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Agricultura e Reforma Agrária: 1
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José Graziano da Silva
Jose_Graziano@revistapraxis.cjb.net
Professor Titular de Economia Agrícola da Universidade de Campinas, UNICAMP, autor de vários livros, incluindo A Nova Dinâmica da Agricultura Brasileira (IE/UNICAMP).
1 - Como é próprio das épocas de crise, a questão agrária brasileira emerge na cena política com algumas caraterísticas não tão novas, mas muito importantes:
a) o pipocar de ocupações de terras devolutas por todos os cantos do País, apesar de nem sempre mostrar uma coordenação das ações e/ou uma estratégia comum de luta, recolocou a bandeira da reforma agrária massiva como a palavra de ordem mais importante dos vários movimentos de trabalhadores rurais;
b) a reação do patronato rural não se fez em bloco pela defesa da propriedade privada, como ocorreu em 1985 com a União Democrática Ruralista (UDR), mas em defesa da "legalidade", o que permitiu que a discussão saísse do plano da necessidade ou não da intervenção do Estado na questão agrária para a discussão de quais instrumentos deveriam ser acionados (desapropriação, rito sumário, ITR etc);
c) a recessão dos segmentos urbano-industriais coincide com uma crise agrícola sem similar no pós-guerra, fruto de queda da demanda interna por alimentos e matérias primas de origem agrícola, altos níveis de endividamento dos pequenos e médios produtores, e desestímulo ao setor exportador em função da queda de preços internacionais e da defasagem cambial da nova moeda brasileira. Um recente estudo do IBRE/CEA da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que os preços do algodão, arroz, café, açúcar, cebola, feijão laranja, mandioca, milho e soja caíram em média à metade nos anos noventa em relação à década anterior. A queda do trigo foi ainda maior: mais de 70%. Nesse mesmo período, os custos de produção aumentaram significativamente, puxados em grande parte pela recuperação do valor do salário mínimo que serve de "farol" para os salários e rendimentos pagos no meio rural brasileiro. O resultado foi uma brutal queda na rentabilidade das atividades agropecuárias tradicionais, que diminuiu de quase 40% na média quando se compara a renda bruta das explorações agropecuárias da primeira metade dos anos noventa com a primeira metade da década anterior.2
2 - Nesse quadro, a política agrícola do governo Fernando Henrique foi desastrosa porque:
a) demorou muito em efetivar a securitização das dívidas dos produtores rurais em 1995, grande parte delas decorrentes dos empréstimos tomados no ano anterior, que pegaram a elevação dos juros e da correção monetária do período da URV. Essas dívidas começaram a vencer em agosto/setembro de 1995 e só foram renegociadas efetivamente em fevereiro/março de 1996. Nesse ínterim, os produtores ficaram a mercê dos gerentes dos bancos, que tudo fizeram para receber os créditos não liquidados, forçando assim a quebra de inúmeros pequenos e médios agricultores. O ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Agricultura, Guilherme Dias, pouco antes de pedir demissão em 1997, estimou que cerca de quatrocentos mil agricultores haviam perdido suas terras nos dois primeiros anos do governo Fernando Henrique;3
b) controlou "na boca do caixa" o fluxo de crédito rural e as aquisições dos produtos garantidos pela política de preços mínimos da grande safra colhida em 1994/5, repetindo a prática na safra seguinte e na atual (1996/97). O crédito para investimento praticamente desapareceu nesses anos, exceto para as regiões beneficiadas pelos Fundos Constitucionais. Na região Sudeste e Sul, as duas áreas mais importantes do ponto de vista da produção agropecuária brasileira, as taxas de juros cobradas inviabilizavam a tomada dos empréstimos. Com a honrosa exceção do cacau que se deve à força política de Antônio Carlos Magalhães , não existiram programas especiais de reconversão produtiva para regiões que enfrentaram problemas, desde pragas e doenças até mesmo à concorrência de produtos oriundos do exterior, como foi o caso da triticultura gaúcha ou do algodão nordestino. Só para ter uma idéia da restrição do crédito de investimento: o Ministro da Agricultura vangloriava-se, em julho de 1997, de haver liberado R$ 350 milhões para investimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar,4 o único existente em nível nacional, que conta com um público potencial de quase três milhões de agricultores, segundo o DESER. Isso significa um crédito potencial de menos de R$ 120 por ano para o produtor familiar comprar máquinas e equipamentos, construir benfeitorias e adquirir animais e mudas;
c) facilitou as importações de produtos agrícolas, inclusive daqueles que eram subsidiados nos países de origem, como trigo e algodão, reforçando ainda mais a queda dos preços internos. A médias dos preços internos dos nossos principais produtos agrícolas (feijão, milho, soja, algodão, batata, laranja, arroz, café, bovinos, suínos e frangos) caiu 25% entre 1994 e 1996, apesar dos preços favoráveis apresentados nos mercados internacionais5. Somente em arroz, milho, trigo e algodão, o Brasil importou US$ 1,9 bilhão em 1995 e US$ 2,3 bilhões em 1996. E, embora o setor agropecuário continue a ser superavitário, nota-se nos últimos anos um crescimento acentuado do volume de importações vis-à-vis as exportações, reduzindo o saldo nas suas contas com o exterior. Acrescente-se que os volumes físicos exportados vem crescendo muito mais do que as receitas obtidas, em grande parte porque voltamos a exportar maiores quantidades de produtos in natura, sem maior valor agregado, o que motivou o comentário irônico da professora Maria da Conceição Tavares de que estamos a caminho de um novo modelo, o primário importador!
3 - No que diz respeito à política agrária, também o governo Fernando Henrique deixou muito a desejar:
a) não conseguiu evitar que a violência privada do latifúndio fosse assumida explicitamente pelo Estado e suas forças repressivas, como ocorreu no Acre e no Pará, relembrando momentos de um passado que se acreditava distante, tal como os massacres de Palmares e Canudos;
b) mostrou a falta de um programa para implementar uma verdadeira reforma agrária, deixando-se pautar pelo ritmo das ocupações, como ocorria nos governos anteriores. Apesar disso, vangloria-se de ter assentado cem mil famílias nesses dois primeiros anos, sendo mais de sessenta mil em 1996, tendo liberado para isso recursos de aproximadamente R$ cem milhões. Ora, cada família assentada tem direito por portaria do INCRA a receber, no primeiro ano, R$ 7.500,00 como crédito do PROCERA mais R$ 1.500,00 para sua subsistência e R$ 3.000 para iniciar a construção da casa, o que daria para assentar pouco mais de oito mil famílias com a verba que foi gasta. Ou seja, ou não está assentado o que diz ou não tem dado os recursos necessários às famílias assentadas;
c) voltou a desfraldar a bandeira da tributação progressiva sobre a terra improdutiva como "a alternativa não conflitiva" à desapropriação das terras improdutivas, com o "novo ITR". Pelo retrocesso que isso representa, vale a pena um comentário em separado.
4 - De fato, a tributação progressiva sobre as terras improdutivas é uma velha desculpa para não fazer a Reforma Agrária no Brasil. Isso vem sendo tentado há décadas em vários países, sem nenhum sucesso que possa servir de propaganda, como reconheceu recentemente o próprio Banco Mundial ao dizer que o Brasil é o único País atualmente no mundo a insistir na tese de que um imposto progressivo sobre as terras improdutivas pode resultar numa reforma agrária6. Desde a promulgação do Estatuto da Terra em 1964, o País tentou esse caminho da tributação como um paliativo para evitar o amargo remédio da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Até mesmo o ex-ministro Roberto Campos, um dos ideólogos dessa Reforma Agrária fiscal, reconheceu no seu livro Lanterna na popa que foi um erro imaginar que a tributação progressiva poderia ser um remédio eficaz para impedir o latifúndio improdutivo. E ainda reconhece que nossa falha em promover uma adequada restruturação agrária foi um dos motivos para a má distribuição de renda no Brasil relativamente aos rivais asiáticos Taiwam e Coréia do Sul (pp. 685 e 696).
E porque a tributação da terra não funciona, tanto no Brasil como em outros países? A resposta é simples: pela força que os proprietários rurais tem no Congresso. Nos países latino-americanos, nossos vizinhos, um ano se perdoa o imposto porque choveu, no outro porque não choveu. No Brasil, nem mesmo essa justificativa é preciso: em 1996, a Receita Federal adiou indefinidamente o recolhimento do ITR que deveria ter sido pago até abril. Na verdade, a Receita cedeu à pressão da bancada ruralista para que fosse feita uma revisão dos preços da terra publicados no Diário Oficial (e que servem como valores mínimos aceitos na declaração). Alegavam eles que os preços estavam altos demais e davam como exemplo o preço da terra em Forquilhinha, um pequeno município de Santa Catarina, estimado em cerca R$ 11 mil por ha, possivelmente um erro de digitação na tabela.
O resultado de mais esse perdão já é visível: nos tributos arrecadados pelo governo federal até o final de abril de 1966, o valor do ITR era de apenas R$ 54,3 milhões, ou seja, menos de 0,2% do valor total. A título de comparação, o IPI sobre fumo arrecadou no mesmo período R$ 931,8 milhões, dezessete vezes mais; e o valor do Imposto de Renda retido na fonte dos rendimentos do trabalho aquele valor descontado nos nossos salários todo mês tinha arrecadado R$ 3.309 milhões, ou seja, mais de sessenta vezes o do imposto pago pelos proprietários rurais em todo o País até aquela data.
Na verdade, o valor arrecadado pelo ITR nunca foi significativo. E não o foi por falta de mudar a lei: quase todos os governos depois de 1964 tentaram introduzir "aperfeiçoamentos" no ITR. De 1990 para cá, houve mudança praticamente em todos os anos na sistemática de sua cobrança. E o resultado foi sempre o mesmo: o índice de evasão ultrapassa 90% para os grandes proprietários. Eles simplesmente não pagam o ITR na esperança (que ultimamente, com a atuação da bancada ruralista, virou certeza) de que serão perdoados mais à frente ou simplesmente à espera de que a dívida prescreva um dia por falta de qualquer ação de cobrança por parte do poder público. O descaso é tanto que técnicos da própria Receita Federal consideram o ITR um tributo "deficitário", ou seja, gasta-se mais para arrecadá-lo do que ele efetivamente contribui aos cofres públicos.
5 - Mas apesar de todas essas evidências, em novembro de 1996 o governo Fernando Henrique anunciou, com grande alarde, o envio ao Congresso Nacional de outra Medida Provisória, desta feita para mudar novamente o Imposto Territorial Rural. Dizemos novamente porque a legislação referente ao ITR vem sendo mudada em quase todos os anos de 1990 para cá. A lei que entrou em vigor em 1995 havia sido alterada em 1994 no final do governo Itamar, a pedido do então ministro da Fazenda Fernando Henrique. Depois, já presidente, Fernando Henrique mandou suspender a cobrança desse mesmo imposto, que havia criado no ano anterior, por causa da chiadeira da bancada ruralista, que achava muito elevado o valor mínimo da terra nua aceito pelo INCRA para fins de cálculo do imposto. E, depois, veio com outra proposta de mudança do ITR, com o argumento de que agora vai mesmo elevar o imposto sobre as terras improdutivas. O argumento é no mínimo engraçado, porque o montante que o governo espera poder arrecadar com a nova lei é praticamente o mesmo que poderia arrecadar com a legislação anterior7. Também as simulações realizadas por empresas de consultoria independentes mostram que a elevação das alíquotas poderá atingir mais as propriedades menores e produtivas do que as maiores e improdutivas. Uma pequena amostra de propriedades, que inclui a do presidente da Sociedade Rural Brasileira Luís Hafers, mostrou que os valores lançados a partir da mudança do "novo ITR" são muito inferiores (menos da metade em geral) ao cobrado pela lei anterior.
Mas, o que tem realmente de novo nessa nova reformulação do ITR além de mexer nas alíquotas? Duas mudanças fundamentais: primeira, o ITR passa a ser totalmente declaratório, suprimindo-se o valor da terra mínimo aceito pelo INCRA. Isso significa simplesmente que o latifundiário é quem decidirá quanto vale a terra dele para fins tributários, tanto do ITR como para efeito dos impostos e taxas de compra e venda do imóvel, transmissão por herança, apuração de ganho de capital para efeito da declaração anual do imposto de renda etc. Parece brincadeira, mas é assim mesmo: o proprietário é que escolhe o valor do seu imóvel sobre o qual será cobrado o imposto. O governo argumenta que se o valor do imóvel for subdeclarado, a nova lei prevê como punição que o proprietário receberá aquele valor em caso de desapropriação das suas terras. Pura retórica: o general Costa e Silva tentou passar uma lei que dizia exatamente isso na fase mais dura dos governos militares e o seu decreto-lei 455, de 25/04/69, foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal da época. Não é por outra razão que a redação da nova lei fala que o valor declarado pelo proprietário será o valor depositado em juízo pelo INCRA. Também pura retórica: o ritual de desapropriação em vigor assegura ao proprietário o direito de, a qualquer momento, apresentar uma nova declaração do seu imóvel. Ou seja: se pintar ameaça de desapropriação, o proprietário eleva o valor declarado do imóvel; passou a ameaça, abaixa; e se tiver certeza de que vai mesmo ser desapropriado, bota um valor astronômico, dificultando ainda mais o processo de desapropriação, pois obriga o governo a depositar o valor inflado em juízo até que a avaliação judicial defina o preço real de mercado.
6 - É louvável a proposta de elevar a taxação das terras improdutivas. E elas devem ser desapropriadas o mais rapidamente possível e transformadas em assentamentos para as milhares de famílias de sem-terras que querem trabalhar. O que é inaceitável é que o governo use da boa fé da sociedade brasileira para encobrir mais um benefício aos banqueiros e latifundiários. Nós não temos nada contra o ITR. Pelo contrário, achamos que ele deve ser cobrado como um imposto sobre o patrimônio, como se fosse um IPTU, levando em consideração as melhorias introduzidas pelo poder público para valorizar aquele determinado imóvel. E que teria que subir muito o valor do imposto cobrado mesmo para quem explora bem as suas terras para que o ITR pudesse ser uma fonte significativa de arrecadação. Porque o trabalhador urbano pode pagar R$ 40,00 por m2 de sua casinha na cidade e um grande proprietário de terras não pode pagar R$ 50,00 por hectare, que eqüivale a dez mil metros quadrados?
Mas querer fazer reforma agrária pela via fiscal é como querer fazer omelete sem quebrar os ovos. Depois, a questão não é apenas a de fazer os especuladores venderem as terras improdutivas. Tem o outro lado: quem pode comprar essas terras? Certamente não serão os nossos sem-terras, que também são sem-emprego, sem-renda, sem-moradia, sem-cidadania enfim. Mas não nos iludamos: o ITR ajuda muito pouco na reforma agrária. No caso brasileiro, nada pode substituir o instrumento de desapropriação por interesse social como forma de arrecadação de terras improdutivas para fazer a reforma agrária. E pagar em Títulos da Dívida Agrária, como manda a Constituição, porque se for para pagar em dinheiro não é Reforma Agrária, é negociata imobiliária.
7 - Essa remontagem da crise agrícola com a crise agrária, que caracterizou os dois primeiros anos do governo Fernando Henrique, não é novidade no nosso passado recente e pode ser observada também em 1961/64 e 1981/83, sempre com componentes políticos muito explosivos. A nossa História mostra que a saída desse "emborralho" nunca é setorial; e no passado dependeu fundamentalmente da capacidade de reativar a economia e expandir o nível de emprego nos segmentos urbanos. Aqui reside, a meu ver, a diferença fundamental do momento em que vivemos hoje: a equação fordista "mais investimentos = maior produção = maior nível de emprego" já é coisa do passado mesmo para o Brasil, com 160 milhões de pessoas, um terço ou mais da sua população urbana com níveis de renda considerados insuficientes para permitir uma vida digna e com 25% da população ainda no meio rural. Uma política agrária moderna pode ajudar a equacionar a questão do nosso excedente populacional até que se complete a nossa "transição demográfica" recém iniciada. Além de uma reforma agrária regionalizada, é preciso contemplar uma nova legislação relativa à parceria e ao arrendamento, a titulação dos posseiros e ocupantes e a tributação do patrimônio imobiliário, para tirar da terra o caráter de "reserva de valor". E, sem dúvida, a reforma agrária através da desapropriação por interesse social continua a ser o principal instrumento de política agrária a ser acionado num momento histórico em que há queda expressiva do preço da terra e grandes extensões de terras improdutivas. Essa "reforma agrária de pipoqueiro" que vemos hoje, baseada na desapropriação negociada de áreas de conflito, só pode ser aceita como solução tópica de casos emergenciais.
8 - Uma política de governo tem que buscar a criação de "zonas reformadas" as zonas prioritárias para reforma agrária previstas desde o Estatuto da Terra de 1964 , que permitam concentrar os esforços de todo o poder público em todos os níveis (federal, estadual e municipal) para um desenvolvimento rural integrado dos assentados, buscando garantir assim a sua re-insersão social e econômica. Dada a dimensão do problema e a diversidade do País, é preciso regionalizar a reforma agrária; e é evidente que a sua operacionalização deva ser a mais descentralizada possível, reservando-se ao INCRA apenas a condução da desapropriação do imóvel e as diretrizes gerais do planejamento, entre as quais as metas a serem cumpridas. Pelo menos três grandes regiões precisam ser contempladas numa proposta de reforma agrária neste final de século. Primeiro, o Sudeste-Sul, onde a reforma agrária seria dirigida no sentido de combinar atividades agrícolas e não-agrícolas. Além da grande vantagem de necessitar de menos terra, o que poderia baratear significativamente o custo por família assentada, que é um forte limitante nessa região para a massividade requerida pelo processo distributivo. Essa combinação cria um novo espaço de inserção produtiva que não compete com as atividades agropecuárias já existentes no local. Porque não um assentamento que, além de arroz e feijão, produzisse também casas populares? Ou um pesque-pague que desse uma opção de turismo barato às nossas classes médias baixas confinadas nas grandes metrópoles? Ou de caseiros de "chácaras de recreio" com o acesso gratuito às terras garantido por regime de comodato? Trata-se, no fundo, de buscar novas formas de ocupação para essa população sobrante do ponto de vista estritamente agrícola e industrial, de ex-parceiros, ex-meeiros, ex-bóias frias e ex-pequenos produtores rurais que foram marginalizados pela modernização conservadora das décadas passadas. Trata-se de buscar, nas franjas do crescimento da prestação de serviços pessoais que caracteriza o mundo atual, um conjunto de novas ocupações artesanais que não exijam níveis de qualificação outro que não possam ser adquiridos através de um treinamento rápido para esse conjunto de milhões de "sem-sem", que além de terem perdido o acesso a terra, não têm o privilégio de estarem organizados no Movimento dos Sem-Terra. A segunda grande região seria o Nordeste, com três frentes distintas: as terras das usinas e engenhos falidos da Zona da Mata, o chamado "miolão do semi-árido", refúgio do latifúndio tradicional nordestino e o Vale do Jequitinhonha, que, apesar de estar localizado em Minas Gerais, tem todas as caraterísticas climáticas, econômicas e de grande excedente populacional do Agreste e possui 1,2 milhão de hectares de terras públicas cedidas a empresas de reflorestamento, cujos contratos estão terminando neste final de década. Também no Nordeste a combinação das atividades agrícolas e não-agrícolas seria fundamental para garantir um melhor nível de renda para os assentados. Finalmente, uma terceira grande região seria o que se poderia chamar de pré-Amazônia, ou seja, as zonas que foram objeto da política de colonização dos anos setenta no Maranhão, Pará, Tocantins, Mato Grosso, Rondônia e Acre. Aí, as terras foram doadas a grandes grupos do Centro-Sul do País para implantação de projetos agropecuários. Hoje, vinte anos depois, consumidos os recursos creditícios concedidos pelo governo quase a fundo perdido e dilapidados os recursos naturais então existentes, a quase totalidade desses "projetos de vitrine" aguarda um momento favorável de tensão política e social para vender as terras que eram públicas de volta ao INCRA. Vale a pena ressaltar que os pretensos donos dispõem apenas do direito de posse caso comprovem o cumprimento dos investimentos realizados quando da concessão original e que a Constituição de 1988 mandou revisar essas concessões num prazo de cinco anos, sem que nada tenha sido feito até hoje. É difícil quantificar, mas já ouvi de técnicos da região que mais de cem milhões de hectares poderiam ser arrecadados pelo poder público, caso a legislação vigente fosse efetivamente aplicada. Também aqui na pré-Amazônia a combinação de atividades agrícolas (inclusive extrativas) com não-agrícolas, como o eco-turismo ou guardas-florestais, poderia facilitar a implantação de projetos que fossem efetivamente sustentáveis não apenas do ponto de vista ecológico, mas também econômica e socialmente. Finalmente, é preciso dizer que uma política agrária moderna que tenha na reforma agrária regionalizada o seu principal instrumento, não dispensa o apoio de uma política agrícola dirigida especificamente para os pequenos produtores familiares. Aí devem ser incluídos os próprios assentados depois de decorrido o tempo de implantação dos assentamentos agropecuários. Essa política agrícola para os pequenos tem que ter por meta a restruturação produtiva dos agricultores familiares, buscando habilitá-los para esses novos tempos que já estão vindo. E o seu instrumento fundamental é o crédito de investimento subsidiado, sem o que o fluxo dos "sem-terra" e dos "sem-sem" nunca irá parar de crescer.
9 - Se não fosse por outra razão, seria por falta de alternativa. Qual é a política pública possível hoje em nosso País, que dê casa, comida e trabalho a milhares de pessoas que não têm nenhuma perspectiva de re-insersão produtiva na sociedade urbana moderna? Até mesmo os críticos mais contumazes reconhecem esse mérito na reforma agrária, o de ser uma forma eficiente de combate à pobreza. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) divulgou recentemente uma pesquisa sobre os assentamentos realizados pelo INCRA, procurando mostrar que a reforma agrária não funciona. Uma rápida comparação com os dados disponíveis da PNAD de 1995, recém divulgada pelo IBGE, mostra uma triste realidade do nosso Brasil agrário muito similar ao dos assentamentos. Assim, por exemplo, a PNAD de 95 mostra que 5,3 milhões de famílias rurais tinham uma renda monetária de até três salários mínimos, o que dá uma renda média mensal de apenas R$ 157,20 contra R$ 132,14 encontrada pela pesquisa da CNA entre os assentamentos. Ou seja, duas em cada três das famílias rurais brasileiras tiveram em 1995 uma renda média muito próxima a dos ex-"sem-terras". E é bom lembrar que a pesquisa da CNA não considera os benefícios não monetários recebidos pelos assentados, como o fato de ganharem também uma casa para morar (portanto, não precisam pagar aluguel), nem a produção doméstica que não é vendida. E, segundo os dados da própria pesquisa da CNA divulgados pela Folha de S. Paulo (21/8/96, pp. 1-9), "cerca de 42% dos assentados produzem apenas para consumo próprio" e "as culturas predominantes nos assentamentos são as de milho, mandioca e feijão, seguidas pelo cultivo de arroz, frutas, legumes e verduras". Se compararmos os bens possuídos, também os dados não diferem muito dos obtidos pela CNA: 80% dos ex-"sem-terras" têm rádio e 33% televisão; nos domicílios rurais com renda até três salários mínimos da PNAD 95, 76% têm radio e 37%, televisão. As diferenças maiores aparecem quando comparamos os serviços que dependem do poder público: 66% dos assentados não têm nenhuma forma de coleta de esgoto; e 62% não têm energia elétrica. A PNAD 95 mostra que mais de 50% dos domicílios com renda inferior a três salários mínimos também não tinham esgoto de coleta e que 45% não tinham energia elétrica. A pesquisa da CNA enfatiza o baixo nível tecnológico dos assentamentos, ressaltando que apenas 17% dos assentados têm ou usam tratores. Ora, os dados dos Censos Agropecuários de 1985 (infelizmente, os últimos disponíveis) mostram que menos de 10% dos estabelecimentos agropecuários do País pequenos, médios e grandes usavam trator, proporção que não mudou muito de lá para cá, dadas as restrições para o crédito rural de investimentos, praticamente desaparecido desde então.
10 - Longe de mim querer defender esse arremedo de reforma agrária que vem sendo feito no nosso País. O fato dos assentamentos refletirem o mesmo quadro de miséria e abandono dos nossos pequenos e médios produtores rurais decorre fundamentalmente da política de assentamentos posta em prática no Brasil. É, como já dissemos, uma "reforma agrária de pipoqueiro": os governos inclusive o atual limitam-se a correr atrás dos conflitos que estouram aqui e acolá. Desde 1987, o País não tem um Plano Nacional de Reforma Agrária como exige o Estatuto da Terra. Os assentamentos não passam de intervenções pontuais, verdadeiras ilhas cercadas de problemas por todos os lados: juros de agiotas, atravessadores, latifundiários armados ... A própria pesquisa da CNA mostra que menos da metade dos colonos recebe assistência técnica; e 80% têm que financiar a produção com seus próprios recursos, pois não há uma política agrícola diferenciada para os assentados que estão recomeçando praticamente do nada. Não é de estranhar que, depois de oito anos, muitos acabem por assemelhar-se a seu entorno, nem que um terço dos assentados abandone a terra ou acabe vendendo o seu lote para terceiros...
11 - Mas a pergunta é: que outra política pública poderia ter propiciado casa, comida e trabalho para essas 171.523 famílias muitas semi-analfabetas até hoje assentadas? Por acaso elas seriam absorvidas pelas novas fábricas que estão implantando-se? Poderiam ser camelôs na Praça da Sé? E qual seria o custo alternativo de deixar esse pessoal continuar a migrar para SP? Hoje, a inserção produtiva de migrantes rurais semi-analfabetos é quase impossível: as oportunidades de trabalho são cada vez menores e mais exigentes, não atendendo sequer à demanda daqueles que já estão enraizados nos grandes centros urbanos. Os sem-terras sabem disso. E sabem também que se não conseguirem um pedaço de terra verão seus filhos se tornarem trombadinhas, mendigos e prostitutas. A consulta que fiz à Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP revelou um dado até certo ponto surpreendente: um detento no Carandirú custa de três a cinco salários mínimos por mês aos cofres públicos. Se não houvesse outras razões, seria preferível a pior das reformas agrárias: ao menos garante casa, comida e trabalho por uma geração e custa menos do que a metade.
1 - Texto baseado em palestras apresentadas na 48a Reunião anual da SBPC (São Paulo, julho de 1996) e na Faculdade Católica de Ciências Econômicas da Bahia (julho de 1997).
2 - LOPES, Mauro Rezende (1996). "Os produtores conseguirão pagar as dívidas securitizadas?" Agroanalysis, Rio de Janeiro. 17(4): 10-12 (abril).
3 - CAPARELLI, E. "Globalização exige redefinição da reforma agrária". Gazeta Mercantil, 22/5/97.
4 - Gazeta Mercantil, 11/07/97, p. c-7.
5 - HOMEM DE MELLO, F. Efeitos da política cambial nos preços agrícolas. Gazeta Mercantil, 26/5/97, p. a-6.
6 - Depoimento de Hans Binswanger, economista senior do Banco Mundial, no Seminário Internacional sobre Reforma Agrária e Agricultura Familiar, realizado pela Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados, Brasília, em novembro de 1995.
7 - Na Lei orçamentaria de 1997, encaminhada neste ano ao Congresso Nacional, a arrecadação esperada com o Novo ITR está estimada em R$ 119,3 milhões, ou seja, 44% inferior à de 1996.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 11, saida do prelo em Julho de 1998, tenha sido proveitosa e agradável. 1999 é o quinto ano de existência da revista.
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