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As Desventuras dos Encanadores no País de Sartre

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Ronald Rocha
Ronald_Rocha@revistapraxis.cjb.net

Sociólogo, membro da Editoria da Revista Práxis, do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, do Conselho de Colaboradores da revista Crítica Marxista e do Conselho Deliberativo da revista Teoria e Debate.

"Todos desempenham sua função trágica, ali se altiva Hamlet, lá está Lear,essa é Ofélia, aquela, Cordélia; contudo, mesmo que fosse a última cena, a grande cortina do palco pronta para cair, se são dignos de seus destacados papéis, não os interrompem para chorar." W. B. Yets, "Lapis Lazuli"

Assumindo no próprio título e sem reservas os termos sugeridos pela inconfidência da ideologia preconceituosa, este artigo sinaliza uma intenção de avaliar, sob o ângulo do mundo do trabalho, as últimas eleições gerais. Renuncia, pois, de antemão, à suposta neutralidade que transformou as pesquisas de opinião no santuário da ignorância bem informada e a grande mídia em terreno por excelência do embuste travestido de utilidade pública. Irrecusavelmente, tais veículos foram os palcos exclusivos de seus atores. Agora, no drama cujo primeiro ato acabou de concluir-se, há os que, como eles, riem. Outros, como nós, desincumbem-se da tragédia. Porém, como afirmou Yets, um perspicaz observador da obra shakespeareana, os que "são dignos de seus destacados papéis, não os interrompem para chorar".

I - Do Senso Comum ao Bom Senso

O papel dos socialistas, hoje, passa pelo esforço de compreender a sua experiência recente. Como ponto de partida, constata-se que o processo eleitoral foi polarizado entre duas opções antagônicas. De um lado, a frente conservadora encabeçada pelo Partido da Social-Democracia Brasileiro (PSDB), que uniu quase integralmente a classe dominante ao redor de uma plataforma neoliberal. Os políticos burgueses incapazes de compreender o que foi posto em jogo, de sentir o ânimo dominante na massa empresarial e de sintonizar-se com a flexão tática operada por suas frações mais conscientes, caminharam irrevogavelmente para o isolamento. No lado contrário, reuniram-se as forças de esquerda e alguns segmentos descontentes de outros partidos, tendo à frente o Partido dos Trabalhadores (PT), defendendo uma proposta de governo de sentido democrático-popular. Estavam configurados, no fundamental, os termos da contenda.

Tal contraposição adquiriu, sem dúvida, desde o início, um conteúdo e uma dimensão nacionais, convertendo-se na busca de uma saída para o impasse multifacetado que o País experimenta desde meados da década de setenta, momento em que os padrões vigentes de acumulação capitalista, as instituições públicas e as formas de hegemonia, herdadas do regime militar e mantidas em boa parte pela transição conciliadora, mergulharam em uma crise histórico-estrutural e caminharam para o esgotamento. Tal como já se desenhara na chamada "Era Collor", o divisor de águas foi traçado, de modo mais ou menos elaborado e consistente, pelas diferentes atitudes surgidas em face das reformas nas relações sociais, no Estado e na economia, chegando mesmo a uma certa cristalização programática, embora moderada, opaca e por cima. Pode-se dizer que os sujeitos políticos à direita, desde o mundo nacional do lucro, passando pela grande maioria dos políticos e partidos da ordem, até os centros financeiros dos poderosos "blocos", desenvolveram um agudo senso de disputa, sem o menor diletantismo, de resto evidente no "Consenso de Washington", na unidade consertada em torno de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e no discurso massificado pelas instituições privadas de hegemonia. Impõe-se afirmar que as eleições gerais, muito ao contrário de reproduzirem a rotina das urnas, exprimiram institucionalmente a luta de classes em curso na sociedade brasileira e as suas conexões mundiais, adquirindo assim um significado de alta relevância. Essa conclusão é uma premissa chave.

A política tem algo a ver com a luta de classes? O aparente truísmo suscita, na verdade, um dissenso fantástico. Haverá sempre alguém, devidamente munido de pesquisas e mapas eleitorais, disposto a dizer que o voto majoritário dos trabalhadores no candidato eleito desfaz qualquer tentativa de imputar-lhe uma representação burguesa, vulgaridade que confunde as determinações político-ideológicas com a mera relação empírica entre o sufrágio e a sua origem individual. Além do que, a mídia e os pensadores neoliberais tudo fizeram para desqualificar quaisquer reivindicações ou reformas radicais como atos particularistas de corporativismo, mesmo aquelas de óbvios conteúdo, abrangência e repercussão social. De mais a mais, a esquizovisão pós-moderna sustenta que o mundo não passa de um rol de fragmentos e alteridades irracionais e inconsistentes, onde a política teria que prestar contas só a si mesmo. E como deixar de notar que a ofensiva contra o marxismo, inclusive no interior do PT, adotou como leitmotiv a inexistência da luta de classes ou a improcedência de tentar-se compreender a ontogênese da política?

Com a rejeição de semelhantes "argumentos" e o acolhimento da premissa originária, surge um corolário: o resultado das eleições repercute diretamente sobre a nova situação política do País e a elaboração tática. Logo, compreendê-lo é uma condição sine qua non para que a militância desenvolva uma necessária consciência de si, compreenda o terreno onde precisará pisar e se prepare para os próximos combates. Ora, não há dúvidas de que a esquerda cresceu no Congresso Nacional e conquistou alguns governos estaduais. Além disso, a sua candidatura presidencial obteve uma votação considerável, cerca de 50% acima daquela de 1989. Todavia, tais resultados ficaram bastante aquém das previsões mais pessimistas, em nível tanto do Legislativo quanto do Executivo. Ademais, referem-se a elementos importantes, mas periféricos. E quanto ao propósito central da tática do PT?

O I Congresso, em dezembro de 1991, definiu "como nossa perspectiva de médio prazo a conquista da Presidência da República em 1994" e "a viabilização de um governo democrático e popular". Essa foi a meta formulada e perseguida de forma explícita desde 1989. Nas decisões do VIII Encontro Nacional, aprovadas em junho de 1993, consta que "O PT luta para conquistar o governo central como elemento chave da disputa de hegemonia dos trabalhadores na sociedade brasileira". Do IX Encontro, quase um ano após, emblematicamente reunido na sede do Congresso Nacional, ecoou aquele chamamento enfático: "A partir de agora, todas as energias de nosso partido, de cada um dos militantes, filiados e simpatizantes devem concentrar-se na eleição de Lula Presidente, de nossos candidatos ao Governo e ao Senado, à Câmara e às Assembléias Legislativas". Era maio de 1994 e a campanha já estava em marcha. Em consonância com as decisões partidárias, o senso comum dos filiados, até praticamente as vésperas das eleições, julgava que a vitória era certa, talvez até no primeiro turno.

É preciso dizer que semelhante linha não era fruto de uma simples vontade ou de uma resolução arbitrária. O processo político em curso no País constrangia o PT, após dez anos de construção e presença marcante na vida política nacional, sobretudo depois do pleito de 1989, à condição de alternativa prática de governo. A profunda crise nas formas de dominação colocava na ordem do dia o problema das mudanças em contraste com a falência da sociedade política tradicional. Não tardou a surgir um vácuo em termos de projeto nacional, desimpedindo e alargando a trilha para um movimento de imagem inovadora, sensível aos anseios populares, de certa coerência, de reputação confiável, com uma razoável inserção social e suficientemente amplo para converter-se no estuário dos dilemas irrespondidos pela política oficial. O espaço foi ocupado. A eleição de Lula e a constituição de um governo democrático-popular, uma vez postas como possibilidade, tornaram-se um desafio que não mais poderia ser recusado pelo movimento socialista, sob pena de reverter-se a expectativa de milhões, criar-se uma crise de credibilidade fatal na capacidade da esquerda em aceitar desafios e desperdiçar-se uma chance histórica que talvez não se repetisse no decurso de muitas décadas.

Tais determinações, que vão da objetividade à esfera subjetiva das decisões políticas, destacaram um objetivo central de início plenamente realizável. No entanto, ficou-se longe de alcançá-lo, em contraste paradoxal com o resultado apertado de 1989, que assustou a classe dominante. Assim, é irrecusável que o desfecho mais geral da disputa foi a vitória não só eleitoral, mas também política das forças conservadoras, com graves conseqüências para a situação do povo e o movimento socialista. Os próprios números o ilustram. Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi eleito no primeiro turno com o dobro da votação de Lula e cerca de 9% acima do conjunto de seus adversários. Quaisquer tentativas de tergiversar, minimizando a evidência ou praticando um ritual baluartista, equivalem a colocar-se uma viseira, olhar fixamente para o umbigo, tomar os desejos pela realidade, bloquear o necessário procedimento autocrítico, impossibilitar o diagnóstico dos desdobramentos possíveis, desconhecer a nova situação criada e incapacitar-se a elaborar uma política correta. Houve, que se diga, vencidos e vencedores. Portanto, é um dever básico de todo revolucionário ao menos inquietar-se com a seguinte pergunta: por que o campo democrático-popular foi derrotado?

II - Democracia e Facciosidade

Para respondê-la, é prudente fazer duas ressalvas preliminares. A primeira: o problema é absolutamente insolúvel no universo da eficácia eletiva, pela simples razão de que as políticas corretas não são necessariamente aquelas capazes de gerar mais votos. De outra maneira: o sufrágio não é o selo da verdade. Avaliar o resultado de uma luta em nada se assemelha à leitura dos boletins do Tribunal Superior Eleitoral ou ao inventário da desgraça dos melhores candidatos, invariavelmente seguidos de apontamentos "realistas" visando um futuro "êxito" que, a partir dessa concepção, nasceria no abandono dos princípios, correria no mimetismo à ordem e chegaria no tecno-instrumentalismo eleitoreiro, para finalmente desaguar na carreira dos eleitos e, via de regra, na renegação. Para uma política emancipatória, uma "Vitória de Pirro", que definitivamente deve ser descartada. Portanto, não se trata de fazer um mero balanço da linha de campanha.

A outra ressalva é que o resultado da disputa não foi produzido apenas pela tática eleitoral adotada. O terreno da luta, inclusive o poderio dos inimigos e o acúmulo realizado pelo movimento emancipatório, também conta, e muito. Desconsiderá-lo seria incorrer no ângulo unilateral do sujeito incorporando a notória exacerbação que se fixou no interior da modernidade, alimentar ilusões na suposta imparcialidade do ambiente social onde operam os diferentes contendores, abrir caminho ao voluntarismo e transformar o balanço na busca de bodes expiatórios. À "esquerda", repetindo a velha cantilena contra os dirigentes burocratas que inibem o impulso radical imanente às bases incorruptíveis. À direita, manifestando a obsessão por uma frente tão ampla que incorporaria o partido hoje dirigente do bloco neoliberal e pasmem! ao qual pertence o atual presidente, antigo candidato da união conservadora e principal oponente do campo democrático-popular. De uma forma ou de outra, pensando a política enquanto exteriorização de um desejo e uma perspectiva pretensamente plenipotenciários.

Assim, o balanço deve considerar o peso e os condicionamentos globais da formação social brasileira, indissociáveis da democracia dos oligopólios enquanto regime político contemporâneo de igualdade formal. Começa pelo controle do capital sobre o processo de produção, distribuição e circulação das riquezas sociais, conhecido correntemente como "poder econômico". Continua pelo Estado, abarcando a sua dimensão particular de classe, o seu conteúdo "ético" no sentido gramsciano do termo, como "atividade educativa e moral", o direito, inclusive o monopólio da coerção extra-econômica, e a capacidade geradora de políticas. Prossegue na reprodução expontânea da ideologia dominante desde o âmago das relações sociais. Passa pelas instituições privadas de hegemonia, onde pontificam os cartéis da comunicação de massa e a indústria cultural. Considera uma hegemonia que inunda o tecido social. E acaba, enfim, na desigualdade real de meios. Tal conjunto constitui a vantagem estratégica permanente das forças burguesas.

Contudo, a exterioridade histórica e logicamente precedente à tática eleitoral que Hegel, em Filosofia do Espírito, denominou "espírito objetivo" exatamente para referir-se a um "em si" onde a idéia e a vontade se colocam "na esfera da finitude", estendeu-se ainda mais, agora como vantagem estratégica adicional. De fato, durante a gestão Itamar, o ciclo descendente da economia em nível mundial passou por um desafogo relativo, que teve como conseqüência embora passageira, logo se veria o alargamento da margem de manobra da classe dominante pelo arrefecimento da tensão recessiva no País, uma recuperação de segmentos importantes do mercado externo, uma oferta maior de capital financeiro e uma disponibilidade na reserva cambial. Concomitantemente, o neoliberalismo, que passara por um período de provações generalizadas e já contabilizava derrotas em vários países, passou a ostentar um certo poder palingenésico, cuja fórmula tem muito a ver com a flexibilização de seu "modelo" de bronze tornando-o algo mais próximo de um projeto dotado de plasticidade, capaz de fazer política com as idéias de compensação, diálogo, pragmatismo, consenso e com a despudorada inclinação da social-democracia em sua direção, recuperando-se na forma de um neoconservadorismo com maquiagem social, cujo exemplo brasileiro mais bem sucedido é a figura de FHC.

Como se não bastasse, a crise do movimento socialista, que havia chegado ao clímax com o fim do ciclo estalinista e a diáspora da URSS, teve o tempo suficiente para sedimentar e desdobrar o seu potencial desmoralizador e paralisante, alcançando uma profunda repercussão psicossocial sobre a política e a cultura contemporâneas. Ademais, o esgotamento das formas de hegemonia tradicionais, que irrompera no regime militar em declínio, arrastara-se durante anos de transição conciliadora e chegara no auge com as eleições de 1989 e o impeachment de Collor, passou a ser respondido por um processo de recoesão burguesa em torno de um projeto para o País sob a hegemonia neoliberal, base ideológica em que se assentaria o inusitado ecumenismo à direita nas eleições gerais. Acrescente-se a legislação eleitoral restritiva, o mais que anunciado comprometimento das máquinas governamentais, o esquema tradicional de clientela, o peso dos traços culturais retrógrados e o descenso das mobilizações operário-populares de massas: eis o handicap indelevelmente inscrito na correlação de forças, insuperável no âmbito exclusivo da tática eleitoral e sobretudo na linha de campanha.

Considerando-se a incidência prática de tal objetividade, como foi ingênuo aquele rol de certezas, entre as quais a sensação do "já-ganhou" e o monstruoso equívoco de que a sorte da campanha dependia principalmente do prestígio, do desempenho e, mais restritamente, da postura de Lula no quadro de um gerenciamento astuto da vantagem nas intenções de voto! Como soa patético a lamúria de que os recursos estatais, o dinheiro e os preconceitos foram usados pelos adversários esperava-se algo diferente?, no afã de que o comportamento altivo de revolucionários que denunciam a ordem do capital e se insurgem contra o conjunto de suas dimensões necessárias buscasse um sucedâneo eficaz no complexo de vítima dos que se ressabiam com as vilanias e reclamam das diferenças! Como se desvenda inconseqüente a secreta mágoa com a suposta ingratidão do povo, ignorando-se que a sua liberdade nunca foi absoluta! E como é tragicômico repetir-se a cantilena da imperfeição da democracia brasileira!

Depreende-se daí que há um destino incontornável? Que a derrota da esquerda já estava selada? Absolutamente, não. A conclusão é bem outra. Para que a vitória do campo democrático-popular estivesse além de uma possibilidade subordinada e superasse as incertezas de um processo aleatório, era preciso a neutralização das vantagens estratégicas permanentes e adicionais do capital. Com a inexistência de uma crise revolucionária, que desagregasse por um período a dominação burguesa, ou mesmo de uma crise de hegemonia bastante profunda, que deixasse momentaneamente os "de cima" paralisados ao ponto de permitir a irrupção do inesperado, a única chance do movimento socialista era construir uma contra-hegemonia inaudita, suficientemente abrangedora, densa e assente para saturar os setores sociais componentes do bloco histórico, enfrentar as forças conservadoras em condições mais favoráveis e sustentar, já com um governo alternativo, a realização de reformas radicais. Por que isso não aconteceu?

III - A Debilidade Contra-Hegemônica

Durante a transição conciliadora, vários eventos modificaram o cenário político nacional em um sentido discrepante daquele previsto pelos ardis conservadores, provocando uma oscilação à esquerda. Inicialmente, os êxitos do movimento operário-popular desde o fim dos anos setenta, nos quais o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), a criação da Central Única dos Trabalhadores e a reorganização dos antigos partidos socialistas foram pontos basilares. Depois, o descontentamento de massas com a situação reinante no País, que desaguou no crescente rechaço às formas usuais de fazer política, no desejo genérico de mudanças e no aumento da votação "indesejada", seja em novas legendas, seja no mero desencanto sob a forma de nulos, brancos e abstenções. Finalmente, o expressivo apoio a Lula em 1989 e a sua passagem à condição de favorito na disputa presidencial.

Dizer que o Partido dos Trabalhadores acabava de tornar-se alternativa de governo é o mesmo que reconhecer, ainda que intuitivamente, que a "guerra de posição" havia ingressado em um novo capítulo. A classe dominante o percebeu após a penosa eleição de Collor. Nos anos seguintes, quando, à esquerda, tornara-se decisivo consolidar os avanços alcançados e dar novos passos à frente, o acúmulo se deteve por conta de uma crise nos seus parâmetros. No primeiro grande teste, as eleições de 1994, a contra-hegemonia estabelecida se revelou, para dizer o mínimo, estreita, rarefeita e volátil, incapaz de sustentar o embate contra o campo da direita. É preciso elaborar conclusões com base nessa experiência.

Como lembrou Marx, nos Grundrisse, o ser social é uma "rica totalidade com múltiplas determinações e relações". Assim, para encontrar os motivos das insuficiências do campo democrático-popular, não basta compreender a objetividade, o terreno exterior da política. É preciso considerar o "lado ativo", verdadeiramente criador, sem o qual não haveria qualquer práxis. O "modo subjetivo", realçado nas Teses sobre Feuerbach, influiu decisivamente nos limites da contra-hegemonia. Em outras palavras: na situação configurada no País depois das eleições de 89 e muito especialmente durante a luta pelo impeachment de Collor, quando as condições objetivas necessárias para uma relativa neutralizacão da hegemonia conservadora estavam no fundamental dadas, o papel das idéias e decisões políticas, na sociedade civil e notadamente nos partidos, adquiriu uma importância ímpar. Como a esquerda não pode responsabilizar-se pelo comportamento das forças conservadoras, precisa voltar os seus esforços no sentido de forjar uma consciência de si. O processo autocrítico deve concentrar-se no PT, de longe o partido mais influente do campo democrático-popular, o único cujas políticas e iniciativas poderiam constituir valores onto-sociais e repercutir sensivelmente na correlação de forças.

O PT, logo depois da eleição de Collor e de projetar-se na política nacional como alternativa de governo em um quadro global extremamente complexo, passou a vivenciar um período de grandes viragens, para as quais estava visivelmente despreparado. Em conseqüência, incorporou internamente agudos dilemas, inevitáveis naquelas circunstâncias, sobretudo em se tratando de uma entidade sem um patamar filosófico e programático mínimo, cuja construção era predominantemente uma expressão dos movimentos sociais e cujas elaborações acabavam sendo um somatório de acúmulos empírico-pontuais aprovados nos sucessivos fóruns nacionais. O resultado surgiu na forma de uma profunda e prolongada crise de identidade, delineada em um discurso dicotômico, maniqueísta e simplista, mas com uma incidência bem real porque articulado à desagregação do sujeito coletivo presente na cultura pós-moderna e porque fortemente colado ao imaginário, às contradições, às dúvidas e aos limites do senso comum petista: partido de lutas ou de governo, revolucionário ou de reformas, contestador ou propositivo, ideológico ou amplo, doutrinário ou plural, orgânico ou aberto, dirigente ou interlocutor, disciplinado ou democrático, e assim por diante.

Era 1991 e os pensadores burgueses "informavam": Marx morreu, o socialismo acabou, a história chegou ao fim, as ideologias foram ultrapassadas e os revolucionários não passam de monstros jurássicos. Em uma extraordinária sintonia com o "espírito do tempo", um setor do PT o socialismo liberal ou portador de tensões neoliberais assumiu a iniciativa de pós-modernizar o conjunto das relações internas. Suas posturas e iniciativas tiveram uma enorme receptividade na mídia, que assumiu a generosa cruzada de "salvar", ora o promissor Lula, ora o jovem partido, de seus algozes arcaicos e radicais. Ademais, contaram com a tolerância da maioria reformista, que pragmaticamente já se movia por cálculos eleitoreiros e vislumbrava uma chance à direita de tornar-se mais palatável aos meios empresariais, às instituições privadas de hegemonia e à política dominante, na quimera de assim pavimentar o caminho ao governo central.

Nessa perspectiva, o lema era excluir alguns setores à esquerda e "refundar" o PT, transformando-o em um fluido movimento de "interlocução social". Já não era possível continuar como antes, muito menos promover uma "volta às origens", tal como quis a resistência passadista e nostálgica. Exprimindo uma vontade amplamente majoritária, os prefácios às resoluções do I Congresso falam no incontornável "salto de qualidade". Contudo, a sua ênfase recaiu não na construção de uma contra-hegemonia que preparasse a vitória e as condições para enfrentar o inevitável dissenso na realização das reformas estruturais na sociedade, mas em uma reorganização "em moldes mais abertos e flexíveis", anunciando que as medidas correspondentes "já estão desencadeando mudanças radicais e profundas na vida do Partido". Entretanto, a despeito das bravatas e da letra das resoluções, o principal efeito prático do ambiente ideológico e da retórica eclética do I Congresso foi lançar o PT em uma diluição orgânica, uma paralisia política, uma dissolução de referências e uma crise de identidade sem precedentes, que perpassaram, de maneira mais ou menos acentuada, o conjunto das instâncias partidárias, das direções às bases. Para uns, era o prenúncio do partido "moderno", preparado para gerir o capital. Para outros, quem sabe, talvez o preço amargo a pagar pelo fim dos preconceitos e a maioria nas urnas. Que argumentos poderiam demovê-los? Naquelas condições, que teoria resultaria mais eficaz do que o desejo de potência eleitoral? Que ideologia seria mais sedutora do que o pragmatismo da futura governabilidade? Que rebeldia poderia sustentar uma promessa emancipatória quando a ordem parecia eterna? Mesmo assim, o I Congresso não resultou na esperada vitória decisiva do socialismo liberal. Representou tão somente a formalização do ecletismo, presságio de uma disputa pelos rumos do Partido e da política hegemônica no campo democrático-popular que se arrastaria durante anos até a campanha de 1994.

IV - A Contra-Hegemonia em Crise

As resoluções o comprovam. De um lado, reafirmam conceitos como "burguesia", "classe dominante", "dominação imperialista", "consciência de classe", "lutas de classe", "luta emancipatória e revolucionária" e "revolução social". Falam em "autodefesa" e "direito de rebelião dos povos contra a tirania", passagem que aliás foi motivo de votação específica. Sustentam "que só um poderoso movimento por reformas políticas e sociais, baseadas num programa democrático e popular centrado no combate ao latifúndio, ao monopólio e ao imperialismo, pode levar a cabo a profunda revolução que este País necessita". De outro, enveredam pela simplificação ao definirem o socialismo como sinônimo de "radicalização da democracia". Deixam transparecer a idéia de que bastaria melhorar o "socialismo real" com mais mercado e mais cidadania. Usam o categoria ditadura de modo empirista, pelo senso comum, como regime político despótico e ausência do Direito, reforçando a quimera de um Estado sem particularidade coercitiva de classe.

Todavia, o mais sério é que justificam formalmente os seus próprios paradoxos afirmando que o PT não possui uma "doutrina oficial". Transformado em movimento sem doutrina a palavra "oficial" é um recurso caricatural e argumentativo passou a tornar-se um agregado de indivíduos e grupos sem uma concepção e um programa comum: pragmático, incoerente, tateante, incapaz de distinguir-se de legendas inorgânicas e apenas eletivas. Ainda mais grave: posto em disponibilidade pelo álibi do anti-oficialismo e submetido à pressão ideológica pela mídia, converteu-se no espaço de afirmação de uma doutrina oficiosa que, ao pretender-se um não-ser, foi impondo-se à revelia de quaisquer debates ou decisões partidárias e permitindo que os mais variados tipos de oportunismo sejam encarados como naturais.

Um partido desse tipo se revelaria fragmentado, carente de vontade coletiva, paralisado e, portanto, impotente para responder ao desafio que se avizinhava. De resto, a inapetência de poder ficou explícita quando a "disputa por hegemonia hoje" foi tratada de maneira completamente genérica, formal e insuficiente, limitando-se a nomear um agregado de questões, inclusive "a disputa pelo Governo Federal em 1994", sem compreender que a própria vitória nas eleições gerais dependia dramaticamente de uma enérgica e prévia construção contra-hegemônica. No fundo, pensava-se que seria suficiente administrar o favoritismo de Lula.

Foi no âmbito da tática que se concretizaram os problemas de concepção global. Como é notório, a grande maioria do I Congresso, incluindo alguns dos setores à esquerda, rejeitou a proposta de "aprofundar a crise do governo Collor e construir as condições políticas necessárias para por fim ao seu mandato", através de um "amplo movimento de massas" e "utilizando todas as alternativas institucionais", inclusive o "impeachment", cujo lema era "Fora Collor", vista como aventureira e irrealista. O texto aprovado, tido como responsável e realista, recusou-se a colocar o fim do governo Collor como propósito, desmobilizou a militância e só admitiu o impeachment como possibilidade abstrata. Uma linha recuada, que condenava o Partido à prostração. Capitulando à legalidade originária do mandato presidencial e dando ênfase à "interlocução social", desconheceu a gravidade da crise de governo, deu-lhe um aval de legitimidade, supôs que a situação política evoluiria linearmente até 1994, desprezou a importância do movimento de massas, fugiu do enfrentamento político e defendeu a simples resistência.

O processo político posterior viria emblematizar os erros. Na primeira reunião de 1991, a direção nacional do PT recusou novamente o "Fora Collor". Algumas semanas depois, o fim do governo Collor entrou na ordem do dia e as manifestações de massas explodiram. Correndo atrás dos fatos, a orientação partidária deu ênfase ao conteúdo institucional e se acomodou ao senso comum da "ética na política". Logo após, recusou-se a combater o continuísmo neoliberal e a propor a convocação imediata das eleições gerais. Assim, a polêmica pública que, logo após a posse do Presidente Itamar Franco, demonstrou didaticamente as ilusões, pôs à luz do dia o adesismo e dividiu a direção nacional, esteve longe de ser um raio no céu azul. Só em outubro de 1992, e apenas por um voto de diferença, foram recusados aqueles aspectos mais aberrantes da participação aberta ou dissimulada na "governabilidade" do que viria ser a principal trincheira eleitoral de FHC.

Depois das eleições municipais de 1992, a situação interna do PT apresentava uma extrema gravidade. Tratava-se de um partido de trabalhadores cuja oposição a um governo burguês-conservador gerava uma celeuma inacreditável, provocando saudades do V Congresso da II Internacional, que, por imensa maioria, reprovou tranqüilamente a entrada de Millerand no gabinete de Waldeck Rousseau. De um partido socialista cujas principais expressões públicas sequer criticavam o capitalismo. De um partido desde o nascedouro identificado com as lutas sociais, mas que abdicava de organizá-las em nível nacional, temia defender as reformas radicais, via nas instituições o epicentro de sua política e girava em torno do calendário eleitoral. De um partido que obteve uma vitória nas urnas, subindo às prefeituras de várias cidades, inclusive de quatro capitais estaduais, mas cujas campanhas foram marcadas pela prostração ideológica, pela confusão política, pelo recuo da militância e pela estagnação do número total de mandatos nas câmaras municipais.

Mais ainda, o assunto é um partido que surgiu contrapondo-se à política tradicional, mas que vivia uma inorganicidade aguda e um esvaziamento brutal de suas instâncias dirigentes. Um partido que se orgulhava de sua democracia interna, mas cujos rumos eram cada vez mais decididos pelos chamados centros paralelos e autônomos de poder nos mandatos parlamentares, prefeituras, máquinas sindicais e direções rotineiras, em torno dos quais passou a girar uma vasta burocracia que, não dirigida pelas orientações coletivas, via de regra se distanciava dos ideais revolucionários e se reproduzia por interesses próprios. Um partido, enfim, que vivenciava uma contradição fatal para qualquer movimento emancipatório: crescia por cima, nos órgãos do Estado, enquanto agremiação eletiva e ganhando notoriedade na sociedade política oficial, mas se encolhia por baixo, nos enfrentamentos de massas, como sujeito ideológico-orgânico e na construção global da contra-hegemonia.

Foi então que o VIII Encontro, em junho de 1993, na sua plenária nacional, tentou dizer basta. O senso comum petista intuiu que o sonho presidencial estava por um fio. Assim, a introdução das resoluções começa com palavras significativas: "O VIII Encontro Nacional do PT exprimiu o sentimento amplamente majoritário nas bases do Partido de que precisamos retificar nosso curso". Nesse diapasão, as decisões políticas e a escolha da nova direção representaram uma derrota do socialismo liberal e um deslocamento à esquerda. Porém, ao contrário da literatura, onde o sujeito pode patrocinar uma recherche proustiana "do Tempo Perdido", na política os prejuízos já eram irrecuperáveis.

De fato, a crise institucional desencadeada no governo Collor havia sido superada, o longo ciclo descendente da economia entrava em uma fase de relativo alívio, a burguesia se coeria com base no projeto neoliberal e os políticos da ordem se moviam com desenvoltura na conformação de uma opção eleitoral viável. Além do que, faltavam tão somente dezesseis meses para o pleito presidencial, vale dizer, a campanha se iniciara, o que cristalizava fundamentalmente a insuficiência contra-hegemônica enquanto uma herança indescartável do passado, que seria no presente um fardo a ser carregado, e transferia o eixo das preocupações para o âmbito da tática eleitoral.

Como se não bastasse, a festejada inclinação à esquerda foi tímida e inconclusa. Faltou a consciência das verdadeiras dimensão e profundidade da crise partidária. Nem de leve surgiu qualquer alusão autocrítica ou mesmo uma tênue restrição às decisões do I Congresso. As declarações por "uma grande mobilização popular pelas reformas sociais e políticas" ficaram na retórica. Continuou-se com a tradicional fixação geográfica em uma política de aliança voltada para o "centro", chegando-se a ver no PSDB "um campo em disputa" e a supor-se a possibilidade fantasiosa de que tal partido, que namorara Collor e participava do governo Itamar, pudesse "amanhã (...) estar mais próximo de nós". De resto, e certamente refletindo razões de fundo, alguns segmentos se negaram a compor uma chapa única pela esquerda, que sinalizasse a decisão majoritária de realmente dar uma guinada nos rumos do PT e de sua política.

Ficou a sensação desconcertante de que a política, como naquele filme de Buñuel onde os convidados não conseguem sair de uma festa, recusava-se a ir além dos discursos. No desdobramento, já em plena campanha eleitoral, o funcionamento do PT lembrava um pacto de negligência em que o monopólio das vozes no Legislativo e na mídia ficava com a velha e derrotada política, enquanto uma direção indecisa e sem vontade política se limitava a tentar o consenso, apaziguar os ânimos e administrar os problemas, mas sempre acompanhada pela pecha de burocrata, incompetente, patrulhadora, impositiva, radical e coveira de Lula. Eram os prolegômenos da futura defensiva. Entrementes, a classe dominante se movimentava rumo à contra-ofensiva.

V - O Colapso do Favoritismo

A rigor, a tática eleitoral, por si só, não tinha o poderio de reverter racional, segura e metodicamente as vantagens burguesas e a debilidade contra-hegemônica, vetores que operavam em nível estratégico, vale dizer, impregnavam e constrangiam a totalidade do terreno social. Mesmo assim, era possível realizar um importante acúmulo. Além disso, ainda poderia ocorrer uma vitória eleitoral na forma daquela contingência que habita os poros dos fenômenos sociais. Em meados de 94, uma razoável dose de incerteza era mantida pela inorganicidade típica da vida política brasileira, o descrédito em relação à política tradicional, o delineamento ainda embrionário das opções, o estoque militante da esquerda, o apoio dos movimentos sociais, o prestígio pessoal de Lula e sobretudo a demanda por mudanças estruturais que apenas poderia ser atendida cabalmente pelo PT. O apoio inconsistente, o fenômeno e os fatores aleatórios ainda poderiam prevalecer. Indicavam-no as pesquisas de opinião, com cerca de 40% dos votos na candidatura do campo democrático-popular. Mais tarde, confirmou-o a pequena carência de votos para que houvesse um segundo turno e uma nova brecha de imprevisibilidade. O PT ainda tinha uma folga operacional.

Porém, as forças conservadoras elaboraram e aplicaram uma tática eleitoral fundamentalmente correta. Sem dúvida, souberam extrair o máximo de suas vantagens estratégicas permanentes, tansformando a sua potência em alicerce material-ideológico de campanha. Para tanto, mobilizaram fortunas bilionárias. Exploraram os benefícios do Estado. Articularam os seus procedimentos ao senso comum. E otimizaram os imensos recursos que lhes foram oferecidos pelos modernos meios de comunicação de massa. No desdobramento, partiram de suas vantagens estratégicas adicionais para estabelecer a direção de suas iniciativas, com clareza de propósito, com decisão e criteriosamente. Não se notou qualquer diletantismo.

Assim, reaglutinaram-se, forjaram um acordo básico em torno da reforma do Estado e formaram no momento certo um arco eleitoral inusitado, que somava os benefícios eleitorais da sedução modernizante aos da certeza clientelista. Apoiaram, em alguns casos até com admiráveis transigência e astúcia, um candidato de passado socialista, postura democrática em face do regime militar, prestígio no ambiente acadêmico, fama de competente, insuspeito de corrupção e, diga-se de passagem, menor extravagância no ataque recente ao marxismo do que alguns petistas. Valorizaram sem vacilação a sua metamorfose naquele produto híbrido, um neoliberal mediado pelas tinturas pseudo-humanistas da "Comunidade Solidária" e da negociação como norma comportamental. Em contraste com a imaginação emancipatória em crise, mas simbolizada na esquerda, e com a malfadada cruzada messiânica, lembrada na figura de Collor, exploraram o seu perfil de homem realista, ponderado, equilibrado e previsível confiável ao senso comum, tal como ficaria posteriormente sublinhado na sua declarada "paixão pelo possível" inspirada em Hirshman. Criaram fatos políticos, a exemplo do Plano Real, que sustentaram sem reservas e do qual sugaram os dividendos eleitorais até a última gota. Trabalharam os preconceitos, mitos, inseguranças e incertezas integrantes da hegemonia passiva e ancestralmente impregnados em setores do povo. Entenderam e se retraíram quando, em certos momentos, foi preciso que o candidato se diferenciasse do arcaísmo e até se "aproximasse" de Lula para dialogar com a sua base social. Reagiram prontamente diante dos acidentes de percurso, implementando as soluções mais eficazes, como na substituição do vice ou no escândalo Ricúpero. E, sobretudo, abandonaram quaisquer princípios em favor de uma concepção pragmática de política.

Entrementes, a campanha Lula, confusa e sem conseguir responder à contra-ofensiva conservadora, foi progressivamente passando à defensiva. Na reta final, entrou em um beco sem saída. Em parte, o PT pagava o preço dos equívocos acumulados nos últimos anos, quando se consolidou, mais ou menos explicitamente, o dogma de que o conjunto do trabalho partidário deveria estar completamente subordinado à eleição de Lula e de que nada teria sentido se não remetesse diretamente ao sufrágio. Os fins eletivos justificariam os meios políticos, como se o propósito emancipatório pudesse conviver com quaisquer astúcias. Já o I Congresso foi tensionado, em cada um dos pontos da pauta, pela idéia de quebrar o traço rebelde da história partidária e reciclá-la em moldes compatíveis com a obsessão do voto e da futura governabilidade. O mesmo sortilégio presidiu a montagem do governo paralelo: um rol de notáveis, alheio à disputa política, que acabou estiolando-se na rotina de simulacro governamental, isto é, aprisionado na incoerência fatal de, precisando ser oposição, comportar-se como superego da situação, até que, como por um ato de piedade, a conjuntura o retirou definitivamente de cena. O próprio apoio partidário ao presidencialismo, definido em consulta interna, teve muito a ver com a singela intenção de manter o futuro "poder" nas mãos de Lula contra uma suposta conspiração das "elites" prestes a serem derrotadas.

Contudo, em que pesem as várias correções à esquerda na trajetória do Partido, coube à resolução A Conjuntura e a Campanha, votada no IX Encontro, dois erros gritantes. De um lado, cristalizar o mito voluntarista de que "o Brasil não tem governo há dez anos", de que "o discurso da classe dominante vem se curvando à realidade de que Lula será o provável vencedor" e de que "as forças conservadoras" estariam enganadas por sonharem "com a eleição de governadores e de um Congresso Nacional semelhantes ao de hoje". De outro, resignar-se com a idéia de que a eleição de Lula era, por si só, a chance de "abrir uma nova correlação de forças" e não parte integrante ou momento de um processo contra-hegemônico global que, para garantir a vitória e as reformas estruturais, precisaria já ter atingido um patamar superior, ao menos durante a campanha.

Havia, portanto, um certo sabor de retórica, que afinal reapareceria na discussão programática. A proposta de "revolução democrática", que tinha sido rejeitada no VIII Encontro, acabou adquirindo várias funções. Como equívoco teórico, restaurava o velho etapismo a partir da ilusão evolucionista de que a nova sociedade seria o resultado da radicalização da democracia, concorrendo assim com a ideação estratégica de revolução socialista, única opção anticapitalista cabível na formação social brasileira contemporânea. Como formulação política, vinculava-se a um caminho gradualista mesmo na realização de mudanças parciais, utilizando-se da radicalização na semântica para encobrir a moderação nas reformas. Um acordo no campo à esquerda conseguiu, na última hora, dar-lhe um sentido literário. Mas, obviamente, não eliminou a presença de sua lógica na campanha.

O Programa de Governo acabou diluindo-se. Era mais uma declaração genérica e vasta de referências, "ainda muito conceitual", como disse o texto que o apresentou para discussão. Portanto, uma peça bem distante da necessária "cara" da campanha, que permitisse descortinar nítida, concisa e amplamente, às grandes multidões, as metas, os planos e as medidas do governo democrático-popular: o que, com que, como, com quem, a favor de quem e contra quem fazer. Ao lado da vasta gama de reformas que lhe conferem um sentido avançado, há também lacunas que o colocam muito aquém da disputa então já em curso. Por exemplo, não assume radicalmente o combate ao monopólio da terra. Foram rechaçadas várias emendas que pretendiam democratizar internamente as Forças Armadas. Na questão da dívida externa, derrotou-se a suspensão do pagamento para realização de auditoria, formulação até aquele momento aceita no PT e na CUT, e se chegou ao extremo de recusar-se a denúncia do acordo recém assinado pelo governo sob a responsabilidade pessoal do então ministro FHC. Os compromissos radicais, ainda que no âmbito da sociedade capitalista e da democracia burguesa, foram vistos como estorvo.

Mesmo assim, as resoluções várias vezes destacaram idéias de "reformas", de "afirmação da diferença", de "polarização" e de "mobilização popular". Porém, tais ênfases jamais se constituíram no eixo da tática. No seu lugar, sem que nenhuma instância partidária houvesse tomado qualquer decisão a respeito, acabou aninhando-se, desde o início do embate, na busca exclusiva e sôfrega de resultados eleitorais, outra centralidade: a tentativa confusa e mal sucedida de compor uma imagem palatável, à qual se agregaram, ora pontos fragmentados de programa, ora generalidades sem a menor incidência política, ora os apelos emocionais, e sempre um discurso ideologicamente anódino. Quando muito, criticou-se a "exclusão social", maneira branda e inofensiva de reconhecer que a sociedade brasileira contém alteridades, mas sem demarcar com as relações dominantes.

A conseqüência é que o discurso da "inclusão" foi decodificado pelo senso comum como se o problema do povo brasileiro não residisse na ordem burguesa-monopolista, mas simplesmente na falta de acesso de certos setores a essa. Com tal enfoque, a questão da cidadania se converteu em um modismo que não ultrapassou a esfera da filantropia a humanização do capitalismo e do mercado pela participação de todos, concorreu para ratificar os valores vigentes no País e fortalecer a opção eleitoral capaz de conceder mais homogeneidade ao Estado. Dessa forma, houve momentos em que a campanha soou despolitizada, personalista, hesitante, insegura, postiça e até piegas, para não dizer patética.

A fragmentação orgânica também fragilizou a intervenção política do PT. Com as poucas exceções a confirmarem a regra, o pique da militância foi menos intenso e mais tardio, sugerindo uma história recente de frustrações globais não só com a sorte do movimento socialista e a ofensiva cultural burguesa, mas também com a institucionalização crescente do Partido, a inexistência de controle coletivo sobre os mandatos constituídos, o abandono das lutas sociais, o estranhamento a uma política que não suscita ou justifica uma dedicação maior e a instrumentalização que nas eleições exalta os valores combativos para depois considerá-los um ônus. Ademais, foram sensíveis os prejuízos causados pelo afastamento da campanha nacional em relação às estaduais tidas como trambolhos, bem como pelo regionalismo e a despartidarização das proporcionais. Além do que, a fragmentação esteve presente no próprio centro dirigente da campanha, com iniciativas importantes passando de fato ao largo da Coordenação e do próprio Diretório Nacional. Finalmente, a dispersão política se pronunciou a ponto de vários discursos se desdizerem a cada local e da grande maioria ser surpreendida, mal saíram os resultados, por uma política de finanças equivocada e desastrosa politicamente, para dizer o mínimo.

VI - Uma Esfinge de nome Real

Assim, a desvantagem estratégica do campo democrático-popular, em vez de retrair-se durante o processo eleitoral, pronunciou-se. Por um certo período, enquanto FHC acionava os elementos de sua vantagem estratégica e preparava os primeiros lances, a candidatura Lula se beneficiava da inexistência de alternativas visíveis. A Caravana da Cidadania era então a principal iniciativa no cenário, catalisando simpatias e despertando esperanças. Mas já transparecia um discurso rebaixado e uma tendência muito forte a deixar em plano secundário a principal base social da campanha, os setores organizados da sociedade civil concentrados nos grandes centros urbanos, especialmente o proletariado e os segmentos avançados das camadas médias, que apenas estavam sendo atingidos indiretamente, pelos ecos do interior, e assim mesmo sob a descaracterização do protoconceito "excluídos". Constituiu-se, portanto, um favoritismo política e organicamente diluído. Quando a frente conservadora entrou em campo, as dificuldades foram multiplicando-se.

A futura gestão Lula era computada, generalizadamente, na conta de uma incógnita. Por intuição, empiricamente, o senso comum vislumbrava o risco de crise na possível reação das forças conservadoras, que jamais admitiriam de bom grado quaisquer reformas que atingissem os seus interesses centenários. Por sua vez, a rejeição a Lula, orquestrada pela mídia, estava longe de um simples preconceito. Era também ideologia, indecisão e medo, que aumentavam na exata proporção da falta de confiança na capacidade, na força e na decisão do eventual governo democrático-popular. É claro que a linha de campanha tentando exorcizar certos elementos positivos do PT e da figura de Lula que os valores dominantes julgam repugnantes, ao contrário de reafirmá-los de forma orgulhosa e "petulante", isto é, supondo driblar os "preconceitos" pela subsunção à sua lógica em vez de afrontá-la e desagregá-la iria dar uma demonstração de fraqueza e pusilanimidade, com sérias repercussões psicossociais, em particular sobre aqueles mais despolitizados, que decidiriam o resultado eleitoral.

Quando a campanha oficial começou a crescer, a opção de criticá-la era rejeitada para que não se parecesse radical e rude. Dando continuidade aos insistentes apelos enviados ao PSDB, quando lhe foram propostos acordos mesmo no momento em que já se acertava com a direita tradicional para centrar o fogo no campo democrático-popular, preferiu-se atacar só o PFL. A mensagem acabou sendo decodificada como se o problema de FHC residisse nos seus acompanhantes. Não há dúvidas de que muitos petistas viram no candidato neoconservador um mero adversário eleitoral e não um oponente de classe. No fim da campanha, quando não se tinha o que perder, resolveu-se passar timidamente ao ataque, mas o desfecho já estava selado. A irrupção do inesperado só poderia dar-se como a redenção de Fausto, na obra de Goethe, que se viu livre da sua perda de alma por uma legião de querubins. Porém, já não seria propriamente um evento político.

O efeito do Plano Real no resultado das urnas fica, portanto, reduzido às suas devidas proporções. Nos últimos anos de sua vida, escrevendo a José Bloch, Engels refutou a vulgaridade que vê no "fator econômico (...) o único determinante", até hoje atribuída por tantos ao marxismo, e a chamou de "uma frase vazia, abstrata, absurda". De fato, a subida de FHC começou antes do lançamento da nova moeda. Por seu turno, a estabilização apenas pôde ser concebida, estruturada, lançada, economicamente monitorada e instrumentalizada eleitoralmente porque os seus autores gozavam das vantagens estratégicas internas e do respaldo externo. Ademais, o seu efeito não foi apenas econômico, mas penetrou no imaginário popular, tocou no ponto extremamente sensível do carecimento de previsibilidade, segurança e confiança, e se tornou a realidade social mais presente no cotidiano popular. Finalmente, agiu sobre uma disputa eleitoral em que a contra-hegemonia, já insuficiente, passava por uma crise, ao mesmo tempo em que a despolarização colocava os apoios reunidos por Lula disponíveis à contra-ofensiva conservadora. É por tal motivo que os seus resultados foram extraordinariamente pronunciados.

Portanto, nada mais tolo do que discutir as posturas em face do Plano Real como se houvessem decidido a derrota da esquerda. Equivale a tomar uma parte pelo todo. Para utilizar uma imagem de Adorno, é aquele olhar fixo na catástrofe que revela um certo fascínio. Dificilmente, no momento da disputa em que se deu a discussão entre os economistas do PT, uma flexão tática poderia reverter a tendência em curso. Entretanto, nem por isso é inútil o debate. A síntese daquela experiência tem muita importância. Nunca se poderá saber com exatidão até que ponto seria possível desacelerar o trânsito de votos à direita e sempre sobrará uma faixa de imponderabilidade sobre a hipótese de alcançar o segundo turno. De qualquer modo, as tentativas de responder às medidas econômicas foi um desastre do início ao fim.

Inicialmente, quando FHC lançou a fase do reajuste fiscal, o PT ficou na janela "vendo a banda passar". Urgia denunciá-la, prevenir os interlocutores da esquerda sobre o seu provável desdobramento eleitoreiro e apresentar-lhes uma plataforma popular de combate à inflação. Depois, os efeitos do Plano Real foram subestimados, tanto no que concerne à estabilização quanto às repercussões político-eleitorais, ao mesmo tempo em que a campanha se deslocou para o debate posto pela direita. Era preciso considerar que a inflação iria retroceder de modo brusco durante o processo eleitoral e sem uma catástrofe recessiva ou salarial, mas também criticar o caminho escolhido, tendo sempre o cuidado de mantê-lo em um plano secundário para não eclipsar os elementos centrais da tática. Dando-se conta do erro de avaliação, a campanha cunhou a frase "moeda forte, salário fraco", passando a exaltar um título artificial como depois a bancarrota mexicana, a crise argentina e a correria no circuito financeiro-cambial brasileiro deixariam bem claro e tentando contrapor à globalidade da estabilização, que se refere a todos, a parcialidade da remuneração, que aparenta dizer respeito apenas aos que vendem a força do trabalho. Restava manter o rumo e guardar distância do terreno adversário. Finalmente, ao final da campanha, passou-se à total defensiva, chegando-se ao extremo de apoiar o Plano Real em um ato de rematada bisonhice. Em que pese a importância das eleições gerais, a maioria de votos não era tudo. Mesmo que, no quadro de uma correlação de forças favorável à direita, uma tática eleitoral "propositivamente" mais à esquerda não resultasse na passagem ao segundo turno, certamente acarretaria muitos benefícios. Mobilizaria mais a militância. Interromperia a incômoda e desgastante sensação de que entre Lula e FHC não haveria diferenças pronunciadas. Desnudaria o conflito político-social latente. Potencializaria o embate pelo voto das multidões empobrecidas e mesmo de setores médios radicalizados. Descortinaria um caminho mais nítido às grandes massas. Fortaleceria os partidos socialistas. E, sobretudo, consolidaria um campo político antineoliberal. Sem dúvida, hoje, estaríamos em melhores condições para lutar. Mais relevante do que tais observações, todavia, seria uma decisão de não incorrer nos mesmos erros. Como sugere Marx, repeti-los significaria pavimentar o caminho para uma farsa, se é que a tragédia já não havia se dado em 89. Preferindo evocar o benefício da dúvida, é dos revolucionários brasileiros que Yeats parece falar.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 3, Março de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.

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