconhecem. E os que o fazem não identificam no nacionalismo populista as características mencionadas acima, tendendo, ao contrário, a atribuir a derrota de 64 mais aos "acertos" do que aos "erros" então pretensamente cometidos.
Além disso, aquele veredicto não conseguiu eliminar inteiramente a atração que o nacionalismo tem exercido sobre importantes setores da vida política brasileira, principalmente entre as "esquerdas". Existem, inclusive, os que pretendem demonstrar que, assim como as políticas de desnacionalização das economias dos países latino-americanos foram implementadas por regimes ditatoriais, o nacionalismo que surge nas sociedades situadas ao sul do Rio Grande é intrinsecamente democrático.
Obviamente, os tempos são outros e, no momento, são os liberais que se encontram na ofensiva ideológica. Mesmo assim e por isso mesmo , uma crítica ao nacionalismo poderá contribuir para a busca de alternativas efetivas ao capitalismo, tanto em suas versões monetárias como estatizantes. Contribuir, por exemplo, para que os que se identificam com os interesses operários e populares escapem aos falsos dilemas dos tipos estatismo x privatismo e autarquia x inserção na nova economia internacional. Dessa forma, talvez se contribua para a definição, em cada conjuntura, de políticas que, para além das simples querelas que dividem os ideólogos quanto ao melhor meio de desenvolver a exploração capitalista neste País, possam apontar para possíveis questionamentos à dominação burguesa aqui e alhures.
Nesta nova fase de internacionalização do capitalismo, na qual é o proletariado quem, paradoxalmente, mais se vê premido pelos constrangimentos de ordem nacional, um debate sobre o nacionalismo no Brasil não possui importância somente acadêmica nem se restringe a um período histórico já encerrado.
Neste artigo, farei breves referências:
1) ao contexto histórico de emergência do nacionalismo populista como aspecto importante das relações entre Estado e classes populares no Brasil;
2) às linhas mestras dessa ideologia;
3) às sucessivas redefinições que ela sofreu no bojo de suas apropriações por distintas forças sociais. Finalmente, farei um rápido cotejo com o papel do principal fulcro do liberalismo brasileiro ao longo do período.
Espero que o esquematismo do texto, embora corra o risco de simplificar questões demasiado complexas, contribua para facilitar o (re)início do debate sobre o tema.
A crise estrutural
"Façamos a revolução antes que o povo a faça". Essas palavras, pronunciadas por um chefe oligárquico, exprimiam com admirável crueza as contradições do movimento político-militar que pôs um termo à chamada República Velha. Em sua primeira fase, o discurso expressa um jogo de forças que, para além do horizonte político de vários de seus protagonistas, abriria caminho para extraordinárias mudanças institucionais que se realizariam a partir daquele movimento.
De fato, a "Revolução de 30" abriu caminho para a reestruturação do Estado nacional, tornando-o melhor aparelhado para o prosseguimento, em novos termos, do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Criaram-se condições para a constituição de um espaço econômico mais integrado: centralizaram-se, no âmbito do Estado nacional, mecanismos de políticas econômicas setoriais que antes estavam sob controle dos Estados; e o próprio Estado não apenas se aparelhou para utilizar mais adequadamente seus instrumentos de política econômica, como, a partir de um certo momento, seus próprios investimentos diretos foram fatores essenciais para o prosseguimento do processo de industrialização. Nesse sentido, ocorreu, de fato, uma ruptura com a velha ordem oligárquica.
A especificação é importante: desenvolvimento do capitalismo em novos termos e não início do desenvolvimento capitalista no Brasil.
Certos autores já observaram que todas as forças constitutivas da ordem capitalista já estavam presentes, de um certo modo, na formação social brasileira, bem antes de 1930. Portanto, convém precisar o sentido que se atribui à "velha ordem oligárquica".
Em primeiro lugar, já existia um parque industrial relativamente importante e dotado de uma capacidade de acumulação não negligenciável durante a "República Velha". Esse setor industrial não se constitui em condições totalmente adversas, a partir, por exemplo, apenas do artesanato ou da pequena empresa, ao longo de um penoso processo de concentração e centralização do capital. Pelo contrário, outras condições estiveram na base de sua implantação: uma considerável acumulação de capital, um setor financeiro relativamente desenvolvido e um grande número de "trabalhadores livres".
Por sua vez, tais condições não eram inteiramente alheias ao setor que desempenhou o papel principal na acumulação capitalista ao longo do período, ou seja, o setor cafeeiro. Essas primeiras grandes indústrias foram instaladas com capitais acumulados na comercialização de café e seus operários eram, em sua maioria, imigrantes cuja chegada ao Brasil só adquire inteligibilidade quando situada no interior de um processo de constituição de um mercado de trabalho na região cafeeira.
A constatação desses fatos, hoje bastante conhecidos, levanta a necessidade de examinar as relações entre o capital cafeeiro e o capital industrial. A esse respeito, são valiosas as análises que procuram situar a expansão cafeeira e a industrialização como dois momentos da transição para o capitalismo industrial no Brasil1. Tais análises nos permitem ir além das hipóteses que consideram as relações entre esses dois momentos como simples relações setoriais (agricultura-indústria) e centrar o foco no exame de um processo de acumulação de capital cujo núcleo não era nem o capital agrário, nem o capital industrial, mas o capital mercantil. É nesse sentido que se pode afirmar que o capital cafeeiro era fundamentalmente um capital mercantil e que era predominantemente no âmbito desse capital mercantil que se acumulava o capital engendrado, em um primeiro momento, na produção de café e, depois, também a partir da produção industrial.
Tal perspectiva também nos permite efetuar uma de marcação no interior do grupo que foi tradicionalmente denominado "as oligarquias", isto é, os grandes proprietários de terra, cujos principais representantes ("os fazendeiros de café") teriam detido o poder de Estado durante a "República Velha". Trata-se da distinção entre os proprietários de terra (inclusive os "fazendeiros de café") e a grande burguesia cafeeira. Essa, embora fosse constituída também por grandes fazendeiros de café, definia-se objetivamente enquanto burguesia mercantil, ligada às atividades de financiamento, importação e exportação.
A esse respeito, é preciso evitar a armadilha do discurso ideológico do período. Freqüentemente, o discurso anti-industrialista era formulado em termos da "defesa do café" ou mesmo da "defesa da agricultura", o que induzia muitos dos agentes sociais da época a supor que a política do Estado privilegiasse os interesses dos "proprietários de terra". Todavia para ficarmos neste exemplo a política de valorização do café foi imposta pela grande burguesia cafeeira e exprimiu, de modo exemplar, a predominância dessa fração de classe no interior da classe dominante brasileira2.
Todavia, se a dominação do capital mercantil criava certas condições para a acumulação de capital industrial, ela estabelecia, por outro lado, limites bem rígidos para o desenvolvimento das forças produtivas e, em particular, da industrialização. Jacob Gorender explica como, "já no início dos anos trinta (...) o chamado 'complexo cafeeiro' deixara de ser positivo para o desenvolvimento industrial e se convertera nitidamente em obstáculo"3. Não será feita, aqui, uma análise exaustiva dessas relações contraditórias entre o capital mercantil e o capital industrial, mas apenas serão mencionados alguns dos impactos que tais relações produziram sobre o desempenho desse último: tratava-se de indústrias cuja produção era, em sua maioria, de bens de consumo4 e que não eram beneficiárias senão incidentalmente de uma política (em particular política financeira) cuja lógica era ditada principalmente pelos interesses do capital mercantil.
Voltemos à nossa célebre exortação.
Na medida em que as transformações institucionais efetuadas pela "Revolução de 30" expressaram o deslocamento da posição da burguesia agro-mercantil no interior da nova coalizão dominante, tratava-se, de fato, de uma ruptura com a velha ordem oligárquica. Esse foi o aspecto "revolução".
Mas Antônio Carlos não se enganava quanto à escolha dos protagonistas. Não se tratava de fazer a "revolução" com o povo, nem tampouco em nome do povo, mas de manter o povo fora do palco onde se faria a "revolução". Em sua segunda parte, a conclamação do oligarca mineiro expressava a natureza nem sempre visível de todos os movimentos políticos que são feitos sem a participação popular organizada: a contra-revolução e, com ela, os compromissos com a velha ordem que acabava de ser parcialmente rompida.
Embora tenha provocado a ruptura do sistema oligárquico, a "Revolução de 30" não destruiu inteiramente o poder das oligarquias". Durante muito tempo, o setor agro-exportador continuaria sendo o núcleo da acumulação capitalista e as massas rurais ainda deveriam esperar três décadas para que algumas vozes, do interior do Estado populista, sussurrassem-lhes timidamente que a "Questão Social" não era um caso de polícia. E quando, no início dos anos sessenta, os movimentos rurais engataram marcha própria, deu no que deu.
Todavia, a referência ao "povo" não era simples figura retórica. Se o movimento de constituição da burguesia industrial na "República Velha" foi o mesmo movimento de sua inserção no bloco no poder (introduzindo-se aí sem nenhum processo de mobilização popular), a contrapartida desse processo foi a constituição de um proletariado industrial relativamente concentrado e dotado de grande combatividade. E se a burguesia industrial se acomodava como podia no interior da velha ordem oligárquica, o movimento operário, por sua vez, conseguia criar formas de organização econômico-corporativas (e mesmo políticas) à margem e, em certa medida, fora do controle do sistema institucional existente.
Nesse contexto, a burguesia industrial não dispunha de grande espaço de manobra. Fustigada "de cima", pelo conjunto de setores agro-mercantis e, "por baixo", pelo movimento operário, ela se defrontava com dois adversários que, em certas conjunturas, ameaçavam minar suas próprias bases de acumulação.
No essencial, a política da burguesia industrial foi a de buscar o máximo de acomodação com os setores agro-mercantis e manter o máximo de intransigência diante do movimento operário. A esse respeito, a posição dos empresários industriais de São Paulo foi típica: de um lado, fidelidade ao principal partido "oligárquico" do país, o PRP, e, de outro, recusa sistemática a reconhecer sequer a legitimidade das reivindicações operárias5.
O compromisso não se fazia sem tensões. Freqüentemente, os industriais tiveram que se defrontar com os ataques dos setores agro-mercantis, cujo discurso elegia como alvo privilegiado as "indústrias artificiais". Essas viveriam, no dizer de seus opositores, em ambiente de estufa, completamente deslocadas em um País de vocação agrária; utilizavam matérias-primas importadas, drenando para o exterior riquezas produzidas pela agricultura; sobreviviam à sombra de favores alfandegários e cambiais, o que, além de impedir o livre jogo do mercado, onerava o tesouro nacional, corroía o valor da moeda e encarecia o consumo de produtos (estrangeiros) de melhor qualidade6.
Na base desse discurso, que empolgava setores das altas camadas médias7, existiam contradições reais, que envolviam interesses que, inclusive, transcendiam os limites da formação social brasileira.
Ao se expandirem por faixas de bens de consumo fabricadas no exterior, os industriais entravam em contradição não apenas com o capital cafeeiro e as camadas médias tradicionais, como também sofriam os efeitos do tipo de dominação imperialista predominante no período. Frente aos setores voltados para as atividades de importação/exportação, a principal controvérsia dizia respeito à política fiscal e canibal.
Enquanto os industriais queriam uma política protecionista, que taxasse pesadamente os bens de consumo importados, mas não as matérias-primas e bens de capital que eram adquiridos no exterior, os setores agro-mercantis, assim como as camadas médias tradicionais, tinham interesse em uma política que possibilitasse a mais livre importação de bens de consumo. O que, aliás, era do interesse dos exportadores estrangeiros.
Tais elementos demonstram que a dominância do capital mercantil na formação social brasileira e a hegemonia da burguesia cafeeira no interior no bloco no poder expressavam e, ao mesmo tempo, reproduziam, um tipo de dependência. Esta assinalava um lugar específico dessa formação social no interior da divisão internacional do trabalho: o de exportador de produtos agrícolas e importador de mercadorias manufaturadas e capital bancário. Nesse contexto, o prosseguimento em novos termos do desenvolvimento capitalista no Brasil não somente implicaria uma alteração das relações de classes no interior da formação social, como também uma redefinição de sua própria dependência frente ao sistema imperialista. Redefinir tal posição exigia, de um lado, um certo tipo de mobilização popular, o que significava, por outro lado, correr o risco de abrir caminho para o questionamento da própria dependência.
Ora, a afirmação de que a "Revolução de 30", ao ampliar o sistema político para absorver os setores excluídos pela velha ordem oligárquica, efetuou uma democratização do Estado deve ser relativizada pela consideração desse processo em seu duplo aspecto: o de uma ruptura e o de uma contra-revolução; o de uma ultrapassagem e o de um compromisso com o passado. O mesmo movimento pelo qual o Estado se "democratizou" foi o do desmantelamento sistemático das organizações independentes da classe operária e o seu enquadramento em um aparelho sindical de características quase fascistas, o da manutenção das massas rurais nas mesmas condições em que se encontravam na "República Velha" e o da constituição de um padrão de representação política no qual, independentemente das formas eleitorais democrático-burguesas que vigoravam em certos períodos (e das quais estava excluída a maior parte da população rural), predominava o vínculo direto entre o chefe de Estado e o conjunto dos "cidadãos". Em outros termos, a "Revolução de 30" abriu caminho para uma configuração nacional do Estado mais apropriada ao desenvolvimento do capitalismo, mas isso não significou, mesmo nos períodos 1934-37 e 1945-64, que esse Estado adquirisse a forma democrático-burguesa plenamente constituída.
Finalmente, é muito significativo que o oligarca tenha falado em "revolução".
Nenhuma transformação de grande importância havia ocorrido na prática política ou no horizonte ideológico das "oligarquias" ao ponto de levá-las a recorrerem à violência para solucionar seus conflitos internos em escala nacional e, muito menos, de modo a abrirem caminho para transformações estruturais da sociedade brasileira. Diversos autores já observaram que a própria Aliança Liberal havia mantido a velha praxe oligárquica de limitar as contradições intra-oligárquicas à luta eleitoral e à reconciliação. E, imediatamente após a derrota eleitoral, João Pessoa (o candidato da Aliança Liberal à vice-presidência da República) afirmara que jamais se poderia contar com ele "para fazer um movimento armado" e preferia "dez Júlios Prestes a uma revolução".
Mas é essencial observar que o movimento eleitoral da "Aliança Liberal" e a deposição de Washington Luís "não foram conduzidos pelos mesmos agentes políticos"8, nem tinham as mesmas perspectivas. Enquanto, após a derrota eleitoral, as "oligarquias' dissidentes já se preparavam para a reconciliação, os "tenentes" impulsionavam o movimento rumo à derrubada da "República Velha".
Nem todos os atores sociais encaravam a sociedade brasileira com as lentes do liberalismo oligárquico. Outras visões de mundo orientavam seja a decisão do principal partido operário, o PCB, de não participar diretamente da "revolução", seja a dos tenentes de constituírem a "vanguarda" desse movimento.
Não se trata de fazer aqui uma análise da ideologia do "tenentismo".
Limito-me a observar que os movimentos tenentistas, ao se orientarem progressivamente para uma reestruturação profunda do aparelho de Estado segundo uma via autoritária e centralizadora, ao conseguirem envolver nesse processo importantes segmentos das oligarquias, e ao obterem um apoio difuso de amplos setores da classe média e do proletariado, testemunhavam a crise da ideologia dominante na "República Velha".
Gestava-se, no interior da ordem oligárquica, um novo sistema ideológico, cuja expressão doutrinária mais elaborada, o chamado "pensamento autoritário", orientava-se "no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade"9.
Dominação do capital mercantil no processo de acumulação e deslocamento da burguesia agro-mercantil no interior do bloco no poder. Eis dois aspectos essenciais para a compreensão do panorama político brasileiro no período que se abre com a "Revolução de 30".
Por outro lado, as contradições no interior da formação social brasileira se articulavam à crise do capitalismo mundial, em cujo contexto se intensificava a competição entre os distintos campos imperialistas.
Internamente, a crise econômica enfraquecia drasticamente a posição da capital mercantil. Isso, ao lado da perda da hegemonia pela burguesia cafeeira, inviabilizava a execução de uma política de Estado que privilegiasse, nos termos em que se fazia na "República Velha", os interesses do capital mercantil e comprometia a solidez dos laços que vinculam, de um modo específico, a formação social brasileira ao sistema imperialista em crise. Configurava-se, portanto, uma crise de hegemonia e uma crise de dependência.
Como diversos autores observaram, a contrapartida da crise de hegemonia foi a ampliação do papel da burocracia estatal na definição da política de desenvolvimento capitalista no pós-trinta. Manobrando em meio ao equilíbrio instável entre as distintas frações da classe dominante e tirando proveito das contradições que grassavam no campo imperialista, a burocracia do Estado lograria, por meio do enquadramento político e ideológico de amplos setores do proletariado e de baixas camadas médias, criar uma base de massa para uma política que, em última análise, favorecia um certo processo de industrialização.
A matriz ideológica
Este processo foi coroado pela constituição de um certo tipo de nacionalismo. Recorrendo aos principais resultados das pesquisas sobre o tema, creio ser possível detectar algumas das características principais dessa ideologia, as quais já se delinearam na primeira fase do período populista.
Em primeiro lugar, os setores da burocracia estatal mais comprometidos com a política de industrialização capitalista e dependente, ao se chocarem com as classes e frações de classe interessadas na manutenção da velha ordem política e do padrão de dependência que nela se fundava, seriam, ao longo do período, os mais constantes "suportes" desse nacionalismo.
A segunda característica se relaciona estreitamente com a anterior. Não apenas parcelas da burocracia de Estado eram os principais expoentes do nacionalismo, como o próprio aparelho estatal constituía a arena privilegiada dos embates entre as tendências nacionalistas e seus adversários. Esse aparelho estatal era quase sempre o ponto de partida e, invariavelmente, o ponto de chegada do movimento nacionalista.
Em terceiro lugar, os movimentos informados pela ideologia nacional-populista jamais se voltaram frontalmente contra a estrutura do Estado, mas para os processos de definição da política desse último. Tratava-se ou de reforçar uma política estatal já em execução ou de cobrar do Estado, visto como tendo abandonado suas "verdadeiras finalidades", a implementação de uma política específica.
Em quarto lugar, no que se refere à relação com o imperialismo, o nacionalismo populista adquiria eficácia política na medida em que se articulava a lutas para redefinir a posição da formação social brasileira na divisão internacional do trabalho, não visando eliminar, mas redefinir a dependência. Pesquisas acuradas demonstraram como, mesmo em momentos de grande radicalização verbal, esse nacionalismo não se chocava com pelo contrário, incluía uma política sistemática de atração de investimentos estrangeiros diretos em amplos setores da economia brasileira. Isso implicaria, ao longo do período, uma postura seletiva frente ao capital estrangeiro, a qual, em geral, buscava dar prioridade aos investimentos externos que contribuíssem efetivamente para o avanço da industrialização capitalista dependente no País.
Finalmente, as linhas de força do discurso nacionalista consistiam em duas idéias principais. Com Simonsen, ao afirmar recorrendo a Calógeras que o País jamais seria forte e independente enquanto continuasse como simples produtor de "gêneros coloniais", com os "tenentes", ao bradarem contra a ausência de "organização nacional", com os ideólogos do ISEB, ao se referirem à "alienação nacional", o nacionalismo populista insistia, sob variadas formas, na idéia de uma nação incipiente, incompleta, carente de identidade própria e, portanto, frágil. A segunda idéia-força aludia à necessidade de um Estado forte, dotado dos meios adequados para integrar o conjunto dos cidadãos na comunidade nacional e enfrentar, assim, os "agentes corrosivos", internos e externos, que ameaçavam a nacionalidade, impedindo sua marcha rumo à plena emancipação.
As redefinições
Tais características constituíam, por assim dizer, a matriz ideológica do nacionalismo populista brasileiro. Todavia, nesse grau de indeterminação ainda é impossível dar conta do movimento contraditório dessa ideologia. Para atingir uma concretude maior, deve-se examinar como, sob o efeito das práticas de diferentes forças sociais, essa matriz se atualizou de diferentes modos, o que levou, em cada fase do período, à formação de uma constelação ideológica específica.
A partir dessas especificações, proponho, a título meramente provisório, uma periodização do nacionalismo populista em quatro fases. A primeira delas, a do "nacionalismo militar" (1930-45), correspondeu a uma época de combate, quase sempre nos quadros de um regime abertamente autoritário, aos núcleos de poder dos setores agro-mercantis, por um lado, e, por outro, às organizações populares independentes. Ao mesmo tempo em que se operaram importantes rearranjos no aparelho estatal, foram dados passos significativos no sentido de implementar medidas de caráter econômico importantes para o desenvolvimento capitalista. No plano internacional, a crise do campo imperialista contribuiu para o sucesso dessa política. O principal centro de articulação ideológica era constituído pelo núcleo do aparelho repressivo e, em termos do discurso, articulava-se predominantemente a industrialização à segurança e à coesão nacionais.
O "nacionalismo trabalhista" (1951-64) talvez adquira sentido quando articulado a uma tentativa, em grande parte frustrada, de compor um amplo leque de forças voltado para a superação dos impasses em que se colocava a chamada "industrialização restrita", numa fase de acirramento do conflito entre os dois blocos mundiais e de rígido alinhamento do campo imperialista hegemonizado pelos EUA. O aparelho ideológico dominante ainda foi o exército, embora tentativas tenham sido feitas de ativar o nacionalismo no aparelho sindical. O discurso procurava articular a industrialização à elevação do padrão de vida e do nível de participação política dos trabalhadores.
O "nacionalismo triunfante" foi a articulação em que mais se evidenciou a variante "empresarial" do nacionalismo populista. Constitui-se, política e ideologicamente, o leque de forças que na fase anterior se mostrara inviável. As condições internacionais também foram mais favoráveis: a relativa abertura da política de aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista dependente. O ramo principal do aparelho do Estado, apesar de suas divisões internas, apresentou suficiente coesão para, nos quadros de um regime não-abertamente ditatorial, constituir um locus importante de definição e implementação da referida política. Essa contribuiu para o surgimento de múltiplas manifestações de nacionalismos e, por outro lado, teve, em praticamente todas elas, importante fonte de legitimação. No plano do discurso, preocupava-se em apresentar a industrialização capitalista e dependente como condição da emancipação nacional.
O "nacionalismo reformista" (1961-64) expressou a ruptura, sob o impacto da crise do capitalismo dependente e da incorporação do nacionalismo pelo movimento popular, do leque de forças que se constituíra na fase anterior. O cenário internacional foi marcado pela instabilidade do campo imperialista hegemonizado pelos EUA (sob o efeito dos movimentos de libertação colonial, do movimento dos "não-alinhados" e da revolução cubana) e pelo início da divisão no interior do bloco até então hegemonizado pela URSS. Tal situação contribuiu para produzir (inclusive no plano do discurso) a representação de que era possível um desenvolvimento nacional independente nos quadros do sistema imperialista e de que as forças populares, enquadradas em larga medida pelo aparelho estatal, conseguiriam imprimir ao nacionalismo uma mudança de rota no sentido de uma profunda transformação social.
Para além de um falso dilema
Caso as formulações apresentadas acima tenham algum fundamento, pode-se afirmar que mesmo o nacionalismo reformista, embora exprimisse uma ascensão real do movimento popular, exerceu uma influência profundamente desorganizadora sobre esse movimento.
É muito difícil considerar que os liberais, por sua vez, tenham proporcionado meios de "participação política" mais favoráveis às classes populares. Ao contrário, com discursos centrados na defesa da propriedade privada e dos mecanismos de mercado, tenderam a colocar-se, na maioria das lutas que se travaram no período, em posições mais antipopulares do que as ocupadas pelos populistas. Forças políticas dos mais variados tipos inclusive órgãos de imprensa que se apresentaram como defensoras intransigentes dos postulados liberais, manifestaram-se quase sempre contra a política social populista no que essa apresentava de mais favorável às classes populares. E aquelas mesmas forças não vacilaram em apelar para a repressão política e mesmo para a ruptura da ordem constitucional quando se tratava de impedir que se intensificasse a participação popular nos quadros da "democracia populista".
Obviamente, não se tratava de um simples combate de idéias, nem de mera incoerência ou ambigüidade doutrinária. Como se viu, vários estudos já contribuíram para demonstrar que, nas duas primeiras fases do período, o liberalismo foi principalmente a expressão ideológica das forças mais comprometidas com a hegemonia da burguesia mercantil-financeira. Já a partir do final dos anos cinqüenta, quando um certo padrão de industrialização capitalista dependente já se havia consolidado, foi por intermédio do liberalismo que se expressaram as forças que lutavam pela implantação de um regime ditatorial que viria consolidar a hegemonia do grande capital monopolista.
No debate atual, os liberais, ao mesmo tempo em que reivindicam a tocha da modernidade, insistem em qualificar o populismo como um fenômeno típico de um Brasil arcaico. Os populistas, por sua vez, atiram no liberalismo a pecha de uma selvageria privatista incapaz de qualquer sensibilidade social.
Enquanto marcos ideológicos que, de modos particulares, intervêm na definição de políticas estatais, liberalismo e populismo podem constituir os extremos de uma espécie de movimento pendular em sociedades que, como a brasileira, são marcadas por fortes resistências à "participação política" das classes populares. Considerar o predomínio efetivo de um ou outro como índice de arcaísmo ou modernidade é, no fundo, contribuir para obscurecer a questão central: a das relações de forças que comprimem as forças populares no interior desse movimento pendular e, dessa forma, impedem o avanço de suas lutas.
Tomados apenas enquanto discursos, muitos aspectos do liberalismo e do populismo aparecem como tediosamente idênticos aos que vêm sendo esgrimidos há décadas no Brasil. Quando são articulados às suas condições de produção, revela-se o alto teor de mistificação presente no debate entre ambas as ideologias. Nem um é tão moderno assim, nem o outro é um cadáver insepulto. Além disso, os conflitos políticos não se travam entre entidades metafísicas como "arcaísmo" versus "modernização", mas entre forças sociais. E, nesse particular, liberalismo e populismo já têm uma longa folha de serviços prestados à dominação de classe no Brasil.
Romper com eles exigirá descobrir formas concretas de, em cada conjuntura, quebrar o monopólio liberal da crítica ao estatismo e imprimir um caráter anticapitalista aos conflitos com o imperialismo, ou seja, torná-los algo mais do que simples nacionalismos.
1 - Ver, a esse respeito, as importantíssimas análises de Sérgio Silva, em Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil, São Paulo, Alfa-Omega, 1976.
2 - Idem, especialmente as pp. 66-70.
3 - GORENDER, Jacob. A Burguesia Brasileira. São Paulo, Brasiliense, pp. 59-61. O trecho citado é da p. 59.
4 - Sobre a estrutura da indústria brasileira na República Velha, recorro principalmente ao livro de Anibal Vilela e Wilson Suzigan, Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1973.
5 - A esse respeito, Décio Saes, Classe Média e Sistema Político no Brasil, São Paulo, T.A. Queiroz, 1985, pp. 38-41, e também Edgar Carone, que recolheu excelente documentação sobre a posição dos empresários industriais de São Paulo. Ver, especialmente, os artigos publicados no O Estado de São Paulo, 21/12/23, e no Jornal do Comércio, 27/10/25. Houve industriais que, individualmente, adotaram posição alternativa. Foi o caso, por exemplo, de Jorge Street, cujo artigo publicado originalmente no Jornal do Comércio de 13/06/19 é também reproduzido no mesmo livro de Carone, O Pensamento Industrial no Brasil (1880-1945), São Paulo, DIFEL, 1977.
6 - Documentos significativos a esse respeito podem ser encontrados, por exemplo, na obra de Edgar Carone citada na nota anterior.
7 - A respeito dos vínculos político-ideológicos da alta classe média com a burguesia comercial e bancária, recorro às análises efetuadas por Décio Saes, Op. cit., e "Classe Média e Política no Brasil (1930-1964)", publicado na coletânea organizada por Bóris Fausto, O Brasil Republicano, vol. 3, São Paulo, DIFEL, 1983, especialmente a p. 454.
8 - SAES, Décio. Op. cit., p. 81.
9 - Uma análise das linhas mestras desse "pensamento autoritário" foi feita, entre outros, por Bolivar Lamounier, no ensaio "Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação", publicado na coletânea organizada por Bóris Fausto, O Brasil Republicano, vol. 2. O trecho citado está na p. 356.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 4, Julho de 1995, tenha sido proveitosa e agradável. O Prof. Lúcio Flávio de Almeida faz parte do Conselho Editorial da Revista Lutas Sociais, editada pelo Núcleo de Estudos sobre Ideologias e Lutas Sociais (NEILS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), caso deseje adquirir exemplares da publicação, entre em contato conosco. Obrigado.
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