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Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista

(in: Beyond Capital)1

Debate de Massas em Budapest, Hungria, 1919
Debate de Massas em Budapest
Hungria, 1919

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István Mészáros
Istvan_Meszaros@revistapraxis.cjb.net

Professor Emeritus da University of Sussex, Inglaterra, e membro do Conselho Consultivo da revista Práxis. Livros publicados no Brasil: A Teoria da Alienação em Marx (Ed. Zahar), Produção Destrutiva e Estado Capitalista (Ed. Ensaio) e Sartre - a Busca da Liberdade (Ed. Ensaio). Em breve sairá Beyond Capital (co-edição das Eds. Boitempo e Projeto).


A presente "crise do marxismo" se deve principalmente ao fato de que muitos dos seus representantes continuam adotando uma postura defensiva, numa época na qual historicamente viramos uma página importante e deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista que acompanhasse as condições objetivas. Paradoxalmente, os últimos 25 anos, que progressivamente manifestaram a crise estrutural do capital – e daí o início da necessária ofensiva socialista num sentido histórico –, também testemunhou uma disposição, maior do que nunca, de muitos marxistas buscarem novas alianças defensivas e se envolverem com todos os tipos de revisões e compromissos em grande escala, ainda que não tenham, realmente, nada para mostrar como resultado de tais estratégias fundamentalmente desorientadas.

A desorientação em questão não é, pois, de modo algum, simplesmente ideológica. Ao contrário, ela envolve todas as instituições de luta socialista que foram constituídas sob circunstâncias históricas defensivas e por esse motivo perseguem, sob o peso da sua própria inércia, modos de ação que diretamente correspondem ao seu caráter defensivo. E já que a nova fase histórica inevitavelmente traz consigo o aguçamento do confronto social, uma maior reação defensiva das instituições (e estratégias) de luta da classe trabalhadora deve ser esperada – mas não idealizada – sob tais circunstâncias. Contudo, lamentavelmente, as estruturas e estratégias defensivas existentes consideram inquestionáveis seus próprios pressupostos e procuram por soluções que permanecem ancoradas nas condições da velha, e agora superada, fase histórica.

Tudo isso deve ser enfatizado tão firmemente quanto possível a fim de evitar ilusões de soluções fáceis. Pois não é suficiente argumentar a favor de uma nova orientação ideológico/política se as formas institucionais/organizacionais relevantes forem mantidas como elas existem hoje. Se a desorientação corrente é a manifestação combinada dos fatores prático/institucional e ideológico em suas respostas um tanto inertes às circunstâncias históricas que já não são as mesmas, seria ingênuo esperar uma solução do que muitos gostam de descrever como "clarificação ideológica". De fato, enquanto obviamente os dois devem desenvolver-se juntos, o "übergreifendes moment"2 nessa reciprocidade dialética, na conjuntura atual, é a estrutura prático/institucional da estratégia socialista, a qual precisa muito reestruturar-se de acordo com as novas condições. Estes são os problemas aos quais iremos dirigir-nos no presente capítulo.

18.1.1 - Dizer que somos contemporâneos da nova fase histórica de ofensiva socialista não significa de modo algum que, de agora em diante, o percurso seja tranqüilo e a vitória, próxima. A frase "atualidade histórica" não sugere mais do que diz explicitamente: isto é, que a ofensiva socialista enfrenta-nos como um fato histórico em contraste com nossa condição objetiva, de não há muito tempo atrás, dominada por determinações defensivas inevitáveis. A consciência não registra automaticamente as mudanças sociais, não importa quão importantes sejam, ainda que eventualmente ("em última análise") elas sejam constrangidas a transpor os canais e modos de mediação políticos e ideológicos predominantes. Mas, antes de alcançarmos o patamar da "última análise", a inércia do modo de resposta anterior – articulado com determinadas estratégias e estruturas organizacionais – continua dominando a maneira pela qual se definem suas próprias alternativas e margens de ação. Nesse sentido, enquanto os instrumentos e estratégias da ação socialista permanecerem defensivamente estruturados, o discurso sobre "consciência de classe", que condena o proletariado por sua falta de combatividade, demonstrará somente sua própria vacuidade.

A atualidade histórica da ofensiva socialista corresponde, em primeiro lugar, a nada mais que o desconfortável fato negativo de que – devido à mudança da relação de forças e circunstâncias – algumas formas de ação anteriores ("as políticas de consenso", "a estratégia de pleno emprego", "a expansão do Estado do Bem-Estar" etc.) estão objetivamente bloqueadas, demandando um reajuste decisivo na sociedade como um todo. Mas, a partir dessa inicial "negatividade brutal", não se segue que os reajustamentos em questão serão positivos, mobilizando as forças socialistas num esforço consciente para se apresentarem como portadoras da ordem social alternativa capaz de substituir a sociedade em crise. Longe disso. Como as mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarem o "salto para o desconhecido", a probabilidade é que se seguirá a "linha de menor resistência" por um tempo considerável, mesmo que isso signifique para as forças socialistas derrotas significativas e grandes sacrifícios. Somente quando as opções da ordem predominante se esgotarem se poderá esperar uma virada espontânea para uma solução radicalmente diferente (O completo colapso da ordem social no curso de uma guerra perdida e os levantes revolucionários subsequentes, conhecidos da história passada, ilustram bem esse ponto).

Contudo, as dificuldades de uma resposta socialista adequada à nova situação histórica não muda o caráter da própria situação, ainda que elas coloquem novamente em relevo o potencial conflito entre escalas de temporalidade – a imediata e a estrutura histórica geral de eventos e desenvolvimentos. É o caráter objetivo das novas condições históricas que por fim decide a questão, não importando quais sejam os atrasos e desvios que possam acompanhar as circunstâncias dadas. A verdade é que existe um limite além do qual acomodações forçadas e imposição de novos sacrifícios se tornam intoleráveis, não apenas subjetivamente para os indivíduos envolvidos, mas também objetivamente para a continuação do funcionamento da estrutura sócio-econômica ainda dominante. Nesse sentido, e em nenhum outro, a atualidade histórica da ofensiva socialista – enquanto sinônimo do fim do sistema de melhorias relativas pela acomodação consensual – está destinada a impor-se a longo prazo, tanto na forma exigida da consciência social como em sua mediação estratégico/instrumental, mesmo que não possam existir garantias contra outras derrotas e decepções num curto prazo. Ainda que seja verdade – o que é bastante duvidoso – que os seres humanos tenham uma infinita capacidade para suportar qualquer imposição sobre eles, incluindo as piores condições possíveis, a capacidade de adaptação do sistema global do capital é hoje muito menor do que a necessária. (...)

18.4.1 - Nós vivemos numa era onde – graças às dinâmicas internas de "hibridização" do modo estabelecido de controle sócio-metabólico – a dimensão política é muito mais proeminente que na fase clássica da ascendência histórica do capital, a despeito de todos os protestos contrários da "direita radical". Naturalmente, o exame apropriado desse problema não deve ser restrito às instituições diretamente políticas, como o parlamento. É mais amplo e mais profundo do que isso. De fato, as mudanças que nós temos testemunhado no funcionamento do próprio parlamento – mudanças tendentes a privá-lo até de suas limitadas funções autônomas do passado – não podem ser explicadas de modo circular em termos da mudança da máquina eleitoral e das correspondentes práticas parlamentares. Porta-vozes da hipostasiada "absoluta soberania do parlamento" e seus embates retóricos com seus colegas parlamentares sobre a miragem da "perda da soberania para Bruxelas" (por exemplo), estão longe da verdade. Procuram soluções para as mudanças que eles deploram onde elas não podem ser encontradas: nos confins do próprio domínio político parlamentar. Todavia, o problema é que o atual desenvolvimento, que de uma perspectiva política auto-referente é absolutamente desnorteante, só pode ser entendido numa estrutura que compreenda os processos de reprodução material e cultural. Pois é o último que requer o cumprimento de determinadas, porém mutáveis, funções da esfera política no curso das transformações históricas e dos ajustes auto-assertivos da ordem sócio-metabólica dominante como um todo.

Como vimos acima em vários contextos, o desenvolvimento do século vinte foi caracterizado pela crescente influência de fatores "extra-econômicos". Em outras palavras, o século vinte testemunhou a ascensão, a proeminência, de forças e procedimentos "extra-econômicos" que costumavam ser considerados com grande ceticismo, e rejeitados como estranhos à natureza do sistema do capital no momento de sua triunfal ascensão histórica. Quando, com o início das crises estruturais do sistema, na década de setenta, os representantes da "direita radical" romperam com a forma keynesiana da intervenção consensual do Estado capitalista (dominante por um quarto de século depois da Segunda Guerra Mundial), muitos políticos envolvidos esqueceram instantaneamente que eles próprios estavam profundamente comprometidos com as práticas pecaminosas que, agora, denunciavam sonoramente. Eles também se negaram a enxergar o fato – e não é importante aqui se com a ajuda da hipocrisia e do fingimento cínico ou proveniente de ignorância genuína – de que o novo curso exigiria pelo menos uma intervenção do Estado nos processos socio-econômicos tão grande (agora mais que nunca em nome do big business) quanto na variante keynesiana. A única diferença era que, adicionada à generosa ajuda dada ao big business – desde os incentivos fiscais massivos até práticas corruptas de "privatização", desde abundantes fundos de pesquisa (especialmente em proveito do complexo militar/industrial) à mais ou menos aberta facilidade à tendência ao monopólio – a "direita radical" teve que impor também uma série inteira de leis repressivas sobre o movimento dos trabalhadores. Ironicamente, as leis repressivas contra o trabalho tiveram que ser introduzidas "maneiramente" por meio dos bons serviços dos "parlamentos democráticos", com a finalidade de negar à classe trabalhadora até mesmo os ganhos defensivos do passado, de acordo com as cada vez mais estreitas margens de lucro da acumulação de capital nas circunstâncias da crise estrutural em andamento.

Assim, para as perspectivas da emancipação do trabalho, a importância da luta política e da crítica radical ao Estado – incluindo suas "instituições democráticas", com o parlamento no seu ápice – nunca foi tão grande quanto na atual fase histórica do aparente "encolhimento dos limites do Estado". Como se tornou dolorosamente óbvio pela angustiante situação de bilhões de pessoas, o sistema do capital, mesmo na sua forma mais avançada, negligencia miseravelmente a espécie humana. O mesmo pode ser dito da sua dimensão política do controle sócio-metabólico. Pois até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital – o Estado liberal-democrático, com sua representação parlamentar e garantias democráticas formais e institucionalizadas de "justiça e imparcialidade", bem como suas alegadas garantias contra o abuso de poder – fracassou em todas as promessas que o autolegitimavam.

A crise da política em todo o mundo, incluindo as democracias parlamentares dos países capitalistas mais avançados – freqüentemente assumindo a forma de uma compreensível amargura e um resignado afastamento da atividade política das massas populares – é uma parte integral do agravamento da crise estrutural do sistema capitalista. As reivindicações de "dar poderes ao povo" – seja aquela da ideologia do "capitalismo popular" (armado com uma porção de ações não votantes) ou sob os slogans de "oportunidade igual" e "imparcialidade" num sistema de desigualdade estrutural incorrigível – são absurdas demais para serem levadas a sério mesmo pelos seus mais proeminentes propagandistas. Ao contrário, o futuro provavelmente trará maior imposição de determinações políticas regressivas sobre o dia a dia das massas populares, em vez da repetida promessa do "encolhimento dos limites do Estado". Não existe como optar ficar fora da política, não importa quão desencorajadoras sejam suas formas institucionais dominantes e suas práticas de auto-perpetuação. Mas, precisamente por essa razão, a política é importante demais para ser deixada aos políticos; na verdade, uma democracia digna de seu nome é de longe importante demais para ser deixada às existentes e praticáveis democracias parlamentares do capital e à correspondente pequena margem de ação dos parlamentares, mesmo dos "grandes parlamentares".

Quando o título de "grande parlamentar" é concedido aos representantes da esquerda, ele é usado pelo sistema conservador (com "c" minúsculo, incluindo a liderança da ala direita do Partido Trabalhista) como um modo de autofelicitação e auto-elogio. Tais personalidades políticas são tidas como "grandes parlamentares" porque, segundo a lenda, eles "aprenderam a dominar as regras do procedimento parlamentar" e, com a ajuda delas, "continuam a levantar os assuntos desconfortáveis". Entretanto, a verdade realmente desconfortável é que os assuntos assim levantados são invariavelmente ignorados, ou declarados "fora da pauta" no próprio parlamento. Dessa forma, os apologistas do sistema parlamentar substantivamente anti-socialista podem demonstrar à "opinião pública democrática" que não existe outro caminho para lidar com os problemas da sociedade a não ser a submissão às leis do jogo parlamentar e ao rigoroso cumprimento de seus procedimentos, os quais produzem "grandes parlamentares" também na esquerda política. Futilidade e marginalização política são os critérios para ser promovido ao elevado posto de "grande parlamentare" à esquerda. Desse modo, alguns deles são admitidos no hall of fame3 no interesse de colocar o sistema de democracia parlamentar para além e acima de toda "crítica legítima" concebível.

Na verdade, dada a marginalização política inseparável da aceitação das amarras parlamentares como a única estrutura legítima da ação política, a aceitação das regras internas do jogo parlamentar – mesmo se praticada com propósito radical – só pode produzir o auto-encarceramento parlamentar da esquerda. Ironicamente, do modo como o sistema parlamentar atualmente funciona, até mesmo pessoas com credenciais impecáveis da ala direita – mas com grandes ilusões sobre seu próprio papel na determinação do resultado dos debates políticos – como Roy Hattersley, estão infelizes com o conformismo cego com o qual eles têm de aceitar as últimas regras do jogo parlamentar. Queixam-se, claro que totalmente em vão, de que o líder do partido deveria prestar mais atenção aos princípios professados no passado. De fato, nós testemunhamos hoje a liquidação até dos mais brandos princípios sociais-democratas para assegurar uma "aliança eleitoral mais ampla". É assim que, de modo manifesto, Hattersley argumenta – em um artigo publicado no Independent em 12 de agosto de 1995 sob o título: "Roy Hattersley conta a Tony Blair onde ele tem errado"4:

"Eu sou um crente apaixonado no Novo Trabalho, e um antigo adversário da velha cláusula IV (que promete a posse comum dos meios de produção) e um herético que deseja cortar completamente os elos formais dos trabalhistas com os sindicatos. Mas, não obstante, eu entendo porque os membros do partido se preocupam com o fato de que nós temos nos ocupado tanto com os problemas da classe média que começamos a ignorar as necessidades dos desfavorecidos e os excluídos ... A ideologia é o que conserva os partidos estáveis e dignos de crédito, bem como honestos. A longo prazo, a estima do público pelo partido seria protegida por uma contudente declaração acerca da intenção fundamental. O socialismo – que é proclamado na nova cláusula IV – exige que a pedra fundamental de princípio seja a redistribuição da força e da riqueza. Se esse objetivo fosse reafirmado, muitos dos problemas desapareceriam".

O fato de o Partido Trabalhista – do qual há não muito tempo atrás Hattersley era o líder na Câmara dos Deputados – ter falhado na "redistribuição de poder e riqueza", durante toda sua longa história, não parece preocupar o autor desse artigo. O Times é muito mais realista quando elogia Tony Blair dizendo que a ideologia do "Novo Trabalho", defendida pelo líder da oposição, carrega pouca relação com o socialismo do passado. É "pragmático, amigo dos negócios"5. (...)

18.4.4 - Na segunda metade do século vinte, ninguém argumentou mais convincentemente a favor de garantias legislativas contra o abuso do poder político e violação dos direitos humanos que Norberto Bobbio. Consciente da desumanidade praticada em nome do socialismo sob o sistema do tipo soviético, tentou combinar os melhores traços do liberalismo com as aspirações do socialismo democrático. Rejeitando firmemente a idéia da "democracia direta", ele advogou a instituição de garantias e melhorias dos direitos humanos através do sistema legislativo parlamentar6. Mas, significativamente, a melhoria das condições existentes por meio de direitos formalmente garantidos advogada por Bobbio tem se tornado progressivamente mais dependente das mudanças das determinações materiais e imperativas do sistema do capital. Conseqüentemente, uma crítica radical desse sistema como uma ordem sócio-metabólica parece ser pré-condição necessária para avaliar as medidas legislativas com ele compatíveis.

Numa entrevista em 1992, Bobbio enfatizou que, na nossa época, o direito à liberdade e trabalho, juntamente com os direitos individuais à previdência social, devem ser complementados com os direitos das gerações atuais e futuras viverem num meio ambiente despoluído, com o direito de auto-regular a procriação humana e garantias de privacidade contra todas as transgressões perpetradas pelo sempre presente Estado controlador, assim como com garantias legalmente asseguradas contra os sérios perigos que afetam cada vez mais o patrimônio genético7. Por mais que possamos concordar com todas essas necessidades, é inquietantemente claro que mesmo a decretação parlamentar das garantias e dos direitos advogados – com possível exceção do formalmente proclamado "direito de liberdade" que é, contudo, para a maior parte da humanidade na prática esvaziado de todo conteúdo material pelo modo atual de controle sócio-metabólico – seria possível somente através de um bem sucedido confronto com os enormes interesses materiais e políticos que militam contra eles. Além disso, a decretação formal em si não pode prover garantias para sua implementação, como testemunham amplamente os inumeráveis princípios constitucional-democráticos solenemente proclamados e as não menos incontáveis leis sem vigor que adornam as legislações. Pois elas permanecem sem vigor precisamente porque podem, ou talvez pudessem, restringir a força do capital. Num mundo de desemprego crônico, com constantes ataques até aos escassos vestígios do "Estado do Bem-Estar" e do sistema de previdência social, sob a pressão para explorar tudo ao máximo, desde os recursos não renováveis até os avanços eticamente mais questionáveis feitos na biotecnologia e na informática diretamente subordinadas aos ditames da acumulação lucrativa do capital, apenas em sonho se poderia executar o diametralmente oposto a esses desenvolvimentos através dos bons ofícios de uma legislatura iluminada. Igualmente, seria nada menos que um milagre se um sistema de controle reprodutivo, que é estruturalmente incapaz de planejar e impedir o impacto nocivo do seu próprio modo de operação, até mesmo no curtíssimo prazo, pudesse codificar e respeitar os direitos das gerações futuras claramente em conflito com seus imperativos materiais. Naturalmente, essa circunstância não invalida o argumento do filósofo italiano de que a esquerda deveria lutar de todas as maneiras possíveis para tornar as pessoas conscientes dos méritos de tais necessidades como parte da sua crítica à ordem social vigente. Mas isso coloca imediatamente em relevo as desesperadoras limitações das instituições legislativas disponíveis para solucionar os profundos problemas reprodutivo-materiais identificados pelo próprio Bobbio.

A social-democracia, em sua longa história, primeiro perseguiu a alternativa de tentar introduzir grandes mudanças nas relações de classe predominantes através de reforma parlamentar e, depois de poucas décadas de fracasso em levar a diante os objetivos da transformação socialista, terminou renegando-os totalmente. De modo algum isso foi acidental ou devido simplesmente à "traição pessoal", pelos representantes da social-democracia parlamentar, dos seus antigos princípios. O projeto de instituir o socialismo pelos meios parlamentares estava condenado desde o início. Eles divisaram a realização do impossível e prometeram transformar gradualmente em algo radicalmente diferente – isto é, em uma ordem socialista – um sistema de controle da reprodução social sobre o qual eles não tinham, e nem poderiam ter, qualquer controle significativo no e através do parlamento.

Como nós vimos acima, o capital – por sua própria natureza e determinações internas – é incontrolável. Portanto, investir as energias de um movimento social na tentativa de reformar um sistema substantivamente incontrolável é uma aventura muito mais fútil que o trabalho de Sísifo, já que a viabilidade, mesmo da reforma mais limitada, é inconcebível sem a habilidade para exercer o controle sobre aqueles aspectos ou dimensões do complexo social que estamos tentando reformar. E isso é o que fez autocontraditório e condenado desde o princípio o empreendimento parlamentar social-democrata. Os partidos sociais-democratas continuaram iludindo a si próprios e a seus eleitores, por décadas, de que seriam capazes de instituir "no devido tempo", através da legislação parlamentar, uma reforma estrutural do incontrolável sistema do capital.

O beco sem saída da social-democracia não foi de modo algum o caminho original do movimento socialista. Seguir o caminho da reforma e da acomodação parlamentar se tornou a orientação dominante nos partidos políticos da classe trabalhadora, mas somente com a emersão e consolidação da Segunda Internacional. Naturalmente, os apologistas cegos do abandono de todos os objetivos socialistas pelos atuais líderes da social-democracia e dos partidos trabalhadores tentam retrospectivamente rescrever a história, sugerindo grotescamente que:

"O original – e, para sua época, audacioso – propósito do socialismo era o capitalismo democrático. Não foi até 'a década de 1840', quando Marx e Engels roubaram o termo, que 'socialismo' se tornou um projeto cuja ambição era destruir o capitalismo. A cláusula IV (da Constituição do Partido Trabalhista Britânico de setenta anos atrás) permanece um texto fundamentalmente marxista, apesar de sua linguagem vacilante e o desejo de seus autores de distanciar o Partido Trabalhalhista dos piores excessos da ditadura do proletariado de Lênin. Daí a importância da declaração de Blair (atual líder). Ele está desafiando seu partido, finalmente, a enterrar o socialismo marxista8.

Os fatos históricos, intencionalmente postos de lado pelos apologistas, dizem o contrário. A negação radical da ordem capitalista vem de um bom tempo antes de Marx e Engels terem posto seus olhos na Inglaterra. As perseguidas sociedades secretas comprometidas com a negação, pelo ângulo da classe trabalhadora, das incorrigíveis – e portanto irreformáveis/ "não democratizáveis" – iniqüidades da ordem estabelecida, vêm pelo menos da Revolução Francesa e suas conturbadas conseqüências. Na verdade, a primeira relação de Marx com as demandas intransigentes do socialismo anticapitalista radical aconteceu precisamente em tais sociedades secretas da classe trabalhadora durante sua permanência na França, quando jovem, bem antes que começasse a escrever seu seminal Manuscrito Econômico e Filosófico de 1844. Alguém que seriamente coloque no papel a proposição que um movimento revolucionário histórico-mundial pôde ser inventado por dois jovens intelectuais alemães exilados que "roubaram o termo socialismo" está tão fora de contato com a realidade e tão desmiolado quanto alguém que possa pontificar, só porque sonha com isto, que ao substituir o duradouro compromisso com a propriedade pública na cláusula IV da Constituição do Partido Trabalhista pela declaração vazia e sem princípios do "Novo Trabalho", Tony Blair pudesse realmente "enterrar o socialismo marxista" – "se ele encontrar as palavras certas", como diz a desejosa projeção.

A perda do sentido do movimento da classe trabalhadora ocorreu na última terça parte do século XIX, e suas conseqüências negativas se evidenciaram com o sucesso parlamentar – e acomodação – dos partidos sociais-democratas e trabalhistas. Tal sucesso, por si só, pode ser considerado uma vitória de Pirro no seu impacto a longo prazo na causa da emancipação do trabalho. Pois o preço que teve que ser pago foi o fatal enfraquecimento estrutural do potencial de luta do trabalho, causado pela aceitação das amarras parlamentares como a única estrutura legítima para contestar a regência do capital. Em termos práticos, isso significou a divisão catastrófica do movimento nos assim denominados "braço político" e o "braço sindical" do trabalho, com a ilusão de que o "braço político" poderia servir ou representar, codificando legislativamente, os interesses da classe trabalhadora organizada nas empresas industriais capitalistas pelos sindicatos de cada ramo do "braço sindical". Mas, com o passar do tempo, tudo se deu exatamente ao contrário. O "braço político", ao invés de assegurar seu mandato político em íntima colaboração com o "braço sindical", usou as regras do jogo parlamentar para subordinar os sindicatos a ele e às determinações políticas decisivas ao capital impostas através do parlamento. Assim, em invés de fortalecer politicamente a força de luta do "braço sindical" nos seus confrontos com as empresas capitalistas, desse modo intensificando o potencial emancipador do trabalho, o "braço político" limitou os sindicatos – em nome de sua própria exclusividade política – às "disputas estritamente econômicas do trabalho". Dessa maneira, o que se supunha ser o "braço político do trabalho" terminou jogando um papel crucial na ativa imposição ao trabalho – pela força da "legislação parlamentar de representação" – do interesse vital do capital: "banir a ação politicamente motivada" como categoricamente inadmissível "numa sociedade democrática".

Tanto o reformismo como suas realizações necessariamente precárias foram resultados dessa cindida articulação do movimento trabalhador em um "braço político" e um "braço sindical". A operação desse modelo cindido – dentro da estrutura de comando global do capital como a estrutura racional da legitimidade e autoridade democráticas – trouxe com ele a necessária aceitação e internalização das coações objetivas materiais do capital. Concomitantemente, o trabalhismo reformista manteve por um tempo a idéia contraditória de que os objetivos socialistas eram inteiramente compatíveis com as coações materiais do capital. Nesse espírito foi postulado – por Harold Wilson e outros líderes trabalhistas – que "conquistando os altos escalões de comando da economia" seria possível "um dia" realizar o socialismo. Na realidade, "conquistar os altos escalões" se revelou nada mais do que a nacionalização dos setores falidos da indústria capitalista, compensando generosamente seus antigos proprietários por seus bens inúteis: um processo que poderia, de qualquer forma, ser muito facilmente revertido através de atos parlamentares de "privatização", uma vez que suas lucratividades para o capital tenham sido asseguradas através de generosos investimentos estatais, financiados por impostos extorquidos das pessoas comuns. Ironicamente, esse caminho, com suas curvas e vais-e-vens autocontraditórios, conduziu da armadilha reformista do movimento trabalhista à completa desintegração do próprio reformismo social-democrata, por meio do qual não somente os já professados "últimos objetivos" socialistas tiveram que ser renunciados abertamente, mas mesmo as referências ao termo "socialismo" tiveram que ser evitadas como uma praga.

Outra ironia que sublinha a lógica perversa da acomodação parlamentar dentro dos limites antitrabalho da estrutura de comando político global do capital é o destino dos partidos "revolucionários" da Terceira Internacional. Ele coloca nitidamente em relevo que determinações estruturais fundamentais estavam em atividade nas clamorosas derrotas sofridas pela esquerda institucionalizada no decorrer do século. Na verdade, para piorar a situação, as derrotas foram sofridas apesar das crises profundas da ordem sócio-econômica e política em vigor. Nesse sentido, o "caminho italiano para o socialismo" e o subseqüente "grande compromisso histórico" do Partido Comunista Italiano, no contexto das mesmas amarras da representação e acomodação parlamentares, com uma idêntica divisão do trabalhismo italiano entre o "braço político" e o "braço sindical", tal como visto nos países com partidos sociais-democratas e trabalhistas, revelaram ser tão desastrosas para o movimento socialista quanto a desintegração das variações sociais-democráticas de reformismo.

Assim, em vista da dolorosa experiência histórica à qual o trabalho tem sido subjugado pelo fracasso dos partidos parlamentares tanto da Segunda como da Terceira Internacionais, não é muito difícil de perceber que não existe esperança para uma efetiva rearticulação do radicalismo socialista sem superar as contradições que necessariamente nascem da fracassada divisão entre o "braço político" e o "braço sindical" do trabalho. Pois, paradoxalmente, a separação e a compartimentalização reformistas dos "dois braços" do trabalho só pode resultar numa paralisante "falta de cabeça" do movimento: ou seja, a mais ou menos consciente internalização da lógica do capital tanto em termos do seu constrangimento material como também de seus princípios reguladores político-democráticos legislativamente salvaguardados. Pois a conformidade com as regras do sistema determina aprioristicamente, em favor do capital, o que pode e o que não pode ser "racionalmente disputado e contestado", e não apenas no domínio político, mas ainda mais em relação à exequibilidade de questionar e desafiar a estrutura estabelecida do processo de reprodução social. Assim, como um resultado da divisão sintonizada com essas regras, o "braço político" perde o poder material através do qual o movimento dos trabalhadores poderia efetivamente opor-se à lógica do capital e à sua força auto-afirmativa, e lutar não só por concessões mínimas – e, na existente moldura estrutural, que podem ser contidas e, se for necessário, revertidas –, mas também para a instituição de uma ordem alternativa da reprodução social. Ao mesmo tempo, enquanto o "braço político"se tornou impotente por privar-se da força combativa material do trabalho produtivo – que é vitalmente importante para a continuação da reprodução do capital – o "braço sindical" foi obrigado a abandonar até mesmo o pensamento de legitimamente preocupar-se, não só com uma mudança estrutural maior, mas até mesmo com qualquer objetivo político. Ele é constrangido a acomodar-se, ao contrário, com melhorias marginais. E mesmo a busca de tais melhorias marginais e parciais devem estar estritamente subordinadas às mudanças conjunturais e às limitações das unidades particulares do capital com as quais as unidades locais do "braço sindical" são, por lei, autorizadas a entrar em "disputa econômica".

18.4.5 - O problema insuperável aqui é – e o permanecerá sem uma reorientação fundamental do objetivo estratégico da transformação socialista – a natureza do poder sob a regência do capital. Políticos reformistas, quer do tipo social-democrata quer daqueles que fantasiam sobre o "caminho italiano para o socialismo" dentro dos limites mutiladores do capitalismo atualmente existente, nunca encararam tal problema. De fato, não poderiam encará-lo porque, se o fizessem, poderiam expor o caráter irrealizável de suas estratégias. Pois, ao tentarem reformar o incontrolável, também pressupunham um poder que não existia e nem poderia existir como a alavanca com que efetivariam a prometida transformação da ordem social estabelecida. Sua postulada alavanca não poderia existir pela simples razão de que o poder do capital social total enquanto controlador do processo de reprodução sócio-metabólica é indivisível, apesar das mistificações perpetuadas pela ideologia burguesa sobre "a divisão de forças" na esfera política.

Portanto, compreensivelmente, as estratégias construídas sobre os dois pilares, de (1) reformar o ingovernável e (2) "conquistar os postos de comando mais elevados" do sistema estabelecido, por meio da alavanca de um poder inexistente, teriam que terminar com a auto-imposta derrota da esquerda histórica. Como nós vimos acima, isso necessariamente se aplicou, mutatis mutandis, também às sociedades pós-revolucionárias "do socialismo atualmente existente" de tipo soviético. Pois, embora as "personificações do capital" pós-revolucionárias nas sociedades do tipo soviética não funcionassem em e através de um ambiente parlamentar, deixaram de enfrentar a ingovernabilidade do capital onde ela se afirmava massivamente, isto é, como o regulador do processo de reprodução sócio-metabólica. Assim, dada sua falha em identificar o verdadeiro objeto da intervenção e reestruturação estratégicas, no nível sócio-metabólico, tentaram exercer o poder numa forma extremamente voluntarista, numa tentativa de solucionar sua verdadeira falta de poder com respeito aos imperativos materiais objetivos e as cegamente seguidas – porém cumpridas cada vez com menos eficiência – necessidades expansivas do sistema do capital pós-capitalista.

O fato de o capital como um modo de reprodução sócio-metabólico ser ingovernável – a verdadeira causa sui compatível com "melhorias e corretivos" somente em nível de efeito e conseqüências, mas não em nível da base causal, como já vimos em vários contextos – significa não somente que o capital é irreformável, mas também que não pode compartilhar poder, mesmo em curto prazo, com forças que pretendem transcendê-lo, não importa em quão longo prazo, como "objetivo final". Essa é a razão pela qual as estratégias de "reforma gradual" da social-democracia tinham que resultar em absolutamente nada em termos de potencial transformador socialista. Enquanto o capital permanecer como o efetivo regulador do metabolismo social, a idéia de "luta igual" entre capital e trabalho – uma idéia perpetuada e realçada pelos rituais de enfrentamento parlamentar dos – "representantes do trabalho" com seus adversários legislativos: um enfrentamento "sem competição", cuja premissa autocontraditoriamente aceita é a permanência da posição material do capital – está destinada a permanecer uma mistificação. As limitadas disputas políticas no parlamento, estritamente reguladas por meio dos instrumentos e instituições da "violência legítima" que se apoiam na estrutura global de comando político do capital, não podem ser uma disputa com o capital, mas apenas entre alguns dos seus componentes mais ou menos diferenciados. Aqueles membros do parlamento que professam sua submissão quer aos variados interesses empresariais quer a seções do trabalhismo reformista, de boa vontade aceitam sua submissão aos constrangimentos necessários à definição de seus objetivos legislativos de acordo com as regras autobeneficentes do "estado constitucional" do capital social global. Ao mesmo tempo, os representantes do trabalho que tentam manter uma postura crítica radical são mantidos fora do parlamento ou se tornam totalmente marginalizados no seu interior. Em contraste com o sistema parlamentar, nas sociedades pós-capitalistas as "personificações do capital" funcionam sob uma mistificação bem diferente, mas igualmente prejudicial. Tentaram tratar o capital ou como uma entidade material – o depósito neutro da "acumulação socialista" – ou como um mecanismo igualmente neutro, o mercado social, ignorando que o capital, na verdade, é sempre uma relação social. Assim, o fetichismo do capital dominou as sociedades pós-capitalistas tanto quanto governou sob o capitalismo, mesmo que a nova legalidade do capital tivesse que assumir uma forma diferente.

A relação entre capital e trabalho não pode ser considerada simétrica, com a possibilidade de equilibrar o poder em disputa entre os dois, muito menos de alterá-la a favor do trabalho. O conceito de "equilíbrio de poder" como regulador da força sócio-política interna pertence apenas ao mundo do capital, influenciando com "legítimo interesse" as mutáveis inter-relações entre os menores e maiores constituintes do capital social total tal como articulados em qualquer ponto particular na história. A sempre crescente "selva legislativa", mencionada na seção 18.4.3 9, é o corolário necessário desse tipo de articulação estrutural do capital social como um todo. De tal articulação – sujeita às qualificações práticas originadas da tendência monopolista do sistema – inevitavelmente se segue também a luta que busca alterar o equilíbrio entre os componentes particulares do capital na arena legislativa. E isto inclui também as limitadas possibilidades da ação legislativa concedidas aos setores do trabalhismo reformista na periferia do equilíbrio, constantemente renovado e do mesmo modo superado, entre as mutáveis unidades do capital. (Um bom exemplo desse tipo de melhoria marginal orientada para o equilíbrio é a "iluminada" legislação de Sir Winston Churchill em 1906 sobre os níveis do salário mínimo "em favor do trabalho", tanto como as recentes controvérsias na União Européia, solicitando a igual remuneração aos grupos de trabalho que se transferiam de um país membro ao outro. Naturalmente, a derrubada completa da boa e velha "legislação sobre salário mínimo" pela "direita radical" sob Margaret Thatcher e seus sucessores, derrubada apesar da impecável descendência legislativa churchilliana, demonstra a extrema precariedade daquelas "conquistas do trabalho" sob circunstâncias históricas significativamente alteradas, exatamente como a presente controvérsia esconde os subjacentes interesses de autoproteção do capital e a necessária fragilidade das medidas trabalhistas a eles associadas.)

Embora os interesses dos integrantes particulares do capital possam ser equilibrados com sucesso – ainda que de maneira estritamente temporária –, não pode haver um equilíbrio entre os interesses e o poder do capital e do trabalho respectivamente. O trabalho ou é o antagonista estrutural e a alternativa sistêmica ao capital – e, nesse caso, "compartilhar da força" com o capital é uma autocontradição absurda – ou permanece a parte estruturalmente subordinada (o constantemente ameaçado "custo de produção") do processo de auto-reprodução ampliada do capital, e como tal totalmente sem poder. A força efetiva do trabalho na existente ordem sócio-econômica é parcial e negativa, como a arma da greve. Por conseguinte, ele não pode ser mantido na sua negatividade indefinidamente, porque a premissa prática necessária de tal operação – mesmo se pensarmos na extraordinária greve pacífica de um ano dos mineiros ingleses – é a continuação do funcionamento da ordem sócio-metabólica, cujas partes que trabalham devem ser capazes de assumir os prejuízos do trabalho temporariamente negado. A idéia de uma greve geral política é uma proposta radicalmente diferente. Se é para ser bem sucedida, deve ter por objetivo uma mudança fundamental na própria ordem sócio-reprodutiva, de outro modo seu impacto está destinado a ser subseqüentemente anulado como nas greves gerais do passado. Assim, o paradoxo do poder desafiando o movimento socialista é que o exercício da força negativa do trabalho atualmente existente é insustentável a longo prazo mesmo na sua parcialidade, e somente sua força potencialmente positiva é verdadeiramente sustentável porque, pela sua própria natureza, ela não pode estar limitada à busca de objetivos parciais. A condição de sua realização é que a força positiva do trabalho enquanto alternativa sistemática ao modo de controle do capital deve considerar a si próprio como o princípio estrutural radical do metabolismo social como um todo. Assim, seja qual for a maneira com que olhamos – quer em sua parcialmente contestadora negatividade, quer como a potencialidade positiva da completa transformação socialista – torna-se claro que sob nenhuma circunstância pode alguém pensar no poder do trabalho compartilhado com o capital (ou ao contrário), apesar das tão bem conhecidas ilusões e as resultantes e inevitáveis derrotas do reformismo parlamentar.

Da assimétrica relação entre o capital e o trabalho também decorre que – em completa contradição com as práticas de representação que dizem respeito às relações internas da pluralidade do capital – o trabalho não pode ser representado. De certo modo, também é verdade que o capital não pode ser representado. Mas isso é verdade com uma diferença radical, se comparado à posição do trabalho. A idéia do próprio capital ser representado no domínio parlamentar pode apenas projetar a ilusão do poder compartilhado e equilibrado entre capital e trabalho, como encontramos nos inumeráveis contos de fadas da ideologia burguesa e reformista. Mas, o postulado de "igualdade" e "imparcialidade", com base no qual nem o trabalho nem o capital como tal estão diretamente representados no domínio legislativo, o qual se supõe seja regulado por algum misterioso "processo próprio da lei", sintonizado com a idéia de Max Weber de que os "juristas" são os criadores autônomos do "Estado ocidental", não é nada mais que uma camuflagem autobeneficente das relações de poder existentes. Pois a grande diferença é que o capital como um todo não é representado porque não precisa de representação, visto que já está completamente no controle do processo sócio-metabólico, incluindo o efetivo controle – extra-parlamentar – de sua própria estrutura de comando político, o Estado. O trabalho, de outro lado, por princípio não pode ser representado porque suas formas possíveis de "representação" – mesmo se pudessem ser organizadas na esfera política com base da "imparcialidade" e "justiça", o que não podem concebivelmente ser em vista das relações materiais e ideológicas de poder existentes – teriam que permanecer completamente estéreis, já que não podem alterar as determinações estruturais extra-parlamentares do modo profundamente enraizado pelo qual se dá a reprodução sócio-metabólica do capital.

Naturalmente, isso não significa que o sistema historicamente desenvolvido de representação parlamentar seja irrelevante para a afirmação das regras do capital sobre a sociedade. Nem pode alguém, de fato, considerar o seu valor para o capital somente por sua indubitável força de mistificação ideológica. Longe disso, pois a representação parlamentar é capaz de realizar algumas funções vitais na ordem sócio-metabólica existente. Em parte, o papel regulador essencial do parlamento consiste em legitimar (e desse modo também "internalisar") a imposição das severíssimas regras da "legalidade constitucional" sobre o trabalho potencialmente recalcitrante. Mas o papel do parlamento de modo algum está limitado à isso. De fato, no seu desenvolvimento histórico, fazer o trabalho sujeitar-se à auto-legitimação da "legalidade constitucional" ficou em segundo lugar frente à sua função crucial, original e primeira, que consistiu e consiste em permitir à pluralidade de capitais encontrar o necessário (mesmo que sempre temporário) modus vivendi e equilíbrio de poder entre seus componentes em todos os momentos do desdobramento da dinâmica do sistema. É assim que o capital, como capital social total, pode afirmar suas regras na esfera política sob as condições da "democracia parlamentar".

Como nós vimos acima, o sistema do capital é constituído de componentes incorrigivelmente centrífugos, na base de uma igualmente incorrigível ligação estrutural adversária comum a todos os seus componentes, desde o microcosmo até as maiores corporações transnacionais. É o capital enquanto totalidade social que mantém sob controle (e deve fazê-lo de uma forma adequada) a força centrífuga. Pode fazê-lo por meio das regras universalmente dominantes e das determinações estruturais que objetivamente definem o próprio capital como um modo de controle sócio-metabólico. As determinações em questão são internas não apenas ao sistema como um todo, mas também a todos os seus componentes. Em outras palavras, elas devem ser compartilhadas por todos os diversos componentes particulares do capital, não obstante seus conflitantes interesses vis-à-vis com o outro. Sem compartilhá-los – o que simultaneamente também significa compartilhar o vital interesse comum de serem partes do sistema de controle da reprodução sócio-metabólica, do qual emerge a autocentrada consciência de classe das "personificações do capital" –, não poderiam operar entre si como uma pluralidade de capitais afirmando seus interesses particulares dentro das restrições estruturais globais e da autopreservação dinâmica do seu sistema em toda situação histórica dada. Eis como o capital enquanto tal, articulado como o modo de reprodução sócio-metabólico atualmente existente, pode manter sob controle a intranscindível força centrífuga de suas partes constituintes. Não simplesmente anulando aquela força – com o que o sistema do capital deixaria de ser um viável sistema sui generis –, mas complementando-a por meio dos imperativos da reprodução sistêmica global e, desse modo, apenas impedindo o impacto desintegrador das insuperáveis interações conflitivas.

É assim que o Estado do sistema do capital alcança sua enorme importância não simplesmente como a estrutura reguladora global das contingentes relações políticas, mas também como um constituinte material essencial do sistema no seu todo, sem o qual o capital não poderia afirmar-se como a força controladora do modo estabelecido de reprodução sócio-metabólica. Desta maneira, nas circunstâncias da "democracia constitucional", o sistema parlamentar é uma parte essencial na manutenção, sob um controle adequado, da força centrífuga da pluralidade do capital. Nesse processo, os interesses da multiplicidade dos capitais podem ser adequadamente representados, pois a representação dos mais diversos interesses do capital no parlamento, sob o comando estrutural global político do capital, está completamente em sintonia com as determinações gerais do controle sócio-metabólico. Afora o antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, que também afeta, claro, os constituintes particulares do capital, os conflitos entre a pluralidade dos capitais mutuamente se compensam – sujeitos aos limites globais das determinações mencionadas acima. Eles nunca podem ser dirigidos contra o sistema do capital, sem o qual a pluralidade dos capitais divergentes não poderia sequer ser imaginado, muito menos existir. Assim, a força reguladora da representação parlamentar, até onde a pluralidade do capital diz respeito, é completamente adequada, tanto como uma representação genuína, como quanto a preservação (ou 'eternalização") de um poder – a força de controle sócio-metabólica – já existente. Mas, precisamente por essa razão, o trabalho não pode, por princípio, ser representado. Pois o interesse vital do trabalho é a transformação radical da ordem sócio-reprodutiva estabelecida, e não sua preservação: a única coisa compatível com a representação parlamentar enquanto tal sob a estrutura de comando político global do capital. É assim que a assimétrica relação entre o capital e o trabalho anula os interesses emancipatórios do trabalho na esfera política sob todas as formas históricas conhecidas do sistema parlamentar.

Existe outra maneira pela qual a política parlamentar serve aos interesses do capital como um sistema metabólico, assim como aos interesses de seus múltiplos constituintes. De acordo com as mutáveis dinâmicas de desenvolvimento do capital social total, o parlamento pode prover a estrutura para deslocamentos de longo alcance na operação estratégica do sistema face à face com o trabalho, tal como, nas décadas do pós-guerra, do movimento "Butskellismo" (ou o paternalista "uma única nação torysta") à selvageria das estratégias da "direita radical" de Thatcher. Muito revelador nesse aspecto é o nítido contraste entre duas soluções parlamentares para o desdobramento da crise estrutural do capital, tal como percebida e comentada por diferentes seções do capital inglês em 1979. Pois o mesmo ano no qual se iniciaram os quinze longos anos de dominação do parlamento inglês pelo governo de Margaret Thatcher também testemunhou o eclipse da prematura linha política anterior do Partido Conservador, sumariada em uma nostálgica entrevista transmitida na rede de televisão BBC pelo antigo Primeiro Ministro Harold Macmillan, em fevereiro de 1979. Assim foi como o "Super-Mac" – movimento que depois sarcasticamente denunciou o governo Thatcher pelo fato de suas corruptas políticas de privatização serem uma prática vulgar e de visão curta de "vender as pratas da família" – resumiu sua proposta de solução para a crise que não mais podia ser negada, tentando permanecer em sintonia com o espírito do "consenso político" do Estado keynesiano orientado para o Welfare seguido pelas seções dominantes do capital inglês depois da Segunda Grande Guerra por duas décadas e meia:

"Talvez o caminho fosse colocar, de algum modo, todo mundo junto e dizer, "Gente, está tudo em nossas mãos; vamos pôr mãos à obra, aumentar a produção total da 'riqueza mercantil'. Isto é o que queremos... Em nosso país, estou certo de que as pessoas receberiam bem uma verdadeira liderança – 'garotos e garotas, vamos reunir-nos e fazer aquele mundo maravilhoso que podemos fazer para nós'... Estou certo de que existem forças agora que, se pudéssemos ao menos uni-las, quer no governo quer em uma unidade das grandes organizações dos empregados e sindicatos, ou as igrejas – todas as pessoas que influenciam a opinião –, que diriam 'Basta; nós precisamos ter um novo começo'. É uma questão de moral; nós precisamos ter a determinação e precisamos reconstruir nossa coragem"10.

Poucos meses depois dessa entrevista, o Partido Conservador, sob a liderança de Margaret Thatcher, foi eleito para o governo. Dentro de um curto período de tempo todos os membros parlamentares do Partido Tory a favor da "nação única" foram tachados de ineptos e afastados da política tão brutalmente quanto os membros da ala esquerda do Partido Trabalhista o foram posteriormente, sob a liderança dos antigos esquerdistas: Michael Foot e Neil Kinnock. Longe de se dirigirem aos "garotos e garotas" a fim de estimulá-los a se unirem com o governo e com as "grandes organizações de empregadores e sindicatos", para a causa da "questão moral" de fazerem juntos "um novo começo" na aperfeiçoada "produção de riqueza mercantil", a mudança de guarda no Partido Conservador (e não apenas naquele partido) colocou como item principal na agenda política a opressão "constitucional" dos órgãos defensivos da classe trabalhadora. "Os garotos e garotas" no parlamento – antigos colegas de Macmillan – estavam ocupados apresentando leis punitivas antitrabalho, junto com as apropriadas medidas industriais e financeiras concebidas e instituídas no mesmo espírito em favor do capital. E a mudança do domínio político de algumas seções do capital para outras mais agressivas não foi, de modo algum, um aperfeiçoamento somente inglês. Pelo contrário, o desdobramento estrutural da crise do sistema do capital trouxe com ele medidas política, industrial e financeira muito similares, assim como suas racionalizações ideológicas, em todos os países "capitalistas avançados".

Por mais difícil que seja acreditar no que os nossos olhos lêem na passagem abaixo, temos que prestar atenção à mesma enquanto um típico exemplo vindo da "direita radical" dos USA. Sintetiza a "teoria econômica objetiva" de um importante expert/especulador financeiro e influente lobbysta, James Dale Davidson.11 Ele argumenta em prol dos méritos "científicos" da linha antitrabalho dessa maneira:

"Enquanto investidor, você deve ser sempre cauteloso com as suposições corretas acerca das relações econômicas. Isso é especialmente verdadeiro num tópico como (surpresa, surpresa!) salários, quando súplicas e considerações políticas ficam no caminho da verdade. A verdade é que quaisquer que sejam suas intenções, é tremendamente difícil para os empregadores nas sociedades de mercado 'explorarem' os trabalhadores. Em verdade, isso é quase impossível quando os trabalhadores são livres para desenvolver seus talentos e movimentar-se de uma oportunidade para outra. (isto é, na terra-do-nunca da utopia do 'capitalista do povo'.) Surpreendentemente (desta vez, uma surpresa real), é muito mais comum os trabalhadores explorarem os capitalistas. Em geral, essa é a função dos sindicatos dos trabalhadores. Eles aumentam o nível de salário acima do nível de mercado. O resultado é que os investidores recebem uma porção menor da renda da firma do que receberiam se as coisas fossem de outra maneira. (...) a existência de instituições democráticas durante períodos em que o aumento da tecnologia impulsiona a economia mais ou menos garante que os trabalhadores irão explorar os capitalistas."12

De modo característico, a cruel intervenção dos "parlamentos democráticos", minando até a limitada força defensiva dos sindicatos, não é sequer mencionada na descrição das mudanças em curso a favor do capital, da precarização em larga escala da força de trabalho à concomitante criminalização daqueles que a combatem. Tudo é atribuído, com a costumeira objetividade científica, aos fatores tecnológicos estritos. Como se as forças políticas, que o autor enquanto lobbysta está ansioso para influenciar com todos os meios à sua disposição, nem mesmo existissem. É assim que as leis anti-sindicato do passado recente seriam, supostamente, totalmente irrelevantes para o entendimento desses desenvolvimentos. Dizem-nos que tão somente a tecnologia racionalmente inquestionável explica porque "os sindicatos estão agora capengando nas sociedades do ocidente, pois a tecnologia está reduzindo as economias de escala. Isso explica porque os diferenciais de renda estão aumentando de novo, visto que essencialmente os trabalhadores não especializados são obrigados a procurar emprego com salários ao nível do mercado"13. Isto é, na verdade, 'obrigados a encontrar emprego' se eles puderem, não com 'salário ao nível do mercado', mas freqüentemente com salário bem abaixo do nível de subsistência, dado o impacto devastador do desemprego crônico nas idealizadas 'economias de escala corretamente ajustadas' no sistema do capital contemporâneo. Evidentemente, tudo isso nada tem a ver com a selvageria das leis anti-sindicatos, nem com a desumanizante brutalidade do 'desemprego estrutural'. Em verdade, o próprio desemprego deve ser o artifício mais astuto já bolado pelo trabalho para 'explorar os capitalistas e investidores', pobres desamparados, obrigando-os a 'receber uma porção menor da receita do que eles poderiam receber de outro modo'; sendo esse 'outro modo' aquele do desemprego que os permitisse fazer a economia funcionar sob as condições mais generosas de geração de renda do pleno emprego.

Mas, deixando o cuidadoso e astuciosamente criado mundo da fantasia dos cínicos apologistas do capital e voltando à realidade, existem mais duas condições agravantes para serem consideradas aqui. A primeira é que o trabalho, acomodando-se diante das coações paralisantes da estrutura parlamentar no momento do aprofundamento da crise estrutural do capital, não pode deixar de ser gravemente afetado pelo impacto negativo das mudanças dentro da estrutura do poder do capital social total e pela pequena margem de ação que elas podem fornecer ao trabalho, mesmo para os seus mais limitados ganhos defensivos. A atual submissão do trabalhismo reformista às forças diametralmente opostas aos interesses da classe trabalhadora demonstra que a fase histórica de estratégias defensivas já se esgotou. A social-democratização dos partidos comunistas do ocidente, juntamente com a transformação dos partidos tradicionais sociais-democratas e trabalhistas em mansos defensores da tímida – e, em seus próprios termos de referência, ineficaz – reforma sócio-econômica e política do trabalhismo liberal, oferece exemplos dolorosamente óbvios da derrota sofrida pela esquerda histórica através desses deslocamentos e mudanças no interior dos limites da acomodação parlamentar. O fato de que alguns proeminentes políticos da ala direita do Partido Trabalhista britânico agora se encontram marginalizados por suas 'inaceitavelmente francas opiniões esquerdistas' que, dizem, prejudicam as perspectivas do 'Novo Trabalho' no governo – inaceitáveis, de fato, ao ponto em que eles próprios se sentem obrigados a anunciar sua retirada da política na próxima eleição geral, evitando, desse modo, a humilhação da 'derrota eleitoral' – é uma mudança irônica nessa infeliz, mas muito eloqüente, história. Ela sublinha, à sua própria maneira, através da 'preparação para governar' adotada pelos líderes do partido, que não pode tolerar nem mesmo as promessas não cumpridas da velha cláusula IV, pois sempre que o trabalhismo reformista estiver no governo o capital permanecerá no comando.

A segunda condição agravante é até mais séria, já que coloca em questão a própria sobrevivência da humanidade. Pois, a despeito da pior das condições sócio-econômicas e até a eliminação da margem para ajustamentos menores a favor do trabalho – com o ativo envolvimento de medidas autoritárias legislativas e a cumplicidade de seu próprio partido – o capital é incapaz de resolver suas crises estruturais e de reconstituir com sucesso as condições das dinâmicas expansionistas. Ao contrário. Visando a permanecer no controle do metabolismo social, é compelido a intrometer-se em territórios que não pode controlar nem utilizar para os fins de uma sustentável acumulação de capital. Além disso, para permanecer no comando da reprodução societária qualquer que seja o custo para a humanidade, o capital deve minar até mesmo suas próprias instituições políticas, as quais puderam funcionar como um corretivo parcial e como uma espécie de válvula de segurança no passado. Num passado no qual a via do deslocamento expansionista das crescentes contradições que se acumulavam do capital ainda estava mais ou menos aberta. Hoje, pelo contrário, as opções do sistema do capital se estreitou em todo mundo, incluindo a esfera da política e da ação parlamentar corretiva. Essa redução das opções de recuperação da expansão traz consigo o imperativo de dominar diretamente também a política por um dessacralizado 'consenso político' entre o capital secular e o 'Novo Trabalho', num complemento apropriado às tendências autoritárias da 'Nova Ordem Mundial' e que não se restringe de modo algum apenas ao Partido Trabalhista inglês. A consumação desse dessacralizado consenso – longe de ser o último triunfo do capital como as fantasias absurdas sobre o 'fim da história conflitual' o afirmam – antes prenunciam o perigo de um colapso maior, afetando não apenas um número limitado dos elementos centrífugos do capital, não apenas um setor chave como a finança internacional, mas o sistema global do capital na sua totalidade. A necessidade de contrapor-se à força destrutiva extra-parlamentar do capital com a apropriada ação extra-parlamentar de um movimento socialista radicalmente rearticulado, adquire sua relevância e urgência precisamente em vista desse perigo.

18.4.6 - Quando a fase histórica de conquistas defensivas está exaurida, o trabalho, enquanto antagonista estrutural do capital, só pode avançar sua causa – mesmo minimamente – caso se torne ofensivo, encarando como seu objetivo a radical negação e a positiva transformação do modo de reprodução sócio-metabólica mesmo quando estiver lutando por objetivos mais limitados. Pois, somente através da adoção de uma estratégia global viável, os passos parciais podem tornar-se cumulativos, num nítido contraste com todas as formas conhecidas do trabalhismo reformista que desapareceram sem deixar traços, como algumas gotas de água na areia do deserto.

Conquistas defensivas, no passado, estiveram sempre estreitamente ligadas às fases de expansão do sistema do capital. Eram retiradas da margem de concessões que o sistema não somente podia dispor, como também podia positivamente transformar em vantagens para si próprio. Mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias, elas não poderiam trazer a prometida realização 'gradual' do socialismo sequer uma polegada mais perto. Devido à sua própria natureza, eram apenas concessões conjunturais realizadas sob condições favoráveis ao próprio capital e, somente enquanto 'glória do capital', eram proveitosas também para o trabalho. Mas, uma vez que a fase histórica das concessões expansionistas do capital ficou para trás, também pertence ao passado a capitulação total do trabalhismo reformista que nós testemunhamos nas últimas décadas. Sob as atuais condições, não apenas novos ganhos defensivos do trabalho estão fora de questão, mas mesmo muitas das concessões do passado devem ser extorquidas gradativamente, dependendo apenas do potencial impacto desestabilizador na continuidade da auto-reprodução do capital em caso de serem retiradas em demasia num pequeno intervalo de tempo. É isso que moderará a tendência à equalização da taxa diferencial de exploração nos países de capitalismo avançado, até quando o capital social total dos países envolvidos puder compensá-la através da dominação neocolonial de áreas do planeta que fornecem para o 'capital metropolitano', graças à margem mais elevada de exploração praticável, uma margem de lucro bem mais alta. Contudo, mesmo tais fatores correntemente paliativos estão destinados a ser temporários e removidos com o desdobramento das crises estruturais do capital. (...)

A grande dificuldade para o trabalho como antagonista do capital é que, enquanto o único objetivo viável de sua luta transformadora é o poder sócio-metabólico do capital – com seu controle estrutural/hierárquico, não simplesmente pessoal, mas objetivo, sobre a esfera produtiva material, do qual outras formas de 'personificação' podem (e, sob as estratégias mal concebidas, com o tempo devem) nascer – esse objetivo, da maior importância, não pode ser alcançado sem conquistar o controle da esfera política. Além disso, a dificuldade é intensificada pela tentação de acreditar que uma vez neutralizadas as instituições políticas do sistema capitalista herdado, o poder do próprio capital estaria firmemente sob controle; uma crença fatal que só poderia acabar nas bem-conhecidas derrotas históricas do passado.

Como vimos no capítulo 2 14, o sistema do capital é feito de elementos incorrigivelmente centrífugos, complementados com sua dimensão coesiva não apenas pelo rudemente dominante poder da 'mão invisível', mas também pelas funções legal e política do Estado moderno. O fracasso das sociedades pós-capitalistas está em que tentaram opor-se à determinação centrífuga do sistema herdado sobrepondo aos seus elementos particulares contraditórios a estrutura de comando extremamente centralizada de um Estado político autoritário, em vez de se reportarem ao problema crucial de como solucionar – através da reestruturação interna e da instituição do substantivo controle democrático – o caráter contraditório e o correlato modo centrífugo de funcionamento das unidades reprodutivas e distributivas particulares. A remoção das personificações privadas capitalistas do capital, portanto, não poderia cumprir esse papel, nem mesmo como o primeiro passo a caminho da prometida transformação socialista, já que a natureza contraditória e centrífuga do sistema herdado foi de fato mantida através da imposição da política de controle centralizada às custas do trabalho. De fato, o sistema sócio-metabólico se tornou mais incontrolável do que antes, devido à inabilidade em substituir produtivamente a 'mão invisível' da antiga ordem reprodutiva pelo autoritarismo voluntarista das 'visíveis' novas personificações do capital pós-capitalista. Inevitavelmente, isso provocou a crescente hostilidade, para com a ordem pós-revolucionária, dos maltratados sujeitos do trabalho excedente politicamente extraído. O fato de que a força do trabalho foi sujeita ao cruel controle político, e às vezes até à mais desumana disciplina dos agregados campos de trabalho, não significa que as personificações do capital de tipo soviético estavam em controle do sistema. A incontrolabilidade do sistema reprodutivo pós-capitalista se manifestou através de suas crônicas falhas em alcançar seus objetivos econômicos, fazendo um escárnio de suas alegações acerca da 'economia planejada'. Isso é o que selou seu destino, destituindo-o de sua professada legitimidade e fazendo de seu colapso somente uma questão de tempo. Que nos estágios finais da existência do sistema do tipo soviético, as personificações pós-revolucionárias do capital desesperadamente tentassem contrabandear de suas sociedades a 'mão invisível', rebatizando-a – para fazê-la palatável – como 'mercado socialista', apenas sublinhou o quão irremediavelmente incontrolável permanecia o sistema pós-capitalista, mesmo depois de sete décadas de 'controle socialista', em total ausência de um substantivo controle democrático de suas unidades produtiva e distributiva.

É razoável afirmar que a reconstituição e a substantiva democratização da esfera política são a condição necessária para uma intervenção no modo de controle sócio-metabólico do capital. Pois o poder do capital não é, e não pode ser, limitado às estritas funções produtivas. Para controlá-las com sucesso, o capital deve ser complementado pelo seu próprio modo de controle político. A estrutura material de comando do capital não pode afirmar-se sem a estrutura de comando político global do sistema. Assim, a alternativa ao modo sócio-metabólico de controle do capital deve, do mesmo modo, abarcar todos os aspectos complementares do processo de reprodução societário, desde as funções estritamente produtivas e distributivas às mais amplas dimensões da direção política. Visto que o capital está atualmente com o controle de todos os aspectos vitais do metabolismo social, pode dar-se ao luxo de definir a esfera de legitimação política enquanto uma questão estritamente formal, excluindo, desse modo, sem exame prévio, a possibilidade de ser legitimamente contestado em sua esfera de funcionamento substantiva. Conformando-se a tais determinações, o trabalho, enquanto antagonista do capital atualmente existente, pode apenas condenar-se à permanente impotência. Pois a instituição de uma viável ordem sócio-metabólica alternativa é praticável apenas através da articulação da democracia substantiva, definida como a atividade autodeterminada dos produtores associados na política não menos que na produção material e cultural.

É uma característica singular do sistema do capital que, na sua normalidade, as funções materiais reprodutivas sejam executadas num compartimento separado, sob uma estrutura de comando substancialmente diferente da ampla estrutura de comando político do capital corporificada no Estado moderno. Essa separação e 'disjunção', constituída no curso da ascensão histórica do capital dirigida para a auto-expansão do valor de troca, de modo algum é desvantajosa para o próprio sistema. Muito pelo contrário. Pois as personificações econômico/gerenciais do capital podem exercer sua autoridade sobre as unidades reprodutivas particulares, em antecipação a um feed-back do mercado, a ser convertido no devido tempo em uma ação corretiva, e o Estado cumpre suas funções complementares parcialmente na esfera internacional do mercado mundial (incluindo a garantia dos interesses do capital em guerras, se necessário for), e parcialmente face a face com a potencial ou realmente recalcitrante força do trabalho. Assim, nos dois casos, o antagonista estrutural do capital é firmemente mantido sob controle pela compartimentalização estabelecida e a radical alienação dos produtores frente ao poder de tomar decisões em todas as esferas num sistema bem ajustado às necessidades da reprodução ampliada e da acumulação do capital.

Em completo contraste, o alternativo – socialista – modo de controle reprodutivo é inimaginável sem com sucesso superar as existentes disjunção e alienação. A condição necessária para realizar as funções da reprodução diretamente material de um sistema socialista é a restituição do poder de tomar decisões – em todas as esferas de atividade e em todos os níveis de coordenação, desde os empreendimentos locais até o mais amplo intercâmbio internacional – aos produtores associados. O 'fenecimento do Estado' não se refere a algo misterioso ou remoto, mas a um processo perfeitamente tangível, que precisa ser iniciado agora no presente. Significa a progressiva reaquisição das forças alienadas de decisão política pelos indivíduos na transição para a genuína sociedade socialista. Sem a reaquisição desses poderes, nem é imaginável o novo modo de controle político da sociedade como um todo por seus indivíduos, nem muito menos a operação cotidiana não-contraditória e, portanto, coesiva/planejável das unidades produtiva e distributiva particulares pela auto-administração dos seus produtores associados.

A reconstituição da unidade da reprodução material e da esfera política é a característica definidora essencial do modo socialista de controle sócio-metabólico. A criação de suas mediações necessárias não pode ser deixada para um futuro distante, como o apologeticamente teorizado 'nível mais alto do comunismo'. Pois, se os passos mediadores não forem perseguidos desde o princípio, como parte orgânica da estratégia transformadora, nunca serão tomados. Conservar a dimensão política sob uma autoridade separada, divorciada das funções reprodutivas materiais da força de trabalho, significa reter a dependência e subordinação estrutural do trabalho, tornando desse modo também impossível tomar as medidas subsequentes em direção a uma sustentável transformação socialista da ordem social estabelecida. Foi nesse sentido, tão revelador quanto fatal, que o sistema soviético reforçou a disjunção entre as funções do Estado e a força de trabalho sob seu controle, impondo as ordens de seu aparato político sobre os processos produtivos diretos sob o pretexto de 'planejamento', em vez de ajudar a ativar o poder de decisão autônomo dos produtores. Nem mesmo uma eternidade poderia transformar em sistema socialista auto-administrado a ordem sócio-metabólica aprisionada por determinações estruturais tão irremediavelmente alienadas.

18.4.7 - Nas circunstâncias do 'capitalismo avançado' atualmente existente, a deterioração das condições da força de trabalho não pode ser contraditada – e muito menos pode ser questionada a dolorosa submissão estrutural do trabalho – sem uma reestruturação fundamental do movimento socialista, transformando sua atual postura defensiva em outra capaz de ação ofensiva. Pois não apenas o modo tradicional de controle político parlamentar, mas também a acomodação reformista do trabalho, esgotaram-se.

O que é importante ter em mente é que a renovação da própria forma parlamentar de legislação política é inevitável se o movimento trabalhista quer conseguir alguma coisa nas atuais circunstâncias. Tal renovação apenas pode viabilizar-se pelo desenvolvimento de um movimento extra-parlamentar enquanto força vital condicionante do próprio parlamento e da estrutura legislativa de uma sociedade globalmente em transição. Tal como as coisas estão hoje, o trabalho enquanto antagonista do capital é obrigado a defender seus interesses não apenas com uma, mas com as duas mãos atadas às costas. Uma delas atada pelas forças abertamente hostis ao trabalho e a outra pelos seus próprios partidos e lideranças sindicais reformistas. Esses cumprem a função especial de personificações do capital no interior do próprio movimento do trabalho a serviço da acomodação total, de fato, de sua capitulação, aos imperativos materiais 'realistas' do sistema. O que resta, então, como a única arma para a luta na atual articulação castrante do movimento trabalhista de massas – batendo a cabeça em ponta de faca – não é o que se pode considerar sequer uma arma estritamente defensiva; apesar dos porta-vozes do 'Novo Trabalho', em sua 'Comissão de Justiça', listarem as benfeitorias da 'grande e boa' sociedade capitalista ao proclamarem que a competição vindoura se conformará completamente aos requisitos da 'imparcialidade' e 'justiça'. Sob tais condições, a opção do movimento dos trabalhadores é resignar-se à aceitação de tais limites ou dar os passos necessários para desatar suas próprias mãos, não importa quão difícil possa vir a ser essa última linha de ação. Pois, hoje, os antigos líderes trabalhistas admitem abertamente, como o fez Tony Blair em um discurso em Derby – de modo apropriado no dia primeiro de abril – que 'O Partido Trabalhista é o partido do empresariado e das indústrias modernas na Inglaterra'15. Isso representa a fase final da traição total a tudo que poderia ser traído da velha tradição social-democrata. Como podemos ler no The Times de Londres:

"O trabalhismo, em sua famosa estratégia de 'coquetéis de camarão' nos almoços da City (sob o antigo líder John Smith), já abordou o empresariado antes. Mas a nova comissão (sobre as 'Políticas Públicas e o Empresariado Britânico', estruturada pelos trabalhistas seguindo o modelo da sua 'Comissão de Justiça'), especialmente no que diz respeito à sua relação com o partido, é diferente. A idéia da ofensiva dos 'coquetéis de camarão' era provar que não queríamos qualquer mal', afirma um dos colegas de Blair. 'Agora estamos indo para além disso: queremos mostrar que podemos fazer negócios com o empresariado'"16.

A única questão é por quanto tempo a classe trabalhadora vai aceitar ser tratada como o trouxa de primeiro de abril, e por quanto tempo a estratégia de capitulação ao grande empresariado pode ser seguida para além da próxima vitória eleitoral de Pirro. Pois, além de tudo, não apenas sabemos que Margaret Thatcher podia 'negociar com Gorbachev', e vice-versa, no mesmo espírito do 'não há alternativa' que está sendo agora militantemente advogado pelo 'Novo Trabalho' enquanto o 'partido do empresariado moderno', como também sabemos o que no fim ocorreu tanto com Gorbachev e a Baronesa Thatcher, quanto com suas então glorificadas estratégias.

A disputa entre capital e trabalho na estrutura do sistema parlamentar nunca foi 'justa e igual', nem o poderia jamais ser. Pois o capital, enquanto tal, não é uma força parlamentar, apesar do fato de seus interesses poderem ser adequadamente representados no parlamento, como mencionamos antes. O que necessária e antecipadamente decide contra o trabalho o confronto político com o capital confinado ao parlamento é a inescapável circunstância pela qual o capital social total não pode deixar de ser uma força extra-parlamentar par excellence. É assim tanto quando a pluralidade de capitais afirma os interesses do seu sistema como um todo contra o trabalho, como quando ajeitam entre si, com a ajuda das 'regras do jogo parlamentar', os aspectos legais e políticos de suas diferenças particulares.

Naturalmente, quando chega a hora de impor os ditames do capital aos governos formados por parlamentares dos trabalhadores, nenhuma besteira dos Primeiros Ministros Trabalhistas é tolerada. Há aproximadamente dez anos, o Senhor Campbell Adamson – um ex-Diretor Geral da Confederação da Indústria Britânica – fez uma reveladora confissão numa entrevista de televisão. Contou que de fato havia ameaçado Harold Wilson (então Primeiro Ministro do Governo Britânico) com uma greve geral de investimentos se não respondesse favoravelmente ao ultimato de sua Confederação. Adamson candidamente admitiu que o ato com que ameaçou era inconstitucional (em suas próprias palavras), acrescentando que 'felizmente' não houve necessidade de prosseguir com a planejada greve geral do investimentos, já que o ' Primeiro Ministro concordou com nossas demandas'.

Portanto, a própria constitucionalidade é um joguete nas mãos dos representantes do capital, para ser rude e cinicamente utilizado como um artifício autolegitimador contra o trabalho. As personificações do capital, quando elas abusam da 'constitucionalidade democrática', não são, obviamente, mandadas para a Torre de Londres – como sem dúvida o seriam por um semelhante ultraje ao Rei na Alta Idade Média. Pelo contrário, são elevados a Cavaleiros ou à Casa dos Lords, até mesmo por governos trabalhistas. Quanto aos que pensam ser essa uma 'peculiaridade dos ingleses', devem lembrar-se do que aconteceu ao Presidente – o guardião ex officio da Constituição Americana – no tão falado caso 'Irã-Contras'. O Comitê do Congresso norte-americano que investigava o caso concluiu que a administração Reagan era culpada de 'subverter a lei e minar a Constituição'. Mas, obviamente, esse veredicto – apesar de suas graves implicações para a alegada 'regência da lei'(jamais levada em consideração pelos Hayeks da vida), não teve a menor conseqüência para o Presidente, nem resultou na introdução de salvaguardas constitucionais necessárias para prevenir violações similares da Constituição americana no futuro.

No que diz respeito aos representantes políticos do trabalho, a questão não é simplesmente de fracasso pessoal ou de ceder às tentações ou gratificações das suas posições privilegiadas quando eleitos. É muito mais grave do que isso. O problema é que quando, como chefes ou ministros de governo, supostamente deveriam ser capazes de controlar politicamente o sistema, nada fazem de semelhante. Pois operam no interior da esfera política a priori pré-determinada a favor do capital pela estrutura de poder existente do seu modo sócio-metabólico de reprodução. Sem radicalmente enfrentar e materialmente desalojar as estruturas profundamente enraizadas e o modo de controle sócio-metabólico do capital, a capitulação a favor do capital é apenas uma questão de tempo, normalmente numa velocidade que quase supera a da luz. Independentemente de pensarmos em Ramsay MacDonald, Bettino Craxi, Felipe Gonzáles ou François Mitterant – e até mesmo o prisioneiro de tanto tempo, Nelson Mandela, o novo defensor da indústria bélica da África do Sul 17 – a história é sempre deprimentemente a mesma. Freqüentemente até mesmo a antecipação do que seria o "papel realista e responsável" que supostamente é apropriado ao ansiosamente aguardado futuro cargo nos altos escalões ministeriais, já é suficiente para produzir as mais inesperadas surpresas. Aneurin Bevan, o então líder do trabalhismo de esquerda e o mais firme oponente da corrida nuclear na Inglaterra, não hesitou em desfazer-se dos seus princípios socialistas e acabar com a conferência anual dos seus ex-camaradas da ala esquerda do Partido18, com a desculpa de que dele, enquanto designado Secretário do Exterior de um futuro governo trabalhista, não se deveria esperar "que entrasse no fórum de negociação internacional nu, e que se sente assim na conferência ao defender os interesses do país", qual seja, a posição privilegiada do imperialismo britânico como membro do exclusivo 'clube nuclear'.

A classe trabalhadora foi um incômodo apêndice tardio do sistema parlamentar burguês, e sempre foi por ele tratado como tal depois que conseguiu entrar em seus corredores. Ela jamais pôde, nem remotamente, encarar o poder do capital como o fundamento efetivo do sistema político parlamentar. Ainda que as regras formais e os custos materiais para adentrar ao parlamento pudessem vir a ser eqüitativos – o que, claro, não podem ser diante da monstruosa desigualdade de riqueza entre as classes, assim como as vantagens ideológicas e educacionais gozadas pelas classes dominantes enquanto controladoras material e cultural da 'ideologia dominante' – em nada seria significativamente alterada a situação. Pois a questão fundamental diz respeito à relação estrutural entre a estrutura política parlamentar e o atual modo sócio-metabólico de reprodução totalmente dominado pelo capital.

Por outro lado, a disjunção entre economia e política, essencialmente adequada ao desenvolvimento histórico do sistema do capital, colocou ao movimento dos trabalhadores um desafio enorme, ainda não enfrentado. O fracasso da esquerda histórica está inextrincavelmente associado à essa circunstância, já que a articulação defensiva do movimento socialista tanto diretamente refletiu, quanto se acomodou à tal disjunção. Que essa fatal aceitação de tais determinações estruturais não tenha sido de bom grado nem voluntária, mas sim uma acomodação forçada, não altera o fato do enredamento do trabalho na margem existente, desesperadamente estreita para a ação auto-emancipatória, no interior da estrutura dada. Foi uma acomodação forçada no sentido de imposta ao trabalho, como pré-condição necessária à sua autorização para entrar na esfera parlamentar da 'emancipação política' e para ter acesso às correspondentes melhorias reformistas limitadas, tão logo as forças originalmente extra-parlamentares de oposição radical aderissem à tal via. O espaço para esse tipo de articulação reformista do movimento trabalhista de massas se abriu, 'no pequeno canto europeu do mundo', com a sua 'hinterland' global imperialisticamente dominada pela fase da expansão dinâmica – e portanto capaz de 'permissividade' – do desenvolvimento do capital na segunda metade do século dezenove e levou quase um século para esgotar-se. A separação incorrigivelmente paralisante do 'braço político' do 'braço sindical' do trabalho, acima mencionada, foi complemente apropriada e um apoio a esse tipo de desenvolvimento – oferecendo, de modo muito discriminatório, algumas limitadas vantagens materiais às classes trabalhadoras às custas da super-exploração das massas do resto do mundo. Desde o começo, não passou de uma ilusão a perspectiva de que uma mudança radical estrutural – socialismo alcançado por mudanças graduais – viria, um dia, através da aceitação não-crítica dos limites estruturais incorrigíveis do sistema; ainda que, num primeiro momento, alguns políticos reformistas e líderes sindicais genuinamente nela acreditassem. Foi, claro, um fato histórico contingente que o movimento socialista, após inícios muito distintos, tenha acatado a separação do seu 'braço político' do seu corpo sindical para poder operar no interior da estrutura parlamentar criada pela personificação do capital para defender e administrar os interesses do sistema do capital. Contudo, a vitória da estratégia reformista no movimento socialista não foi de modo algum acidental ou a conseqüência de aberrações pessoais contingentes ou, ainda, de traições burocráticas. Foi, sim, o corolário necessário da adaptação do movimento à pré-estabelecida estrutura política parlamentar e de sua acomodação à disjunção estrutural peculiar entre as características políticas e econômicas do sistema do capital. O sucesso da ofensiva socialista é inconcebível sem a recusa radical à tais determinações estruturais da ordem estabelecida e sem a reconstrução do movimento do trabalho na sua integridade, não apenas com seus 'braços' mas também com a plena consciência de seus objetivos transformadores como alternativa estratégica necessária e viável ao sistema do capital.

18.4.8 - O problema insolúvel na atual estrutura das instituições políticas é a desigualdade fundamental entre capital e trabalho nas relações de poder da sociedade como um todo, que se afirma por si mesma enquanto o modo atual de reprodução metabólica não for radicalmente alterado. Neste sentido, é importante citar uma passagem dos Manuscritos econômicos de 1861-3, de Marx:

"O trabalho produtivo – como produtor de valor – sempre confronta o capital enquanto trabalho de trabalhadores isolados, seja qual for a combinação com que esses trabalhadores possam entrar no processo de produção. Assim, enquanto o capital representa o poder produtivo social do trabalho para com os trabalhadores, o trabalho produtivo sempre representa frente ao capital apenas o trabalhador isolado"19.

Se, por um milagre, os parlamentos aprovassem amanhã uma lei, mesmo que unanimemente, determinando que a partir de depois de amanhã tudo teria que ser diferente – ou seja, que o poder social do trabalho produtivo seria reconhecido pelo capital e que o trabalho produtivo não deveria ser representado vis-à-vis ao capital como trabalho de trabalhadores isolados – tudo isso não faria qualquer diferença. Nem poderia fazer. Pois o capital, tal como é constituído materialmente – através do trabalho alienado e acumulado –, de fato e objetivamente representa o poder sócio-produtivo do trabalho. Essa relação objetiva de dominação estrutural é o que encontra sua corporificação adequada também nas instituições políticas do sistema do capital. Essa é razão pela qual a pluralidade do capital pode ser adequadamente representada na estrutura da política parlamentar, enquanto o trabalho não. Pois as relações de poder material existentes – incorrigivelmente iníquas – tornam a 'representação'do trabalho ou vazia (tal como a representação parlamentar estritamente política da classe materialmente subordinada do trabalho) ou auto-contraditória (tanto em termos da representação eleitoral do trabalhador isolado, quanto da 'participação democrática' do radical antagonista estrutural do capital que, apesar de tudo, felizmente está predisposto a aceitar as migalhas das acomodações marginais reformistas). Nenhuma reforma política, nos parâmetros do sistema existente, pode concebivelmente alterar essas relações de poder material.

O que torna as coisas ainda piores para os que buscam por mudanças significativas no interior dos limites do sistema político estabelecido, é que esse pode reivindicar a seu favor genuína legitimidade constitucional para seu atual modo de funcionamento, baseado na inversão historicamente constituída do atual estado de coisas. Pois, enquanto o capitalista não apenas for a 'personificação do capital', mas também funcionar 'como a personificação do caráter social do trabalho, da oficina total como tal'20, o sistema pode alegar representar o poder produtivo vitalmente necessário, da sociedade como um todo vis-à-vis aos indivíduos enquanto base da continuidade das suas existências, incorporando os interesses de todos. Na sua capacidade de condição necessária objetivamente dada da reprodução societária, é assim que o capital se afirma na sociedade não apenas como poder de fato, mas também de jure, e por esse meio como fundamento da sua própria ordem política. O fato de que a legitimidade constitucional do capital é historicamente fundada na expropriação direta dos produtores das condições de reprodução sócio-metabólica – os instrumentos e materiais do trabalho – e, portanto, de que a alegada 'constitucionalidade' do capital (tal como a origem de todas as constituições) é inconstitucional, essa verdade intragável, perde-se nas brumas do passado remoto. Historicamente, os 'poderes sócio-produtivos do trabalho, ou os poderes produtivos do trabalho social, primeiro se desenvolveram como o modo de produção especificamente capitalista, por isso aparecem como algo imanente à relação-capital e dela inseparável'21. É assim que o modo sócio-metabólico de reprodução social do capital se legitima e se eterniza enquanto um sistema justificadamente inquestionável. O questionamento legítimo é admissível apenas em relação a aspectos menores de uma estrutura global inalterável. A verdadeira questão no plano da reprodução sócio-econômica – qual seja, o poder produtivo do trabalho efetivamente exercido e sua necessidade absoluta para assegurar a reprodução do próprio capital – desaparece de vista. Parcialmente, devido à ignorância sobre a origem histórica pouquíssimo legítima da acumulação primitiva do capital e sobre a concomitante, e freqüentemente violenta, expropriação da propriedade como pré-condição do sistema atual de funcionamento do sistema; e, parcialmente, devido à natureza mistificadora das relações distributivas e produtivas. Pois

"as condições objetivas do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador, ao invés, esse aparece subsumido àquelas. O CAPITAL EMPREGA O TRABALHO. Mesmo na sua simplicidade, essa relação é uma personificação de coisas e uma reificação de pessoas"22.

Nada disso pode ser enfrentado e remediado no interior da estrutura de uma reforma política parlamentar. Nem mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, como no terremoto político favorável ao Partido Trabalhista de 1945, antecedido na Inglaterra pelo reflorescimento da crítica ao sistema devido aos sacrifícios que as massas populares tiveram que agüentar durante os longos anos de depressão no período entre guerras e na subseqüente guerra mundial. Seria tão absurdo esperar a abolição da 'personificação de coisas e reificação de pessoas' por decreto político, quanto esperar a proclamação de tal reforma nos limites das instituições políticas do capital. Pois o sistema do capital não pode funcionar sem a perversa inversão das relações entre pessoas e coisas: o poder reificado e alienado do capital que domina as massas. Similarmente, seria um milagre se os trabalhadores, que no processo de trabalho confrontam o capital enquanto 'trabalhadores isolados', pudessem reaver o controle dos poderes sócio-produtivos do seu trabalho por algum decreto político, ou mesmo por uma longa série de reformas parlamentares decretadas sob a ordem sócio-metabólica de controle do capital. Pois, em tais questões, não há como evitar o conflito irreconciliável acerca dos objetivos materiais do tipo ou/ou.

O capital nem pode abdicar dos seus – usurpados – poderes sócio-produtivos em favor do trabalho, nem pode compartilhá-los com o trabalho. Pois constituem o poder global de controle da reprodução societária sob a forma da 'regência da riqueza sobre a sociedade'. Por isso, é impossível escapar, em se tratando do metabolismo social fundamental, da severa lógica do ou/ou. Ou a riqueza, sob a forma de capital, continua a reger a sociedade humana, levando-a aos limites da autodestruição, ou a sociedade de produtores associados aprende a reger a riqueza alienada e reificada enquanto poderes produtivos surgidos do trabalho social auto-determinado de seus membros individuais. O capital é a força extra-parlamentar par excellence que não pode ser politicamente limitada em seu poder de controle sócio-metabólico. Essa é a razão pela qual a única forma de representação política compatível com o modo de funcionamento do capital é aquela que efetivamente nega a possibilidade de contestar o seu poder material. E, justamente porque é a força extra-parlamentar par excellence, o capital nada tem a temer das reformas que podem ser decretadas no interior da estrutura política parlamentar. Já que a questão vital, da qual tudo depende, é que 'as condições objetivas do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador', mas, ao invés, 'esse aparece subsumido àquelas', nenhuma mudança significativa é viável sem voltar à essa questão, tanto através de políticas capazes de desafiar o poder e modos de ação extra-parlamentar do capital, como também na esfera da reprodução material. Portanto, o único desafio que poderia de modo sustentável afetar o poder do capital seria aquele que simultaneamente visasse assumir as funções produtivas decisivas do sistema e adquirir controle sobre todas as correspondentes esferas de tomada de decisão política, ao invés de ser incorrigivelmente limitado pela circularidade confinante da ação legislativo-parlamentar.

Certamente, a castração da política socialista é perfeitamente consistente com as relações de poder do capital e com seu único modo viável de operar, em todas as suas formas. Já que as condições do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador – muito pelo contrário –, o trabalhador como trabalhador isolado no processo de trabalho pode legitimamente ser considerado como tal em outras importantes esferas da reprodução societária e do processo de distribuição. Na política, ele ou ela podem politicamente agir como eleitores (isolados) que tomam suas decisões estritamente sozinhos na privacidade da cabine de votação. E na esfera material, da maior importância, do 'consumo produtivo' que completa o ciclo da reprodução ampliada do capital, eles podem novamente surgir como 'consumidores soberanos' – estritamente individuais/isolados – que não mantêm qualquer relação com a sua classe. Ao contrário, agem consultando – desta vez, não suas consciências moral e política na inviolabilidade da cabine eleitoral, como fizeram na capacidade de 'eleitores soberanos' – sua 'consciência racional'(ou 'faculdade racional) para calcular e maximizar as 'utilidades marginais privadas'. O sistema pós-capitalista de tipo soviético manteve essa mesma relação, apesar da abolição da forma do capitalista privado de personificação do capital. O trabalhador permaneceu subsumido às condições objetivas do trabalho, ao controle autoritário do Estado tal como gerido pelas personificações pós-capitalistas do capital. Enquanto trabalhadores isolados, que sob nenhuma circunstância poderiam organizar a si próprios vis-à-vis à autoridade controladora do processo de trabalho, poderiam ser premiados enquanto indivíduos 'stakhanovistas' exemplares (a serem emulados por outros) ou punidos e enviados aos milhares aos campos de trabalho como 'sabotadores criminosos' e 'agentes inimigos', mas o trabalho como tal não poderia adquirir legitimidade como agente coletivo do processo de trabalho, muito menos assumir o controle da reprodução sócio-metabólica como um todo. Embora e apesar de, sob o planejamento autoritário, a idéia do 'consumidor soberano' não pudesse ser mantida, a questão do consumo também era regulada numa base individual – e numa base profundamente discriminatória – mesmo em se tratando de 'stakhanovistas' e 'trabalhadores exemplares'. Até mesmo a ficção do 'voto secreto' foi mantida, pela qual os 'indivíduos socialistas' deveriam consultar suas 'consciências moral e política' na privacidade da cabine de votação, e chegar às esperadas respostas unânimes que legitimavam o estado de coisas. Tudo isso de modo algum era surpreendente. Pois diferenças substantivas no campo da política e no 'consumo produtivo' seriam viáveis somente alterando radicalmente o princípio estrutural do sistema do capital que deve manter os trabalhadores – de um modo ou de outro – subsumidos às condições objetivas do seu próprio trabalho.

O poder extra-parlamentar do capital pode ser enfrentado apenas pela força e modo de ação extra-parlamentares do trabalho. Isso é ainda mais importante se levarmos em consideração a completa desintegração do reformismo parlamentar então proclamado e seguido pelo movimento trabalhista no passado, com o fito de fornecer trabalho ao capital sob a forma de fragmentada substância eleitoral. Rosa Luxemburg escreveu há muito tempo, profeticamente, que

"O Parlamentarismo é o berço de todas as tendências oportunistas atualmente existentes na social-democracia ocidental. (...) fornece o fundamento às ilusões do corrente oportunismo, tais como a valoração exagerada das reformas sociais, a colaboração de classe e partido, a esperança de um desenvolvimento pacífico para o socialismo etc... Com o crescimento do movimento trabalhista, o parlamentarismo se transformou na mola impulsionadora dos carreiristas políticos. É por isso que tantos ambiciosos fracassados da burguesia afluem para os estandartes dos partidos socialistas (...) (O objetivo é) dissolver o setor de classe ativo, consciente, do proletariado na massa amorfa de um 'eleitorado'"23.

A dissolução de que Rosa Luxemburgo trata como uma ameaça foi completamente realizada em nossos dias, utilizando a noção de 'eleitorado amorfo' como seu fundamento ideológico legitimador. Por esse processo, não apenas a claramente reformista social-democracia ocidental, mas também os afiliados anteriormente revolucionários da Terceira Internacional, transformaram a si próprios em partidos liberais burgueses, consumando dessa forma a capitulação do 'braço político' do trabalho aos imperativos 'racionais' e 'realísticos' do capital. Tudo isso veio a ocorrer de um modo muito mais fácil do que se poderia imaginar previamente. Pois o processo de dissolução das estratégias defensivas do trabalho foi objetivamente auxiliada e sustentada pelas relações de poder material do sistema do capital que, no processo de reprodução e consumo, pode apenas reconhecer o trabalhador e o consumidor isolado e, na esfera política, o eleitor equivalente ao trabalhador impotente. Essa é a razão pela qual, no fim, a política 'representacional', teve que ser degradada ao nível de relações públicas comuns, excretando de suas entranhas e catapultando para o ápice da política parlamentar – ao invés de efetivar a prometida 'via italiana ao socialismo' – criaturas 'representativas' como o magnata da mídia Silvio Berlusconi – dentre todos os lugares, no país do, outrora, Partido Comunista de Gramsci.

Naturalmente, nos países de 'capitalismo avançado', tendo por pano de fundo o clamoroso malogro histórico do reformismo e da política representacional em geral, mudança tão necessária é impensável sem a reconstituição radical do movimento trabalhista – na sua integridade e numa escala internacional – como força extra-parlamentar. A divisão, que cava sua própria cova, entre o 'braço político' e o 'braço sindical' do trabalho, todo dia comprova que nada mais é do que um anacronismo histórico e incorrigível. Não apenas tendo em vista o seu óbvio fracasso na arena política ao longo de todo século, mas também devido à sua inabilidade para abarcar na sua estrutura os incontáveis milhões de 'pessoas supérfluas' desempregadas, expulsas do processo de trabalho a uma velocidade alarmante pelos imperativos desumanizadores do 'capital produtivo'. A força de trabalho ainda empregada, ao definir suas estratégias enquanto um movimento político organizado, não pode dar-se ao luxo de desconsiderar por mais tempo as aflições profundas – assim como a grande força potencial – desses incontáveis milhões. Ao menos porque, amanhã, o mesmo destino deve atingir crescentes parcelas do trabalho hoje ainda empregadas. Dado o papel facilitador e servil da política para o modo de controle sócio-metabólico do capital – ideologicamente racionalizado e justificado pelos slogans 'aumento da produtividade', 'vantagem competitiva', 'disciplina de mercado', 'globalização', 'cost-efficiency', enfrentar o desafio dos 'cinco pequenos tigres', ou qualquer outro – muito pouco se pode esperar das instituições parlamentares como estão hoje articuladas. Apenas uma intervenção radical no nível da perdulária 'economia' do processo reprodutivo material da ordem estabelecida pode com sucesso retificar a impotência do trabalho, desde que ele consiga afirmar-se contra os fatores mais desfavoráveis hoje dominantes pela ação articulada de um maciço movimento extra-parlamentar. É isto que coloca a atualidade histórica da ofensiva socialista em relevo.

Devemos enfatizar novamente que, como mencionamos na seção 18.1.1, a atualidade histórica da ofensiva socialista – dada a exaustão das concessões favoráveis que o capital podia fazer no passado para um movimento trabalhista defensivamente articulado – não significa que o sucesso esteja assegurado e que sua realização seja imediata em nosso vaticínio. 'Histórica', aqui, significa, por um lado, que a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e orientação do movimento socialista se apresentou na agenda histórica; e, de outro lado, que o processo em questão se desdobra sob a pressão de determinações históricas poderosas, empurrando a função social do trabalho na direção de uma ofensiva estratégica prolongada caso queira realizar não apenas os seus objetivos potencialmente globais, mas até mesmo seus objetivos mais limitados. O percurso à frente é provavelmente muito árduo e, certamente, não é um que possua atalhos ou que possa ser evitado.

As mediações históricas requeridas enquanto medidas viáveis para a realização da ordem sócio-metabólica alternativa do trabalho são inerentes tanto à perseguição do objetivo – uma intervenção radical não confinada à esfera política, mas que desafia diretamente as estruturas materiais da própria relação-capital que subsume o trabalho às condições reificadas e alienadas de seu exercício, condenando o sujeito do processo de produção a suportar a situação de não-poder dos trabalhadores isolados – quanto ao modo de ação necessariamente extra-parlamentar pelo qual pode ser progressivamente traduzida em realidade. Pois os últimos cem anos provaram, com dolorosa evidência, que, pela própria natureza do empreendimento, para haver qualquer chance de sucesso, já os primeiros passos devem enfrentar e superar – ainda que no início apenas em contextos limitados – a perniciosa disjunção entre economia e política, que serve apenas ao modo sócio-metabólico de controle do capital, assim como a separação entre os seus braços "político" e "sindical", que por si própria derrota o trabalho.

Devemos também salientar que a negação prática materialmente efetiva das estruturas reprodutivas dominantes, através da ação e organização extra-parlamentar, não implica a carência de leis ou mesmo a rejeição apriorística do próprio parlamento. Contudo, envolve um desafio organizacionalmente sustentado dos limites castrantes, favoráveis ao capital, que as "regras do jogo" parlamentar impõem ao trabalho enquanto antagonista do capital. Naturalmente, a questão da legislação não pode ser ignorada ou varrida da existência mesmo numa genuína sociedade socialista do futuro. O que decidirá a questão é a relação entre os produtores associados e as regras que eles se colocam através de formas apropriadas de tomada de decisão. Certamente, Marx estava convencido de que, numa sociedade socialista desenvolvida, muitas das inevitáveis exigências de regulamentação exigidas poderiam ser atendidas através de costumes e tradições estabelecidos pelas decisões autônomas e inter-relações espontâneas dos indivíduos que vivem e trabalham numa estrutura de sociedade não-concorrencial. Sem isso, a supressão da política como esfera alienada é inconcebível, tornando impensável também o 'fenecimento do Estado'. Mas também é claro que, para o futuro previsível, muitas das exigências de regulamentação geral devem permanecer associadas a procedimentos legislativos. (...)

Portanto, o papel do movimento extra-parlamentar do trabalho é duplo. Por um lado, deve afirmar seus interesses estratégicos enquanto uma alternativa sócio-metabólica pelo confronto e pela necessária negação, em termos práticos, das determinações estruturais da ordem estabelecida tal como manifestada na relação-capital e na concomitante subordinação do trabalho no processo sócio-econômico de reprodução material, em vez de auxiliar a re-estabilizar o capital nas crises, como ocorreu em situações importantes do passado reformista. Ao mesmo tempo, por outro lado, o poder político do capital que predomina no parlamento precisa e pode ser desafiado através da pressão que as formas de ação extra-parlamentar podem exercer sobre o legislativo e o executivo, como testemunhamos até mesmo pelo impacto de 'uma única questão', como a do movimento contra a taxação por cabeça, que jogou um papel decisivo na queda de Margaret Thatcher do topo da pirâmide política. Sem o desafio extra-parlamentar estrategicamente orientado e sustentado, os partidos que se alternam no governo podem continuar a funcionar enquanto convenientes álibis recíprocos para o fracasso estrutural do sistema para com o trabalho, de tal modo efetivamente confinando o papel do movimento do trabalho à sua posição de um inconveniente, mas marginalizado, apêndice no sistema parlamentar do capital. Portanto, em relação tanto ao domínio material-reprodutivo quanto ao político, a constituição de um movimento socialista extra-parlamentar de massas estrategicamente viável – em conjunção com as formas tradicionais de organização política do trabalho, hoje incorrigivelmente sem rumo e muito necessitadas do apoio e da pressão radicalizantes de tais forças extra-parlamentares – é uma pré-condição vital para a contraposição ao maciço poder extra-parlamentar do capital.


1 - Em 1995 István Mészáros publicou, pela prestigiada editora Merlin Press, de Londres, Beyond Capital. Várias resenhas nos países de língua inglesa (e a de Paul Singer, publicada na Praxis no 8) fizeram do livro referência obrigatória no debate socialista. (∂) A obra é, de fato, "monumental", como bem apontou Singer. Resultante de muitas décadas de reflexão, é a expressão concentrada da genialidade e do compromisso do autor com o destino histórico dos trabalhadores. Apaixonada e apaixonante, desafia para um debate aberto muitos importantes pensadores desde Hegel, passando por Marx, pelos principais marxistas deste século e do anterior, pelos intelectuais mais conservadores e também pelos mais liberais das hostes burguesas e, por fim, pelos reformistas que marcaram o movimento operário neste século. (∂) Suas teses se referem às questões hoje decisivas para a construção de uma sociabilidade comunista "para além do capital". Partindo da recuperação do conteúdo marxiano do capital (modo de controle sócio-metabólico que subsume o trabalho vivo ao trabalho morto, com todas as seqüelas daí decorrentes), argumenta Mészáros que a falência das experiências de tipo soviético se deve à sua incapacidade em superar o capital enquanto tal, restringindo-se a abolir uma dada forma histórica de sua personificação, aquela do proprietário privado. Contra os liberais e conservadores de todos os matizes, argumenta tanto mostrando a transitoriedade necessária do capital (pois, no limite, seu desenvolvimento implica a destruição da humanidade), como também a incapacidade ontológica de o capital controlar suas inerentes contradições humano-destrutivas. E, coerentemente, argumenta também que a falência dos projetos reformistas de todos os matizes tem suas raízes na ilusão de que seria possível controlar politicamente o capital com reformas parlamentares que, paulatinamente, levariam ao socialismo. Segundo Mészáros, sendo o capital o fundamento extra-parlamentar controlador tanto do Estado como do parlamento, é uma impossibilidade ontológica o seu controle por meio do parlamento, como pregaram os reformistas ao longo de todo este século. Tal assunto – a relação Estado-capital em Beyond Capital – foi tratado por Sérgio Lessa em "Beyond Capital: Estado e capital", publicado em Serviço Social e Sociedade, n° 56; Ed. Cortez; São Paulo, março 1998. (∂) O texto a seguir, fruto dessa discussão, é constituído por excertos selecionados do Capítulo 18 – "Historical Actuality of the Socialist Offensive" – de Beyond Capital (NT). Sua divulgação foi possível graças à gentil autorização do autor e das editoras Boitempo e Projeto que brevemente, em co-edição, publicarão integralmente o conceituado livro de Mészáros no Brasil, com previsão para o primeiro semestre de 1999. A tradução dos trechos aqui publicados é de Verônica Ferreira Pinto e a revisão da tradução é de Sergio Lessa. Em função de seu caráter de excertos e para servir de referência à leitura foram mantidos, nas diversas seções, os números de referência originais de Beyond Capital (NE).

2 - Momento predominante (NT).

3 - Literalmente, "Galeria da Fama", isto é, um salão ou museu que guarda fotos e objetos de pessoas que se distinguiram em determinado ramo de atividade.

4 - "Roy Hatterley tells TonyBlair where he has gone wrong". (NA, entre parêntesis)

5 - "Burden of opposition", The Times, 11 de agosto de 1995.

6 - Ver BOBBIO, Norberto; Política e cultura; Einaudi, Torino, 1955. De Hobbes a Marx; Morano Editore, Napoli, 1965. Saggi sulla scienza política in Italia; Editori Laterza, Roma & Bari, 1971. Quale Socialismo? Discussione di un'alternativa; Einaudi, Torino, 1976. Dalla struttura alla funzione: Nuovi studi di teoria del diritto; Edizioni di Comunità, Milão, 1977; The future of democracy: a defense of the rules of the game; Polity Press, Oxford, 1987.

7 - Nas palavras de Bobbio: "Atualmente estão em primeiro plano não só os direitos de liberdade, ou o direito ao trabalho e a seguridade social, como também, por exemplo, o direito da humanidade atual, e ainda das gerações futuras, a viver num ambiente não contaminado, o direito à procriação auto-regulada, o direito à privacidade diante da possibilidade que hoje tem o Estado de saber exatamente o que fazemos. Além disso, queria assinalar a gravíssima ameaça à conservação do patrimônio genético gerada pelo progresso técnico da biologia, ameaça à qual não poderá responder-se senão estabelecendo novos direitos." BOBBIO, Norberto; "Nuevas fronteras de la izquierda". In: Leviatán, n° 47, Madri, 1992. Apud. LOZANO, Gabriel Vargas. Más allá del derrumbe: Socialismo y democracia en la crisis de civilización contemporánea. Século XXI editores, México & Madrid, 1994, p.117. Ver especialmente os capítulos "Opciones después del derrumbe" e "El socialismo liberal" para os inteligentes comentários do autor sobre o trabalho de Bobbio.

8 - KELLER, Peter. "Blair can reivent socialism – if he finds the right words". The Sunday Times, 9 de outubro de 1994. (NA parêntesis)

9 - Não incluída nesta tradução.

10 - "Harold Macmillan at 85: An interview". The Listener, 8/2/79, p. 209.

11 - James Dale Davidson é criador e presidente da "União Nacional dos Contribuintes", organização de direita "e a força dirigente da Convenção Constitucional para equilibrar o orçamento", de acordo com a publicidade enfática de seu livro citado a seguir. Seu sucesso em equilibrar o orçamento dos USA também é uma boa medida da qualidade de suas teorias.

12 - DAVIDSON, James Dale; and REES-MOGG, Sir (agora Lord) William, Blood in the streets: investment profits in a World Gone Mad. Sidgwick & Jackson, Londres, 1988, pp. 156-7. O título do livro se refere a um famoso ditado do Barão Nathan Rothschild: "O tempo de comprar é quando o sangue está correndo nas ruas."(NA entre parêntesis)

13 - Id. Ibid., p. 157.

14 - Não selecionado para a presente tradução.

15 - BASSET, Philip. "Labour shows it means to do business with business". The Times, 7 de abril de 1995.

16 - Id. Ibid..

17 - GILMORE, Inigo. "Mandela applauds South Africa's rising arms trade". The Times, 23 de novembro de 1994.

18 - Trata-se do Partido Trabalhista. (NT)

19 - MECW, vol. 34, p. 460. Os itálicos são de Marx.

20 - Id. Ibid., p. 457. Os itálicos são de Marx.

21 - Id. Ibid., p. 456. Itálicos de Marx.

22 - Id. Ibid., p. 457. Maiúsculas e itálicos de Marx.

23 - LUXEMBURG, Rosa. "Organizational Questions of the Russian Social Democracy" (edição em inglês: "Leninism or Marxism?"; In: The Russian Revolution and Leninism or Marxim?, apresentado por Bertram D. Wolfe; in: The University of Michigan Press, Ann Arbor, 1970, p. 98.


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 11, saida do prelo em Julho de 1998, tenha sido proveitosa e agradável. 1999 é o quinto ano de existência da revista.

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