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A Crise da Sociedade do Trabalho

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Lincoln Secco
Lincoln_Secco@revistapraxis.cjb.net

Coordenador do Núcleo de Estudos d'O Capital'/São Paulo, membro da Editoria da Revista Práxis.

"Uma revolução do proletariado exige antes de tudo um proletariado". Moses Hess

A crise que perpassa as ciências sociais hoje e que se reflete de algum modo na prática dos partidos socialistas, particularmente, funda-se na incompreensão atônita dos intelectuais diante das mudanças qualitativas que se operam no capitalismo atual.

O ser da realidade social já não seria mais o mesmo. Não só a própria lógica e a dinâmica do capital teriam engendrado um novo ser social, como também a emergência de novos segmentos e conflitos sociais teria deslocado o padrão clássico da luta entre proletariado e burguesia em favor de outro, multipolar e mais "complexo".

Esse argumento, de natureza ontológica, associa-se a outro, de caráter epistemológico: o marxismo poderia no máximo ser uma variante fecunda para a compreensão de nosso tempo, mas nunca a única. Tal argüição olvida o fato de que o marxismo jamais ignorou outras contribuições científicas e sim as incorporou; entretanto, isso não autoriza aquilo que Lênin considerava a pior das filosofias: o ecletismo (epistemológico).

Embora seja importante avaliar o percurso crítico das várias formas assumidas pelo ecletismo metodológico atualmente, é prioritário recolocar o debate teórico no campo da história concreta1. A partir disso, cumpre constatar a veracidade ou não dos desdobramentos da argumentação teórica acerca das mudanças qualitativas ocorridas na formação social capitalista.

Os principais desdobramentos são dois: 1- a regulação dos conflitos econômicos por uma miríade de formas institucionais novas; 2- o fim do trabalho enquanto fundamento ontológico da sociedade humana. Essas duas questões se articulam com outras, tais como: o novo papel do Estado, a sociedade de serviços, o trabalho improdutivo, a mudança das estratégias políticas e sindicais, o fim das classes e da luta de classes, o surgimento de um novo modo de produção etc..

Já em meados do século XIX, Karl Marx se debruçou sobre as conseqüências sociais da diminuição do trabalho abstrato, do valor novo agregado pela força de trabalho a cada unidade produzida. O trabalho, ato fundador da sociedade humana, deixa progressivamente a cena histórica e com ele a medida do valor. Os sucessivos incrementos da produtividade da força de trabalho, oriundos do acréscimo da composição orgânica do capital e de inovações na organização do trabalho, geram cada vez mais a objetificação do trabalho enquanto potência estranha (capital). O movimento cíclico incessante de valorização do capital, baseado na extração de mais-valia, cria paradoxalmente a redundância relativa do trabalho vivo.

As manifestações fenomênicas que se explicitam cada vez mais hoje são desdobramentos de leis tendenciais do modo de produção capitalista definidas por Marx. Somente por isso suas asserções sobre o fim da sociedade do trabalho puderam vir a lume antes mesmo das revoluções tecnológicas do século XX:

"Na mesma medida em que o tempo de trabalho o mero quantum de trabalho é posto pelo capital como único elemento determinante, desaparecem o trabalho imediato e sua quantidade como princípio determinante da produção da criação de valores de uso; na mesma medida, o trabalho imediato se vê reduzido quantitativamente a um momento sem dúvida imprescindível, mas subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, por um lado, e, por outro, frente à força produtiva geral resultante da estruturação social da produção global, força produtiva que aparece como dom natural do trabalho social (...) O capital trabalha, assim, em favor da sua própria dissolução como forma dominante da produção."2

Vê-se que Marx considerava o trabalho imediato imprescindível, mesmo ofuscado pelo avanço da ciência aplicada3. Tendencialmente, isso tudo levaria à abolição do trabalho e à dissolução do capitalismo:

"Assim como o trabalho em sua forma imediata cessou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser a sua medida e, portanto, o valor de troca (deixa de ser a medida) do valor de uso"4.

Certamente, Marx vislumbrava uma transição para a sociedade sem trabalho sob o socialismo e de nenhum modo esperava a emergência do capitalismo tardio, do Welfare State, do capitalismo regulado etc.. A lei da queda tendencial da taxa de lucro, por exemplo, já antevia o aumento da tecnologia aplicada à produção, assim como a dinâmica do capital e as lutas a ele inerentes evidenciavam a necessidade de diminuição da jornada de trabalho Marx descreveu toda a luta pela jornada de dez horas na Inglaterra em O Capital.

De fato, houve uma regressão histórica do tempo de trabalho, desde 1825, quando a média européia atingia 82 horas semanais, até a atual semana de 35 horas ou menos!5 A tabela abaixo é esclarecedora:


TABELA 1
Horas trabalhadas por pessoa/ano
França
Alem.
Japão
Holan.
Inglat.
EUA
1.870
2.945
2.941
2.945
2.964
2.984
2.964
1.890
2.770
2.765
2.770
2.789
2.807
2.789
1.913
2.588
2.584
2.588
2.605
2.624
2.605
1.929
2.297
2.284
2.364
2.260
2.286
2.342
1.938
1.848
2.316
2.391
2.244
2.267
2.062
1.950
1.989
2.316
2.289
2.208
1.958
1.867
1.960
1.948
2.081
2.430
2.214
1.877
1.835
1.973
1.771
1.804
2.195
1.805
1.688
1.754
1.986
1.533
1.627
2.099 1
1.555
1.518 2
1.683

Notas: 1- 1985; 2- 1984.

Fonte: OCDE, As Novas Tecnologias na Década de Noventa (1988); Madrid, Ministério do Trabalho e Previdência Social, 1990, p. 3.

Tudo isso é clara decorrência das transformações tecnológicas e organizacionais do processo de produção e da luta de classes. Já na primeira metade do século XIX, Charles Babbage projetou uma espécie de computador inacabado, seguido pela combinação de um sistema matemático binário com um algébrico, por George Boole, na metade final do século XIX. Tais são os predecessores do primeiro microprocessador desenvolvido nos EUA em 19716. A microeletrônica representou uma revolução no mundo do trabalho: projeto auxiliado por computador (CAD) e fabricação auxiliada por computador (CAM) aceleraram tarefas antes morosas; a robotização avançou e substituiu o trabalho humano em grandes proporções, economizou tempo e eliminou erros.

Para se ter uma pálida idéia, o número de robôs para cada dez mil ocupados cresceu de 3,8 para 43,9 entre 1981 e 1990 no Japão7. Num ritmo de crescimento superior a 1.000% em dez anos, as previsões são assustadoras; entretanto, há uma diferença colossal entre os dados referentes à robotização no Japão e os nos demais países da OCDE. As conseqüências são bem nítidas no âmbito social (modificação da estrutura de classes) e econômico (acirramento da competição internacional por mercados), embora isso deva ser visto com reservas.


TABELA 2
Evolução do no de robôs instalados (em milhares)
Ano
/81
/82
/83
/84
/85
/86
/87
/88
/89
/90
Austrália
0,1
-
-
0,5
-
0,8
0,9
[1,2]
1,3
1,4
Áustria
-
-
0,1
0,1
0,2
0,3
0,4
0,6
0,8
1,1 1
Bélgica
0,2
0,3
0,5
0,7
0,9
1
1,1
1,2
1,4
1,6
Taiwan
-
-
-
0,1
0,2
0,2
0,4
0,6
0,9
1,2
Checoslov.
-
-
-
-
1,7
2,7
4
5,6
6,7
7,1
Dinamarca
-
-
-
0,1
0,1
0,2
0,2
0,3
0,4
0,4
Finlândia
-
-
0,1
0,1
0,2
0,3
0,4
0,5
0,6
0,8
Alemanha
2,3
3,5
4,8
6,6
8,8
12
14
17
22
28
França
0,7
1,3
1,9
2,7
4,1
5,2
5,3
5,6
7,8
8,5
Itália
0,4
1
1,5
2,6
4
5
6,6
8,3
9,9
12
Japão
21
32
47
67
93
116
143
176
219
274
Holanda
-
-
0,1
0,1
0,3
0,4
0,5
0,7
0,8
1 2
Noruega
-
0,1
0,2
0,2
0,3
0,3
0,4
0,4
0,4
0,5
Singapura
-
-
-
0,1
0,2
0,2
0,5
0,6 3
1,3
[1,3]
Espanha
-
-
0,4
0,5
0,6
0,8
1,1
1,3
1,7
2,1
Suécia
1,1
1,2
1,4
1,7
2
2,3
2,7
3
3,4
3,7
Suíça
-
-
0,1
0,1
0,2
0,3
0,4
0,7
-
1,5
Inglaterra
0,7
1,1
1,7
2,6
3,2
3,6
4,3
5
5,9
6,4
EUA
6
7
8
13
20
25
29
33
36
41

Notas: []- cifras estimad.; 1) cifras revisad., 1981-90; 2) cifras revisad., 1984-90; 3) cifras revisad., 1981-88.

Fonte: Federaç. Internac. de Robóticas, 1992.

Do ponto de vista econômico, a concorrência infrene teve como base a revolução microeletrônica, os novos materiais, a química fina etc.; novas empresas multinacionais surgiram e se mudou drasticamente o ranking dos países industrializados; alguns mergulharam na crise fiscal, na inflação e no desemprego, com fuga de capitais, como no caso da Suécia8.

Mas cabe aqui considerar o outro lado da moeda: o movimento do capital e o incremento tecnológico introduzido nos processos produtivos não apagam as contradições básicas do capitalismo. Assim como a forma mercadoria já encerra uma contradição entre valor de uso e valor de troca (já captada pela genialidade de Aristóteles como um paradoxo), os avanços técnicos do processo de trabalho se contraditam com o processo de valorização, ou seja, se é verdade que a concorrência estimula a produtividade e cria as bases do comunismo, ela simultaneamente impede a generalização dos benefícios da tecnologia para toda a humanidade, concentrando-a em algumas "ilhas" de prosperidade, enquanto condena todo o resto à bancarrota.

Aparentemente, é um paradoxo o fato de que, no máximo do avanço técnico, a perspectiva do fim da sociedade do trabalho conviva com o aumento extensivo de jornadas de trabalho e a ressurreição de formas antediluvianas de exploração da força de trabalho, como a terceirização, que revive uma forma ressaltada por Marx em O Capital: o salário por peça9. A tecnologia da informação e a contratação de trabalho fora da empresa são fenômenos compensados pelo fato de serem numericamente secundários em relação às demais causas da terceirização. Essa, antes de mais nada, significa uma regressão nas relações sociais de produção e é parte de um processo de intensificação de capital fixo, centralização de capitais e destruição das forças produtivas nas áreas e empresas perdedoras. Tal fato não seria estranho à dialética ácida do Manifesto Comunista:

"Durante as crises, uma epidemia social, que em qualquer época anterior pareceria absurda, estende-se sobre a sociedade: a epidemia da superprodução. A sociedade se encontra subitamente retrotraída a um estado de súbita barbárie: dir-se-ia que a fome, que uma guerra devastadora mundial a privaram de todos os seus meios de subsistência (...) E tudo isso por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiada indústria, demasiado comércio (...) As relações burguesas resultam demasiado estreitas para conter as riquezas criadas em seu seio. Como vence essa crise a burguesia? De uma parte, com a destruição forçada de uma massa de forças produtivas(...)"10.

Destarte, não deveria ser um paradoxo a coexistência entre globalização, blocos comerciais e nacionalismo, bem como entre automação e jornadas de trabalho elevadíssimas no Japão. Se alguns teóricos, que se "elevam" acima da história concreta, não percebem que a sociedade do tempo livre é uma possibilidade criada e negada pelo capital ao mesmo tempo, isso não elimina os fatos: o emprego industrial nos países desenvolvidos (mesmo sem se negar aqui a evolução dos serviços) ainda era, em 1982, de 27,2% (EUA) e 41,8% (Alemanha). No Japão, entre 1960 e 1982, ele subiu de 28,5% para 34,5%. O emprego industrial cresceu absolutamente em todos esses países, embora abaixo do crescimento da PEA. Tais dados servem para mostrar a natureza contraditória e desigual das mudanças sociais na atualidade. Por exemplo, contrariamente à Alemanha, nos EUA, em 1969, a semana média de trabalho era de 43 horas e se trabalhava 47,1 semanas/ano; em 1987, as médias cresceram, respectivamente para 43,8 e 48,5, o que mostra o caráter contraditório dos dados disponíveis11. Uma sociedade do tempo livre pode existir potencialmente, mas não como fruto automático do capital. Poder-se-ia dizer que a automação, sob o capital, abole negativamente a forma antiga de produção, pois nega e conserva a exploração da força de trabalho; elimina progressivamente o tempo social necessário à reprodução da força de trabalho, mas simultaneamente aumenta a jornada de trabalho, elimina empregos e impede o avanço das forças produtivas.

Sob o socialismo a abolição positiva da antiga forma de produção combinaria a redistribuição eqüitativa do trabalho à redução da jornada. Do ponto de vista teórico, as abolições positiva e a negativa se referem, respectivamente, a uma etapa de transição ao comunismo e a uma etapa superior do capitalismo como resultado da abolição (Aufhebung abolição e conservação). Dessa forma, Marx via que o sistema de crédito, por exemplo, esboçava duas possibilidades: 1- as fábricas cooperativas de trabalhadores, onde esses eram os seus próprios "capitalistas" (isso, mesmo com os defeitos anteriores, seria o gérmen do "modo de produção associado"); 2- as empresas capitalistas por ações, que também eram uma ruptura com a forma antiga de produção e um índice da possibilidade de superação do capital, mas, nesse caso, essa figura antitética (apropriação da riqueza social por poucos) é abolida negativamente e engendra crises, enquanto naquele é abolida positivamente. Essa é a análise de Marx aplicada ao papel do crédito na produção capitalista e que fornece o método para avaliar as contradições do presente12.

I - As contradições do processo

A nova revolução científico-tecnológica também promoveu a globalização do espaço econômico mundial, pois o seu próprio caráter (velocidade de alterações tecnológicas, informação de rede como aspecto central, mobilidade rápida etc.) exige fluxos financeiros internacionais e integração cada vez maior do comércio mundial com regras definidas (depois de finalizada a Rodada do Uruguai do GATT, criou-se a Organização Mundial do Comércio). Obviamente, há de novo o outro lado da moeda: a crise e a guerra comercial declarada.

Se, por um lado, o PIB alemão ocidental, verbi gratia, triplicou entre 1955 e 1985, a quantidade necessária de trabalho caiu 27%13, bem como logo se instalou a recessão e a estagnação em 1993, o PIB alemão teve a maior queda do pós-segunda guerra em sua parte ocidental, da ordem de 1,9%, enquanto o PIB de toda a Alemanha caiu 1,3%. A saída apontada foi mais uma vez a intervenção do Estado para reduzir as taxas de juros de curto prazo e garantir um crescimento sustentado14, embora o antikeynesianismo seja a palavra de ordem! O crescimento econômico mundial caiu da média de 4,9%, nos anos sessenta, para 1% no início do decênio atual15.

Todas as crises cíclicas do capital têm sua razão de ser nas contradições endógenas ao movimento automático de valorização do valor e nas mutações intrínsecas ao processo produtivo, que conduzem a sucessivos antagonismos entre a "anarquia" da produção e a forma de apropriação, gestão, repartição e reinvestimento do produto social. Há um permanente conflito entre a lógica microeconômica do capital individual e as condições infra-estruturais da reprodução do capital social16. Desse modo, as mudanças técnicas levaram a novos problemas econômicos, basicamente a escassez de capitais em certas áreas devastadas pela concorrência internacional da economia globalizada e o desemprego estrutural nos países de ponta do sistema capitalista.

O primeiro problema se refere à intensificação de capital fixo em todas as áreas da economia. Isso significa que há crescente composição orgânica do capital, ou seja, para cada trabalhador empregado há um volume maior de meios de produção. Hoje, na Alemanha (ocidental), para que um posto de trabalho seja rentável a uma empresa é necessário mobilizar trezentos mil marcos, segundo Robert Kurz17. Segundo esses cálculos, seriam necessários recursos investidos em capital fixo da ordem de três trilhões de marcos para cada dez milhões de novos postos de trabalho, isso quando só nos países da OCDE o desemprego da força de trabalho abarca 35 milhões de pessoas. Tais números, ao contrário do pretendido por muitos, mostram como é inviável a generalização das conquistas tecnológicas no capitalismo e questionam os fundamentos de uma teoria da "sociedade do tempo livre".

A situação é pior na América Latina, pois a competição baseada em longas jornadas de trabalho é derrotada em face do novo padrão concorrencial fundado na pressão da intensidade progressiva de capital fixo e na geração de mais-valia relativa, resultante do aumento da produtividade e da diminuição do tempo social necessário para a reprodução do valor da força de trabalho, ceteris paribus, por isso, enfrenta-se a regressão social e surgem formas pretéritas como o trabalho semi-escravo e escravo e a terceirização. Na Argentina, com sua conjuntura agravada por uma dolarização que provocou sobrevalorização cambial e queda nas exportações, o desemprego bateu o recorde de 10,8% e o nível de subocupação chegou a 10,2% da população economicamente ativa (PEA) em maio de 199418. Cerca de 21% da PEA estão sem emprego ou em trabalho informal, totalizando 2,8 milhões de pessoas numa PEA de 13,3 milhões e numa população de cerca de 32 milhões de pessoas. Mas os indicadores da decadência estrutural são estarrecedores: em 1950, o país era o oitavo lugar em PIB per capita, caindo para 84o em 1984. Apesar da retomada do crescimento econômico no governo Menen, ela é insuficiente para deter o agravamento dos indicadores sociais19. No Brasil, a reconhecida hipertrofia do setor financeiro na economia, elegendo a taxa de juros como referencial para formação de preços e mergulhando o país numa longa estagflação nos anos oitenta, evidenciou a contradição entre a razão empresarial do capital individual, que se estruturou, do ponto de vista patrimonial, com maior peso dos ativos financeiros, e a razão macroeconômica do capital social, cuja reprodução depende de uma soma positiva de inversões produtivas nas várias empresas no País as receitas financeiras das empresas se tornam imprescindíveis para evitar prejuízos, ainda que isso seja ruim para o nível de acumulação global. A inflação e o enorme déficit público engendrado principalmente pelos gastos com a rolagem da dívida interna contribuíram para a deterioração dos salários e dos serviços públicos a inflação expressou um sistema perverso pelo qual o reinvestimento dos lucros se dirigiu ao mercado financeiro e a remuneração desse capital foi paga pela corrosão dos salários e a diminuição de qualidade na assistência pública. De qualquer forma, o mais importante é que as bolhas de crescimento efêmeras no Brasil e o crescimento econômico Argentino têm sido, tanto quanto na Europa e nos EUA, insuficientes para recuperar os níveis de emprego e salários.

Um segundo problema se refere à evolução da estrutura ocupacional e aos seus desdobramentos sociais e políticos. O setor de serviços representou neste século o maior crescimento relativo no quadro dos setores ocupacionais. Para se obter uma ilustração, apenas os setores ocupacionais de "classe média" (técnicos especializados, executivos, empregados de colarinho branco etc.) na área dos serviços, cresceram, entre 1961 e 1989, de 38% da PEA para 55,3% (Canadá), de 39,1% para 56,8% (EUA) e de 36,3% para 57,2% (Suécia; nesse caso entre 1965 e 1989)20. Mesmo em unidades empresariais em que se mesclam atividades produtivas e improdutivas, a parafernália ornamental dos serviços é relativamente grande; por exemplo, nas redes de fast food como o McDonald's, o trigo e a carne envolvidos na preparação de um hamburger constituem a parte menor dos custos em relação aos processos envolvidos na realização do serviço de atendimento ao cliente21.

Também os serviços estão sujeitos à automação e são geradores de desemprego estrutural. O otimismo neoliberal costuma apresentar exemplos equivocados, como a educação, em que a informatização e a comunicação audiovisual pouco interferem no nível de ocupação. Ocorre que a educação, a saúde, os serviços sociais e a administração pública não são subsumidos ao capital realmente, e quando o são formalmente há um prejuízo para a sua qualidade22. Igualmente, o comércio varejista e os serviços pessoais autônomos estão imunes à grande revolução tecnológica no que tange aos seus efeitos sociais, pois já são decadentes em si e por si mesmos. O Economic Council of Canada23 definiu os serviços dinâmicos sujeitos à automação em virtude da sua necessidade imediata para o circuito de valorização do capital: transportes, comunicações, finanças, seguros, publicidade, arquitetura, consultoria, comércio atacadista etc.. Embora nem todos sejam "automatizáveis" (sic), aqueles que empregam muitos funcionários estão sujeitos a isso, como os bancos. No Japão e Alemanha, 80% e 63% dos pagamentos, respectivamente, são feitos automaticamente. Isso tem produzido desemprego e queda dos salários, bem como empregos não-regulares:

"Embora não seja causado diretamente pela tecnologia da informação, grande parte do emprego não-regular se relaciona com a tendência a contratar trabalho fora. Com a tecnologia da informação, certos tipos de trabalho podem ser feitos em qualquer lugar e comprados segundo a necessidade, por outras firmas. A influência dos sindicatos é minimizada, os gastos com despesas gerais são controlados e o trabalho, quando adquirido, é mais barato, já que há poucos, se houver, benefícios a serem pagos"24.

II - A acumulação de capital e a degradação do trabalho no pós-guerra

Ainda no decurso da segunda guerra mundial, os governos aliados ocidentais já se preocupavam com o novo padrão de relações diplomáticas, comerciais, monetárias etc., que iria reger o concerto das nações depois da guerra. No Departamento de Estado norte-americano, repudiava-se o "capitalismo nacionalista" dos anos trinta, o laissez faire desenfreado e as políticas de Hjalmar Schacht, presidente do Reichsbank da Alemanha nazista. Propugnava-se um "novo capitalismo" (sic) que regulasse e desse previsibilidade à interação dos mercados nacionais. Essa era essencialmente a proposta do chefe do tesouro norte-americano, Harry Dexter White.

Na conferência de Bretton Woods, EUA e Inglaterra disputaram imposições sobre os credores ou os devedores, de acordo com suas conveniências. Por fim, a solução veio com a cláusula de moeda escassa do FMI, como demonstra Henry Nau, um cientista político que trabalhou no Departamento de Estado dos EUA de 1975 a 1977:

"Essa cláusula permite que uma moeda que estava sendo entesourada por um país superavitário fosse declarada escassa e, por conseguinte, efetivamente racionada, a fim de reduzir as importações dos países em déficit das exportações dos países em causa. Desta maneira, o país superavitário não poderia continuar a acumular receitas de exportação e teria que ou emprestar mais ou importar mais, se quisesse continuar a exportar"25.

O segundo sustentáculo da nova ordem inaugurada em Bretton Woods foi o Plano Marshall, cujas políticas incorporaram práticas keynesianas de administração da demanda mas "evoluíram", na visão conservadora de Nau, para a rejeição do pleno-emprego e, "no período de 1947 a 1958, para uma orientação fiscal e monetária mais conservadora, mercados de trabalho internos mais flexíveis e competitivos, e normas de comércio externo mais liberais"26. Já foi destacada, na primeira parte desse artigo, a transformação tecnológica e econômica que fundamenta tais mudanças nas políticas econômicas, mas cabe ainda avaliar as mutações que se operaram nos paradigmas de análise e nas soluções programáticas surgidas, particularmente no que tange à evolução do papel do Estado e da sua relação com as classes sociais no bojo de um radical processo de mudanças estruturais nas forças produtivas.

As variações das taxas de acumulação no pós-guerra, numa tendência decrescente a partir dos anos setenta nos países centrais, determinaram mudanças no mercado de trabalho e na distribuição de salários excedente, no que tange à participação na renda nacional (houve concentração de renda e aumento da pobreza e do desemprego). O ataque neoliberal ao Estado, com a chegada das coalizões conservadoras ao poder na Inglaterra e EUA em princípios dos anos oitenta, contribuiu para a diminuição da parte do valor da força de trabalho reproduzida pela intervenção estatal (gastos públicos em saúde, educação etc.), mas, a partir disso e mesmo com privatizações, não houve saneamento efetivo das finanças públicas e a infra-estrutura se degenerou (EUA); na França a evolução do desemprego no governo "socialista" elevou os gastos das estatais com indenizações27. Ocorre que a globalização do capital implica duas conseqüências catastróficas para os trabalhadores:

1 - Exigência de fluxos financeiros rápidos e de mecanismos de atração de capitais pelos Estados Nacionais, de tal forma que tais fluxos estejam baseados em títulos da dívida interna desses Estados, parcialmente, o que agrava a crise fiscal de Estados com muitos encargos financeiros necessários à rolagem de suas dívidas públicas e "justifica" a deterioração dos serviços sociais aos pobres;2- Intensificação de capital fixo, desemprego estrutural e maior necessidade dos serviços públicos e auxílio-desemprego pago pelo Estado. Por outro lado, a necessidade menor de força de trabalho e a degradação das tarefas, cada vez mais desqualificadas (o que destoa dos discursos sobre funcionalidade hodierna da educação), reduz a educação formal e universalista, bem como a técnica, apenas para uma elite de sicofantas (ideólogos) do capital e especialistas, gerentes etc..

Diante desse quadro empiricamente constatado, ideologias surgem para "solucioná-lo". A alternativa neoliberal se assenta sobre a reforma do Estado e a flexibilização do mercado de trabalho para eliminar o desemprego. O ajuste fiscal, a estabilização da moeda e as privatizações são o cerne da proposta. Reequilibrar as contas públicas se faria necessário para eliminar-se o déficit público antes de debelar-se a inflação, porque a correção dos impostos, tornando-os imunes ao efeito Tanzi e à deterioração do valor das dotações orçamentárias para as despesas, mascara o enorme déficit potencial que explodiria caso a inflação fosse zerada e subissem as despesas sem corrosão inflacionária esse seria o caso do Brasil28. O corolário dessa tese é a dolarização.

A flexibilização do mercado de trabalho envolve o fim de diversas garantias sociais, aumento da vida ativa de trabalho (para diminuir os gastos com inativos) e por fim a senha mágica: redução dos encargos sociais e desregulamentação do mercado de trabalho. Apresentam-se, como custos adicionais com trabalhadores, uma série de encargos que incidem sobre a folha de pagamento e se propõe a redução do custo-horário do trabalho. Em verdade, porém, os famosos encargos sociais em nenhum lugar ultrapassam a metade dos salários recebidos pelos trabalhadores. A diferença entre o que o trabalhador recebe e o que a empresa paga por hora trabalhada é a seguinte, em vários países: Brasil (24,5%), EUA (28,4%), França (39%), Alemanha (29,5%), Itália (44%) e Suécia (45,5%)29. Os encargos mantêm basicamente a seguridade social, pois licenças, férias, vales-refeição e transporte, 13o salário etc., são parcelas do salário! Também é proposta uma adequação maior entre o nível de ocupação e as flutuações da demanda por força de trabalho, facilitando-se as demissões. Na França, isso é revestido com a roupagem da "criação de mais empregos": "Para os empresários, a flexibilização das normas de dispensa, ainda que se limitada aos novos empregos criados, permitiria obter, em 1 984, quatrocentos mil novos empregos. Os sindicatos criticam, por sua vez, o dualismo crescente do mercado de trabalho e a degradação geral das condições de emprego que provocariam tais flexibilizações"30. Os diversos matizes que constituem a variante social-democrata vão de neokeynesianos, preocupados com a manutenção do Welfare State com menos reformas liberais, até toda a gama de socialistas utópico-reformistas.

Uma ala catastrofista e cética também se apresenta restaurando as teorias da crise e do colapso do capitalismo dos anos vinte. Seu atual representante é Robert Kurz e o seu O Colapso da Modernização foi depois complementado por artigos e um novo livro31.

Kurz vê o desemprego estrutural como índice da crise global do capitalismo e da sociedade do trabalho, de tal forma que a superação da produção mercantil já está inscrita potencialmente no entrelaçamento global efetivo da produção e distribuição, permitido pela revolução microeletrônica, os novos materiais etc.. Para o autor alemão, a revolução russa, por exemplo, apenas inaugurou um processo acelerado de acumulação primitiva de capital, repetindo, de forma concentrada historicamente, o mesmo processo multissecular de acumulação primitiva ocorrido na Inglaterra32. Existiria, hoje, um "comunismo das coisas" mascarado pelo invólucro da forma mercadoria que as coisas precisam assumir para sua realização. Contudo, a superação do status quo não pode mais ser realizada por uma classe social:

"Uma vez que essa crise consiste precisamente na eliminação tendencial do trabalho produtivo e, com isso, na supressão negativa do trabalho abstrato pelo capital e dentro do capital, ela já não pode ser criticada ou até superada a partir de um ponto de vista ontológico do 'trabalho', da 'classe trabalhadora', ou da 'luta das classes trabalhadoras"33.

Ora, Kurz possui uma visão unilateral e fetichizada da força de trabalho como mero elemento estrutural do capital, de modo que a defesa do movimento operário e da classe trabalhadora como categoria ontológica, por Marx, seria incongruente com a sua crítica da economia política, "que desmascara precisamente aquela classe trabalhadora não como categoria ontológica, mas sim como categoria social constituída, por sua vez, pelo capital"34.

Contudo, se é verdade que, do ponto de vista do conteúdo (os elementos necessários à reprodução do capital variável), a força de trabalho é mero elemento constitutivo do capital, do ponto de vista da forma (rotação do capital variável) é um elemento dinâmico e subjetivo, responsável pela valorização do capital. Marx explicita isso no volume II de O Capital, onde trata da diferença entre o capital fixo (meios de trabalho) e o circulante (força de trabalho + matérias primas e auxiliares):

"Conforme se viu anteriormente, o dinheiro que o capitalista paga aos trabalhadores para a utilização da força de trabalho é na realidade apenas a forma equivalente geral dos meios de subsistência necessários ao trabalhador. Nesse sentido, o capital variável consiste materialmente em meios de subsistência. Mas aqui, no exame da rotação, trata-se da forma. O que o capitalista compra não são os meios de subsistência do trabalhador, mas a própria força de trabalho (...) Não são, portanto, os meios de subsistência do trabalhador que adquirem o caráter de capital fluido em oposição ao capital fixo. Nem é também sua força de trabalho, mas é a parte do valor do capital produtivo gasto nela que, em virtude da forma de sua rotação, adquire, conjuntamente com alguns e em oposição a outros elementos do capital constante, esse caráter"35.

Exatamente por isso, os valores de uso que ingressam no processo de trabalho "cindem-se em dois elementos antitéticos e rigorosamente distintos no plano conceptual", portanto, enquanto o operário sente o processo de valorização como a negação dele próprio, no qual o seu trabalho concreto útil se apaga numa geléia indiferenciada de trabalho abstrato, o capitalista (personificação do capital), encontra nesse processo sua "satisfação absoluta"36. Kurz, não obstante seus brilhantismo e honestidade intelectual, confunde a força de trabalho apenas com seus elementos físicos e, ao torná-los características sempiternas e supra-históricas, fetichiza o conceito, tomando-o pelo seu conteúdo e não dialeticamente, o que o impede de observar o caráter simultaneamente estrutural e contraditório da força de trabalho.Outros teóricos "ressuscitam" a luta de classes, contrariamente a Kurz, mas o que fazem entrar pela janela deixam escapar pela porta. É o caso de teóricos da escola francesa da regulação, como Michel Aglietta, de Claus Offe, parcialmente, e de acadêmicos de diversas posições políticas. Para eles, a luta de classes é atual desde que contida nos marcos da aceitação do domínio do capital; ela serviria, caso se restringisse a ações sistêmicas e legitimadoras, para uma melhor repartição do produto social em favor dos trabalhadores. Esses, enquanto cidadãos numa esfera pública que não seria mais burguesa, poderiam negociar como sujeitos da "regulação pública" não é o caso aqui de discutir profundamente tais teses, cuja expressão de natureza político-estratégica no Brasil são as câmaras setoriais que, aliás, têm sido importante instrumento do movimento sindical37.

Tudo isso, mesmo com formas inovadoras, não se diferencia do comportamento do movimento operário de inspiração social-democrata nos anos de ouro do Estado do Bem-estar Social, algo que foi muito bem estudado e com seriedade por Adam Przeworski38. No fundo, o programa político dessa "nova" esquerda regulacionista não consegue criar uma estratégia anticapitalista, porque é prisioneira das categorias da economia política. Um programa de transformação social e de superação da crise não pode, exceto para resolver questões conjunturais, estar subsumido à lógica do capital.

Outro tipo de teoria "moderna" sobre o fim da exploração etc. diz respeito à dissociação entre propriedade e controle dos meios de produção: a existência de uma tecno-estrutura reacendeu todo um debate e suscitou várias contribuições teóricas (Galbraith, Schumpeter, Wright Mills, Victor Perlo etc.), incluindo marxistas (Baran, Paul Sweezy, Braverman etc.). Mas o grande trabalho que propôs que o fundamento do capitalismo clássico havia se desintegrado (a propriedade privada dos meios de produção) foi o livro The Modern Corporation and Private Property, de Adolph Berle Jr. e Gardiner Means, publicado em 1932 nos EUA. Os autores diziam que 44% das duzentas maiores corporações eram controladas por diretores, gerentes (não-proprietários). Isso parecia corroborar as idéias dos teóricos do "revisionismo" social-democrata do início do século, como Konrad Schmidt e Eduard Bernstein. Esse propugnava que as sociedades por ações representavam o novo poder sobre a vida econômica, mais democrático, enquanto Schmidt declarava que a classe capitalista estava sendo paulatinamente expropriada e a "soberania" sobre a propriedade se repartia progressivamente entre todos os membros da sociedade39.

De fato, ao trabalho de Berle e Means se seguiram o de R. A. Gordon (1945) e o de Robert Larner, todos trabalhos empíricos que "confirmavam" as teses social-democratas que até hoje são aceitas em alguns círculos políticos como incontestáveis. Não se questionava a metodologia, a qual ignorava muitas vezes o uso de nomes de agentes da bolsa, departamentos de bancos etc. para ocultar os proprietários de ações40.

A primeira contestação empírica ao estudo de Berle e Means partiu de Anna Rochester (1936) e Ferdinand Lundberg (1937), os quais concluíram que o controle do sistema industrial ainda pertencia a poucas famílias proprietárias nos EUA, grandes acionistas que ocupavam cargos de direção nas empresas41. Sweezy, por seu turno, constatou que a metade das maiores duzentas corporações e dezesseis dos maiores bancos pertenciam a oito grupos de interesses42, segundo uma pesquisa do National Resources Comittee. Por fim, Don Villarejo, a partir da lista de 1960 da Fortune, concluiu que das 232 corporações maiores, certamente 54% e talvez até 61% estavam controladas diretamente por proprietários43.

Isso não significava que alterações profundas na sociedade capitalista e na sua estrutura de poder não estavam ocorrendo, mas implicava que: 1- os dados empíricos não eram inquestionáveis; 2- a velocidade das transformações não era tão elevada; 3- o caráter do processo era contraditório, pois engendrava a possibilidade do fim da propriedade dos meios de produção e simultaneamente promovia a sua centralização. Enfim, o excedente econômico continuou sendo produzido socialmente e apropriado por poucos, a forma de apropriação se modificou em algumas megacorporações (que nem de longe formavam a totalidade das empresas e dos postos de trabalho), mas a própria história se encarregou de mostrar que Bernstein se equivocara e que se continua a viver hoje sob o modo de produção do capital.

O mesmo se pode dizer acerca do "fim da sociedade do trabalho", asseverado precipitadamente, embora já se apresente potencialmente hoje. Contudo, o desenvolvimento capitalista não é linear, mas antitético: produz a possibilidade do fim do trabalho e recria formas pré-diluvianas de exploração; gera a fome de milhões enquanto os silos da Europa já podem saciar cerca de 33 bilhões de homens (sete vezes a população do planeta!)44. Portanto, dever-se-ia discutir temas candentes como plano e mercado, por exemplo, de uma perspectiva de abolição positiva (Marx) do presente, como o têm feito, com equívocos mas corajosamente, Kurz, Mandel, Callinicos etc.. Caso se pudesse, hoje, enxergar além da forma mercadoria, o debate não seria sobre "o fim da sociedade do trabalho" mas sobre alternativas para depois do fim do capitalismo.

Mas o que é "atual" e "moderno", quando visto em perspectiva histórica, não é fruto da "escolha" dos intelectuais. O dogma de que o industrialismo criaria automaticamente a sociedade livre (em verdade, um capitalismo depurado dos seu males!) é tão velho que remonta a Sismondi e aos socialistas utópicos (como Saint-Simon, Fourier e Owen): mas, então, tratava-se de uma ideologia progressiva, correspondente ao período de objetivação do trabalho assalariado como categoria histórica; hoje, trata-se de uma expressão da decadência ideológica do estalinismo, do eurocomunismo e da social-democracia dominantes na esquerda até meados dos anos oitenta esta crise de decomposição ideológica (aparência) é vivida pelos intelectuais como se fosse uma decomposição social automática e inescapável do sujeito histórico da revolução socialista e faz com que uns se adaptem à ordem, outros sucumbam à vida privada como fonte única dos seus valores emocionais e de seus "investimentos" pessoais, enquanto outros mais buscam no marxismo uma sempre renovada alternativa revolucionária.


1 - Para preencher tal lacuna, vide: TONET, I.; "O Pluralismo Metodológico"; in: Práxis; no 1; BH, ProJetO, 1994, pp. 86-144. Ver também A Vigência do Marxismo, artigo inédito de O. Coggiola, 1994.

2 - MARX, K.. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Politica (Grundrisse). México, Siglo XXI, 1987, v.II, p. 222.

3 - Sobre a redução progressiva de trabalho vivo agregado por unidade produzida até o limite matemático de 100% de capital constante, em função de progressivas duplicações da produtividade da força de trabalho, vide: SECCO, L.; "Teoria Marxista das Crises Econômicas"; in: Estudos, no 34; São Paulo, USP/FFLCH, 1992.

4 - MARX, K. Op. cit.. P. 228.

5 - GLOTZ, P.. "Las Grandes Rupturas". In: Nueva Sociedad, no 72. Caracas, 1984.

6 - RAN IDE, T. e CORDELL, Arthur J.. "As Novas Ferramentas: Implicações no Futuro do Trabalho". In: O Socialismo do Futuro, no 6. Salvador/Madrid, 1993.

7 - Idem.

8 - GORENDER, J.. Marcino e Liberatore. SP, Ed. Ática, 1992, pp. 86-88.

9 - TEIXEIRA, Francisco J. S.. "Notas para uma Crítica do Fim da Sociedade do Trabalho". In: Universidade e Sociedade, ano IV, no 6. São Paulo, 1994, p. 26. A terceirização também favorece ao capital com a redução de alguns impostos e encargos sociais dos salários, a redução salarial, a degradação das condições de trabalho, o ataque às organizações sindicais etc., vide: Conjuntura, ano V, no 51; 1992, p. 12 (publicação de alguns sindicatos da área química da Grande SP).

10 - MARX, K. e ENGELS, F.. "Manifiesto del Partido Comunista". In: Obras Escogidas. Moscou, Ed. Progresso, 1980, Tomo I, p. 116.

11 - Em COGGIOLA, O.; Marxismo e Classes Sociais na Atualidade; inédito, 1994; cf. THERBORN, G.; in: revista EL Socialismo del Futuro, no 7; Madrid, 1993.

12 - MARX, K.. O Capital. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1984, v. III, t. 1, p. 335. Tradução: F.Kothe e R.Barbosa.

13 - Folha de São Paulo, 14/12/1990.

14 - Gazeta Mercantil, 11/01/1994.

15 - GORENDER, J. "Liberalismo e Capitalismo Real". In: NOVA, J. (org) A História à Deriva. Salvador, UFBA, 1993, p. 163.

16 - Vide: MARX, K.; O Capital; cit., v. II, p. 233; KURZ, R.; "As Luzes do Mercado se Apagam..."; in: Estudos Avançados, v. 7, no 18; São Paulo, USP/IEA, 1993, pp. 11-12.

17 - KURZ, R.. O Retorno de Potenkin. RJ, Paz e Terra, 1993, p. 28. Tradução: W. L. Maar.

18 - Folha de São Paulo, 27/06/94.

19 - Para analisar a crise brasileira em complemento a este artigo: SECCO, L. e SANTIAGO, C.; Por uma Nova Política Econômica; inédito, 1994.

20 - TEZANOS, J. F.. "Transformações na Estrutura de Classes na Sociedade Avançada". In: revista O Socialismo do Futuro, cit..

21 - RAN IDE, T. e CORDELL, A. J.. Op. cit..

22 - Para uma discussão específica, vide: SECCO, L.; "Trabalho Produtivo em Marx"; in: O Ensaiador, no 1. SP, USP/Instituto de Física, 1994.

23 - RAN IDE, T. e CORDELL, A. J.. Op. cit..

24 - Idem.

25 - NAU, H.. O Mito da Decadência dos EUA. RJ, Ed. Zahar, 1992, p. 104.

26 - Idem, p. 129.

27 - PETIT, P.. "Luces e Sombras del Estado Frente la Relacion Salarial: Francia". In: BOYER, R. (org) La Flexibilidad del Trabajo en Europa. Madrid, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1986, p. 60.

28 - FRANCO, G.. Folha de São Paulo, 31/10/1993. Como se viu, o Plano Real levou às últimas conseqüências essa tese, embora realizando um ajuste fiscal precário antes da introdução da nova moeda, baseado no corte de recursos orçamentários destinados às áreas da saúde e educação, consoante o famigerado "Fundo Social de Emergência", proposto pelo então ministro Fernando Henrique Cardoso no início de 1994.

29 - AMADEO, E.. Folha de São Paulo, 04/01/94.

30 - PETIT, P.. Op. cit.. P. 78.

31 - KURZ, R.. O Colapso da Modernização. RJ, Ed. Paz e Terra, 1993. Tradução: Karen Barbosa. Idem; O Retorno de Potenkim; cit.. Idem; História e Crise Contemporânea; SP, Ed. Pulsar, 1994, pp. 67-76. Idem; As Luzes do Mercado se Apagam...; cit..

32 - Aliás, essa não é uma idéia nova. Paul Mattick, notável crítico da economia política ligado ao grupo dos comunistas de esquerda, defensores dos conselhos operários (Anton Pannekoek, Otto Rüle, Karl Korch etc.), condenou o equívoco de tomar-se o interregno kerenskista de 1917 como a revolução burguesa na Rússia, posto que a própria Revolução de Outubro cumprira esse papel: "Uma vez no poder, era necessário mantê-lo a todo o preço; abandoná-lo não era recuar, mas morrer. E permanecer no poder era submeter-se à lei marxista, segundo a qual as forças produtivas determinam as relações sociais de produção e, através dessas, as superestruturas políticas, e não o inverso. O que a burguesia tinha realizado nas outras nações, quer dizer, a criação do capital por 'acumulação primitiva' e exploração do proletariado, devia ali ser realizado por um partido que se dizia marxista" (em MATTICK, P. et. al.; Comunistas de Conselhos; Coimbra, Ed. Centelha, 1976, pp. 69-70). Entretanto, os comunistas de conselhos não consideravam, como Kurz, a classe operária incapaz de superar o capital: apoiavam, na própria Rússia, o grupo do centralismo democrático (decismo), liderado por Sapronov, que foi exterminado pelo terror estalinista (idem, p. 61). Para outras análises semelhantes, vide: KORCH, K. et. al.; A Contra-revolução Burocrática; Coimbra, Ed. Centelha, 1978. O fato é que, ao circunscrever-se à Rússia, a revolução bolchevique engendrou uma economia híbrida de transição ao socialismo bloqueada, que violava as categorias do mercado, mas permanecia parcialmente subsumida à lei do valor vigente no mercado mundial. Enquanto o capital ainda não havia se globalizado, integrando definitivamente o mercado mundial, com fluxos financeiros internacionais que permitem aos capitais transnacionais controlarem inteiramente o processo de acumulação nos países periféricos, era possível um desenvolvimento retardatário e recuperador, tanto nos países periféricos capitalistas (de forma dependente) quanto nos que inauguraram uma transição para o socialismo bloqueada. Mas depois da revolução microeletrônica e seus desdobramentos nos transportes e comunicações, a lei do valor se impôs inapelavelmente e se tornou impossível manter áreas inteiras da economia sob reserva de mercado para o capital estatal nacional.

33 - KURZ,R.. O Colapso da Modernização. Cit., p. 227.

34 - Idem, p. 71.

35 - MARX, K.. O Capital. Cit., v. II, p. 122.

36 - Idem. Capít. Inédito d'O Capital. Porto, Ed. Escorpião, 1975, pp. 34 e 45.

37 - Para uma crítica da escola francesa regulacionista, vide: KATZ, C.; "Critica a la Teoria de la Regulacion"; In: revista En Defensa del Marxismo, ano I, no 3; Buenos Aires, 1992. Sobre uma "nova" visão do papel da luta de classes: OLIVEIRA, F.; "A Economia Politica da Social-democracia"; in: Revista USP, no 17; SP, 1993. A sua crítica foi feita em GORENDER, J.; "Teses em Confronto: Do Catastrofismo de Kurz ao Social-democratismo de Chico de Oliveira"; in: revista Universidade e Sociedade, ano IV, no 6. SP, 1994. Claus Offe, por seu turno, é mais incisivo na crítica à forma clássica do conflito de classes, ressaltando os seguintes atributos da sociedade "pós-industrial": a consciência social não deve mais ser reconstruida como consciência de classe, a cultura cognitiva não se relaciona ao avanço das forças produtivas prioritariamente e o sistema político deixa de arbitrar precipuamente os conflitos distributivos. Infelizmente, o autor não se limita a defender os seus pontos de vista, mas nega "qualquer respeitabilidade científico-social" ao que ele denomina "marxismo ortodoxo"; vide: OFFE, C.; Capitalismo Desorganizado; SP, Brasiliense, 1994, pp. 194-5.

38 - PRZEWORSKI, A.. Capitalismo e Social-democracia. SP, Ed. Companhia das Letras, 1991.

39 - ZEITLIN, M. Propriedad y Control: la Gran Corporación y la Clase Capitalista. Barcelona, Anagrama, 1976, p.34.

40 - Idem, p. 44.

41 - Idem, pp. 39-40.

42 - Idem, p. 40. Também: SWEEZY, P.; Teoria do Desenvolvimento Capitalista; SP, Nova Cultural, 1986, p. 202.

43 - ZEITLIN, M.. Op. cit.. P. 41.

44 - CALLINICOS, A.. A Vingança da História. RJ, Ed. Zahar, 1992, p. 135. Tradução de R. Jungman.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 3, Março de 1995, tenha sido proveitosa e agradável.

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