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Sobre a Categoria Trabalho
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Jesus J. Ranieri
Jesus_Ranieri@revistapraxis.cjb.net
Mestre em Sociologia e doutorando em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP.
Este texto procura desenvolver uma reflexão sobre a forma que assume a realização material no idealismo hegeliano da Fenomenologia do Espírito. O lugar conferido por Hegel à categoria trabalho demonstra o grau de importância que ocupa o fenômeno da concreção no percurso e na formação da consciência-de-si, ou seja, o lugar da prática humana tanto na constituição da história quanto, em nível metodológico, na constituição da verdade objetiva.
A forma trabalho tem um papel fundamental naquilo que toca a especificidade da trajetória do espírito: da primeira posição abstrata do eu à produção objetiva do homem, o trabalho representa a força material de realização e, mais ainda, a mediação corrente em todos os momentos de constituição e reestruturação da consciência. Desde a primeira "saída de si" até o alcance das finalidades mais complexas componentes dos giros do espírito, somente o trabalho é capaz de lograr a efetividade. A passagem do abstrato ao concreto, do ser à essência, é o repositório desta manifestação material que vai constituindo-se e enriquecendo-se. O trabalho representa, assim, a "transmutação" da mera posição abstrata originária, fundada numa consciência natural meramente intuitiva, para a consciência naturalmente humana, portanto pensante o trabalho como pensar objetivo.
A defesa teórica recorrente e cara a Hegel é que a mediação da atividade é a maior responsável pela auto-reprodução social. O trabalho, enquanto meio, representa a satisfação das necessidades humanas e somente no interior desta satisfação, assim como na constante reposição das necessidades, é que se faz possível à sociabilidade avançar. Ainda que essa reflexão esteja posta num ambiente de absoluta abstração, uma vez que toda particularidade objetiva não é senão momento a ser reassumido por um universal ideal e determinado, o reconhecimento, por parte de Hegel, de que o processo de trabalho é sempre uma posição de finalidades é que lhe permite desenvolver a compreensão do processo dialético como sendo um processo real.
I
Em Hegel, a problemática do trabalho é a problemática do reconhecimento:1 a oposição e a identidade do eu com o outro. Melhor dizendo, a identidade que obedece ao princípio reflexivo do ser-relativo-a-outro. A realidade e a consciência, no mundo do espírito logram ou procuram lograr a unidade. A passagem do eu, na sua autoposição, ao homem, na sua autoprodução, é o sinônimo histórico da realização do espírito na sua irreversibilidade que, intuição brilhante de Hegel, é irreversibilidade do próprio tempo. O percurso da consciência (do abstrato ao concreto) do ser à essência, e daí ao conceito, é, primeiramente, o recurso ontometodológico à unidade entre o eu e o outro na forma de contraposição das identidades e interação das diferenças.
O princípio da identidade, por ser sintético, vincula-se ao em-si do objeto, numa ressonância com o em-si do sujeito o para-si de ambos ultrapassa qualquer para-nós, posto que somente em sendo em-si e para-si um com relação ao outro é que se firmam como uma unidade sintética.
No espaço existente entre o eu e ele mesmo (ou a distância entre o Si e a posição efetiva do objeto) é possível encontrar toda a realidade objetiva distinta desse eu, seja ela coisas, seja ela outros eus. Isto significa que o eu que põe o faz a partir de sua exclusiva capacidade de criar e compreender, instaurando a apreensão da unidade a partir da diferença. Ao colocar-se, o eu se sabe a si mesmo porque, no conhecimento da infinidade de coisas que ele não é, ele passa a ser consciente de si como diferença. Esse é o primeiro passo para que o reconhecimento do simples objeto, da coisa, passe a ser consciência do ser-outro-igual-a-si, o outro eu.
Antes que se constitua efetivamente enquanto consciência-em-si, há um predomínio que podemos chamar de natural na posição da consciência - ou seja, ela tem início num saber imediato e abstrato, que é a simplicidade do saber sensível, e termina com o saber absoluto, mais concreto e mediatizado. Especificamente, esse é o caminho do espírito, cujo conjunto de manifestações se dá enquanto "figuras" da consciência: "O espírito deve avançar até a consciência do que ele é imediatamente; deve suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras, o saber de si mesmo"2.
Cabe à consciência aparecer na coisa e não o contrário, a coisa simplesmente aparecer para a consciência - quer dizer, esta última deve aparecer no interior do próprio fenômeno, instaurar o caminho da fenomenologia.
Nessa interior necessidade de saber-se a si mesmo, o espírito vai compondo-se e (re)estruturando-se, passando do simples saber intuitivo sensível ao saber posto como saber sociabilizado. Nesse sentido, a primeira forma realmente efetiva de consolidação "humana" do espírito é o momento primeiro de ruptura com a natureza - o espírito enquanto forma superior de entendimento, onde a capacidade abstrativa primeira da consciência é o que fala mais alto: a forma social de apreensão instituindo-se enquanto sujeito.
Mas o eu só começa a comportar-se enquanto sujeito quando a certeza-de-si imediata se defronta com a realidade do outro eu, o que a desnuda e a revela como não-verdadeira. Sua verdade depende exclusivamente de que o seu ser-em-si se torne ser-para-si-sendo-para-outro, a abstração pelo outro de seu ser-para-si. Ou seja, só será objeto independente na medida em que é objeto de outra certeza-de-si. Desse reconhecimento do outro (que é reconhecimento mútuo) deriva para a certeza-de-si agora mediata a consciência de que é espírito. A consciência se torna espírito, ou mais, a ação do outro é o único caminho de acesso à vida do espírito. A certeza se torna "igual à sua verdade, já que a certeza é para si mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma o verdadeiro. Sem dúvida, a consciência é também nisso um ser-outro, isto é: a consciência distingue, mas distingue algo tal que para ela é ao mesmo tempo um não-diferente"3.
Portanto, a importância e a expressão qualitativa da formação das consciências se centram na passagem da singularidade em si à singularidade para-si, que é singularidade para-o-outro. Essa evolução atinge de morte o que antes não passava de constatação intuitiva desse singular na sua pura certeza-de-si imediata. A dinâmica de sua instauração é a dinâmica do salto qualitativo do ser orgânico para o ser social, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, o início do percurso que vai do mais simples ao mais complexo - percurso tanto do pensamento quanto da realidade à qual ele corresponde.
Essa relação entre as consciências é, ao mesmo tempo, diferença e identidade de uma consciência com outra, pois somente no interior do reconhecimento as consciências se conservam e se suprimem - ou seja, enquanto em-si são necessariamente para-si. Uma vez que é somente através do jogo determinativo que se instaura a reciprocidade, é simplesmente impossível buscar o reconhecimento fora do outro, pois a instauração do reconhecimento das consciências exteriores pelo eu (ou, para ser mais preciso, a duplicação da consciência-de-si) é receptora daquilo que entre o eu e ele mesmo se estatui: o mundo, ou a realidade efetiva. Ao saber-se enquanto eu distinto, a consciência sofre um processo que percorre duas vias: reconhece-se enquanto singularidade distinta (em si) e reconhece-se enquanto momento de apreensão da universalidade que a circunda (para si).
"A consciência tem de agora em diante, como consciência-de-si, um duplo objeto: um, o imediato, o objeto da certeza sensível e da percepção, o qual porém é marcado para ela com o sinal do negativo; o segundo objeto é justamente ela mesma, que é a essência verdadeira e que de início só está presente na oposição do primeiro objeto. A consciência-de-si se apresenta aqui como o movimento no qual essa oposição é suprassumida e onde a igualdade consigo mesma vem-a-ser para ela"4.
Contrariamente ao que ocorre no mundo animal, as consciências-de-si se reconhecem ao se saberem reciprocamente, o que quer dizer que cada uma delas só se sabe a si mesma enquanto consciência-de-si pelo fato de reconhecer na outra também uma consciência-de-si. Na relação entre elas, o que importa é a ação mútua, a dupla determinação, a perda e supressão de cada uma no interior da outra, pois a identidade de ambas é o retorno a si em duplo sentido: em primeiro lugar, a consciência-de-si só pode ser igual a ela mesma ao reconhecer e suprimir o seu ser-outro; em segundo lugar, a outra consciência-de-si é restituída a si mesma pela primeira no seu reconhecimento, o que só é possível, do ponto de vista lógico, no fazer de cada uma com relação a outra. Ou seja, cada uma delas é meio para a ação da outra.
O problema, porém, é que entre esse momento de reconhecimento mútuo5 e o momento anterior de independência bruta (ou do não-reconhecimento) entre as consciências se localiza a primeira forma efetivamente social de diferenciação provinda do espírito enquanto posição ao mesmo tempo abstrata e objetiva: a primeira posição possível do eu enquanto sujeito. Em Hegel, o trabalho assume o papel de uma posição teleológica. Mas dirá Hegel que, antes dessa atividade propriamente - que seria a segunda das potências do espírito -, o espírito se distingue pela linguagem. O ato de dar nome às coisas é a forma que a consciência encontra de romper a incognoscibilidade delas, sua concreção primeva, tornando-as objeto do pensamento. Torná-las passíveis de serem pensadas é realizar o ato e o poder de pensar, é tornar-se estável em si mesma no caminho para a concreção em oposição à sua evanescência originária.
A síntese trabalho-linguagem é o primeiro passo que remete a consciência à possibilidade de seu ser-para-si. O abandono da pura e simples intuição e a conquista de uma abstração que pode ser retida é o caminho da mediação. Ou da possibilidade de separar e depois (re)unir o que é imediato e o que é mediato no pensamento.
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Hegel em sala de aula - Desenho É nesse momento que se apresenta a posição originária que, mais tarde, será razão. Estabelecer-se-á uma hierarquização do entendimento (ou intelecção) que será condição para a sedimentação posterior dessa razão. O que é simplesmente singular no intelecto, ela unirá e distinguirá: o pensamento só será capaz de compreender a realidade nos moldes da razão porque esta completará o caminho que vai do ser à essência, do abstrato ao concreto, do simples ao complexo. Ou seja, a essência poderá ser compreendida e apreendida como o real na sua complexificação.
O espírito se põe, em primeiro lugar, como uma forma generalizada de consciência, uma forma originária, a partir da qual as formas posteriores se estabelecerão. Esse é o momento de realização primeira da atividade do sujeito ou da subjetividade ativa em contraste direto com o objeto passivo e imediato do saber. No seu desenvolvimento, a consciência aparecerá como o meio para a unificação de objetividade e subjetividade, o que lhe confere o estatuto de realidade efetiva, portanto, essencialidade para-si fora do indivíduo6.
Aqui, portanto, a singularidade é a singularidade da lógica, uma categoria do pensamento, e o primeiro passo na direção da dialética do trabalho: o momento em que a consciência passa a discernir, reter e mediar, para depois - nesse primeiro aparecimento do entendimento - permitir o início do percurso da razão.
Primeiramente, uma relação de integração entre a universalidade e a singularidade é que se coloca como pedra angular para o restante do percurso, relação que somente pode constituir-se graças àquela ruptura já aludida, da consciência que ainda não se sabe, ruptura da mera "consciência animal", passando à posição "humana" da consciência.
A categoria da universalidade carrega a importância de categoria responsável pelo núcleo das generalizações que transformam (tanto em nível da existência concreta quanto do percurso do pensamento) um multiverso inicial - destituído de sentido - em multiverso articulado, estabelecendo relação entre os diferentes meios e fatores periféricos referentes ao sujeito. Em outras palavras, a universalidade é a passagem desse multiverso sem valor ao universo - o mundo em si generalizado, porém organizado, que fala à consciência através das capacidades de abstração e generalização desta. E ela o faz porque relaciona integralmente e valorativamente o conjunto necessário ao fazer laborativo - ou seja, a possibilidade da passagem do eu teórico ao eu prático. Esta é a primeira manifestação de mediação, ainda que rudimentar, mas o intercâmbio original entre consciência e natureza (a superação laborativa) é dado por essa capacidade única de generalização, que só se coloca a partir de um conjunto específico de necessidades - primordialmente, a necessidade de reconhecimento, que é a necessidade imanente de auto-reconhecimento da consciência, ato que, por sua vez, só pode realizar-se a partir da mediação com o outro.
No caso da singularidade, ela se apresenta como resultado complexo de um exercício de educação do pensamento, ainda que, na sua especificidade, possa ser também compreendida como um conceito universal abstrato. Generalização possível, sua base material imediata inexiste. A singularidade, na sua relação histórica de consolidação do complexo de ideações, relacionou-se e revolucionou-se a ponto de dar lugar a um expoente genérico.
Se pensarmos num livro, numa cadeira, num outro ser humano, estes não aparecem ao pensamento como substância a priori, justamente porque possuem uma razão material de existência. Mas têm que aparecer como construções ideais em que o caderno, a cadeira, o homem são representações resultantes de generalizações do conjunto das cadeiras, dos livros e dos homens que cada experiência sócio-individual logrou estabelecer no plano do universo relacional inter-humano. Não é necessário ter em mãos um objeto para visualizá-lo idealmente. E, justamente por isso, esses objetos não se colocam mais num terreno obscuro de multiplicidades sem valor. Pelo contrário, aparecem como unidades naquelas formas em que a realidade é ordenada através da capacidade exclusiva de generalização do pensar, nas formas necessárias de abstração do mundo. Trata-se do "outro lado" da universalidade. Trata-se do uno. Mas somente se considerada na sua inteira relação com a totalidade a singularidade é possível, pois a generalização só pode realizar-se se houver todo - a multiplicidade articulada. Em si mesma, a singularidade carece de significação: sem a totalidade, ela própria não poderia ser.
Assim, tem-se: do universal para o singular (da generalização para a especificidade do ser), o nome, a abstração, a chegada ao uno, ao complexo maior, ao singular. Mais precisamente, da inteligência teórica ao agir prático, tem-se o ato de tornar-se - a pulsão ou o preenchimento de uma necessidade que, primeiramente, põe-se como contradição, ou seja, o Si versus o "desígnio" universal.
Explicamo-nos. Por um lado, se pensada concretamente, a singularidade se apresenta como sendo a mais complexa das formas sintéticas no plano da expressão da sociabilidade humana. A consciência sociabilizada, que passou a estruturar-se enquanto ser social, é aquela "unidade mínima" para além da qual somente o devir sócio-histórico é elemento que aponta para superações - no caso da consciência, para a singularidade, por ser o resultado de uma complexificação de caráter sintético, o seu vir-a-ser-outra singularidade só se coloca na perspectiva de um processo mais rigoroso de constituição a partir do seu ser-no-outro plasmador de seu ser-para-si. A singularidade a respeito da qual aqui falamos não é aquela da consciência-de-si tomada na sua forma simples, segundo a designação de Hegel: "De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma mediante o excluir de si todo o outro. Para ela, sua essência e objeto absoluto é o Eu; e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é [um] singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial"7.
Pelo contrário, trata-se, na mediação apontada também pelo próprio Hegel, daquela singularidade que só se prova e se realiza no âmbito de seu ser-para-si universal. Isto quer dizer que o singular cingido pela sociabilidade é qualitativamente outro. Não são individualidades confrontadas enquanto objetos comuns, mas interação para-si de consciências-de-si: "A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. O conceito dessa sua unidade em sua duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na consciência-de-si, é um entrelaçamento multilateral e polissêmico"8. Ou seja, ela só pode constituir-se integralmente na base de um ser-referido-a-outro9.
Nesta passagem do simples ao mais complexo, à forma pensada da consciência, é que se estabelece o princípio da identidade e da oposição, posto que estão agora dadas as possibilidades de diferentes consciências se confrontarem nas suas reais composições de elementos capazes de produzir e reproduzir o seu próprio ser, assim como, mutuamente, o ser-do-outro.
A partir daqui, pensamos ser possível desenvolver aquela que seria a segunda parte deste esboço: o papel do trabalho na dialética do senhor e do escravo e sua relação com o reconhecimento. Convém salientar que, na primeira parte, insistimos na composição categorial universalidade-singularidade porque ela é o nó górdio da posterior efetividade posta pelo trabalho, é o fator fundamental que se apresenta na passagem do ser orgânico ao ser social naquelas considerações sobre a linguagem e o trabalho, é a consciência. Referimo-nos, portanto, às duas fases constituintes do ser e defendemos que somente a partir da caracterização da segunda delas a posição do ser social e do trabalho se colocam efetivamente, porque é nesta última que o homem passa do estágio animal de consciência ao entendimento de sua natureza humana.
II
Sem o trabalho, a autoposição do eu carece de efetividade. Na produção da interação definitiva da consciência-de-si, a exterioridade é fundamental - o eu tem que ser também ele, no sentido de si-próprio, na relação imanente com o Outro exterior. O não-eu tem que ser, ao mesmo tempo, idêntico a mim, externo a mim e independente de mim - a posição da dupla independência só pode instaurar-se a partir disso. Se a natureza se porta como o outro do pensamento, o trabalhar se apresenta como o pensamento efetivado, a materialização da idéia, a objetividade posta. E também a condição de garantia da liberdade a ser conquistada.
Se, por um lado, a relação com o Outro é definidora do vir-a-ser do espírito, na forma de suas figuras da consciência, é igualmente verdadeiro que o outro eu se revela como identidade que se põe como sujeito - são duas realidades independentes, porém relativas. Se a possibilidade reflexiva começa a revelar-se nessa reciprocidade, é mais ou menos claro que a confrontação com a natureza tem que ser, igualmente, de grau qualitativo superior, ou seja, deve escapar (deixar para trás) daquele momento de relação teoricamente abstrata que se instaura como subordinada à potência do ser natural e aplicar um telos a essa potência, de forma a readequá-la a si. Trazê-la à condição de objeto passível de ação humana, no sentido de transformá-la e utilizá-la num conforme-a-si do homem.
"O trabalho é o primeiro momento efetivo da saída de si. Nele o pensar se torna objetivo e põe em ação o corpo, isto é, a própria natureza enquanto outro do pensamento.(...) O eu logra romper a subjetividade do pensamento e se faz real, ao mesmo tempo em que a natureza se torna sujeito, isto é, recebe a determinação da liberdade (teleologia)"10.
Mas como conciliar trabalho, manifestação da consciência-de-si e reconhecimento recíproco num patamar de igualdade que possa servir de modelo à unicidade do espírito consigo mesmo? Mais do que isso, até que ponto o entendimento do que seja reconhecimento recíproco pode ser sinônimo de reconhecimento de elementos iguais? Ou, pelo menos, a tentativa de torná-los iguais?
Vimos, antes, que, para que a certeza-de-si se constitua enquanto verdade, é necessário que a outra certeza-de-si se reconheça e se apresente como pura certeza-de-si. Mesmo assim, no jogo do reconhecimento mútuo, a origem da relação está baseada numa desigualdade que as consciências, enquanto elementos teleológicos, não são capazes de controlar. Mais do que isso. O reconhecimento primordial (aquele que se coloca antes da permissão jurídica da propriedade) está apoiado antes na coragem do que na homogeneidade da posse. Diz Hegel: "Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submegir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente"11.
Num mundo em que o conteúdo do reconhecimento é a contradição e a diferença, só há um meio de restabelecer a harmonia do eu com o outro: ou um retorno à forma abstrata de relação com a natureza, num recuo histórico que significa a recusa do próprio ser-para-si da consciência, ou a aceitação da consciência-de-si oposta na sua diferença.
Apesar da forma lógica prever que, enquanto totalidades, as consciências-de-si desejam o reconhecimento recíproco, de modo que possam igualar-se na certeza da verdade de si mesmas, isto não significa que as condições reais detentoras das determinações que atravessam o mundo das consciências devam corresponder a um tipo ideal finalista de racionalidade pressuposta - pelo contrário, a única forma de garantia de reconhecimento se coloca pelo embate direto entre as diferentes consciências-de-si, onde o reconhecimento é conquistado por meio do ato da violência e conseqüente submissão.
É claro que entre a posse da coisa e a instituição jurídica da propriedade há uma diferença fundamental, que é a diferença da própria efetividade do reconhecimento recíproco - ou seja, a homogeneização da propriedade para o conjunto dos sujeitos. Mesmo esta "esperança", porém, depara-se com o conflito do real efetivamente posto (conforme nota 6) e com a disseminação da dialética da dominação. O trabalho como fazer de todos não é, necessariamente, sinônimo de harmonia.
Ora, a verdade do reconhecimento, então, é a verdade das formas de manifestação e desenvolvimento do espírito. O problema é que esse desenvolvimento sofre sua realização num fluxo que mortifica a forma lógica de esperança do reconhecimento recíproco, porque sofre o império da desigualdade que atua tanto na coisa, por ser ela exterior à consciência, quanto no âmbito da apropriação daquilo que é produzido pelo trabalho de outro. Mesmo na "unidade ética superior" representada pela família (visto que esta é demonstração social de permanência das consciências num universo já seu, superador da reunião simplesmente natural), o problema do reconhecimento entre as famílias de possuidores se confronta com um princípio contraditório por natureza, em que a diferença do trabalho individual e do trabalho social põe desenvolvimentos que refletem o complexo da nova composição social: "A relação do trabalhador com o objeto do trabalho era a relação de um indivíduo singular com um objeto igualmente singular, arrancado à conexão universal da natureza e posto como isolado. Todavia, o fato de o produto do trabalho ser algo ainda natural, embora penetrado da espiritualidade criadora do homem, e, principalmente, algo externo, fora da consciência e disponível ao assalto da cobiça alheia, faz dele um universal, quer dizer, um objeto que qualquer outro indivíduo ou grupo de indivíduos (outras famílias) pode desejar, usando ou não meios violentos para obtê-lo"12.
Claro está, portanto, que a luta pelo reconhecimento é uma luta histórica. Enquanto categoria, o reconhecimento é história no interior do desenvolvimento da consciência-de-si. É um vir-a-ser atado às condições desse desenvolvimento. Por outro lado, as condições de desigualdade no reconhecimento o colocam como que subordinado às diferenças entre os agentes da história: ao mesmo tempo em que ele depende do saber-se mútuo das consciências, não pode fugir à diferença e especificidade de constituição de cada uma delas. Nesse sentido, na presença das desigualdades, o problema não é mais da potência natural, mas da própria forma através da qual a desigualdade se manifesta no percurso da conciência-de-si.
É desigual, mas ao mesmo tempo recíproco. E a tônica dessa reciprocidade não pode afastar de si, de maneira nenhuma, a efetividade do reconhecimento. Não pode haver morte, porque através dela o reconhecimento estaria suprimido. Cada consciência sabe que, enquanto sujeito, pode ser objeto do ato que ela mesma empreende com relação a uma outra consciência. Sabe também que, uma vez derrotada na luta, é preferível a vida à morte no reconhecimento da outra consciência como senhor, ainda que sua submissão possa também encontrar a morte.
Nesse sentido, o que antes era reconhecimento recíproco, nesta ordem se torna dominação. Entre o trabalho enquanto fazer de um e o trabalho enquanto possibilidade de ser o fazer de todos se coloca a dialética da dominação senhor-escravo, que é, aliás, a forma predominantemente presente na história e um momento de exteriorização do espírito. A dominação e sua superação são fatores que não necessariamente devem realizar-se ao mesmo tempo ou em todos os lugares. Afinal, a história universal conta com seus recuos e, o que é mais interessante, conta com particularidades que são em-si totalidades existentes dentro de um movimento superior da própria razão, mas que podem ser tranqüilamente analisadas a partir da abstração desse mesmo todo.
III
A unilateralidade do reconhecimento é o fator que marca a dialética senhor-escravo. Mas ela só surge a partir da própria verdade do reconhecimento, que é a verdade da desigualdade e da dominação. E é, ao mesmo tempo, o lugar onde se institui a verdade da consciência-de-si. Porque o trabalho, nessa confrontação entre as consciências, só formalmente é o mediador do reconhecimento. Na verdade, é na dialética do trabalho que se consuma a não-reciprocidade das consciências, no sentido da inessencialidade de uma com relação à outra. Isto ocorre porque a condição a que a dominação empurra o eu, na forma mediadora do trabalho, é uma forma incompleta do ponto de vista da posição das consciências no ato de produção e reprodução do ser. Na inversão dialética, é posta de maneira muito clara a importância que ganha o trabalho para a composição da sociabilidade - ele educa, impede que o consumo seja sinônimo de satisfação vil e realiza a permanência do objeto trabalhado a partir da repressão do desejo. Mas isso tudo não se põe a não ser a partir do papel assumido e desempenhado pelo escravo na relação com o senhor: onde um é beneficiado pela satisfação imediata do desejo, o outro é verdade ao abrigar a permanência do objeto.
Aqui, quem trabalha é o escravo. Aquele que consome é o senhor - o escravo é parte da natureza, uma espécie de ferramenta mediadora entre o fazer e o destruir. São duas consciências, a do senhor mediatizada pela consciência do escravo, que é uma consciência humana, porém natural, reificada, coisificada, associada diretamente ao meio natural, e através da qual ele (o senhor) se relaciona mediatamente com a natureza. Da parte do escravo, sua verdade é o objeto. A coisa, sua independência.
A intermediação entre senhor e natureza é levada a efeito pelo trabalho do escravo. A obrigação deste é permitir ao senhor a relação com a matéria, transformada agora em objeto de consumo, em utensílio social distante da feição primitiva e bruta. Conseqüentemente, a relação do senhor consigo mesmo é sua relação com o trabalho escravo, pois somente por meio dele é que se relaciona com a natureza. Pelo lado do escravo, sua relação com a natureza passa diretamente pela submissão ao senhor, pois a posse do produto que elabora não é sua, dependendo sua vida daquilo que o senhor lhe permite consumir. No controle do consumo do objeto se coloca, por um lado, a subsunção do escravo no senhor e, por outro, a possibilidade de conservação do produto na sua negação.
O reconhecimento recíproco das consciências-de-si sofre, nesta relação, uma deformação, pois a condição para que sejam ambas para-si uma como relação à outra não suprime a desigualdade sobre a qual se afirma o trabalho do escravo na sua dependência do senhor. Por isso, a dependência e a independência da consciência-de-si se resumem num confronto integrador entre ser-para-si e ser-para-outro.
Como se vê, não é dado como possível à consciência do escravo ser o que exatamente a outra é. Primeiro, porque o senhor tem poder sobre a natureza - que, para ele, é o negativo - e o estende ao escravo. Segundo, porque no poder de destruição (transformação para a produção de algo qualitativamente distinto) que o escravo tem sobre a natureza está posta igualmente sua condição de consciência, que se funde insoluvelmente com a condição de outro exterior àquela. Dessa forma, o reconhecimento que o senhor alcança é aquele da insuficiência absoluta, que não pode lhe garantir reciprocidade, uma vez que as consciências não se encontram em condição de igualdade. A coisa é negada pelo senhor no momento do consumo, ao mesmo tempo em que a consciência do escravo depende da do senhor para ser.
Então, como ser recíproco o reconhecimento, se uma consciência não tem poder para ser tal qual a outra? A consciência do senhor, neste confronto, vai perdendo substância: a outra consciência-de-si não o é na mesma proporção do silogismo. Esta última não passa de uma projeção da primeira consciência-de-si, ou seja, da consciência-de-si do senhor. Nada que está do outro lado é capaz de reconhecer a consciência-de-si do escravo e fazer dela verdadeira consciência-de-si.
Mas, ao tranformar a matéria bruta em produto, o trabalho do escravo torna dependente a manutenção física do senhor. Sua consciência se descobre para além de mero ser-para-outro na contemplação da coisa à qual ele deu forma. E, dando forma ao produto, ele se descobre sendo em-si na produção de sua consciência. A verdade da consciência que reputávamos portadora de essência é a própria consciência do escravo, pois ao tornar o produto de seu trabalho objeto independente, ele é capaz de compreender-se enquanto consciência-de-si, compreender-se a si mesmo. A verdade da consciência independente é, então, a consciência do escravo.
"A verdade da consciência independente é (...) a consciência escrava. Sem dúvida, esta aparece de início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si. Mas, como a dominação mostrava ser em sua essência o inverso do que pretendia ser, assim também a escravidão, ao realizar-se cabalmente, vai tornar-se, de fato, o contrário do que é imediatamente; entrará em si como consciência recalcada sobre si mesma e se converterá em verdadeira independência"13.
Mas a angústia à qual aludimos logo no primeiro parágrafo acerca da submissão do escravo se fez presente em toda sua extensão na reflexão da consciência servil sobre si mesma, na verdade da quebra de toda e qualquer substancialidade que a vida podia conceder-lhe. Diante da morte, o escravo preferiu ser escravo da vida, mas a negatividade da experiência que aparece agora logrará livrá-lo da determinação de sua escolha14.
A formação (Bildung) se realiza então pelo trabalho. Este é formador também da independência da consciência-de-si do escravo, que se educou pela disciplina do fazer laborativo. Se, antes, era o senhor que dominava imediatamente a coisa e a tinha por seu negativo, sem o escravo essa absorção se torna impossível. A dependência extremada do senhor o fez subordinado ao escravo no ato do consumo e no ato da própria reprodução da consciência-de-si. Nessa relação entre as consciências-de-si, a posição da inessencialidade se inverteu. No caso do escravo, foi seu trato direto com a natureza que o tornou para-si enquanto consciência. Ele sociabilizou-se ao trabalhar a natureza; mudou com ela. Tornou-se exterior a ela no conteúdo da produção da consciência-de-si, na produção de si mesmo.
Nesse sentido é que o objeto do trabalho tem a permanência. E é nesse sentido também que o eu se fez homem, através da realização deste último pelo trabalho - ou seja, de sua autoprodução, sua descoberta como ente em e para si.
IV
É justamente no trabalho que Hegel encontra a justificativa ontologicamente fundante da "astúcia da razão": o que a lógica põe no plano abstratamente categorial deve tornar-se realidade. As categorias dessa lógica, por se apoiarem no percurso do abstrato ao concreto (ou do mais simples ao mais complexo) buscam com sucesso fundar no em-si real a totalidade do seu conjunto explicativo. Aqui, a apreensão da contradição se dá conceitualmente a partir do movimento do próprio processo (do movimento da coisa) e não, ao invés, trazendo a contradição como um fator a priori (portanto, na concepção) desse mesmo processo.
Ao contrário, o elemento apriorístico aparece em Hegel não na justa e correta apreciação da tendência histórica como penetrada pela contradição, mas na pressuposição da unidade entre sujeito e objeto no interior do espírito absoluto; na esperança de que todas as formas históricas anteriores, marcadas por uma exteriorização (Entäusserung) contraditória do Geist, venham a ser sintetizadas e suprassumidas nesse processo de memória e interiorização (Er-innerung) estabelecedor da harmonia na fase final da trajetória do espírito, no saber absoluto. Essa pressuposição revela o crédito hegeliano numa teleologia da história, uma vez que a consecução desta é produto de um sujeito unitário cuja meta já estava estabelecida no início do processo, pois "'a razão é o agir conforme a um fim' (...) o fim é o imediato, o-que-está-em-repouso, o imóvel que é ele mesmo motor, e que assim é sujeito. Sua força motriz, tomada abstratamente, é o ser-para-si ou a negatividade pura. Portanto, o resultado é somente o mesmo que o começo, porque o começo é fim; ou, [por outra], o efetivo só é o mesmo que seu conceito"15.
Dizemos isso porque nossa apreciação do conceito de trabalho esteve mais ou menos vinculada ao texto hegeliano, embora remetesse genericamente a ele como um fator originalmente societário. O que de fato interessa, ao nosso ver, é a constatação de que a formação do ser social e sua produção e reprodutibilidade (no entendimento de que sua realização é a realização da própria sociabilidade e, portanto, está submetida ao curso dialético da contradição no desenvolvimento desse ser) não podem ser compreendidas sem que se "reduza" analiticamente a história do homem à sua história de homem humanizado que se separa gradualmente da natureza ao mesmo tempo em que a domina e compreende, isto é, sem o recurso da categoria trabalho não teria sido possível a Hegel explorar tão perspicazmente o conteúdo da gênese do ser social.
Porém, o problema que encontramos no desenvolvimento da teoria de Hegel é que a derivação da natureza e da história de um mesmo sujeito abstrato (o espírito) oculta o caráter aberto da historicidade em contraposição ao caráter fechado do sistema hegeliano16. No interior dessa prerrogativa, o conceito de trabalho fica amarrado à noção de que a posição finalística não passa de uma condição da necessária consecução de mais uma das etapas de efetivação do espírito no seu vir-a-ser. Nesse sentido, prevalece uma noção de positividade do trabalho remetida à determinação do complexo de afirmação da idéia, em detrimento das reais conexões causais, a respeito das quais nem sempre é possível antecipar tendências.
A formação do homem como ser unitário e sujeito singular diferenciado do ser unitário e não-societário da natureza não significa que esta não compreenda uma historicidade. Esse princípio, fundamental para o correto entendimento da dialética do trabalho enquanto posição social originária, não é preconizado por Hegel. Sua compreensão da exterioridade natural é aquela que vincula a natureza a um momento particular de externação do espírito: "Esse último vir-a-ser do espírito, a natureza, é seu vivo e imediato vir-a-ser. Ora, a natureza - o espírito extrusado (die entäusserte Geist) - em seu ser-aí não é senão essa eterna extrusão de sua subsistência, e o movimento que restabelece o sujeito"17.
A reflexão de Hegel acerca da relação entre finalidade e meio no interior do processo de trabalho é presença constante na sua tematização18. Porém, ao defender a teleologia como uma posição anteposta ao saber sensível originário, uma vez que mesmo a natureza é resultante da meta demiúrgica de um universal determinado, Hegel estatui como verdadeira a realidade da razão como antecessora da sociabilidade do homem. A razão que só se sabe ao final do processo esteve em constante latência. Sua progressividade culminou na idéia. Como a expressão central da análise hegeliana é a abstração lógica de processos reais, a conexão entre o transcurso do espírito na história e a função social do trabalho no interior deste transcurso é compreendida também no universo dessa abstração, o que ancora as conclusões do sistema de Hegel em pressupostos originados antes na percepção cognitiva dos processos efetivos (conexão lógico-causal nos domínios do pensamento) do que na reprodução imanente da gênese do processo real:
"Por um lado, Hegel descobre no trabalho o princípio no qual se expressa a forma autêntica da teleologia, a posição e realização real da finalidade por parte de um sujeito consciente; por outro lado, essa genuína categoria ontológica é incorporada no meio homogêneo de uma sistemática na qual imperam os princípios lógicos. Segundo tal sistemática, a teleologia surge num estágio que não produziu ainda nem a vida, nem o homem, nem a sociedade. Com efeito, a vida - em conformidade com os princípios lógicos de explicitação do sujeito-objeto idêntico - só pode tornar-se figura no estágio da Idéia; e a teleologia tem precisamente a função lógico-sistemática de conduzir do estágio do conceito àquele da Idéia. Com isso, a hierarquia lógica leva ao seguinte absurdo: a categoria do trabalho é desenvolvida antes que, na seqüência evolutiva lógico-ontológica, tenha surgido a vida"19.
Ora, o trabalho não poderia estar posto, enquanto idéia, simplesmente porque esta anterioridade é ilusória: o primeiro passo em direção à sociabilidade vem antes do que a estratégia ideal de sua consolidação. A posição real é aquela dos homens postos na imediatidade de suas relações conscientemente elementares, em primeiro lugar. Em segundo lugar, no âmbito das produções abstratas que se distanciam da esfera mais orgânica do trabalho, a especificidade das leis de tendência sobrepujam largamente o princípio (lógico) da contradição: ainda que fosse verdadeira a suposição de que os nódulos condutores do processo histórico pudessem ser reconduzidos graças à educação do espírito, resultou impossível a Hegel explicar adequadamente o porquê da contradição permanecer ainda no interior do saber absoluto, estágio histórico contemporâneo à sua elaboração teórica.
Mas é patente, por outro lado, que, ao ser tomado na sua especificidade de produto da consciência - portanto produto social pré-ideado -, o trabalho aparece como elemento fundante daquele ethos da sociabilidade humana, que se traduz tanto numa sociabilização da individualidade, como, igualmente, numa humanização da sociabilidade. Ou seja, a instância de desenvolvimento dos pólos gênero (o indivíduo enquanto gênero)-individualidade (o gênero posto singularmente, mas sociabilizado).
Prova dessa integração é, por exemplo, a constituição da cultura da forma como aparece na Fenomenologia.... Ali, o trabalho atua como base formadora e sua permanência é condição para a constante reposição da produção-de-si do homem, momento de passagem da autoposição do eu para a autoprodução humana.
É claro porém que, uma vez posta a condição qualitativamente nova da autoprodução fundada no trabalho, o quadro restante é a própria história mundial no seu fluxo contínuo. A condição de saída-de-si se repõe constantemente num eterno retorno a si. Uma vez posta a consciência enquanto fator determinativo, e o trabalho enquanto o seu ser material, a evolução desse processo assume um caráter de sucessão e progresso irreversível.
1 - Devemos à obra de SANTOS, J.H.; Trabalho e Riqueza na Fenomenologia do Espírito de Hegel; São Paulo, Edições Loyola, 1993, boa parte das reflexões contidas neste trabalho. As categorias autoposição e autoprodução, assim como o desenvolvimento da dialética do reconhecimento, ainda que corressemos o risco do erro, foram diretamente inspiradas na sua elaboração.
2 - HEGEL, G. W. F.. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis, Editora Vozes, 1992/93, v. II, p. 9. Tradução: Paulo Meneses, com a colaboração de José Nogueira Machado.
3 - Idem. Ibidem, v. I, p. 119.
4 - Idem. Ibidem, v. I, pp. 120-1.
5 - E não podemos esquecer-nos: trata-se de um momento lógico, cujo alcance culmina na impossibilidade de resolução de um conflito entre o homem e o próprio gênero, posto que, por um lado, a história está inconclusa, e, por outro, o próprio Hegel tinha plena ciência de que o reconhecimento mútuo era base necessária e imprescindível à consecução da liberdade. Porém, as dimensões das necessidades que passaram a instaurar-se na sociedade moderna, especialmente a relação de dependência que Hegel conseguiu captar nas relações de trabalho, mostravam que a forma ideal do reconhecimento recíproco era ainda uma tarefa a cumprir, como o era o conjunto das transformações advindas da Bildung.
6 - A respeito, confronte SANTOS, J. H.; Op. cit., p. 43.
7 - HEGEL, G. W. F.. Op. cit., v. I, p. 128.
8 - Idem. Ibidem, p. 126.
9 - Cf. LUKÁCS, G.. A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 65.
10 - SANTOS, J. H.. Op. cit., pp. 26-7.
11 - HEGEL, G. W. F.. Op. cit., v. I, pp. 128-9.
12 - SANTOS, J. H.. Op. cit., p. 48.
13 - HEGEL, G. W. F.. Op. cit., v. I, pp. 131-2.
14 - A este respeito, Hyppolite sintetiza: "O temor e o serviço não seriam suficientes para elevar a autoconsciência do escravo à verdadeira independência; é o trabalho que transforma o serviçal em senhorio. O amo conseguia satisfazer completamente seu desejo; no gozo, chegava à completa negação da coisa. Mas, em troca, o escravo se defronta com a independência do ser. Só podia transformar o mundo e fazê-lo assim adequado ao desejo humano. E, sem embargo, precisamente nessa operação que parece inessencial, o escravo se fez capaz de dar a seu ser-para-si a subsistência e a permanência do ser-em-si; dando forma às coisas, o escravo não só se forma a si mesmo, como também imprime ao ser esta forma que é a da autoconsciência e, com isso, encontra-se a si mesmo em sua obra. (...) O trabalho do escravo conduz à contemplação do ser independente como contemplação dele mesmo". HYPPOLITE, J.. Génesis y Estructura de la Fenomenología del Espíritu de Hegel. Barcelona, Ediciones Península, 1991, pp. 159-160.
15 - HEGEL, G. W. F.. Op. cit., v. II, p. 32.
16 - A respeito, ver LUKÁCS, G.; El joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista; México, Editorial Grijalbo, 1963, especialmente as pp. 335-360.
17 - HEGEL, G. W. F.. Op. cit., v. II, p. 219.
18 - Um exemplo significativo dessa tendência pode ser encontrado em HEGEL, G. W. F.; Jenaer Realphilosophie. Vorlesungsmanuskripte zur Philosophie der Natur und des Geistes von 1805-1806; Hamburg, Johannes Hoffmeister, 1967. Numa das passagens dessas lições (pp. 198-199), Hegel vê na ferramenta a função portadora da teleologia, atribuindo ao trabalho algo mais do que a simples atividade, algo acima do desejo: a especificidade do processo de trabalho leva mesmo à concepção da liberdade como algo posto acima da fuga da determinação da natureza, onde o que importa é o conhecimento de suas leis e a conseqüente orientação dessas leis para determinados fins, tomados como sintéticos das necessidades humanas. Nesse estágio, o fazer-se-a-si-mesmo do eu na concretização de sua consciência-de-si marca sua urgência enquanto eu prático.
19 - LUKÁCS, G.. A Falsa e a.... Op. cit., p. 57.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 4, Julho de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.
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