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| György Lukács
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Nicolas Tertulian
Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França, membro do Conselho Consultivo da Revista Práxis.
Nicolas_Tertulian@revistapraxis.cjb.net
Raros são hoje aqueles que, evocando a luta dos intelectuais contra os regimes totalitários do Leste, fazem referência a outras formas de oposição além daquela dos dissidentes. O mérito destes homens corajosos que, de Andrei Sakharov a Vaclav Havel e de Leszek Kolakowski a Alexandre Soljénitsyne, têm conquistado uma legítima audiência, não deve contudo fazer esquecer, por um reflexo anticomunista compreensível mas não menos simplificador, o fato de que a contestação começou no interior mesmo do sistema e intelectuais marxistas como Bertold Brecht, Ernst Bloch ou György Lukács denunciaram com vigor as práticas estalinianas e o "socialismo de caserna". O conteúdo e a finalidade de suas críticas são evidentemente diferentes daquelas dos dissidentes: eles desejam a reforma radical destas sociedades, sua reconstrução sobre bases autenticamente socialistas e não a restauração do capitalismo.
Em 1958, Ernst Bloch(0) confiou com amargura ao seu amigo Joachim Schumacher que ele próprio e seus discípulos foram alvo de uma repressão brutal na RDA(1). Em sua carta, expedida por prudência da Áustria, ele explica ao seu correspondente que sua crítica contra a Satrapen-Misswirtschaft (desastrosa economia de sátrapa) foi por um tempo tolerada, e de bom ou mau grado aceita, mas que desde o surgimento do movimento contestatório húngaro o círculo Petöfi começa a se reunir em 1956 a situação alterou-se completamente. Vexações e interdições se sucediam. Interdição de ensinar, interdição de publicar o terceiro volume do livro Princípio Esperança. Bloch apresenta a situação em uma fórmula lapidar: Man brauchte einen deutschen Lukács... (necessitava-se de um Lukács alemão...)(2).
Necessitava-se então de um Lukács alemão na RDA de Walter Ulbricht, que temia justamente a idéia de que o espírito do círculo Petöfi, do qual o filósofo foi um dos animadores, pudesse aí se propagar. E, na boa tradição estaliniana, montou-se um retumbante processo, destinado a prevenir toda veleidade de pôr em questão os métodos do poder local. Os principais acusados deste processo foram Wolfgang Harich e Walter Janka(3).
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Fotografia de György Lukács
Graças às obras publicadas(4) nos últimos anos por Walter Janka(5), antigo comunista, antigo combatente da guerra civil espanhola e, no momento de sua prisão, em 1956, diretor da grande casa editorial de Berlim, Aufbau-Verlag, podemos ter uma idéia mais clara das repercussões que o papel desempenhado por Lukács no levante húngaro teve sobre o establishment alemão-oriental.
Durante os acontecimentos da Hungria, em meio à confusão, Johannes Becher, ministro da Cultura, solicitou, a conselho de Anna Seghers, que Walter Janka fosse a Budapeste para trazer Lukács à RDA. Amigo do filósofo, o ministro-poeta temia por sua vida. A operação, digna de um filme policial, foi barrada por Walter Ulbricht, que não pretendia interferir nos assuntos dos camaradas soviéticos. Quando do processo, Janka, que não participou do projeto, vê-se censurado pela intenção de introduzir um agente oculto do imperialismo ... disfarçado em comunista. Neste cenário construído pela justiça da Alemanha Oriental, sob a ordem de Walter Ulbricht, o filósofo aparecia como o inspirador ideológico de um complô perpetrado pelos acusados para derrubar o regime. O promotor Melsheimer (magistrado em função já sob o regime nazista) entregou-se a um verdadeiro requisitório contra Lukács, cujas intervenções nos debates do círculo Petöfi, assim como as declarações feitas antes e durante os eventos de 1956, serviram de peças para a acusação(6). Uma entrevista dada por Lukács em 31 de outubro de 1956 a um jornalista polonês, Woroszilsky, e largamente reprisada pela mídia ocidental, escandalizava muito particularmente o promotor(7). Se as eleições livres tivessem lugar na Hungria, afirmara Lukács, o partido comunista no poder colheria entre 5 e 10% dos votos; esse era, segundo ele, o resultado da política conduzida durante anos pelo regime de Rakosi(8).
Não temos a intenção de nos deter mais longamente sobre a história rocambolesca e trágica do processo Harich-Janka, que terminou com pesadas penas de prisão. Os extremos do promotor, que em um dado momento havia mesmo acusado Lukács de ter apelado às tropas da OTAN contra o exército soviético(9), eram uma prática corrente da justiça do tipo estaliniano. Uma rotina também as declarações feitas quando de uma conferência de imprensa, em fevereiro de 1957, por Johannes Becher. Rendendo homenagem ao historiador da literatura Lukács, o ministro o censurava, contudo, por ter conduzido uma ação dissolvente no círculo Petöfi e contribuído, também, com apoio à contra-revolução. Interrogado sobre a sorte do filósofo, Johannes Becher assegurava aos jornalistas que este se encontrava em Budapeste e que, retirado da vida pública, consagrava-se ao projeto de escrever uma Ética(10). No momento em que tinha lugar a conferência de imprensa, Imre Nagy com sua equipe, portanto também Lukács, achava-se deportado na Romênia. Pouco tempo após, na Hungria, na RDA e em todos os países ditos socialistas, a campanha da imprensa contra o revisionista Lukács continuava fazendo furor.
Este episódio dos anos 1956-1957, brevemente evocado, mostra bem a que se expunha um filósofo marxista que quisesse fazer coincidir seus princípios e sua ação. Isto pode servir de introdução à nossa discussão.
Seria muito arriscado afirmar que a derrocada do mundo comunista teria surpreendido Lukács. O autor da Ontologia do Ser Social considerava que os regimes da Europa do Leste, congelados no seu triunfalismo e afetados por uma indigência estrutural, estavam condenados a acabar e que se deveria proceder, com urgência, à sua reforma em profundidade para salvar a alternativa de um futuro socialista. É precisamente este sentido do combate travado durante os últimos quinze anos de vida pelo filósofo que o torna fiel ao compromisso de sua juventude. Por isso, necessitava-se abater o mal em sua origem, ou seja, investir no desvelamento de um ideal de liberdade, de emancipação e de justiça para os regimes que o pretendiam seguir. Nutrindo a convicção premonitória de que esta perversão do marxismo que é o estalinismo representa um perigo mortal para a causa do socialismo, o filósofo associa-se apaixonadamente à denuncia do abismo que separava a teoria e a prática de Stalin do espírito marxiano.
A importância do combate conduzido por György Lukács durante o último período de sua vida tem sido, até o presente, largamente subestimada. E hoje, após a queda dos degenerescentes regimes que nada tinham em comum com o socialismo senão o nome, alguém que se propunha fiel a Marx não corre o risco de ser considerado como um modelo de clarividência. É necessário, todavia, seguir nos seus escritos os traços deste combate para poder julgar.
Entre 1956 e 1971, ano de sua morte, Lukács estava voltado, tanto nos textos específicos ou especialmente consagrados ao problema da democracia quanto nas suas grandes obras teóricas, para o fenômeno estaliniano, que infestava até às raízes, segundo ele, o movimento comunista. Esta preocupação pode ser encontrada após suas intervenções nos debates do círculo Petöfi, no post-scriptum de Meu Caminho até Marx, publicado em 1957 na revista Nuovi Argomenti, na Carta a Alberto Carocci, publicada em 1962, na mesma revista, em Socialismo e Democracia, pequena obra redigida em 1968, prosseguindo até às grandes obras como A Estética e A Ontologia do Ser Social, onde o problema foi debatido em nível de uma concepção de conjunto da vida social. Isto mostra a que ponto a intervenção no debate era, aos seus olhos, importante. Nem Ernst Bloch, nem Henri Lefèbvre, nem Louis Althusser, entre os filósofos marxistas contemporâneos, inevitavelmente perseguidos pelo fantasma do estalinismo, desenvolveram uma reflexão tão profunda sobre a natureza do fenômeno.
Duas razões determinaram que Lukács consagrasse tanta energia a este problema. A primeira, de ordem mais geral, está ligada ao destino do movimento comunista mundial; a segunda, mais pessoal, está intimamente ligada à sua própria história.
No plano geral, Lukács estava persuadido de que, longe de ser um fenômeno histórico passageiro, circunscrito à vida daquele que lhe deu seu nome, o fenômeno do estalinismo tornou-se uma forma mentis, destinado a devastar ainda por muito tempo o movimento comunista internacional. Procurando as motivações teóricas de certas ações políticas específicas de Stalin, ele chegou a distinguir uma coerência na sua atividade, situada no oposto do espírito autenticamente dialético. Dito de outra maneira, Lukács remonta até às origens filosóficas do estalinismo se a palavra é apropriada para designar uma reflexão assim primária e tenta demonstrar que, além de uma prática política, ele é um conjunto de teorias e um método de pensar que desnaturaram por decênios o sentido original do comunismo.
No plano mais pessoal, Lukács, ligado por mais de meio século ao movimento comunista, foi em certa medida um ator do período estaliniano, ou pelo menos uma testemunha ilustre. As revelações de Kruschev não poderiam deixar de atingi-lo. Põe-se de início a questão: quais as ligações existentes entre os seus escritos redigidos durante o período estaliniano (a maioria publicada em Moscou nos anos 30 e início dos anos 40) e o clima ideológico então reinante na União Soviética? Põe-se, em seguida, a questão: como ele teria atravessado esta época terrível? A formidável máquina de perversão estaliniana não deixaria moralmente indenes aqueles que nela não perderam a vida. Críticas e acusações não faltariam a ser formuladas nesse sentido. Lukács deveria se explicar. E, de fato, suas análises do estalinismo são portadoras, também, de respostas às questões mais pessoais que lhe são dirigidas. Além disso, ele consagra um texto especial à história de suas ligações com Stalin e com o estalinismo, onde dá seu ponto de vista sobre este aspecto importante de sua biografia política e intelectual(11).
Lukács é o exemplo típico do intelectual comunista que, numa conjuntura complicada, é preso freqüentemente entre dois fogos. De um lado, foi vilipendiado como revisionista, acusado de ter inventado o conceito de estalinismo, uma ficção não científica, e de utilizar o combate contra o estalinismo para proceder a uma revisão do leninismo e, nas circunstâncias de 1956, para reunir e desencadear o ataque de forças contra-revolucionárias(12). De outro lado, reprova-se-lhe ser um dócil intérprete das imposições estalinianas, interiorizando-as mesmo ao ponto de as sublimar no seu discurso crítico e filosófico (é o sentido, por exemplo, do artigo consagrado em 1966 por Isaac Deutscher aos estudos de Lukács sobre Thomas Mann). Mesmo pessoas que têm admiração e respeito por sua obra consideram que, durante sua estadia na União Soviética, ele estava curvado às exigências oficiais.
Não nos parece sem interesse determo-nos primeiro sobre as reações do próprio Lukács antes de passarmos às críticas.
Em abril de 1961, o editor Frank Benseler enviou-lhe o prefácio, preparado por Peter Ludz, de uma coletânea de textos de sua obra. Sociólogo e cientista político alemão, autor de duas antologias de textos de Lukács, Ludz afirmava no seu prefácio que o filósofo teria, quando de seu exílio na União Soviética, sacrificado-se temporariamente à degradação do pensamento teórico marxiano por Stalin. Lukács rejeita vivamente esta asserção como falsa. E, fato mais significativo, ele refuta a periodização de sua atividade proposta por Ludz, que distinguia um quarto e um quinto períodos ao estabelecer uma clivagem, uma oposição, entre o período 1930-1955 e o seguinte. Não há razão alguma, explica a Frank Benseler, para fazer uma distinção de princípio entre os escritos destes dois períodos, que compartilham do mesmo espírito. A única diferença estaria, segundo Lukács, em que após o XX Congresso do PCUS (1956) ele podia exprimir abertamente as idéias que antes estaria obrigado a transcrever numa linguagem críptica: "Zwischen der vierten und der fünften Periode ist also kein prinzipieller Unterschied, bloss der, dass nach dem 20 Kongress man Dinge offen aussprechen konnte, über die man früher nur versteckten Anspielungen, in geschickten Gruppierungen reden konnte". ("Entre o quarto e o quinto período, não há portanto diferença de princípio alguma, senão a de que após o XX Congresso podia-se exprimir abertamente as coisas das quais outrora não se podia falar senão fazendo alusões veladas e arranjando-as habilmente")(13). Contra os seus numerosos críticos e adversários, considerava Lukács que os seus escritos pertencentes ao período incriminado tinham um caráter fundamentalmente anti-estaliniano. Nas Questões de Método, obra redigida em 1957, ano bem movimentado para Lukács (ele acabava de passar seis meses deportado), Sartre afirmava como uma evidência que o filósofo tinha por trás de si vinte anos de prática de um marxismo enrijecido, de tipo estaliniano, e acrescentava ironicamente que por isso ele estaria bem à vontade para falar da pseudo-filosofia estaliniana como de um idealismo voluntarista(14). Um ano depois, Adorno reiterava as mesmas críticas em Uma Reconciliação Extorquida (Erpresste Versöhnung), acusando Lukács de ter rebaixado sua potência de pensamento, manifestamente inalterada, ao nível lamentável do [pensamento] soviético, que degradou a filosofia ... a um simples instrumento de dominação(15). Mas houve também intervenções, mais raras é verdade, em seu favor. Em uma carta a Benseler, de 7 de dezembro de 1963, Lukács evocava neste sentido o estudo de Leo Kofler, publicado em Colônia em 1952, em plena guerra fria, Der Fall Lukács: György Lukács und der Stalinismus (A Queda de Lukács: György Lukács e o Estalinismo). Era a primeira tentativa de o apresentar em uma ligação antinômica com o poder estaliniano. O autor do estudo tinha discernido, segundo ele, o essencial do problema e se achava mais próximo da realidade.
Na mesma carta, Lukács listou artigos e estudos, publicados durante seu período moscovita, que iam contra a linha oficial. Lembrava, por exemplo, seu estudo intitulado Tribuno do Povo ou Burocrata? (Volkstribun oder Bürokrat?), publicado em 1940, que Leo Kofler tinha também apontado como sendo em substância "um ataque frontal, bem entendido, em linguagem críptica, contra a burocracia estaliniana no domínio da cultura"(16).
Contra a intenção daqueles que o acusavam de ter esposado todas as sinuosidades da linha estaliniana a fórmula aparece em um exegeta recente, Alain Brossat(17), mas este gênero de crítica tem sido muito difundido há algum tempo Lukács invocava os textos escritos em momentos particularmente sensíveis, como por exemplo Aktualität und Flucht, de 1941, à época da fraternização germano-soviética, ou Über Preussentum (Sobre o Prussianismo), datado de 1943, que não foi acolhido em nenhuma publicação soviética, e não por acaso. No primeiro destes textos, ele denunciava os críticos literários nazistas que exigiam uma eufórica literatura de guerra; o seu combate antifascista, como observou a Benseler, teve prosseguimento mesmo durante o pacto. O segundo texto, onde em uma notável análise fez a distinção entre o espírito velho-prussiano e a barbárie nazista, contrapunha toda a evidência aos slogans da propaganda soviética que a atrocidade da guerra tornava ainda mais simplificadores. Redigidos às vezes em uma linguagem críptica, estes textos implicavam muito mais do que uma diferença em relação à linha oficial.
Admirador do realismo, crítico da vanguarda e defensor do realismo socialista, Lukács não podia escapar à acusação de conformismo estético. Como se não bastasse, freqüentemente censuravam-lhe por ter feito suas as orientações fundamentais da crítica soviética da época, ainda que tentasse conferir uma qualidade às suas análises e à sua argumentação, que se situavam em um nível sensivelmente diferente daquele dos escribas estalinianos.
Lukács refutava esta acusação como baseada em um lastimável mal-entendido. Uma distância incomensurável separava aos seus olhos a politização forçada da literatura, praticada pela crítica soviética, da sua própria estética do realismo. Na carta, acima mencionada, a Frank Benseler, de 27 de abril de 1961, ele faz referência a Jürgen Rühle como exemplo de discernimento no assunto. No seu livro Literatur und Revolution, publicado no início dos anos 60, afirmou que as semelhanças entre a posição de Lukács e aquela dos adeptos do realismo socialista eram periféricas e que, em realidade, sua estética situava-se como antípoda da linha oficial. Para sustentar esta tese, o filósofo não carecia de argumentos; ele lembrava que o seu segundo livro traduzido em russo, Sobre a História do Realismo , e publicado em Moscou em 1939, havia levantado uma verdadeira tempestade na imprensa russa: não menos de quarenta artigos hostis. Acrescentava que, dez anos mais tarde, os ideólogos de Rakosi vieram utilizar contra ele, quando do primeiro caso Lukács, montado um pouco antes, concomitantemente ao processo Rajk, o mesmo tipo de argumento que o dos críticos soviéticos nos anos 1939-1940.
Julgadas de uma perspectiva histórica, as teses expostas pelo filósofo nos seus escritos dos anos 30, sobre a vitória do realismo, apareciam como uma defesa sub-reptícia da autonomia da literatura e da imaginação criadora contra toda injunção ideológica, aí incluída aquela discursiva dos próprios escritores. O autor do ensaio Tribuno do Povo ou Burocrata? professava a idéia de que cada obra literária se desenvolve a partir de um núcleo, de um foco irradiante em caráter necessariamente utópico, com os pré-julgamentos ideológicos e as ligações empíricas do escritor sofrendo, no ato de criação, uma transformação radical; era uma provocação endereçada aos burocratas da literatura, que se encarniçavam em fazer da arte um instrumento de propaganda e em lhe prescrever regras(18).
Autores como Leszek Kolakowski ou, mais recentemente, David Pike e Arpad Kadarkay, têm dirigido sua guerra fria contra o estalinismo de Lukács sem levar em consideração o que distingue sua argumentação da linha oficial soviética, limitando-se a procurar unicamente as semelhanças. Alguns deles nem parecem ter lido os escritos sobre o realismo dos anos trinta à luz das análises propostas pelo filósofo na sua grande Estética (1963), em que pese a continuidade entre os dois períodos (que nulifica toda especulação conjuntural); uma tal leitura necessariamente dificultaria em muito a redução da estética lukácsiana aos esquemas de tipo estaliniano.
Harold Rosenberg recorda-se, em um artigo fortemente crítico endereçado a Lukács (publicado quando da aparição em inglês do livro La Signification Présente du Réalisme Critique), da forte impressão que lhe produziu, nos anos 30, a leitura de certos ensaios do filósofo, em particular La Physionomie Intellectuelle dans la Figuration Artistique, publicado em 1936 pela revista Internationale Literatur. Na época, Harold Rosenberg foi sensibilizado pelas considerações sobre o difícil problema das ligações do intelecto e da intuição na criação das personagens literárias. Lukács sublinhava no seu ensaio a importância da fisionomia intelectual, graças à qual o escritor pode concretizar e ampliar a vivência e os movimentos puramente intuitivos das personagens. Ele se opunha vigorosamente a uma literatura que se limitasse à superfície do real e à vivência naturalista. A exigência da intelectualização e a defesa da idéia segundo a qual as situações literárias são, por sua natureza, excepcionais, eram uma condenação implícita às ilustrações ideológicas e à insipidez naturalista que atingiam a literatura soviética. Seu ensaio visava explicitamente autores como Nicolai Pogodin, F. Panferov, e mesmo Alexandre Fadeiev e Ilia Ehrenbourg, que não conseguiam fundir a riqueza intuitiva das personagens e a reflexão em um conjunto estético. Rosenberg tinha, portanto, boas razões para apreciar este ensaio: ... Eu admiro há muito a teoria da 'fisionomia intelectual' assim como seu autor, admiração confirmada pela resistência de Lukács ao 'realismo socialista' do período estaliniano, e por seu aprisionamento à idade dos setenta anos pelos russos, quando do levante húngaro(19).
Os testemunhos deste gênero, atestando a atitude estruturalmente anti-estalinista de Lukács nos anos 30, são raros. Para Leszek Kolakowski, David Pike e Arpad Kadarkay, está estabelecido: não somente ele teria sustentado durante seu exílio na União Soviética a linha política de Stalin, como teria integrado nos seus escritos o espírito funesto do ditador. Nenhum destes autores percebe o caráter anticonformista dos ensaios sobre o realismo, e todos rejeitam a idéia de que existiria uma continuidade entre o espírito de seus escritos moscovitas e a condenação do estalinismo que se exprime abertamente a partir de 1956. E que, portanto, a elucidação pelo filósofo da natureza do fenômeno estaliniano permite ver de uma outra forma sua atividade durante os anos passados em Moscou.
Num de seus últimos textos consagrados ao estalinismo, Lukács escreve: Ich glaube ruhig sagen zu können, dass ich objektiv ein Gegner der Stalinschen Methoden war, schon als ich selber noch glaubte, Stalin anzuhängen. (Eu creio poder dizer com toda tranqüilidade que fui um adversário dos métodos estalinianos, mesmo quando eu próprio acreditava estar com Stalin)(20). Ele seria, portanto, um adversário de Stalin à mesma época em que ainda acreditava ser seu partidário. Esta afirmação, que pode parecer paradoxal, merece ser confrontada com a realidade.
Lukács jamais fez mistério do fato de que, após a morte de Lênin, ele se alinhou com Stalin na controvérsia sobre a possibilidade de construir o socialismo em um só país, id est na União Soviética. Contrariamente à tese sustentada hoje por diferentes historiadores, segundo os quais a Revolução de Outubro teria sido um golpe de estado organizado por uma minoria, Lukács nutria a convicção de que eram as massas populares que haviam conduzido os bolcheviques ao poder em 1917. Sua vitória se explicaria por razões históricas; eles queriam pôr fim à guerra e dar a terra aos camponeses, duas reivindicações das massas que não podiam mais esperar. Sob a pressão da realidade, Lênin então diferia de Marx, que previa a possibilidade de edificar o socialismo somente a partir de uma economia capitalista desenvolvida, para encetar a construção na isolada União Soviética. Foi fundamentando-se nesta concepção de Lênin que Lukács se associou, com ou sem razão, aos argumentos de Stalin nos anos 20 contra a opinião de Trotsky e seus partidários. No seu texto Socialismo e democracia (escrito no momento em que a Europa estava agitada por eventos graves, verão-outono de 1968), Lukács, aprovando inteiramente o projeto de construção do socialismo em um só país, sublinha os severos limites históricos à ação de Stalin. Analisando o período que, após a morte de Lênin, havia consagrado a vitória de um personagem tão despótico e astuto sobre os seus adversários, ele considera nada menos que todos, burocratas e futuras vítimas, cometeram o mesmo erro. Obnubilados por questões econômicas (a acumulação primitiva socialista com o fim de assegurar uma base econômica à futura sociedade), negligenciaram os grandes problemas políticos e, em primeiro lugar, a democratização do regime, condição sine qua non para interromper o processo de burocratização(21).
Se Lukács sempre defendeu Lênin com tanta paixão contra aqueles que fazem remontar a ele as origens dos métodos empregados por Stalin, é por que ele distingue uma oposição irredutível entre os princípios que haviam inspirado a ação do primeiro e a prática baseada sobre os rudimentos de princípios do segundo. Hoje, quando a incriminação de Lênin é moeda corrente, o empreendimento de Lukács, que julgava urgente estabelecer esta distinção, pode parecer anacrônico. Parece-nos, ao contrário, que suas análises e seus argumentos merecem que sobre eles nos detenhamos.
Um episódio de sua biografia intelectual pode nos ajudar a melhor compreender as ligações, muito particulares, do filósofo com Stalin e o espírito de sua política, consideradas à luz de sua grande simpatia pela ação de Lênin, colocada no campo da filosofia.
No início dos anos 30, Stalin havia organizado em Moscou um debate filosófico que terminou pela desavença com a escola de Deborine e a interpretação plekhanoviana do marxismo. Utilizando a ortodoxia leninista como porta-bandeira, o anfitrião havia estabelecido, através de uma deliberação aparentemente livre, seu domínio sobre a filosofia (ele intervinha pessoalmente na discussão). Perfeitamente consciente do caráter tipicamente estaliniano deste debate, Lukács não possuía um julgamento favorável sobre seus resultados; freqüentemente afirmou que as conclusões tiradas nessa ocasião tiveram um efeito positivo sobre a sua atividade.
Esta atitude não tem deixado de lhe atrair censuras. Mesmo aqueles que se recusam a lhe atribuir a menor responsabilidade na legitimação teórica do estalinismo, consideram que ele, na ocasião, deu a sua caução à instauração de uma ideologia de Estado. Georges Labica escreveu a propósito da canonização do marxismo-leninismo na União Soviética: o singular conluio filosófico entre Stalin e Lukács, entre o homem de Estado e o filósofo, é revelador de sua maior participação na instauração do marxismo-leninismo. A categoria da universalidade subsume aquelas do absoluto e da totalidade(22).
Seria, de fato, desencaminhadora, a posição de Lukács? A sua satisfação diante de certas orientações imprimidas pelo ditador à filosofia soviética no início dos anos 30 implicou a aprovação do estalinismo enquanto doutrina e prática política? Com a distância histórica, pode-se seguramente censurar-lhe o fato de ter subestimado as conseqüências desta vitória manipulada sobre as atividades do espírito. Mas, mesmo com a distância histórica, não se pode deixar de observar que as conclusões do debate seguiam no sentido de seu próprio desenvolvimento. A rejeição da ortodoxia plekhanoviana, o fato de conceber o marxismo como uma filosofia radicalmente nova, com vocação universal, a valoração da contribuição de Lênin, pareciam opções comuns ao homem de Estado e ao filósofo, o que autorizava este último a se declarar satisfeito; a realidade iria demonstrar que eles não haviam optado pela mesma coisa.
Lukács considerava que Plekhanov superestimou a influência de Feuerbach no modo como o jovem Marx forjou a sua própria filosofia(23). Defender a interpretação de Lênin contra aquela de Plekhanov era, para Stalin, uma forma de manifestar sua ortodoxia; para Lukács, isto era uma maneira de recuperar a herança hegeliana, de sublinhar a importância do grande filósofo (oculta por um excesso de feurbachismo) na gênese do marxismo (o aporte antimecanicista desta posição não escapa hoje a ninguém).
A leitura dos escritos filosóficos do jovem Marx (mais tarde soterrada pelos estalinianos) provoca, nesta época (1930-1931), uma verdadeira reviravolta na reflexão de Lukács. Sua nova interpretação do pensamento de Marx lhe impôs, também, um exame crítico da concepção de Mehring, simétrica àquela de Plekhanov. Na sua autobiografia, Gelebtes Denken, ele revela a inspiração comum de suas duas démarches críticas, todas as duas beneficiárias do debate filosófico do início dos anos 30.
Defendendo contra Mehring e Plekhanov a idéia de que o marxismo seria muito mais do que apenas uma mera interpretação sociológica da história, à qual seria necessário ligar uma psicologia e uma teoria autônoma das atividades do espírito (que o primeiro procurava, por seus escritos de crítica literária, em Kant, e o segundo, nos positivistas), Lukács avançava um conceito de universalidade filosófica do marxismo, que vai se evidenciar por seu caráter anti-reducionista, um inimigo terrível para a vulgata estaliniana. As potencialidades deste conceito eminentemente filosófico do pensamento de Marx foram se realizando plenamente nas grandes obras escritas por Lukács no final de sua vida, a Estética e A Ontologia do Ser Social, mas as raízes desta abordagem aparecem claramente nele desde o início dos anos 30(24).
O paradoxo da situação merece ser ressaltado. Lukács liga-se com convicção às conclusões da discussão filosófica patrocinada por Stalin, pois a idéia de que o pensamento de Marx teria sua coerência e sua autonomia em relação às filosofias anteriores lhe parece perfeitamente exata. O marxismo não seria para ele uma miscelânea de determinismo econômico e interpretação sociológica das atividades do espírito. Mas é justamente sua concepção sobre a autonomia filosófica do marxismo que o vai conduzir a denunciar o marxismo institucionalizado na URSS, e (ironia da situação!) a recaída agravada nos mesmos erros mecanicistas e deterministas de Plekhanov.
Existe uma continuidade evidente entre, por exemplo, o estudo sobre Franz Mehring, redigido em 1933 (primeiro grande texto teórico publicado após seu retorno à URSS) e os pontos-de-vista expressos na Estética e na Ontologia do Ser Social. Dado o caráter eminentemente anti-estaliniano destas derradeiras obras, esta continuidade é a melhor prova do fato de que, segundo sua própria expressão, Lukács era um adversário de Stalin ainda quando acreditava ser seu partidário.
Se a idéia de que o pensamento de Marx se articula em um conjunto sistemático de categorias que cobre as diferentes esferas do ser e que tem vocação de universalidade aparecia já nos textos datados de 1933, como aquele citado sobre Mehring (ele representa uma reviravolta total da filosofia eine vollständig Umwälzung der Philosophie, escrevia Lukács)(25), como também em um texto anterior, de 1931, consagrado ao debate de Marx e Engels com Lassale a propósito da tragédia Franz von Sickingen, o desenvolvimento que vai conhecer mais tarde não fará mais do que aumentar a distância que separava desde o início a sua interpretação do materialismo dialético daquela da escolástica estaliniana.
Após 1956, Lukács retorna muito freqüentemente à idéia de que a sua atividade durante os anos passados em Moscou implicava uma resistência objetiva à ideologia oficial, tese que é vivamente contestada, temos visto, por numerosos de seus críticos, de David Pike e Giuseppe Bedeschi a Leszek Kolakowski e Arpad Kadarkay. O filósofo teria idealizado seu passado, não retendo senão aquilo que poderia fortalecer sua imagem de resistente, e desconsiderando os atos de adesão, para não dizer de cumplicidade?
Para facilitar um debate que não pode deixar de reavivar as paixões ideológicas, propusemo-nos a uma aproximação que tome em consideração a estrutura do pensamento de Lukács, a morfologia e a sintaxe de suas idéias, e que interrogue os aspectos de continuidade e de descontinuidade de sua obra.
Nos Prolegômenos à Ontologia do Ser Social, seu último texto filosófico, redigido no outono de 1970, Lukács se detém sobre o famoso capítulo IV da História do PCUS, onde Stalin expõe os traços do materialismo dialético e do materialismo histórico, e realça a incompatibilidade deste catecismo do marxismo-leninismo oficial com o espírito do pensamento marxiano. O historicismo fundamental de Marx, ancorado ontologicamente na idéia da historicidade do ser e de suas categorias, se acomodaria mal com a codificação em um sistema fechado de categorias, que se tratava de aplicar, sem distinção, às diferentes regiões do ser. O próprio princípio do dogmatismo estaliniano fica assim denunciado e de forma mais geral sua forma mentis. A tese segundo a qual o materialismo histórico não seria mais do que uma extensão e uma aplicação dos princípios universais do materialismo dialético não tem ligação alguma com Marx, pois a idéia mesma de uma aplicação de princípios invariantes contradizia a historicidade substancial de seu pensamento. Além disso, o próprio Marx jamais empregou a expressão materialismo dialético, nota Lukács, que vê nisso uma recusa à se limitar a um sistema fechado de categorias, à maneira da antiga filosofia(26).
Ao estigmatizar o dogmatismo estaliniano, Lukács abria a via ao seu próprio desenvolvimento filosófico: a interpretação do pensamento de Marx como uma ontologia. A rejeição ao reducionismo estaliniano estava fundada sobre a idéia de que um verdadeiro pensamento ontológico não poderia fazer abstração da diferenciação e da heterogeneidade das regiões do ser, cada uma tendo as suas categorias específicas, e de que é, portanto, impossível constranger esta riqueza categorial em um sistema de princípios imutáveis.
No próprio corpo da Ontologia do Ser Social, Lukács ressalta uma outra questão importante a propósito dos erros teóricos de Stalin. Trata-se da naturalização da economia, mais precisamente da tendência a ver a atividade econômica como um domínio submetido a um determinismo rígido, governado por leis quase naturais. (Na prática do estalinismo, as atividades da vida espiritual, onde teoricamente a liberdade de escolha e a flexibilidade seriam incomparavelmente maiores, serão tratadas como simples auxiliares do poder.) O erro de tratar a economia como uma segunda natureza, mais exatamente como um campo de forças puramente materiais, onde a consciência não tem mais do que um papel de agente executivo, era igualmente partilhada pelos marxistas da Segunda Internacional e por Plekhanov. Tais aproximações podem surpreender e por isso Lukács chama a atenção mais de uma vez sobre os pontos comuns existentes entre o dogmatismo de Stalin e a concepção que faziam do marxismo personalidades tão diferentes entre si como Plekhanov e certos representantes da social-democracia anterior à Primeira Guerra Mundial(27).
Como todas as outras atividades humanas, a atividade econômica é guiada pelo finalismo da consciência; ela tem então um caráter ideal e não puramente físico. Realçando esta idéia, Lukács põe fortemente em relevo o caráter teleológico e a dimensão por excelência humana e não natural, dos atos econômicos. As críticas a Bukharin, formuladas ainda num artigo de 1925, que no seu manual de Materialismo Histórico identificava abusivamente economia e técnica, são retomadas e ampliadas na discussão das teses estalinianas. Lukács submete a uma análise cerrada a tendência de Stalin a tratar a economia como um puro objeto, onde não há lugar senão para o cálculo e a manipulação, e a ocultar os valores que subentendem a razão econômica (irredutível à razão tecnológica) e sobretudo a sua interação com outros tipos de valores, inclusive éticos.
O filósofo vai se preocupar em demonstrar nos seus últimos escritos que a prática política do estalinismo não teria sido possível sem uma modificação completa do pensamento de Marx em um determinismo plano e enrijecido. A visão monolítica de Stalin era pouco compatível com uma concepção flexível e pluralista dos complexos sociais, que fizesse justiça à sua heterogeneidade e à desigualdade do seu desenvolvimento; ele deveria necessariamente empobrecer o pensamento de Marx e esvaziar a sua substância.
Um dos pontos fortes de sua crítica ao estalinismo é precisamente a análise das teses expostas por Stalin no seu último escrito teórico, Os Problemas Econômicos do Socialismo na URSS, publicado em 1952. Em Socialismo e Democracia, Lukács mostra que, negando à lei do valor uma importância universal, Stalin limitava a sua ação à esfera da produção de mercadorias, o que distorceria o pensamento de Marx, que considerava que a lei do valor permanecia decisiva em toda a sociedade, inclusive a sociedade socialista; da mesma forma, contestando a legitimidade do conceito de sobretrabalho no quadro de uma economia fundada sobre a socialização dos meios de produção, Stalin distorcia grosseiramente o ensinamento de Marx em um alvo tático para validar uma concepção puramente manipulatória da superioridade do socialismo. A eliminação, por um golpe de força teórico, da noção de sobretrabalho conduzia necessariamente ao socialismo de caserna, pois a questão central da democracia no socialismo está diretamente ligada ao controle dos produtores associados sobre o sobretrabalho.
Insistindo sobre a idéia de que o estalinismo é, além de uma prática política, um conjunto de concepções teóricas e uma certa prática ideológica, Lukács afirmava que aquela bastaria para lhe assegurar um lugar de honra na história da desnaturação do marxismo. E chega a exigir que se conceda aos erros teóricos de Stalin a mesma atenção crítica concedida no passado àqueles de Proudhon ou de Lassale(28).
Nós vimos que, explorando as raízes teóricas do estalinismo, Lukács encontrou semelhanças com certas concepções de Plekhanov ou mesmo com um certo economicismo da Segunda Internacional. Ora, também demonstramos que ele defendia já no início dos anos 30 (e por conseguinte, durante todo o seu período estaliniano) uma outra interpretação de Marx diferente daquela de Plekhanov e Mehring. Ele ainda tinha mais críticas a lhe fazer: uma representação reducionista das relações entre economia e os outros complexos sociais, o feuerbachismo, a subestimação da herança hegeliana, uma certa insensibilidade no que se refere às relações indiretas, mais mediadas, entre a ideologia e sua base sócio-econômica, o esquecimento da tese marxiana sobre o desenvolvimento desigual dos diferentes complexos sociais. O período estaliniano de Lukács contém, portanto, in nuce, as idéias diretrizes de sua grande obra de síntese, a Ontologia do Ser Social. Nesta, até o fim de sua vida, Lukács perseguiu o estalinismo nas suas mais derradeiras trincheiras.
Pode-se fazer as mesmas observações, mutatis mutandis, a propósito de seus escritos de estética e de crítica literária. Reprova, por exemplo, a Mehring e sobretudo a Plekhanov, uma aproximação muito retilínea das relações entre a base econômica e a ideologia, e por conseqüência entre as concepções filosóficas dos escritores e a estrutura de suas obras. Testemunhando uma grande estima pela corajosa atividade do marxista alemão Mehring, Lukács entendia, que na análise das obras de Lessing, Hebbel ou Nietzsche, ele estabeleceu correlações muito diretas. As mediações mais sutis de expressão ideológica lhe escapavam; a dialética interna das obras não era suficientemente posta em relevo, a sua especificidade estética ou filosófica é negligenciada em favor da expressão ideológica direta, a complexidade das relações entre posição sócio-histórica e sublimação literária ou filosófica, por vezes sacrificada (no caso de Hebbel, por exemplo).
Na sua compreensão da especificidade dos fenômenos literários e suas respectivas mediações que separariam todo produto estético da realidade sócio-histórica, que lhe serve de ponto de partida, Lukács situava-se como antípoda da politização forçada das artes, tão cara a Stalin. Quando de seu exílio moscovita, não cessou, como vimos, de condenar a subversão destas teses em curso nas publicações soviéticas. Um exemplo, tomado do domínio filosófico, mas que vale também para a crítica literária. Insistindo no capítulo final de seu livro O Jovem Hegel, escrito em Moscou entre 1937 e 1938, sobre a distinção hegeliana entre espírito objetivo e espírito absoluto, ele lança inopinadamente um ataque contra a sociologia vulgar. Formas de expressão do espírito absoluto, segundo Hegel, a filosofia e a arte exigem, afirmava ele, uma outra aproximação, em relação ao seu condicionamento sócio-histórico, que a política ou o direito. Enquanto a estrutura das instituições políticas ou jurídicas, forjadas para responder a necessidades precisas da sociedade, aparecia claramente relacionadas com a realidade sócio-histórica, tal não é o caso das obras de arte ou dos grandes sistemas de pensamento, cujo conteúdo de fato revela a face infinitamente mais sutil sobre o seu ponto de ancoragem, pois a perspectiva dos artistas e dos filósofos se eleva necessariamente para além do empirismo e do pragmatismo; estes adotam um ponto de vista que se quer universal para julgar a sua época e fazem ressoar uma vox humana , que fala em nome da humanidade. Apoiando-se sobre a distinção hegeliana entre espírito objetivo e espírito absoluto, Lukács denunciava a insuficiência de um ponto de vista estritamente genético (aquele dos interesses de uma classe ou de um grupo social determinado) na explicação das obras literárias ou filosóficas e de sua estrutura. Contra o que ele chamava de a sociologia vulgar (e que se pode tranqüilamente identificar à crítica soviética oficial), Lukács punha em relevo a especificidade inalienável das grandes criações do espírito, a capacidade dos artistas e dos filósofos transcenderem os pré-julgamentos e as opiniões pessoais para se elevarem, pela perspectiva de sua consciência criadora, à universalidade(29).
Num de seus últimos textos, redigido em março de 1970, Lukács lembra que seu ponto de vista sobre a sociabilidade da literatura se opunha frontalmente à concepção há muito dominante no movimento comunista, e muito particularmente, à época estaliniana: "Freilich wenn ich hier vom Geselschaftlichen als Prinzip spreche, so bedeutet dies keineswegs, wie bei der Mehrzahl meiner sozialistischen Zeitgenossen, ein unmittelbares Politisieren, erst recht nicht den Zwang zu einer Stellungnahme zu politischen Tagesereignissen, sondern im Gegenteil: den Anfang einer Differenzierung des dichterischen Gehalts, je nachdem, ob er die Gestaltung des bloss partikulären der über die Partikularität hinausgehenden Menschen (Typus) ins Auge fasst". ("Seguramente, quando eu falo aqui do social enquanto princípio, isto não significa de forma alguma, como na grande maioria de meus contemporâneos socialistas, uma politização direta, apoio de toda a compulsão de tomar posição face aos eventos políticos do momento, mas, ao contrário, começando por uma diferenciação do conteúdo poético segundo o que se tem em mira representar, simplesmente o homem particular ou o homem que atravessa a particularidade o tipo")(30).
Desde o início dos anos 30, quando se encontrava no exílio em Berlim, Lukács tomou posição nas páginas da revista Die Linkskurve (A Virada à esquerda) contra a literatura proletária da época, célebre nos meios oficiais do movimento comunista alemão. Visando os romances de Willi Bredel, de Ernst Ottwalt, de Marchwitza (e, em filigrana, as peças didáticas como A Decisão de Bertold Brecht), Lukács deplorava nestes escritores a falta de uma consciência democrática mais ampla e de uma sensibilidade de conjunto dos problemas da sociedade; o sectarismo e a estreiteza de sua perspectiva tiveram por resultado, escrevia, um naturalismo proletário, uma literatura onde a reportagem (e por vezes o kitsch) substituía a verdadeira figuração. O sentido antidogmático destes artigos não passou desapercebido aos ideólogos do marxismo oficial, que condenaram firmemente suas críticas aos representantes da nova literatura proletária (cf. por exemplo os artigos de Hans Koch, porta-voz de Walter Ulbricht no domínio da cultura, no volume György Lukács und der Revisionismus.)(31) No pólo oposto, David Pike, menos perspicaz que os ideólogos de Walter Ulbricht, considera que, nos seus artigos publicados em Die Linkskurve, Lukács enceta uma Selbststalinisierung (auto-estalinização) da literatura(32).
Críticas deste gênero não cessaram de ser endereçadas ao filósofo. Recentemente, na biografia que lhe consagra, Arpad Kadarkay afirma que Lukács sacrificou o melhor de si mesmo no altar do totalitarismo estaliniano. Segundo o mesmo, as concepções estéticas de Lukács teriam sofrido uma estranha metamorfose durante o seu exílio moscovita. Como prova, aponta a perda do senso metafísico da arte, que o jovem Lukács possuía, e o impulso do historicismo que se seguiu à sua reconciliação com a má realidade do estalinismo. Esta prova, Arpad Kadarkay a encontra comparando duas obras: Entwicklungsgeschichte des Modern Dramas, publicado em 1911, e Le Roman Historique, redigido em 1936-1937 e publicado em vários fascículos pela revista Literaturnyi Kritik (1937). Enquanto no primeiro Lukács colocava em primeiro plano, após Coleridge, o caráter não histórico dos personagens e a vocação metafísica das peças shakespearianas, no segundo Lukács teria cedido a uma visão puramente historicista, procurando basear a força da obra do grande elisabethano nos conflitos de classe da época. A verdade é menos simples. É, mesmo, totalmente outra. Ele tem toda razão, Lukács ressalta, na segunda obra citada por Kadarkay, o historicismo dos dramas shakespearianos. Mas, em seguida, ele se deteve mais de uma vez sobre a conexão entre a obra de Shakespeare e o espírito do Renascimento, o pensamento de Maquiavel, de Etienne de La Boétie, o jovem Montaigne, etc. Ainda mais: analisando, em Le Roman Historique, as obras de maturidade de Shakespeare, Lukács não tinha senão um objetivo: mostrar como o grande dramaturgo chega a se libertar de toda fidelidade à história empírica e a estilizar os conflitos reais, históricos, no sentido dos conflitos morais, para se elevar a uma universalidade antropológica. (Lukács apoia sua demonstração na idéia de Otto Ludwig sobre o caráter antropológico por excelência das obras dramáticas em relação à prosa épica.) Não seria este historicismo que ressalta a dialética das paixões humanas em Shakespeare, atrai a atenção sobre os conflitos éticos de suas peças e mostra como a matéria histórica, refinada de toda contingência, eleva-se à universalidade? Arpad Kadarkay passa ao largo daquilo que forma o essencial da estética lukácsiana: o entrelaçamento da análise histórica e da perspectiva estética. A originalidade do autor do qual ele se ocupa, está em demonstrar como o hic et nunc aparece transfigurado, sublimado nos conflitos, velando seu ponto de partida real para se elevar a um nível que concerne a todo o gênero humano(33).
Todavia, Arpad Kadarkay, que quer demonstrar a todo custo que Lukács praticou um sacrifizio dell'intelletto durante o seu exílio na União Soviética, produz um outro argumento surpreendente. Afirma que o autor de História e Consciência de Classe ocultou completamente durante o período incriminado a importância dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx, que lera então no Instituto Marx-Engels de Moscou no início dos anos 30. Ele escreve: "Even more puzzling: if Marx's Manuscripts made a lasting impact on Lukács, why his virtual silence on them? The reason was that the Manuscripts in the thirties, when Stalin condemned scholars to the helotism of hagiography, had all the appearance of a shade." ("Fato mais desconcertante ainda: se os Manuscritos de Marx tiveram sobre Lukács um impacto duradouro, por que o seu virtual silêncio a seu respeito? A razão é que, nos anos 30, quando Stalin condenou os pesquisadores à situação de servos da hagiografia, os Manuscritos tinham toda a aparência de uma incógnita".) Pouco antes, ele afirma de uma maneira mais geral que Marx "the 'humanist and philosopher', in full rebelion against alienation, is nowhere to be found as an influence on Lukács, though he had earlier discovered him". (Marx, o 'humanista e filósofo', em total oposição à alienação, não deixou traço algum de sua influência nos escritos de Lukács, apesar deste tê-lo descoberto antes.") Grande admirador de História e Consciência de Classe, que ele compara a'O Príncipe de Maquiavel, o prolixo biógrafo de Lukács pretende mesmo que Lukács jamais situou especificamente a questão de saber se os Manuscritos de Marx o induziram a modificar, particularmente, suas concepções concernentes a História e Consciência de Classe e, se afirmativo, de que maneira.
("Lukács never specifically adressed the question of whether, and if so how, Marx's Manuscripts led him, in particular, to change his views on History and Class Consciousness."(34) Estas afirmações são falsas. Longe de ter silenciado sobre os Manuscritos de Marx e, mais genericamente, de ter ocultado o Marx humanista e filósofo, Lukács utilizou abundantemente os escritos do jovem Marx, como vimos, tanto nos anos 30 quanto mais tarde. No estudo anteriormente mencionado sobre Mehring, redigido em Moscou em 1933, Lukács censurava ao marxista alemão o seu desinteresse pelos escritos de juventude de Marx e citava explicitamente os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e A Ideologia Alemã. Mehring, que tinha editado os escritos de juventude de Marx, deixou de lado (die) grundlegenden philosophischen Manuskripte (os fundamentais Manuscritos filosóficos) e não deu, segundo Lukács, importância alguma à Sagrada Família(35). Há, também, numerosas citações tiradas dos escritos de juventude de Marx na obra sobre as origens ideológicas do fascismo, ou no ensaio Marx und das Problem des ideologischen Verfalls (Marx e o Problema da Decadência Ideológica), publicado em 1938 na Internationale Literatur, onde figura igualmente uma referência direta à questão da alienação (ocultada, segundo Kadarkay, por conformismo)(36). Seria ainda necessário recordar, se é que alguém o ignora, que O Jovem Hegel, concluído em 1938 em Moscou, está repleto de referências aos Manuscritos Econômico-Filosóficos, e que a própria concepção do livro é devida à transformação operada no pensamento do autor pela leitura destes Manuscritos?
Contudo, Arpad Kadarkay quer nos fazer crer que Lukács não explicou jamais as razões de sua transformação após a leitura dos Manuscritos. É suficiente ler o prefácio à edição de 1967 de História e Consciência de Classe para se convencer do contrário. Nele Lukács expõe as razões da mudança de perspectiva, sublinhando a importância da distinção marxiana entre objetivação e alienação. É justamente a assimilação desta distinção que preparou a análise do problema da alienação em O Jovem Hegel. Mas Arpad Kadarkay contenta-se em repetir, após tantas outras e sem exame, a idéia de que o filósofo teria renegado História e Consciência de Classe por conformismo. Ele ignora, sem cerimônia, o processo de amadurecimento filosófico de Lukács. Ademais, causa uma impressão pouco favorável e coloca a dúvida de se um autor que consagra três linhas à Ontologia do Ser Social, obra maior, terminus ad quem da evolução do filósofo, poderia demonstrar uma melhor compreensão do autor. Ele afirma peremptoriamente que, na Ontologia do Ser Social, "the concept of individual autonomy is simply non existent" (o conceito de autonomia individual simplesmente não existe")(37). Bastaria, então, que ele folheasse o livro para constatar que o desdobramento da individualidade é a idéia central e a finalidade da obra. Isto mostra que se pode escrever uma biografia de 500 páginas sobre um autor sem ler atentamente sua obra maior, ou mesmo sem a ler por inteiro.
Uma grande obra teórica de Lukács, que atrai a quase unanimidade contra ele, é A Destruição da Razão. Adversários e mesmo alguns admiradores do filósofo concordam em dizer que é um livro tipicamente estaliniano, e em acusar o caráter reducionista de suas análises. É sobretudo o capítulo consagrado a Nietzsche, particularmente pugnaz, que provoca a indignação. Ainda recentemente um filósofo húngaro denunciou este capítulo, na ocasião de um colóquio, como o exemplo típico do procedimento estaliniano em grande pompa(38).
Parece-nos útil, antes de pronunciar um julgamento mais severo, reconstituir a história deste livro. Pode-se hoje seguir a sua gênese laboriosa graças ao Arquivo-Lukács de Budapeste, que há pouco publicou as duas versões anteriores à redação definitiva, acabada em 1952 e publicada em 1954. A primeira destas versões data de agosto de 1933 e traz o título Wie ist die Faschistische Philosophie in Deutschland entstanden?; a segunda, redigida em Tachkent durante o inverno de 1941-1942, é intitulada Wie ist Deutschland zum Zentrum der reaktionären Ideologie geworden? (Como a Alemanha se tornou o Centro da Filosofia Reacionária?).
Lukács abandonou Berlim pouco após a vitória dos nazistas, em abril de 1933. A primeira versão do livro foi então redigida alguns meses após a sua chegada em Moscou. A idéia fundamental de A Destruição da Razão já está presente. A questão (posta por Lukács com uma notável precocidade, pois nesta época nenhum pensador tinha ainda se perguntado de maneira tão perspicaz sobre o passado alemão) era que, longe de ter surgido do nada, a ideologia do nacional-socialismo tinha uma longa pré-história; ela seria um condensamento, uma radicalização e uma vulgarização de certas teses do irracionalismo, cujo peso filosófico é particularmente forte no pensamento alemão. O trabalho genealógico empreendido por Lukács, uma verdadeira arqueologia das idéias, não ficou sem resultado. Ele demonstra de maneira convincente como certos tipos da Lebensphilosophie (a crítica da causalidade, da legalidade e do progresso e sua substituição pela tipologia e a morfologia da história, a emergência da idéia de destino e a preeminência do mito sobre a história) puderam ser assimilados, integrados e radicalizados pela doutrina do nacional-socialismo. Este trabalho, que consiste em detectar na consciência filosófica alemã a formação progressiva de esquemas ideológicos aptos a fornecer as bases teóricas do pensamento nazista, parece-nos perfeitamente legítimo. Ao mesmo tempo, esta versão de 1933, que é um documento eloqüente das funestas divisões da esquerda alemã da época, traz a marca de um forte sectarismo. O furor do autor contra os social-fascistas mostra que ele partilhava sem reservas da cegueira do partido comunista alemão e do Komintern no que diz respeito à social-democracia; em um dado momento, ele faz referência à própria fórmula de Stalin, que em 1928 havia estigmatizado os social-democratas como irmãos gêmeos dos fascistas(39). A afirmação feita trinta anos mais tarde, em 1967, no prefácio de Geschichte und Klassenbewusstsein, de que esta expressão infeliz o tinha repugnado, está em desacordo com as convicções expressas no manuscrito de 1933. Não se recordando verdadeiramente desta primeira versão de A Destruição da Razão, esquecida entre os papéis, ele antecipou a posição anti-sectária que viria efetivamente ser a sua alguns anos mais tarde. Mas no momento da redação, quer dizer em agosto de 1933, sua visão política da Alemanha era, sem dúvida alguma, extremamente sectária. Lukács atirava o opróbrio sobre todos os partidos que se recusavam a cooperar com o partido comunista para impedir a chegada de Hitler ao poder, taxando-os sem discernimento de colaboradores do nazismo. A única escolha possível era, segundo ele: fascismo ou comunismo?(40). Pouco tempo após, Lukács iria descartar esta visão simplista para tornar-se um ardente defensor da política de Frente Popular, balizada sobre a unidade das forças antifascistas. Nenhum traço da condenação do social-fascismo subsistirá nos seus escritos posteriores, incluindo a segunda versão da obra consagrada às origens ideológicas do nazismo.
O problema é de saber se o sectarismo político de 1933, corrigido posteriormente, não continua presente nas análises filosóficas, por exemplo, de A Destruição da Razão. David Pike, que se demora longamente no seu livro Lukács e Brecht, sobre a versão de 1933, considera que o fanatismo do autor se encontra na dicotomia filosófica: racionalismo versus irracionalismo(41). Ele cita como reforço a diatribe de Leszek Kolakowski, segundo a qual Lukács, em A Destruição da Razão, por um reflexo tipicamente estaliniano, teria relegado o conjunto da cultura filosófica alemã posterior ao marxismo ao campo do irracionalismo e da reação. Die gesamte philosophische Kultur Deutschlands mit Ausnahme des Marxismus escreve Kolakowski em sua história do marxismo "wird pauschal als eine Sammlung von Hilfsmitteln verdammt, welche die Machtergreifung Hitlers im Jahre 1933 vorbereiteten. So oder so haben alle den Nazis den Weg geebnet." ("O conjunto da cultura filosófica alemã, à exceção do marxismo, é rejeitado em bloco como uma coleção de expedientes que prepararam a tomada do poder por Hitler em 1933. De uma maneira ou de outra, tudo aplainou o caminho aos nazistas.")(42)
Antes de entrar na discussão de A Destruição da Razão, voltemos um instante à primeira versão do livro. Existem, efetivamente, no quadro filosófico desenhado por Lukács em 1933, excessos e derrapagens devidos às suas concepções políticas. Basta citar, a título de exemplo, a tendência a descobrir mesmo em filósofos como Nicolai Hartmann ou Ernst Cassirer uma inflexão na direção de um lebensphilosophisch gefärbten Neuhegelianismus(43) (neo-hegelianismo pintado de 'filosofia da vida'), no mesmo momento em que, ao menos o primeiro destes pensadores, permanecia absolutamente impermeável tanto à filosofia da vida como à corrente neo-hegeliana da época, representado por Glockner, R. Kroner etc.; orientava-se, ao contrário, rumo a uma ontologia realista. E a desconfiança de Lukács com relação aos liberais ia ao ponto de relegar Croce ao campo de uma pseudo-oposição (Scheinopposition) contra o fascismo(44), a única verdade sendo aquela dos comunistas.
Voltando à Destruição da Razão, é necessário notar que este grande projeto de estabelecer a genealogia da Weltanschauung nazista, não se ressente do sectarismo político professado pelo autor em 1933(45). Identificá-la a um procedimento de tipo estaliniano é ignorar a sua substância. Os adversários de A Destruição da Razão, Leszek Kolakowski, David Pike, Arpad Kadarkay, Bedeschi, sem esquecer Th. W. Adorno não tiveram êxito em abalar as bases filosóficas do livro. Pior: não empreenderam propriamente um verdadeiro exame de suas teses fundamentais. A afirmação acima mencionada de Kolakowski, segundo a qual Lukács teria relegado ao campo do irracionalismo a totalidade das correntes filosóficas não marxistas, está em contradição com o desdobrar do próprio livro. Lukács não atribui, por exemplo, em nenhum momento, ao neokantismo da escola de Marburg (aquela de Cohen ou de Cassirer), onde o idealismo filosófico é patente, uma tendência irracionalista.
Corrigindo o seu julgamento superficial de 1933, ele não atribui mais a Nicolai Hartmann o menor aceno à Lebensphilosophie; ao contrário, ele sublinha a singularidade da posição do filósofo berlinense, favorável à dialética hegeliana, ainda que, no entanto, ele não esqueça de criticar a sua tese sobre o caráter inassimilável da dialética pelo aprendizado. O irracionalismo não mais é tratado em bloco. Lukács tem a sensibilidade de distinguir, então, diferentes tendências. Ele separa, por exemplo, Husserl dos seus seguidores que, sob a influência da Lebensphilosophie (de Scheler a Heidegger) e do neokantismo de Rickert e Windelband, tendem para a mesma filosofia da vida de Simmel.
Procuraríamos em vão, entre os adversários do livro, uma confrontação com a sua argumentação filosófica. Leszek Kolakowski contenta-se, a propósito do conceito de irracionalismo de Lukács, em afirmar: "... überaus verschwommen, unbestimmt und phantastisch weitgefasst" ("... realmente indistinto, vago e tomando uma extensão fantástica")(46). Não opõe a menor contra-argumentação plausível às análises da gênese e da estrutura de um dos mais potentes movimentos do pensamento moderno. Lukács desenhou um quadro histórico do período aberto pela Revolução Francesa, examinando as mutações que tiveram lugar no interior do idealismo clássico alemão com a passagem de Schelling da primeira à segunda filosofia, com a orientação de Fichte na sua fase tardia rumo ao irracionalismo, com a fulminante reação de Schopenhauer contra seus predecessores Schelling, Hegel, Fichte e a identificação que ele opera entre a coisa-em-si kantiana e o princípio irracional da vontade, com o surgimento de Kierkegaard e a sua polêmica contra a dialética hegeliana, etc. Lukács propôs, portanto, uma vasta hermenêutica do pensamento moderno, delimitando a unidade e a especificidade do irracionalismo então corrente. Seus adversários preferem liquidar o livro com julgamentos expeditos. Arpad Kadarkay contenta-se com fórmulas do tipo: "The book is a historical document on the intellectual miscarriages in Stalin's time" ("O livro é um documento histórico sobre os desvios intelectuais à época de Stalin"), (a) "silliest, Stalinist tract" ("um estúpido panfleto estaliniano")(47). Nenhum deles expunha a dificuldade de discutir a sua argumentação (cujos resultados poderiam averiguar-se contestáveis, mas é necessário demonstrar colocando o debate no nível filosófico de Lukács e não no nível das fórmulas polêmicas)(48).
Em Une Réconciliation Extorqué, texto por excelência polêmico, Adorno dedica uma passagem desacreditando A Destruição da Razão. Ele censura ao autor a ocultação do fato de que os irracionalistas contemporâneos exprimem, face ao idealismo acadêmico, a revolta contra esta reificação da existência e do pensamento, cuja crítica veio a ser justamente o empreendimento de Lukács(49). Mas, falando de Simmel ou de Heidegger, Lukács não passa em silêncio as suas críticas à reificação. "Das eigentlich Interessante am Philosophieren Heideggers escreve Lukács , ist num die äusserst detaillierte Beschreibung dessen, wie 'der Mensch', das tragende Subjekt des Daseins, `zunächst und zumeist' in dieser Alltäglichkeit sich zersetzt, sich selbst erliert". ("O que é verdadeiramente interessante na filosofia de Heidegger é a descrição extremamente detalhada da maneira como 'o homem', o sujeito portador do Ser-aí, 'em primeiro lugar e mais freqüentemente' se desintegra nesta cotidianidade e se perde a si mesmo".)(50). A diferença em relação a Adorno é que ele não se deixa seduzir pelo anti-academicismo e o não-conformismo de certos pensadores irracionalistas (Nietzsche, em particular); sua atenção se concentra sobre a análise da sublimação ontológica da reificação, ou seja, sobre o disfarce metafísico de um fenômeno eminentemente histórico-social. É neste sentido que Lukács se detém sobre a ambição de Simmel, continuada segundo ele por Heidegger, de dar ao materialismo histórico um fundamento (seja psicológico ou metafísico)(51). O ataque de Adorno de que em A Destruição da Razão se manifestaria a destruição da razão do próprio Lukács pode provocar riso caso se recorde que o próprio Adorno relaciona, não somente Bergson, mas também a intuição da essência (a famosa Wesensschau) de Husserl, ao irracionalismo da sociedade burguesa tardia e que, nos seus ataques contra Heidegger, ele não hesitava em estabelecer a equação: Ser=Führer.
Curiosamente, é Sartre quem, apesar de sua polêmica com Lukács, declara-se favoravelmente impressionado por A Destruição da Razão. Simone de Beauvoir, tendo enviado Os Mandarins ao filósofo, recebeu o livro em troca(52). Um eco da reação de Sartre encontra-se no seu artigo O Reformismo e os Fetiches, publicado em fevereiro de 1956 na Les Temps Modernes [revista editada em Paris por Jean-Paul Sartre, marido de Simone de Beauvoir № Nota do WebMaster da Revista Práxis na Internet № NW]. Falando dos filósofos marxistas que assumem a missão de voltar às últimas filosofias burguesas, de as interpretar, de quebrar-lhes a casca, de se apoderar da sua substância, Sartre citava com aprovação dois exemplos, Tran Duc Thao e Lukács. A propósito do último, ele escreve: "... o único na Europa que tentou explicar em suas causas os movimentos do pensamento contemporâneo, é um comunista húngaro, Lukács, cujo último livro não está nem mesmo traduzido em francês"(53). Não resta dúvida de que se trata de A Destruição da Razão.
Os adversários do livro, chocados pelos acontecimentos da época guerra quente e fria têm-no injustamente condenado antecipadamente, sobre a única base da linguagem, que, certamente, tem a sua importância. Contudo, é necessário quebrar os dentes sobre o nódulo filosófico de A Destruição da Razão antes de se concluir pura e simplesmente pela estalinização do pensamento. As análises reducionistas podem jogar nos dois sentidos.
Assim como nós lembramos mais acima, O Jovem Hegel, livro escrito à mesma época, pouco posterior às diversas versões de A Destruição da Razão, não pôde ver a luz do dia na União Soviética. Lukács nele defende a tese de que o pensamento de Hegel daria uma expressão filosófica positiva ao período histórico inaugurado pela Revolução Francesa, enquanto que os jdanovistas veriam o contrário, ou seja, a reação aristocrática alemã contra esta mesma revolução. (Ainda em 1950, A Enciclopédia Soviética apresentava Hegel sob esta luz.) A substância comum às duas obras é evidente, assim como o seu afastamento em relação às teses correntes no movimento comunista internacional. Ademais, os ataques orquestrados contra o revisionismo de Lukács tomam por alvo tanto A Destruição da Razão como O Jovem Hegel. É o caso do artigo Der revisionistische Charakter einiger philosophischer Konzeptionen von György Lukács, publicado em 1959 pela revista oficial do Kominform, Problemas da Paz e do Socialismo, e reproduzido sob o mesmo título no volume György Lukács und der Revisionismus. O signatário do artigo é Bela Fogarasi, citado mais acima, antigo companheiro de luta de Lukács e autor de um tratado marxista de lógica.
Pode-se encontrar uma reação do filósofo a estes ataques (Elemer Balogh, entre outros, havia publicado em 1958 uma crítica veemente de A Destruição da Razão, intitulada Zur Kritik des Irrationalismus [Para a Crítica do Irracionalismo]) em uma carta de Lukács ao seu tradutor italiano Renato Solmi: "os sectários se mostram, claro, escandalizados pelo fato de que o dogma de Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como o único objeto da história da filosofia dogma considerado por eles com ares de santidade foi escarnecido e eles ensaiam através das falsificações de citações as mais grosseiras demonstrar o caráter 'revisionista' do livro". E o filósofo recorda como comentário as palavras de Dante a Virgílio: "Non raggionam di lor, ma guarda e passa"(54).
Lukács sempre disse que, após as Teses de Blum, ele não cessou de lutar pela democracia no comunismo. Após o seu retorno da URSS, durante o período 1945-1946, pleiteou a causa de uma transformação evolutiva da sociedade; não visava a abolição imediata do capitalismo e preconizava uma longa transição orgânica de uma forma de sociedade à outra. A explosão do caso Lukács em 1949 complacente em relação à literatura burguesa, cosmopolitismo, subestimador do realismo socialista soviético coincidia com a introdução das práticas ditatoriais em grande escala e com o processo Rajk.
Em junho de 1956, Lukács preside as sessões do círculo Petöfi, faz intervenções notáveis, prosseguindo os ataques contra os graves erros doutrinários e contra a perversidade da prática política do estalinismo nas conferências (sua conferência O Combate entre Progresso e Reação na Cultura Contemporânea, pronunciada em junho de 1956 em Budapeste, está reproduzida no número de setembro da revista Aufbau) e na imprensa. Ele sustenta que a estratégia do movimento comunista não deve ser determinada por uma mecânica tradução à prática da oposição fundamental entre socialismo e capitalismo, mas deve considerar as contradições específicas de cada período histórico; a escalada do fascismo nos anos 20, por exemplo, fez surgir sobre o fundo da contradição fundamental, uma outra contradição, mais aguda, mais presente. É a oposição entre o fascismo e o antifascismo. O desencadeamento da guerra fria, após a Segunda Guerra Mundial, teria da mesma forma feito aparecer em primeiro plano a contradição entre as forças de guerra e aquelas da paz. Nos dois casos, o campo do progresso implicaria numerosas forças exteriores ao comunismo: militantes da social-democracia, da Igreja, das camadas da burguesia. Estas teses provocaram a cólera das autoridades comunistas e desencadearam uma vasta operação de repressão ideológica(55). Uma incompatibilidade de fundo se delineia: o filósofo concebia a democracia popular como um socialismo que nasce da democracia, enquanto que os meios oficiais queriam instaurar o comunismo por meios ditatoriais; para estes últimos, a democracia popular era de início uma ditadura e de início também uma espécie de socialismo rumo ao qual ela evoluiu logo após o caso Tito(56).
Longe de serem tomados de posições circunstanciais, os ataques de Lukács contra o estalinismo estavam fundados sobre razões filosóficas profundas nas quais a herança hegeliana do marxismo desempenhava um grande papel. É se apoiando sobre as categorias de mediação, de particularidade (campo de determinações intermediárias entre a singularidade e a universalidade), de universal concreto, que ele exige uma prática política que rejeite as dicotomias abstratas e os esquemas e se adeqüe à complexidade do real. Se reconhece em Stalin as capacidades do tático, Lukács não cessa de pôr em questão a sujeição da reflexão teórica às necessidades imediatas como um dos seus principais erros. A estratégia do movimento não era mais definida por tomar em consideração a totalidade do processo histórico, com suas tendências principais e com a multiplicidade de suas contradições específicas, mas em função das exigências táticas, elevadas ao nível de uma constrangida universalidade. Como exemplo, Lukács citava freqüentemente a razão teórica fornecida por Stalin para justificar o pacto germano-soviético (ao qual ele mesmo não negava uma certa legitimidade tática). A guerra entre a Alemanha e a coalizão anglo-francesa era considerada como uma guerra entre países imperialistas, tudo como na Primeira Guerra Mundial. A palavra de ordem deveria então ser idêntica: transformar a guerra imperialista em guerra civil. É esta posição dogmática e sua visão estreita que resultou em conseqüências desastrosas para o movimento comunista nos países em questão.
Nas suas conversas com Istvan Eörsi e Erzsébet Vezér, Lukács caracterizava o estalinismo como um hiper-racionalismo(57). Stalin e seus partidários, que queriam constranger o processo histórico a um esquema, eliminaram por um golpe de força a multiplicidade das mediações; eles ignoraram com uma enorme cegueira a desigualdade no desenvolvimento dos diferentes complexos sociais e o caráter não retilíneo da história, sua marcha por definição aberta, tateante e imprevisível, que se coaduna mal com a estreiteza e o monolitismo. Durante os quinze últimos anos de sua vida, Lukács se propôs a tornar conscientes os comunistas do perigo que representam as pesadas seqüelas do estalinismo. Após a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, ele declara em uma conversa com Bernie Taft, comunista australiano, que os dirigentes soviéticos eram estúpidos amadores que retiram a credibilidade e, por muito tempo, a atração do comunismo, e acrescenta sarcasticamente que, por sua ação, Brejnev estava rendido a Nixon, presidente dos Estados Unidos(58).
Uma asserção, freqüentemente repetida, indica que a relação de Lukács com o marxismo e a articulação de sua existência com a história do comunismo internacional impuseram necessariamente limites severos à sua crítica do estalinismo. Seu engajamento ideológico e físico o impediram de mensurar em toda sua amplitude a catástrofe histórica das sociedades ditas do socialismo real. Mesmo um comentador que queira render justiça à atitude anti-estaliniana do filósofo tira proveito desta tese. Considerando que "Lukács blieb stets der Wahrheit mehr verpflichtet als der Macht" ("Lukács está sempre menos comprometido com a verdade do que com o poder"), Detlev Claussen conclui que sua crítica do estalinismo "die objektive Unvernunft des Realsozialismus erkleinert" ("minimiza a falta objetiva de razão no socialismo real"). Claussen indica uma tendência a racionalizar a história do estalinismo, o que conduz a uma certa "idealização da forma de sociedade ... que está ligada ao nome de Stalin" ("Idealisierung der Gesellschaftsform ... die mit dem Namen Stalin verknüpft ist")(59).
Acreditando que uma atitude mais radical poderia pôr em questão seu próprio passado, teria Lukács conscientemente atenuado a crítica das sociedades de tipo estaliniano ou neo-estaliniano? Ou bem ao contrário, seu conhecimento direto do estalinismo, das armadilhas em que ele mesmo caiu por vezes e, em outras, foi ele a vítima, confere à sua crítica um furor que não exclui a pertinência e a lucidez? Tentemos ver um pouco mais claramente nos reportando aos fatos.
Tomemos o exemplo dos processos de Moscou. Persuadido de que a ação da oposição colocava em perigo a estabilidade da sociedade soviética em um momento em que a ameaça hitleriana figurava no horizonte, Lukács, longe de os desaprovar e ele não o esconde de algum modo os considerou inevitáveis. Consciente de que se lhe pode censurar sua cegueira estas sinistras paródias nutridas na esquerda comunista, às quais ele não dava importância ele exigia que se colocasse no contexto da época para julgar sua atitude. Diante das campanhas conduzidas pelos nazistas contra a União Soviética, ele pensava, à semelhança de outros emigrados, refugiados em Moscou, que era necessário evitar qualquer coisa que pudesse enfraquecer o poder estabelecido, o único aos seus olhos capaz de deter Hitler(60). É uma atitude que não justifica o que quer que seja, pode-se pensar. Contudo, deve-se considerar que espíritos tão diferentes como Maurice Merleau-Ponty, Klaus Mann ou Isaac Deutscher têm, cada um à sua maneira, recorrido à situação internacional do momento para explicar, senão aprovar, a vontade de Stalin de abater a oposição interna.
Por analogia com o processo de Danton e de seu grupo, Lukács pensava que a ameaça das conquistas da revolução funcionava como um argumento plausível para impor as piores violações de direitos: "Eu considerava estes processos abomináveis" № dizia a seus interlocutores, Istvan Eörsi e Erzsébet Vezér, em 1971 № "mas consolava-me dizendo que estávamos do lado de Robespierre, já que o próprio processo de Danton, se considerado da perspectiva legal, não era em nada melhor do que aquele de Bukharin. Meu outro consolo, e este era um fator decisivo, consistia em dizer-me que o problema essencial da época era abater Hitler. Não era o Ocidente que poderia se incumbir desta liquidação, mas somente os Soviéticos". (Em muitas ocasiões, Lukács vai evocar neste contexto a atitude de Chamberlain e Daladier em Munique, a fim de justificar a posteriori seu diagnóstico de 1936-1937 nota de N.T.) "E não havia nenhuma potência anti-hitleriana senão Stalin"(61).
A publicação recente de certos documentos, como o estenograma de uma reunião dos escritores antifascistas alemães, membros do partido, que teve lugar em Moscou entre 4 e 9 de setembro de 1936, algumas semanas após o fim do processo de Zinoviev e Kamenev, mostra que Lukács curvou-se, como os outros, ao ritual estaliniano das grandes limpezas ideológicas que seguiam às ações repressivas do regime. Sua intervenção está pontuada pelos apelos à vigilância revolucionária (vigilância complicada pois os inimigos não ousam apresentar-se à vista nua) e à liquidação dos nocivos (péssima expressão!), o que mostra que, no clima de pavor que reinava após o veredito, ele sabia se comportar como um estaliniano ortodoxo. Era-o em realidade? Se no seu discurso se encontra o acerto de contas com os seus adversários literários que davam continuidade, segundo ele, à linha sectária da RAPP, não se esquece também de estigmatizar Zinoviev (é necessário lembrar que o detestava desde a época em que este, secretário geral da Internacional Comunista, protegera Bela Kun, seu adversário de longa data), e também de manifestar a sincera preocupação com a coerência ideológica na linha antifascista da Frente Popular.(63)
Uma outra decisão de Stalin que não foi desaprovada por Lukács é o pacto germano-soviético. Ele o considerou na época como uma ação hábil, destinada a forçar as potências ocidentais, em dificuldades, a fazer frente comum com a União Soviética contra o nazismo. A maneira pela qual se desenrolaram em seguida os eventos prestou justiça, afirmava Lukács, a esta ação de Stalin; ainda que como vimos, não apenas não respaldou sua justificação ideológica, como ainda a considera como um exemplo típico da manipulação da história aos fins puramente táticos.
Malgrado uma existência difícil no interior do movimento comunista № ataques da imprensa, prisão, deportação e o caso Lukács №, o filósofo não colocou abertamente em causa o estalinismo senão a partir do verão de 1956, alguns meses após o XX Congresso do PCUS. Isto é um fato. Ainda em setembro de 1946, ele defendeu nos Encontros Internacionais de Genebra, o espírito de 1941, em outros termos a aliança de forças democráticas da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da União Soviética contra o fascismo. Esta atitude situava-se na seqüência lógica de seu credo democrático, anti-sectário, existente em germe nas Teses de Blum de 1928. Mas, o desencadeamento da guerra fria, que iria enterrar em breve o espírito de 1941, fez também Lukács render-se às armadilhas do maniqueísmo estaliniano ao qual ele levaria seu grão de sal. O posfácio de A Destruição da Razão, escrito em 1953 é um exemplo disso. Vemos aí Lukács defender no melhor estilo da guerra fria a política da União Soviética (compreendendo a Guerra da Coréia e o caso Lyssenko), denunciar a ideologia pró-americana e celebrar o grande movimento pela paz.(64) Sabe-se portanto, a se acreditar em seus testemunhos ulteriores, que o verme estava no fruto. O caso Lukács de 1949-1950, as pressões e vexações das quais ele foi objeto (obrigaram-no, entre outras coisas, a uma segunda autocrítica), e muito particularmente o processo de Laszlo Rajk, seguiam preparando o terreno para uma radicalização que romperia em grande estilo nas suas intervenções no círculo Petöfi no verão de 1956.
A partir de 1956 e a despeito das ameaças que não cessam de pesar sobre ele, e das vexações sofridas, Lukács multiplica os textos consagrados à análise do estalinismo. Textos concernentes tanto à prática como à Weltanschauung estaliniana. Ele, nós o vimos, procurava obstinadamente desvelar os fundamentos ideológicos dos atos de Stalin. Isso pode parecer irrisório. Milhões de seres humanos pereceram, vítimas do pequeno pai dos povos. É verdadeiramente interessante conhecer a filosofia do algoz? Isto significa ignorar a formidável potência do aparelho ideológico implantado por Stalin. Somente aqueles que viveram na União Soviética ou nos países do Leste conheceram a pressão moral à qual cada cidadão estava cotidianamente submetido, até nas ações mais inocentes. A repressão física seguia a par com a repressão do pensamento. Stalin realmente criou um homem novo, que sobreviveu a ele. É a missão de um filósofo atacar a forma mentis do estalinismo, e sobretudo a missão de um filósofo que, em detrimento de sua inteligência, de sua erudição e de sua fé sincera na causa do socialismo, não pôde escapar totalmente à empresa desta formidável perversão do pensamento marxista e do pensamento como um todo.
De outra parte, não se pode impedir de reconhecer em Lukács uma lucidez premonitória no que concerne ao socialismo real. Na sua obra Socialismo e Democracia, redigida nos meses que se seguiram ao esmagamento da Primavera de Praga, ele denuncia o caráter artificial e o irrealismo que fundou as sociedades organizadas nos países do Leste. O mau funcionamento, os absurdos da planificação autoritária, as distorções entre os diferentes setores da vida social, a apatia e a passividade às quais são reduzidos os mais largos estratos da população, a manipulação da opinião pública, nada passou sob silêncio. Na mesma veia, mas no domínio da crítica literária, Lukács consagra dois estudos a Soljénitsyne, o primeiro em 1964, o segundo em 1969; eles serão reunidos em 1970 em um pequeno livro. Ele é assim o primeiro crítico contemporâneo a sublinhar o valor histórico e universal da rejeição do estalinismo, elevada à expressão literária pelo grande romancista.
O muro de Berlim não sepultou sob os seus escombros a obra de Lukács. Vasto empreendimento de renovação do marxismo, em grande parte sobre a base de uma experiência social e política em torno do autor de O Capital, esta obra, incontestavelmente marcada pelas convulsões do movimento comunista, é uma construção teórica muito sólida para ser descartada em fórmulas polêmicas e julgamentos precipitados, que partilham ou não das suas conclusões filosóficas.
A última grande obra de Lukács Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins (Para a Ontologia do Ser Social) está inspirada pela convicção de que uma regeneração da práxis socialista passa inevitavelmente pela ruptura com o marxismo enrijecido, que se apoiou, pelo seu necessitarismo e por seu economicismo, tanto no oportunismo da social-democracia antes da Primeira Guerra Mundial quanto, em um outro plano, no estalinismo. Lukács propõe restituir à política, ao direito, à moral, à ética, o lugar que lhes cabe na sociedade, demonstrando que a densidade e a complexidade do tecido social excluem todas as codificações provenientes de normas abstratas. Gigantesca empresa histórica de regulamentação autoritária da vida social, o estalinismo não é uma encarnação do marxismo, mas sua perversão teórica e prática.
Projetando coroar sua reflexão sobre a sociedade com uma ética, deixada infelizmente sob a forma de fichas preparatórias, Lukács volta-se obstinadamente para o estalinismo considerado como tentativa de abolir à força os critérios morais e éticos, submetendo a vida social a uma codificação jurídica imposta do alto. Recorda, neste contexto, a visão premonitória de Hegel. Criticando o caráter abstrato da moral kantiana, o grande filósofo voltava a sua atenção para a impossibilidade de deduzir a ação moral a partir de critérios puramente lógicos (cf. o exemplo kantiano do depósito, analisado no ensaio sobre o direito natural). Lukács apoia-se na famosa demonstração hegeliana para reagir contra toda tentativa de homogeneizar artificialmente um tecido por definição heterogêneo e de sacrificar o concreto sócio-histórico aos esquemas fabricados pelo entendimento abstrato.(65) A ontologia da vida social, na visão de Lukács, traduz-se in politicis por uma mistura de inflexibilidade e de flexibilidade; se os pesos da história, suas contradições e seus desvios exigem uma grande flexibilidade na elaboração da tática e da estratégia políticas para poder levar em consideração toda a multiplicidade das mediações, o horizonte permanente da ação não pode ser outro senão a livre autodeterminação dos indivíduos, telos último da vida social.
No conceito de Gattungsmässigkeit für sich (a especificidade do gênero humano para-si), Lukács faz convergir todas as aspirações no sentido da plena autonomia do indivíduo e também no desvelamento da personalidade, sempre sublinhando que nada se pode fazer sem ter em conta a Gattungsmässigkeit an sich (a especificidade do gênero humano em-si), portanto o estado atual da condição humana. Realizar o difícil equilíbrio entre a heteronomia e a autonomia do sujeito permanece, até o fim, a obsessão e a idéia-força de seu pensamento. Um anti-utopismo fundamental não o impede de crer na emancipação do gênero humano.
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Desenho de György Lukács