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| Resenha:DERRIDA, Jacques Espectros de MarxO Estado da Dívida, o Trabalho do Luto e a Nova InternacionalTradução: Anamaria Skinner Rio de Janeiro, Ed. Relume-Dumará, 1994. 236 págs. | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Ronald Rocha
Ronald_Rocha@revistapraxis.cjb.net
Sociólogo, é membro do Diretório Nacional do PT, da Editoria da Revista Práxis, do Conselho de Colaboradores da Revista Crítica Marxista e do Conselho Deliberativo da Revista Teoria e Debate.
Espectros de Marx foi originalmente publicado em 1993, pela Éditions Galilée. Corresponde, basicamente, a uma longa conferência proferida nos dias 22 e 23 de abril daquele ano, a título de abertura do simpósio internacional Whither marxism?, na Universidade da Califórnia, Riverside. O texto, que manteve o conteúdo, a construção estrutural e o estilo eminentemente "falado", foi posteriormente desenvolvido e acrescido de notas. De imediato, provocou espanto: uma "radical e inesperada defesa de Marx" por parte de "uma opção não-marxista no mercado das idéias", afirmou-se. (BENTES, Ivana. JB, 27/08/94) Inesperada, talvez, em se tratando de Jacques Derrida. Radical, não. Seria cômodo, para os marxistas, no mar deste período reacionário, agarrar-se, através da psicologia de náufrago, à primeira tábua de salvação que aparecesse.
O mais surpreendente, já pensando por um ângulo distinto, é que Derrida continue resignando-se a ser o mais infeliz dos escritores. Há mais de duas décadas, pelo menos depois de La Dissémination, tematizou a incompatibilidade da forma-livro com o seu pensamento da différance. E agora, felizmente, produziu mais um trabalho de autor! Durante uma boa parte dos anos sessenta-setenta (La voix et le Phénomène; L'Écriture et la Différence; De la Grammatologie; Marges de la Philosophie) e criticando a tese aristotélica sobre a linguagem em De Interpretacione, a escrita é um conjunto de símbolos da voz humana, vale dizer, um significante de segundo grau , declarou guerra implacável ao "fonocentrismo": pretendendo a superação de uma certa "metafísica" da "presença" localizada na palavra, valorizou a escritura primígena como designação da différance. Não é casual que tenha sentido um desconforto, até mesmo insegurança, em um episódio recente: "Eu não tenho condições de dar a entrevista, eu escrevo tão melhor do que falo...". (FSP, 26/06/94) Mas, também felizmente, cristalizou em livro a forma oral de uma palestra!
Nas últimas décadas, Derrida vem trabalhando à margem da filosofia e até mesmo, como afirmou, "contra a filosofia", que "não foi capaz de pensar o espectro". (FSP, cit.) No entanto, ainda felizmente, rechaçou a mitologia do "fim da filosofia", do "fim da história", do "último homem", e acabou tendo que abordar questões de natureza eminentemente filosófica. Por fim, dedicou a sua vida intelectual, compulsivamente, à temática minimalista de apagar do discurso quaisquer traços de razão e de vontade. Porém, mais uma vez felizmente, não pôde furtar-se supremo, humano e indescartável infortúnio! a pelo menos: explicar uma certa espectrologia, tão fantástica quanto irredutível, na qual o geist (espírito) invoca ontologicamente o gespenst (espectro), e, neste tour de force, manifestar valores sobre o mundo contemporâneo e a obra de Marx.
A rigor, no fundamental, incluindo uma pitoresca e já conhecida retórica, Espectros... "não acrescenta nada de novo". (ESCOBAR, C. H.. JB, cit.) Entretanto, é interessante acompanhar o seu diálogo erudito com o discurso de Marx (A Ideologia Alemã; Manifesto do Partido Comunista; O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte; O Capital), remetendo-o à tragédia shakespeareana. É também muito importante o surgimento, no interior da cultura pós-moderna e com repercussão nas instituições privadas de hegemonia, de uma consciência explícita e assumidamente crítica sobre a estreita relação entre o cantochão celebrante da morte do marxismo e o pensamento conservador hoje dominante, especialmente as "opressões do imperialismo capitalista ou de todas as formas do totalitarismo", o "consenso midiático" e a "euforia da democracia liberal e da economia de mercado", expressos de maneira lapidar no evangelho de Fukuyama, tido como "a mais bela vitrine ideológica do capitalismo vencedor".
Destarte, Espectros... merece a maior menção que uma resenha pode fazer a um livro: deve ser lido. E por várias razões. Primeiro, representa, de modo admirável, uma corrente de pensamento e sobretudo uma sensibilidade influentes no mundo hodierno. Depois, significa um cisma de corte político-ideológico no interior do irracionalismo e do relativismo contemporâneos, contrapondo-se praticamente ao discurso conservador que dissolve os conflitos sociais no chamado consenso intersubjetivo do pragmatimo de Richard Rorty à hermenêutica pretensamente racional de Habermas , base filosófica renovada do projeto neoliberal e justificativa moral do realismo cínico que aplaude a Nova Ordem Mundial e, no Brasil, habita o Palácio do Planalto. Não por acaso foi dedicado à Chris Hani, dirigente comunista barbaramente assassinado pelos defensores do apartheid sul-africano.
Mais ainda, Espectros... acusa: "o dogma a propósito do fim do marxismo e das sociedades marxistas é, nos dias atuais, tendenciosamente, um 'discurso dominante' ". Lembra o Paul Valéry de A Política do Espírito, que, ao citar-se, ao rememorar o Hamlet europeu meditando "sobre a vida e a morte das verdades" nas páginas de La Crise de l'Esprit, "só omite, então, uma frase, uma única, sem mesmo assinalar a omissão por meio de reticências: a que nomeia Marx, no crânio de Kant ('E este aqui foi Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit ...')". E comenta: "Exeunt Ghost and Marx, teria notado Shakespeare".
Ademais, Espectros... retira, dessa denúncia, uma conseqüência teoricamente singela, mas de um sentido prático muito forte: "Se me apresto a falar longamente de fantasmas, de herança e de gerações, de gerações de fantasmas, ou seja, de certos outros que não estão presentes, nem presentemente vivos, nem para nós, nem em nós, nem fora de nós, é em nome da justiça". Eis o ponto de partida de um intelectual que, mesmo nunca tendo sido marxista, faz desabar o terrível libelo sobre as cabeças dos trânsfugas que se apressam em desvencilhar-se de toda e qualquer "mácula" comunista como ritual de passagem à ordem: "Não há futuro sem Marx, sem a memória e sem a herança de Marx (...) a herança marxista era e ainda continua sendo, e, portanto, continuará sendo absolutamente e de ponta a ponta determinante (...) não é preciso ser marxista ou comunista para render-se a essa evidência (...) todos nós habitamos um mundo, alguns diriam uma cultura, que conserva, de modo diretamente visível ou não, numa profundidade incalculável, a marca dessa herança (...) é preciso assumir a herança do marxismo".
E, finalmente, no momento em que tantos procuram sebos para vender os clássicos a preço de banana, tentando exorcizar, sem maior prejuízo financeiro, aqueles fantasmas da vulgata que acriticamente abraçaram, Espectros... foi claro: "Na releitura do Manifesto e de algumas outras grandes obras de Marx, disse, a mim mesmo, que conhecia poucos textos na tradição filosófica, talvez nenhum outro, cuja lição parecesse mais urgente nos dias de hoje". Urgência, palavra chave. Derrida se mostrou duplamente impressionado.
Na contramão das vulgaridades hoje dominantes, confirmou a existência de "um certo espírito do marxismo", responsável por ter-se constituído como, "em princípio e primeiramente, uma crítica radical, a saber, um método pronto à sua autocrítica", que "se quer, em princípio e explicitamente, aberta sobre sua própria transformação, sua reavaliação e sua auto-reinterpretação", "herdeiro" legítimo "de um espírito das luzes a que não se deve renunciar". Que distância de certos comentários ligeiros e charlatães, que vêem a obra marxiana como a origem genealógica do totalitarismo burocrático!
Mas não se limitou ao espírito antidogmático. Afirmou também, quando "uma nova desordem mundial tenta instalar seu neocapitalismo e seu neoliberalismo," que "denegação alguma consegue desembaraçar-se de todos os fantasmas de Marx". Se a crítica burguesa realiza o "que Freud distinguia em certa etapa dita triunfante do trabalho do luto (...) repete-se, ritualiza-se, empenha-se por fórmulas, como requer toda magia animista", se "recai na repetição e no refrão", é porque sabe que o marxismo é o seu inimigo irrecuperável, o seu detrator histórico, a corrente que desvela os seus segredos íntimos, a filosofia que ousou declarar-lhe guerra. O capital precisa eliminar o espectro da revolução na vã quimera de perenizar-se per omnia secula seculorum: "Marx está morto, o comunismo está morto, de fato morto, com suas esperanças, seu discurso, suas teorias e suas práticas; viva o capitalismo, viva o mercado, sobreviva o liberalismo econômico e político".
Há, portanto, uma herança. Como resgatá-la? Derrida critica, com muita propriedade, a tentativa de usar "Marx contra o marxismo, a fim de neutralizar, ou de calar em todo caso, o imperativo político na exegese tranqüila de uma obra classificada". Seria uma marxismo com um "corpus" debilitado, sem "a revolta", sem "o elã revolucionário". Algo de que se poderia "tratar calmamente (...), objetivamente, sem tomar partido: segundo as regras acadêmicas, na universidade, na biblioteca, nos congressos". É o murmúrio que já se ouve: "Marx, vejam só, foi, apesar de tudo, um filósofo como outro qualquer, e até se pode dizer, agora que tantos marxistas estão calados, um grande-filósofo, digno de figurar nos programas de concursos de que durante muito tempo foi proscrito." Ah, que palavras oportunas!
Assim, Espectros... mostrou, contra o senso comum dos conservadores, dos obscurantistas, dos sectários da mercadocracia e da "boa" exegese domesticante, que se pode dialogar com Marx e fazer-lhe justiça, mesmo a partir de um locus filosófico diametralmente oposto. Cabe aos marxistas, igualmente, depois de fazerem justiça integralmente à dignidade, à coragem, ao espírito libertário do intelectual Derrida, discutirem os limites teóricos de seu mais recente livro, de resto perfeitamente coerentes com a obra de mais de três décadas, que acabou desaguando no chamado pós-estruturalismo através de uma temática e de uma ontologia de assumidas sinalização e inspiração heideggerianas. Sim, porque também não cabe uma recuperação irracionalista do espírito de Marx.
O leitmotiv que perpassa os Espectros..., do início ao fim, é uma exclamação de Hamlet: The time is out of joint. "O tempo está fora dos eixos", como sugeriu Derrida, enfocando-a sob o ângulo de sua própria sensibilidade, vale dizer, dissolvendo a dimensão geral do tempo histórico e político e instaurando a disjunção absoluta. "Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá tempo, não este: 'Enter the Ghost, exit the Ghost, re-enter the Ghost' (Hamlet) (...) E agora os espectros de Marx. (Mas agora sem conjuntura. Um agora desajuntado ou desajustado, 'out of joint', um agora desencaixado que corre o risco de nada manter junto, na firme conjunção de algum contexto, cujas bordas seriam ainda determináveis.)".
Shakespeare à luz póstera, Marx à luz de um Hamlet esquizofrênico. A sedução que Derrida sente pelo anacronismo dos fantasmas invocados está obviamente ancorada na profunda sincronia de seu enfoque na relação com o zeitgeist, o espírito de um tempo tido e retido como fragmento ilógico. Tal leitura é, na essência, infiel às obras shakespeareanas e marxianas, que são modernas por excelência. Para Hamlet, a disjunção agride uma certa visão moral e uma certa representação de totalidade, pondo imperativamente, frente ao mal-estar, um propósito restaurador, ainda que o sujeito maldiga o destino tido como força exterior, projeção heteronômica e transcendente de uma vontade incontornavelmente humana. Nenhum herói pós-moderno manifestaria, depois de lamentar um "tempo (...) fora dos eixos", a certeza e a segurança de Hamlet: "Oh, maldita sorte, porque nasci para colocá-lo em ordem". Também a crítica de Marx ao capitalismo põe uma decisão inelutável: o engajamento no processo da emancipação humana.
De fato, Derrida se projeta em Marx igualmente o faz nas personagens de Shakespeare e lhe transfere os seus próprios parâmetros e dilemas. Legítimo, sem dúvida, mas consistente apenas como literatura. O esforço retórico transforma os trabalhos marxianos em uma espectropoética escritocêntrica, onde a desrazão contemporânea se aloja, por meio de uma fresta do tempo disjunto, para compor a velha e repetida temática desta "coisa que nos olha" e "vem desafiar tanto a semântica como a filosofia", da "visibilidade furtiva e inapreensível do invisível ou uma invisibilidade de um X visível", do "apelo do dom, da singularidade, da vinda do acontecimento", do "espectro sem Dasein", da "contaminação essencial do espírito (Geist) pelo espectro (Gespenst)" e da différance.
Assim, Derrida intui, percebe, uma integralidade ameaçadora e a declina: o "imperialismo capitalista", o "neoliberalismo", a "estrutura de toda hegemonia", a "nova ordem mundial", a "mais-valia para sempre errante", as "opressões". Mas, submerso na indeterminação absoluta, ignorando a categoria ser social gesellschaftlichen seins , passando ao largo da práxis, rechaçando a priori quaisquer atos humanos que lembrem a explicação e a vontade, acaba ficando inerte frente à totalidade que não é reconhecida como tal, mas que não obstante o inquieta e o agride. Torna-se o emblema de uma impotência extraordinariamente atual: mesmo quando os seus valores se revelam hostis à ordem, vê-se incapaz de compreender suas determinidades, desvendar sua lógica e construir os meios políticos de combatê-la. Portanto, revela-se um indivíduo isolado e indefeso, quando não francamente confuso.
Não é por outro motivo que se recusou "a subscrever o conceito de classe social por meio do qual Marx tantas vezes determinou, especialmente em A Ideologia Alemã, as forças que disputam a hegemonia" e "até, muito simplesmente, o Estado". Preferiu substitui-los por uma "dominação em um campo de forças". Mas que forças? Porque dominam? Como? Semelhantes questões já estariam no patamar daquela reflexão "metafísica" já desautorizada pela crítica pós-nietzscheana de Heidegger ao sujeito. E, na falta de referências ideológicas, programáticas e partidárias, de antemão descartadas como se fossem imanentemente opressoras, ocorre a flutuação que permite uma proximidade perigosa com "as autoridades internacionais", o capital financeiro" e os "poderosos Estados-nações". É o caso do chamado "direito de ingerência ou intervenção, a título do que se chama obscuramente, e às vezes com hipocrisia, o humanitário, limitando assim a soberania do Estado em certas condições", com o qual Espectros... se congratula, embora com a ressalva de quem desconfia do conteúdo e da origem inevitáveis das decisões.
Em suma, é preciso levar muito a sério Derrida quando chama "um ao menos" dos espíritos do mais ilustre "defunto" deste final de século. Contra o trabalho burguês-triunfante do luto, a evocação poética. Mas o espectro, quando atende ao chamado, já é um Marx" póstero, fragmentado em vários momentos, escravizado ao happening, sem história, desideologizado, carente de ontologia, messiânico. Um não-Marx. Uma luz que brilha, mas não ilumina. Todavia, é o fruto legítimo da tragédia intelectual que se autoprojetou no passado para tentar situar-se neste presente onde também, como no antigo "state of Denmark", existe "algo de podre". Atroz é o dilema dos hamlets contemporâneos: "To be or not to be" pós-moderno continuar negando que a opressão tem uma lógica passível de ser intelectualmente apropriada e politicamente combatida pelos seres humanos, ou, pelo contrário, reconhecer a existência de uma racionalidade no capital e imbuir-se do imperativo de opor-lhe uma práxis revolucionária , "that's the question".
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 4, Julho de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.
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