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| Resenha:FLORENTINO, Manolo; GÓES, José R. A Paz das SenzalasFamílias Escravas e Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1997. | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Mário Maestri
Mario_Maestri@revistapraxis.cjb.net
Sócio da Revista Práxis, doutor pelo Centro de História da África, Université Catholique de Louvain, Bélgica, e professor das universidades de Caxias do Sul e de Passo Fundo.
Jamais houve acordo sobre as condições de vida nas senzalas. Senhores perguntavam-se por que escravos fugiam numerosos das fazendas e residências urbanas. Intelectuais do peso de um José de Alencar afirmavam que os escravos viviam melhor que os proletários ingleses. Abolicionistas descreviam um cotidiano servil patético. Com a Abolição, esse debate se transferiu da vida real para os livros.
Em 1934, a polêmica se desequilibrou quando Gilberto Freyre esposou brilhantemente a tese de uma escravidão patriarcal, com as relações entre amos e cativos adocicadas pelas trocas sexuais e amaciadas pelo espírito universalista português. Três décadas mais tarde, brilhantes pensadores como Alípio Goulart, Clóvis Moura, Décio Freitas, Emília Viotti da Costa, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni desvelaram a essência brutal da escravidão. Alguns deles colocaram ênfase na resistência do trabalhador escravizado, como elemento explicador da dinâmica da sociedade escravista. Em 1978, Jacob Gorender apresentou, em sua tese O Escravismo Colonial, uma explicação categorial-sistemática do modo de produção escravista colonial, que apoiou metodologicamente, por anos, as pesquisas críticas sobre o passado negreiro brasileiro, desequilibrando, outra vez a discussão, dessa vez em favor de uma leitura do cativeiro nacional a partir da ótica dos produtores diretos.
Nos anos oitenta, o poderoso sopro ideológico da "revolução conservadora" neoliberal varreu o mundo. Num processo quase pendular, no novo contexto, sob a influência da refinada e conservadora historiografia norte-americana, iniciou-se uma bem articulada modernização das teses de Giberto Freyre sobre o escravismo patriarcal brasileiro, velhas de meio século. Primeiro, abandonou-se a pesquisa sobre a resistência escrava, deu-se ênfase ao estudo das alforrias e defendeu-se a auto-regulamentação da escravidão a partir de acordos sistêmicos entre cativos e amos. Os mais extremados revisionistas chegaram a falar de uma sociedade escravista onde os cativos trabalhavam pouco, comiam maravilhosamente, apanhavam quase nunca. A seguir, passou-se ao estudo da chamada família escrava. A existência significativa de famílias escravizadas estáveis e, no mínimo, semi-autônomas, comprovaria a improcedência das teses de uma alta exploração dos trabalhadores feitorizados e da existência de antagonismos essenciais entre cativos e senhores. Para alguns autores, caso elas existissem, provariam igualmente que teria reinado uma paz estrutural nas senzalas, criadas a partir da própria família escrava.
O livro A Paz das Senzalas : famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850, de Manolo Florentino e José R. Góes, lançado pela Editora Civilização Brasileira, constitui talvez a mais ambiciosa e bem articulada tentativa de comprovar a hipótese da existência de uma sólida organização familiar escrava. O trabalho se baseia sobretudo num amplo levantamento dos inventários post-mortem de fazendeiros do norte fluminense, num período em que, devido ao desenvolvimento da cafeicultura, o tráfico negreiro se acelerou significativamente. Ao igual de outros documentos, são utilizados alguns processos judiciários. Com a documentação, procura-se capturar o perfil e as tendências das eventuais famílias escravizadas da época. Como sugerem os próprios autores, não são raros estudos nos quais a argumentação e as conclusões contrariam a documentação apresentada.
Nas ciências sociais, a adesão, consciente ou inconsciente, dos autores dos trabalhos e dos resenhadores, é claro a propostas epistemológicas e, até mesmo, ideológicas mais profundas, interferem comumente nas conclusões chegadas a partir da documentação. Com a reunião e o estudo de pobres cacos de cerâmica, a arqueologia reconstrói os artefatos do passado e, na ponta final das suas análises, desvela tendências profundas das civilizações que produziram os objetos esfarelados pelo tempo. Apesar do consistente esforço argumentativo, no fim de A paz das senzalas..., os autores desvelam, ao leitor mais atento, apenas espécies de cacos, verdadeiro arremedos, de famílias escravizadas.
Nas fazendas escravistas estudadas, as relações parentais constituíam quase formas sem conteúdos se comparadas às relações familiares das famílias livres, ricas ou pobres, da época. O que corroboraria a proposta de que os cativos foram expropriados não apenas de enorme parte do produto de seu trabalho, mas também do direito de constituírem famílias minimamente estáveis e autônomas. O que, diga-se de passagem, foi a grande razão da incapacidade da população escravizada brasileira de reproduzir-se naturalmente. A documentação estudada não desvela, jamais, a existência, sistemática e significativa, de grupos familiares com uma estabilidade residencial e uma autonomia econômica mínimas, produzindo laços parentais, através dos anos, pela produção sistemática de filhos.
O aparente paradoxo dos resultados obtidos nesse trabalho talvez se deva à análise de uma sociedade singular com categorias estranhas a ela. Em geral, nas sociedades précapitalistas, as famílias têm como função essencial a produção das suas condições de existência e da sua própria reprodução biológica. Para que isso ocorra, importantes recursos sociais são alocados sobretudo no financiamento da reprodução da espécie: a maternidade e a criação das crianças são cercados de cuidados e atenções extras, materiais e ideológicos.
Os pais não criam filhos apenas pelos belos olhos dos pimpolhos. O africanista marxista francês Claude Meillassoux lembra, em Mulheres, Celeiros e Capitais, que, em sociedades camponesas, como as européias, ou domésticas, como as africanas, trabalhando para seus pais quando jovens, ou sustentando-os quando velhos, os filhos repõem os investimentos que consumiram, quando improdutivos. Por milênios, as crianças foram também uma forma de previdência social, tão ou mais segura do que o nosso INPS. A importância do controle da progenitura explica a importância do contrôle da sexualidade dos jovens e das mulheres férteis. É a apropriação da mulher, para controlar sua força de trabalho e, sobretudo, para controlar a produção e a distribuição das crianças, futuros produtores, que dá conteúdo aos laços parentais nas sociedades pré-capitalistas.
Paradoxalmente, os fenômenos que acabamos de assinalar não ocorriam na escravidão. Ao expropriar a família e a aldeia africana de jovens e de adultos sadios em idade produtiva, o tráfico economizava ao escravista o elevado custo de criação do produtor, sobretudo em uma época de alta mortalidade infantil, aumentando a rentabilidade de um modo de produção de baixa produtividade. Era a África, a grande mãe dessangrada, que reproduzia a população feitorizada nas Américas. O historiador norte-americano Robert Conrad assinala no seu clássico estudo Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil que, como vimos, a mulher escravizada jamais alcançou a contrabalançar a hecatombe populacional determinada pelas duríssimas condições servis de existência.
Na escravidão, a mulher escravizada perdia uma função essencial que cumpria em outras formas de produção a de produzir produtores. Por isso, não recebia, dos senhores, a emulação e o apoio mínimos para parir e criar filhos com sucesso. Não recebia uma melhor alimentação, não era colocada em trabalhos mais leves durante e após a gestação, não era dispensada de trabalhos para cuidar dos filhos, não era remunerada pela criação dos filhos etc.. Por outro lado, as crianças escravizadas, mesmo criadas com o esforço dos pais biológicos, sobrecarregados já pela escravidão, quando produtoras, deviam obrigações apenas ao pai sociológico ou seja, ao amo. A escravidão expropriava os direitos econômicos tradicionais dos pais naturais, deixando-lhes apenas eventuais e frágeis direitos simbólicos.
Em A Paz das Senzalas..., relata-se o caso de um liberto que assassinou dois filhos pequenos, certamente indignado pelo fato de serem cativos e trabalharem para o amo. A explicação do pai biológico para o crime registra a inconformidade com a expropriação da autoridade paterna real: tivera que matar as crianças "para não vê-las escravas do seu senhor moço." Ou seja, indigna-se pelo fato de que as crianças estejam sob a autoridade despótica do senhor e não patriarcal do progenitor.
Os autores realizam outra leitura desse caso, ao apresentarem o crioulo filicida como exemplo de terrível transgressão de alianças familiares que horrorizara livres e escravos. Porém, a documentação apresentada prova que o horror dos senhores com a morte dos negrinhos não fora grande. A justiça não condenou à morte o crioulo, apesar de fazê-lo invariavelmente com cativos que levantavam o braço contra os mais insensíveis amos.
Estudos mais detidos comprovarão certamente que a decisão feminina consciente ou inconsciente sobre as vantagens relativas da maternidade determinou profundamente os padrões da natalidade escrava. E isso, ainda mais, devido a outro importante fenômeno da sociedade escravista. Na escravidão, ocorreu uma real dissociação entre sexualidade e maternidade, já que o exercício da sensualidade podia emergir sem estar enquadrado, como nas sociedades camponesas ou domésticas, pela luta do grupo social pelo controle da prole feminina. A dissociação entre sexualidade e reprodução talvez explique referências preconceituosas sobre as práticas sexuais escravistas, de cronistas coevas e historiadores atuais, e o fato de que as mulheres feitorizadas, como apontam os autores, iniciavam sua vida sexual mais cedo e a terminavam mais tarde do que comumente na África e na Europa.
Assim, trata-se de um anacronismo tentarmos projetar a moralidade sexual de nossa época e sociedade para o passado escravista. Fenômenos profundos da sociedade escravista determinaram as relações inter-pessoais dos trabalhadores escravizados. Mais além do debate que certamente se abrirá sobre os dados e as conclusões apresentados, esse instigante estudo de Manolo Florentino e José Roberto Góes deixa claro a necessidade da construção de categorias que expressem as formas singulares de relacionamento e de aliança inter-pessoais dos trabalhadores brasileiros.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 11, de Julho de 1998, tenha sido proveitosa e agradável.
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