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Transição ao Socialismo
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Idaleto Malvezzi Aued
Idaleto_Aued@revistapraxis.cjb.net
Professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Santa Catarina.
"'Toda a economia', diz Marx, 'reduz-se à economia de tempo', isto é, à luta do homem contra a natureza, em qualquer grau de civilização. Reduzida à sua base primordial, a História não é mais do que o prosseguimento da economia do tempo de trabalho. O socialismo não se poderia justificar unicamente pela supressão da exploração; é necessário que assegure à sociedade muito maior economia de tempo que o capitalismo. Se essa condição não fosse preenchida, a abolição da exploração não passaria de um dramático episódio desprovido de futuro. A primeira experiência histórica dos métodos socialistas mostrou a vastidão das suas possibilidades. Mas a economia soviética encontra-se ainda longe de ter aprendido a tirar partido do tempo, a mais preciosa matéria-prima da civilização. A importação da técnica, principal meio de economia de tempo, não fornece ainda, na arena soviética, os resultados que fornece na sua prática capitalista. Sobre este ponto, decisivo para toda a civilização, o socialismo ainda não venceu: provou que pode e deve vencer, até hoje ainda não venceu."
Leon Trotsky
No final da década de oitenta e início da de noventa, duas especificidades marcam o fim do século XX. A primeira é a desestruturação da URSS como formação social superior à capitalista (Aganbeguian, Gorbachev, Lyra, Mandel, Blackburn, Hobsbawm). A segunda é a reprodução da sociedade capitalista, tendo por base uma reestruturação produtiva onde os homens, em geral e insistentemente, perdem seus postos de trabalho (Aued, Aznar, Harvey, Kurz, Lojkine, Rifkin).
Da URSS apreende-se, de um lado, que é possível construir uma sociedade na qual a apropriação da riqueza é feita pela propriedade social em detrimento da privada (Bettelheim, Hobsbawm). De outro, evidencia-se que a produção da riqueza se estrutura sobre o pressuposto de que todos têm de trabalhar, tendo por base o sistema fabril, similar ao do mundo capitalista (Braverman, Dzarassov, Juravlev).
A sociedade capitalista engendra uma base material e social que possibilita à humanidade a construção de outra sociedade, que de suas entranhas emerge, mas que a nega. O elemento mais desenvolvido dessa sociedade, enquanto materialidade, é a máquina-ferramenta-automática (sistema fabril), e, enquanto social, o proletário e o capitalista. Tanto um elemento quanto o outro tem, historicamente, que ser negado e superado pela nova ordem social. A tendência à negação e à superação se dá pela eliminação, na produção de mais-valia, do trabalho vivo, presente, e a afirmação do trabalho passado, como fonte de libertação dos homens do mundo das necessidades.
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Fotografia da Revolução de Fevereiro de 1917, em Petrogrado
Partindo-se da constatação de que a sociedade socialista soviética foi insuficiente para se constituir como modo de produção, a tarefa é percorrer o caminho de demonstrar que a construção dessa sociedade não fez desabrochar todas as potencialidades e possibilidades postas pelo modo de produção capitalista. Quando os revolucionários bolcheviques adotam estratégias de desenvolvimento das forças produtivas, tendo por modelo a base produtiva do mundo burguês, o sistema fabril, recriam as condições materiais que conduzirá à desintegração da própria sociedade socialista. Ao invés de criarem condições para a liberação cada vez maior do trabalho, através da ampliação de uma base produtiva fundamentada no trabalho passado, intensificam a produção para que todos trabalhem. E ao criarem trabalho para todos, criam uma sociedade que tem o trabalho como ethos de coesão social, semelhante à sociedade que se pretende superar, a capitalista. Eis a contradição.
No ideário do movimento comunista do século XX, onde a construção do socialismo é a busca do trabalho para todos, estas reflexões aparecem como descabidas e utópicas. Dizer que a sociedade socialista não se funda no trabalho é degolar a "classe revolucionária", o proletariado. Como o proletariado existirá se se acabar com o trabalho? Como pode existir o homem sem o trabalho? Se a queda do muro de Berlim (1989) e o desmantelamento da URSS (1985-1991) trouxe a desesperança para muitos, permitiu, também, a volta do embate do socialismo como uma alternativa à sociedade capitalista.
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Facsímile dos Primeiros Decretos da Revolução de Outubro
Reconheço que se trata de um tema complexo e controverso e que, por ora, tem como imperativo a superação do debate com feitio ideológico. Certamente, a história não acabou.
I - Transição socialista em questão
A menção à sociedade socialista não privilegia este ou aquele país. É tomada como objeto de análise e exemplifica formulações gerais e abstratas. Destarte, a abordagem não passa apenas pela história do primeiro país socialista, URSS, mas, sobretudo, pela compreensão dos elementos necessários e suficientes para a transição socialista.
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Fotografia de Lenin durante o III Congresso do Komintern, em Julho de 1921
É por demais conhecido que, teoricamente, o território da transição do capitalismo ao socialismo, na perspectiva marxista, é o globo terrestre. Na medida em que o modo de produção capitalista é uma sociedade mundial, sua superação só pode se dar, por pressuposição, também, numa escala mundial. No entanto, desde as formulações de Marx até os primeiros anos do século XX, tem-se como certo que a revolução socialista se inicia em território europeu, principalmente na Europa Ocidental, e, particularmente, nos espaços onde as forças produtivas e as relações sociais de produção burguesas estão mais desenvolvidas, isto é, na Alemanha, Inglaterra e na França, berço da civilização moderna.
Em sua obra Manifesto do Partido Comunista, Marx é quem nos indica essa perspectiva quando afirma que "um espectro ronda a Europa". O espectro é o comunismo que, ao revolucionar as relações sociais em território europeu, se irradiará para todos os demais lugares do planeta, visto que é uma forma superior dos homens produzirem sua existência.
Quando as contradições se aguçam na Rússia, depois de 1861, com o fim da servidão no campo, e a luta de classes se explicita com mais intensidade, discute-se a possibilidade de ocorrer a revolução socialista num país de base agrária, onde as forças produtivas industriais ainda não estão plenamente desenvolvidas, mas que, no entanto, há uma grande base comunal de produção da riqueza agrária (Instituto de Marxismo-Leninismo do PCUS). Marx, nos anos finais de sua vida, é chamado a se manifestar sobre essa possibilidade histórica, sendo que sua contribuição final se deu em 1882, quando redige o segundo prefácio à edição russa do Manifesto do Partido Comunista. Afirma, entretanto, que mesmo tendo uma produção comunal, a transição para uma forma de sociedade superior à capitalista só deve eclodir na medida em que ocorre a revolução nos lugares onde as forças produtivas burguesas estão mais desenvolvidas. Tal formulação indica que as pré-condições para a transição ao socialismo não decorrem de quaisquer relações sociais, são conseqüências do avanço de uma determinada base material dos homens produzirem sua existência, o capitalismo maduro. Daí sua afirmação de que a humanidade só levanta problemas que está em condições materiais de resolver.
Em 1917, os bolcheviques têm clareza dessas formulações marxistas, pois admitem que a revolução socialista é européia e mundial (Hobsbawm). E, introduzem em suas concepções uma nova formulação: a de que o início da revolução socialista pode ocorrer em território onde as forças produtivas e as relações de produção não são as mais desenvolvidas. Destarte, a Rússia é apresentada como uma formação sócio-espacial privilegiada para desencadear o processo revolucionário socialista. Dito de outra maneira, a revolução socialista na Rússia é o estopim da revolução Européia e mundial. Trotsky vê na Rússia a manifestação do "processo" revolucionário, enquanto que Lênin concebe que a Rússia é um elo fraco da cadeia imperialista, por onde a revolução se inicia. Ambas as formulações demonstram a possibilidade do início da revolução socialista ocorrer em territórios distintos da Europa Ocidental. A partir de então, a revolução socialista é uma possibilidade em qualquer lugar, independentemente do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais aí existentes, ainda que sob a forma de revolução democrático-burguesa. Porém, independentemente de onde ocorre o seu início, a escala da revolução é sempre mundial.
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Fotografia de Lenine e Jacob Sverdlov, entre outros líderes da Revolução de 1917
diante do Monumento Provisório em Homenagem a Karl Marx, 1919
Com a revolução bolchevique de outubro de 1917, na Rússia, o estopim da revolução mundial se acendera. No confronto com a contra-revolução, os revolucionários soviéticos operários, camponeses pobres e soldados, sob a liderança dos bolcheviques idealizam estimular os operários dos países capitalistas mais desenvolvidos a fazerem, também, a revolução. E, em assim ocorrendo, viriam, com suas técnicas de produção mais desenvolvidas e com sua cultura superior, em socorro do proletariado dos países "menos desenvolvidos".
Nos momentos iniciais da revolução, a formação sócio-espacial da Rússia não se constitui em variável principal para a definição da revolução. Essa é definida pelo grau de desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas dos países capitalistas mais desenvolvidos. E é certo que o capitalismo na Rússia é retardatário, apesar de combinado, no dizer de Trotsky. No entanto, e na medida em que a revolução européia não se concretiza e que os bolcheviques têm que consolidar a revolução com suas próprias condições, as particularidades e singularidades da Rússia se transformam em condições basilares para a constituição do socialismo em território russo.
Duas são as principais variáveis que condicionam o processo revolucionário soviético: primeira, a formação sócio-espacial da Rússia czarista e, segunda, as estratégias revolucionárias dos bolcheviques, decorrentes das formulações teóricas gerais da transição do capitalismo ao socialismo.
A Rússia czarista é caracterizada pela existência de uma população eminentemente agrária, isto é, 80% da população estão localizados no campo, cuja especificidade é a existência de milhões de pequenos produtores rurais. Dois centros urbanos, Moscou e Petrogrado, são os lugares onde se pode dizer que as relações capitalistas mais se consolidam. Os operários se originam no campo e não na transformação de uma base artesanal, como a verificada no surgimento do capitalismo nos países clássicos. O mercado interno praticamente inexiste. O vínculo entre as cidades e regiões decorre da necessidade de transportar mercadorias para o comércio exterior. As cidades são marcadamente comerciais, militares e administrativas. As condições naturais, principalmente climáticas, determinam o processo produtivo, em especial o agrícola. O trabalho é fundamentalmente estruturado e organizado de acordo com os preceitos, normas e cultura servis. Mas, os bolcheviques compreendem que, no início do Século XX, há uma crescente mercantilização do setor agrário russo, que permite o desenvolvimento de grandes plantações sob a égide do capital, estimulando a abertura e a incorporação de novas regiões ao mundo mercantil, como a conquista do Cáucaso e a região do Altaí no coração da Sibéria. O crescimento do número de indústrias é significativo, mesmo que tardia, no fim do século XIX. No início do século XX, a Rússia conta com uma população de 150 milhões de pessoas, das quais três milhões vivendo na região de Moscou, com dez milhões de operários, que somados aos seus familiares constituem uma classe de aproximadamente 25 milhões de membros. Esse contingente de operários está distribuído principalmente nos ramos têxtil, metalúrgico, mineiro e madeireiro, cuja base técnica é a incorporação na produção da máquina a vapor, provocando a concentração de capital em centros urbanos.
Politicamente, observam-se no início do século XX, na Rússia, três movimentos revolucionários: um, que ocorre em território rural, a luta dos camponeses pobres contra os ricos pela posse da terra; outro, no espaço urbano, onde os operários lutam por melhores condições de vida e de trabalho; e um terceiro, no espaço de batalha, onde os soldados não desejam mais combater. E todos, cansados da fome e da guerra, juntamente com os liberais pequeno-burgueses, lutam contra o poder do Czar.
Logo após a tomada do poder, em outubro de 1917, três estratégias se confrontam na condução da revolução bolchevique. De um lado, Lênin, que analisando as condições de cada momento, apregoa o controle do poder por parte do proletariado, tendo como aliado a camada pobre dos camponeses. Seu objetivo principal é a manutenção do poder revolucionário, ainda que o território esteja circunscrito praticamente às cidades de Petrogrado, Moscou e suas imediações. Não é uma mera coincidência, pois que é nelas que os bolcheviques estão, fundamentalmente, organizados, por serem os principais núcleos industriais. Assim sendo, uma das primeiras tarefas dos bolcheviques, é o de interiorizar a revolução. Mas o interior da Rússia é rural, onde a luta ocorre entre os camponeses ricos e pobres pela posse de terra, contradição que o capitalismo já deveria ter resolvido. Por conseguinte, o fortalecimento do poder bolchevique, para além de Moscou e Petrogrado, é adequar-se às exigências da luta dos homens reais pela "democratização" da posse de terra. O resultado é a pulverização da propriedade da terra entre os camponeses, o que fortalece sobremaneira o Mir, especificidade que contraria as concepções marxistas do avanço da grande produção implementada pelas relações burguesas de produção. Mas, o objetivo dos revolucionários não é, inicialmente, o de implementar os espaços socialistas de produção agrícola, visto que as formas superiores de produção seriam criadas e desenvolvidas após a revolução européia. A questão agora é o de consolidar territorialmente a revolução bolchevique no interior da Rússia, e para isto é fundamental o apoio dos camponeses pobres à revolução. Por essa razão é que concorda, em 1918, com as condições impostas pelos alemães, no acordo de paz de Brest-Litowsk, mesmo que grande parte do território russo fique sob o controle dos inimigos, tal como: 27% da superfície cultivada, 26% de sua população e 75% de seu potencial de produção de aço e ferro.
A estratégia da transição para o socialismo na Rússia, a partir de sua formação sócio-espacial, manifesta-se na formulação de Lênin, quando defende, nos primeiros meses da revolução, que o avanço revolucionário em território russo tem que ser através de um "capitalismo de estado" e não por transformações socialistas. Essa proposta traz implícita a noção de que o grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, advindas da formação sócio-espacial czarista, ainda não são aquelas adequadas e suficientes para se determinar a passagem do capitalismo ao socialismo. Entre as múltiplas tarefas que se apresentam aos bolcheviques, algumas se constituem mais prementes e decorrem da existência das condições geográficas para efetivá-las. Primeiramente, decorre da existência e da disponibilidade de um grande contingente de mão-de-obra, advinda do campo e das frentes de batalhas. É preciso educá-la dentro de padrões "modernos" (industrias) de produção. E o padrão produtivo exalçado como o mais desenvolvido do mundo capitalista (cientificamente) é o taylorismo, desenvolvido em território norte-americano. O segundo, decorre da necessidade de criar o espaço industrial necessário ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção, ou seja, a existência de fontes energéticas, em particular, a elétrica. Como em território russo há grandes rios, essa tarefa se apresenta como uma das pré-condições para o avanço da revolução.
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Fotografia de Josef Stalin e Nikolai Bukharin
- Estratégias Opostas -
É por isto que o plano de eletrificação da Rússia (GOELRO), proposto nos primeiros anos da revolução, constitui-se num dos principais marcos na construção da nova formação sócio-espacial soviética. Pois, diferentemente do mundo burguês, que aloca seus recursos através dos capitais individuais, o socialismo os distribui, tendo por princípio a globalidade da sociedade, cujo fundamento é a grande produção industrial. No início do século XX a eletrificação se constitui no elemento fulcral para a modernização e criação de oficinas e fábricas na Rússia, o que a transforma em base para o desenvolvimento da produtividade do trabalho e, por conseguinte, das forças produtivas. O objetivo, para além de criar energia elétrica, é o de, também, engendrar conexões entre os vários ramos produtivos, propiciar a ocupação de novas regiões e instituir novos postos de trabalho. A ampliação da capacidade de geração de energia e a criação de novas hidrelétricas impõem a necessidade de se produzir matérias-primas para essa finalidade, como é o caso de cabos de aço, fios elétricos, geradores, bombas etc. Fenômeno que condiciona o desenvolvimento e a concentração produtiva em núcleos urbanos, além de estimular a ocupação de novas regiões e a qualificação industrial de mão-de-obra.
Após o VI Congresso Extraordinário dos Sovietes de Toda a Rússia, em março de 1918, Lênin norteia o caminho a ser percorrido pelo movimento revolucionário na construção da sociedade socialista, através da brochura Las Tareas Inmediatas del Poder Sovietico, publicada em 28 de abril de 1918, no número 83 do Pravda e no suplemento de número 85 de Izvestia del CEC de Toda Rusia. Sintetizando a situação na qual se insere a revolução soviética diz: "Una situación internacional extraordinariamente dura, difícil y peligrosa; la necesidad de maniobrar y replegarse; um período de espera de nuevas explosiones revolucionarias, que maduran con agobiante lentitud en los países occidentales; dentro del país, un período constructivo lento y de implacable 'acicate', de lucha prolongada y tenaz de una severa disciplina proletaria contra los elementos amenazadores de la relajación y de anarquía pequeño burguesas".
A formação sócio-espacial socialista só pode se consolidar, segundo Lênin, se houver uma ampla contabilidade e um amplo controle pelo novo Estado sobre a produção e a distribuição da riqueza. Outra tarefa é a luta para aumentar a produtividade do trabalho. Neste sentido, Lênin teoriza: "En toda revolución, una vez resuelto el problema de la conquista del poder por el proletariado y en la medida en que se va cumpliendo en lo fundamental la tarea de expropriar a los expropriadores y aplastar su resistencia, va colocándose necessariamente en primer plano una tarea cardinal: la de crear un tipo de sociedad superior a la del capitalismo, es decir, la tarea de aumentar la produtividad del trabajo y, en relación con esto (y para esto), dar al trabajo una organización superior".
E para implementar o aumento da produtividade do trabalho Lênin indica algumas condições: "También son condiciones del fomento de la economía el fortalecimiento de la disciplina de los trabajadores, la mejora de la maestría y de la aplicación en el trabajo, el aumento de la intensidad y una organización mejor del mismo".
A emulação também se constitui numa tarefa importante para a formação sócio-espacial socialista na Rússia: "Y es precisamente el régimen soviético el que, pasando de la democracia formal de la república burguesa a la verdadera participación de las masas trabajadoras en el gobierno, plantear por primeira vez a gran escala el problema de la emulación" (Lênin).
A base para o desenvolvimento das forças produtivas na República Soviética se encontra nas condições naturais do próprio país: "El aumento de la produtividad del trabajo exige, ante todo, que se asegure la base material de la gran industria: el incremento de la extracción de combustible y de la fabricación de hierro, maquinaria y productos químicos. En este sentido la República Soviética de Rusia se encuentra en condiciones favorables porque dispone, incluso después de la paz de Brest, de reservas gigantescas de minerales (em los Urales); de combustible en Siberia Occidental (hulla), en el Cáucaso y Sureste (petróleo) y en el Centro (turba); posse también inmensas riquezas forestales, energía hidráulica y materias primas para la industria química (Kara-Bugas), etc. La explotación de estas riquezas naturales con los medios técnicos modernos pondrá los cimientos para un progreso jamás visto de las fuerzas productivas" (Lênin).
Como se não bastasse a formação sócio-espacial da Rússia czarista para que os bolcheviques definissem as tarefas imediatas da Revolução Socialista, Lênin busca em Taylor (Bettelheim) a base científica para a organização de "un tipo de sociedad superior a la del capitalismo", mesmo que tenha, em 1913 e 1914, criticado vigorosamente a gestão "científica" do trabalho de Taylor em dois artigos publicados no jornal Pravda: "La tarea que el Poder Soviético debe plantear con toda amplitud al pueblo es la de aprender a trabajar. La última palavra del capitalismo en este terreno el sistema Taylor , al igual que todos los progresos del capitalismo, reúne toda la refinada ferocidad de la explotación burguesa y varias conquistas científicas de sumo valor concernientes el estudio de los movimientos mecánicos durante el trabajo, la supresión de movimientos superfluos y torpes, la adopción de los métodos de trabajo más racionales, la implantación de los sistemas óptimos de contabilidad y control, etc. La República Sovietica debe adquirir a toda costa las conquistas más valiosas de la ciencia y de la técnica en este dominio. La posibilidad de realizar el socialismo quedará precisamente determinada por el grado em que logremos combinar el Poder Soviético y la forma sovietica de administración con los últimos progresos del capitalismo. Hay que organizar en Rusia el estudio y la enseñanza del sistema Taylor, su experimentación y adaptación sistemática".
No estabelecimento das tarefas imediatas do poder soviético, desenha-se a concepção bolchevique de construir uma nova formação sócio-espacial tendo por base o trabalho. Sob a égide do socialismo Lênin lhe dá uma conotação e um caráter superior, isto é, eliminar-se-á a exploração. Neste sentido, a base material da produção de riqueza na URSS reproduz a base material do modo de produção capitalista, ao invés de criar uma força produtiva nova e superior.
Nessa perspectiva é que Lênin compreende que a existência de um amplo território, com disponibilidade de recursos naturais para o desenvolvimento da indústria moderna, faz da Rússia um país singular na transição ao socialismo. Assim é que, em abril de 1918, em suas notas para um "plano de trabalhos científico-técnicos", indica os itens que devem ser investigados pela Academia de Ciências: "La distribución racional de la industria en Rusia desde el punto de vista de la proximidad de las materias primas y de la posibilidad de pasar con las mínimas pérdidas de trabajo de la transformación de las materias primas a todas las etapas posteriores de preparación de los productos semifabricados hasta obtener artículos acabados. (...) La fusión y concentración de la producción, racionales desde el punto de vista de la novísima gran industria y, en particular, de los trusts, en unas cuantas empresas gigantescas. (...) La posibilidad máxima para la actual República Sovietica de Rusia (sin Ucrania ni las regiones ocupadas por los alemanes) de abastecerse por su cuenta de todos los tipos principales de materias primas y de industria. (...) Una atención singular a la electrificación de la industria y del transporte y a la aplicación de la electricidad en la agricultura. El empleo de combustibles secundarios (turba, carbón de las peores clases) para obtener energía eléctrica con los menores gastos de extracción y transporte de combustibles. (...) Fuerzas hidráulicas y motores eólicos en general y de aplicación agrícola."
A segunda estratégia é defendida por Trotsky. Tem no político sua principal base. Não na formação sócio-espacial da Rússia czarista, mas sim na evolução do "processo" revolucionário mundial. A revolução bolchevique é um momento daquele "processo", com particularidades inerentes à Rússia czarista e semi-feudal. O operário industrial é o agente determinante do processo que dá direção aos demais aliados. A estratégia nasce das condições globais da revolução, às quais a formação sócio-espacial da Rússia deve se adaptar e se transformar. Vê no plano único da economia o cerne do controle e da construção socialista, ao qual todas as unidades sociais devem subordinar-se, desde as fábricas até os sindicatos. Os objetivos gerais da sociedade subordinam os objetivos particulares e individuais, seja dos trabalhadores, dos camponeses ou da população, de tal ordem que não faz concessões às políticas que buscam contemplar setores específicos da economia. A industrialização rápida e de meios de produção e a constituição do plano único para a economia são as principais tarefas para construir a formação sócio-espacial soviética. Considera que as políticas internas têm por objetivo, também, estimular o operariado dos outros países a se lançarem na conquista do poder, pois a revolução socialista é mundial.
A terceira é defendida por Bukharin e Preobrajensky, nos primeiros anos da revolução. Tem na teoria econômica geral, abstrata, os parâmetros da condução revolucionária. A formação sócio-espacial nada mais é do que limite ao rápido processo da fixação dos elementos revolucionários. Romper com as características do modo de produção capitalista é o norte a ser alcançado imediatamente, rompendo com as limitações do mundo mercantil que inibem o processo revolucionário. A centralização do poder e o controle da economia se constituem na estratégia principal para se alcançar esse objetivo. A revolução bolchevique é socialista, e seus elementos são os que devem ser priorizados, de tal ordem que os demais espaços devem ser eliminados ou submetidos às necessidades da construção da formação sócio-espacial socialista (Bukharin, Preobrajensky). Tanto essa quanto aquelas têm no marxismo a fonte teórica como fundamentação.
A formação sócio-espacial da URSS, de 1917 a 1929, decorre da interação dessas duas variáveis. Por isto é que o relato histórico desse período nada mais é do que evidenciar a busca incessante por implantar os elementos gerais da sociedade socialista que, por sua vez, são condicionados pelos elementos dados da Rússia czarista e da perspectiva da eclosão da revolução socialista na Europa (Aued).
O que se pode depreender da história da construção da primeira formação sócio-espacial socialista, a URSS, é que os revolucionários, tendo por base as forças produtivas capitalistas, engendram uma sociedade nacional, centralizada, consubstanciada na apropriação social da riqueza: "Los medios de producción han dejado ya de ser propiedad privada de distintos individuos para pertencer a toda la sociedad" (Lênin).
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Escudo de Armas da URSS
Essa característica nada mais é do que expressão da produção coletiva, cuja diferença com o mundo burguês é a apropriação. Enquanto no capitalismo a apropriação é privada, individual, por natureza econômica e jurídica, no socialismo é social, coletiva. Entretanto, no mundo burguês a apropriação individual corresponde à natureza da forma coletiva de produção. Coletiva enquanto relação que travam entre si os proprietários privados, pela e na troca do produto do trabalho, enquanto mercadoria e que se materializa no sistema fabril. Na formação sócio-espacial soviética, a apropriação social decorre de determinações políticas, mantidas e sustentadas pela ditadura do proletariado, enquanto Partido/Estado, e não de uma base material que lhe corresponda. Assim como o capitalismo engendrou uma base compatível com suas relações sociais, isto é, a máquina-ferramenta-automática, destruindo o fazer com as mãos, o socialismo, para se solidificar e se reproduzir pela tradição e costume, isto é, constituir-se como um modo de produção superior ao capitalista, tem de produzir, também, uma base material que corresponda às suas relações sociais.
Mas, no entanto, assiste-se, na história da construção da primeira formação sócio-espacial socialista, a reprodução da base material similar à capitalista, o sistema fabril, a grande produção industrial, a máquina-ferramenta-automática, como materialização do trabalhador coletivo. Essa base é compatível com a apropriação privada da riqueza social, e não como os bolcheviques a idealizam, isso é, ser ela também base de uma apropriação coletiva, social. A construção da formação sócio-espacial socialista não é e não pode ser idêntica à capitalista, desde que à ela pretenda ser superior. Na medida em que se estrutura sobre e pelo trabalho, na forma capital, aquela é construída onde a organização entre os homens não se dá pelo e através do trabalho, certamente. Outras são as determinações das relações sociais socialistas.
O modo de produção capitalista cria as condições materiais que fazem emergir essas novas determinações das relações sociais e que serão a base da formação sócio-espacial socialista. Diferentemente do reino da necessidade, mundo do trabalho, o reino da liberdade se dá com a redução da jornada de trabalho, ou seja, com a supressão do trabalho vivo, presente. Quando Marx trata do desaparecimento do tempo de trabalho como critério da riqueza e o surgimento do tempo livre, do ócio, do 'não-trabalho", como medida dela, indica a categoria que poderá estruturar a sociedade do vir-a-ser. "El robo de tiempo de trabajo ajeno, sobre el que descansa la riqueza actual, se presenta como una base miserable frente a esta base recién desarrolada, creada por la misma gran industria. Tan pronto como el trabajo en forma inmediata ha dejado de ser la gran fuente de la riqueza, el tiempo de trabajo deja y tiene que dejar de ser su medida y, en consecuencia, el valor de cambio tiene que dejar de ser la medida del valor de uso. El plustrabajo de la masa ha dejado de se condición para el desarrollo de la riqueza general, así como tambiém el no-trabajo de los pocos ha dejado de ser condición para el desarrollo de las fuerzas generales del cerebro humano. Con ello se derrumba la producción basada sobre el valor de cambio, y el processo de producción material inmediato pierde la forma de la miseria y del antagonismo. Aquí entra entonces el desarrollo de los individuos, y por lo tanto, la reducción del tiempo de trabajo necesario no para crear plustrabajo, sino la reducción en geral del trabajo necesario de la sociedad a un mínimo, al que corresponde entonces la formación artística, científica, etc., de los individuos gracias al timpo devenido livre y a los instrumentos creados para todos ellos" (Marx).
Portanto, a nova sociedade (que a velha sociedade capitalista evidencia) é a possibilidade dos homens estruturarem sua existência sobre o tempo livre, o "não-trabalho". Em conseqüência, toda ideologia do mundo do trabalho é negada pela nova formação sócio-espacial. Nasce um mundo onde "la formación artística, científica, etc., de los indivíduos gracias al tiempo devenido livre e a los instrumentos creados para todos ellos" (Marx) será a condição de existência dos novos homens.
Não é outra a formulação de Mandel ao discutir a economia socialista, quando detecta que a nova formação sócio-espacial não se estrutura sobre o trabalho. Diz: "El trabajo en el sentido historico del término, el trabajo tal como ha sido praticado hasta ahora por la humanidad sufriente e indigente, condenada a trabajar com el sudor de su frente, sòlo es la forma más miserable, la más inhumana; la mas animal de la praxis humana. Así como para Friedrich Engels toda la historia de la humanidad dividida en classes sociales no es más que una prehistoria humana, así tambén el trabajo tradicional no es más que la forma prehistórica de la praxis humana, creadora universal, que no produce ya cosas sino personalidades armoniosamente desarrolladas. Después de la extinción de la mercancía, del valor, del dinhero, de las clases, del Estado y de la division social del trabajo, la sociedade socialista plenamente desarolada provocará la extinción del trabajo en el sentido tradicional del término".
Dessa citação inferimos que a extinção do trabalho na sociedade socialista é apresentada como terminalidade dele, ou seja, a formação sócio-espacial socialista terá completado seu desenvolvimento quando só, e somente só, o trabalho vivo tenha sido extinto. É Mandel, ainda, quem nos mostra que o caminho da construção da sociedade socialista não se delimita na humanização do trabalho. "El fin del socialismo no puede ser la humanización del trabajo, como tampouco puede ser la mejora del salario o de la instituición salarial; una y otras no son más que etapas transitorias, expedientes y paliativos. Una fábrica moderna no constituirá nunca un ambiente de vida 'normal' o 'humano' para el hombre, sea cual fuere la reducción de las horas de trabajo o la adaptación de los locales y de las máquinas a las necessidades del hombre. El processo de humanización del hombre sólo se concluirá cuando el trabajo se haya extinguido y haya dejado paso a la praxis creadora, únicamente orientada a la creación de hombres universalmente desarrollados".
Recordando a afirmação de Marx: "El molino movido a brazo nos da la sociedad de los señores feudales; el molino de vapor, la sociedad de los capitalistas industriales" (Marx). O moinho a vapor elimina as mãos, ou seja, o trabalho passado, morto, suprime o trabalho vivo, presente, ou o capital constante suprime o capital variável. Evidentemente que tais constatações são tidas como tendências históricas, que podem ser ações distintas. A contra-revolução pode representar a tendência encaminhada. O desenvolvimento do modo de produção capitalista produz a possibilidade material dos homens garantirem sua existência sem trabalho vivo, presente. Cria as condições materiais para que a riqueza seja produzida somente pela máquina, pelo trabalho passado, morto. Contraditoriamente, apesar de criar a possibilidade de prescindir do trabalho, sob o trabalho se move.
Na medida em que o modo de produção capitalista cria esta tendência, faz emergir sua contradição mais profunda, pois a sociedade burguesa se estrutura sobre a apropriação do trabalho alheio, pela troca, na produção, cuja substância da riqueza é o valor, nas formas de lucro, juro e renda da terra (mais-valia). A substância do valor é o trabalho humano abstrato, que é a forma social do trabalho vivo, presente. Ora, na medida em que a evolução do capitalismo cria a base material de produção da riqueza em condições de tornar desnecessário o trabalho vivo, está criada e desenvolvida sua própria negação. O modo de produção capitalista cria as condições materiais que eliminam o próprio trabalho como coesão social. Assim, a sociedade que negará o modo de produção capitalista será aquela que estruturará as relações sociais sobre o "não-trabalho".
Marx ao detectar essa tendência concluiu que: "O reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. É que aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que o domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. Mas, esse esforço situar-se-á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho". Assim, Marx aponta a possibilidade do processo histórico da construção da formação sócio-espacial socialista, a qual desenvolve a criação das condições para que o "não-trabalho", tempo livre, se constitua no critério das novas relações sociais de produção, onde os homens se libertem do reino das necessidades e alcancem o mundo da liberdade, engendrando, assim, o Homem substantivo (Fausto).
Quando, em 1965, R. Richtar aponta para a necessidade dos países socialistas incorporarem nova base material de produção, indica ser historicamente inadequado construir uma nova sociedade com os elementos componentes da que está sendo destruída. Nesta perspectiva, a construção da URSS, pelos bolcheviques, não é compatível com o grau mais desenvolvido que a humanidade engendra enquanto forças produtivas e relações sociais, visto que seu fundamento é a velha formação sócio-espacial da Rússia czarista e o sistema fabril do mundo capitalista. Procedendo, assim, desconsideram a característica do modo de produção capitalista e transplantam a velha base produtiva para a sociedade socialista. Desta forma, "a industrialização soviética imitava o modelo capitalista; e à medida que a industrialização avançava, a estrutura perdia seu caráter provisório e a União Soviética acomodava-se a uma organização de trabalho diferente apenas em pormenores em relação aos países capitalistas. Assim, os trabalhadores soviéticos carregam todos os estigmas das classes trabalhadoras ocidentais. No processo, o efeito ideológico se fez sentir por todo mundo marxista: a tecnologia do capitalismo, que Marx havia tratado com cautelosa reserva, a organização e administração do trabalho, que ele havia tratado com tão ardorosa hostilidade, tornaram-se relativamente aceitáveis" (Braverman).
Ou no dizer de Trotsky: "A passagem das fábricas para o Estado só mudou a situação jurídica do operário; de facto, ele vive na necessidade, trabalhando um certo número de horas por um dado salário. (...) A gestão da indústria tornou-se extremamente burocrática. Os operários perderam toda a influência sobre a direcção das fábricas. Trabalhando à peça, vivendo num profundo constrangimento, privado da liberdade de se deslocar, sofrendo na própria fábrica um terrível regime policial, o operário dificilmente se poderá sentir um 'trabalhador livre'" (Trotsky).
Na medida em que uma relação social de produção se engendra para se configurar como modo de produção, historicamente determinado, tem também de engendrar a base material, técnica, que lhe corresponda. Cientificamente, o socialismo é possibilidade posta pelos elementos mais desenvolvidos do modo de produção capitalista já existente na metade do século XIX. Após esse período, os elementos burgueses só fazem reproduzir sua existência e a materialidade que lhe é própria. Por essa razão é que Marx afirma que a partir de então as forças produtivas se transformam em forças destrutivas. Portanto, a base material do modo de produção capitalista que se constitui em pressuposto da sociedade socialista é aquela que corporifica o trabalhador coletivo: o sistema fabril, a grande indústria, a máquina-ferramenta-automática.
Depois da configuração empírica dessa materialidade, o caminhar da sociedade burguesa é a criação de características que impedem o desenvolvimento das forças produtivas e impossibilita que o germe de sua negação germine e desabroche. É por isto que após a metade do século XIX até os dias atuais, a sociedade capitalista só se reproduz e, ao se reproduzir, o faz degenerativamente. Isto quer dizer que os elementos componentes do capital (capital constante, capital variável e mais-valia), encontram obstáculos históricos à sua existência; sua reprodução é cada vez mais dificultada pela contradição de suas próprias leis.
Paradoxalmente, uma das características significativas desse processo degenerativo é a necessidade que o capital tem de transformar sua base técnica de produção, destruir a produção centrada na mecânica e na física, e adentrar pelo mundo da biologia e da eletrônica como forma de manter, ainda, a produção de sobre-valor enquanto mais-valia. Essa especificidade é que alavanca a produção ilimitada da riqueza, evidenciando a possibilidade de que, com muito pouco trabalho vivo e muito trabalho passado, é possível os homens produzirem sua existência, de tal forma que se transformam em supérfluos. Isso quer dizer que uma nova base técnica produtiva possibilita que homens não necessitem mais do trabalho como coesão social e, por conseguinte, como critério da produção e distribuição da riqueza, transparecendo a possibilidade da negação da produção burguesa.
No século XX uma nova base técnica de produção emerge, caracterizando-se pela produção fundada na cibernética, na telemática, na biotecnologia, na biogenética, na informática, na robótica, na eletrônica etc. A forma de produzir com base na mecânica atingiu seu limite máximo: não é mais suficiente para produzir a quantidade de riqueza necessária à reprodução ampliada do capital. Em conseqüência, pode-se observar uma ruptura na incorporação de novas tecnologias fundamentadas na eletrônica. Assim, a produção centrada na combinação da máquina-ferramenta-automática dá lugar à produção configurada pela eletrônica.
À primeira vista, pode-se observar uma contradição entre as duas formas de produzir, a mecânica e a eletrônica, induzindo-nos à conclusão de que no processo de implantação da segunda há uma ruptura com a primeira. Ora, a produção eletrônica decorre da necessidade de ampliação da produtividade do trabalho social e não de uma ruptura nas relações sociais. A eletrônica mantém o processo de reprodução do modo de produção capitalista em seu estágio de degeneração, com tecnologias mais complexas.
Nos dias atuais, a produção eletrônica ainda não se generalizou. Mas, com a incorporação da eletrônica na produção, observa-se a expulsão de homens do processo produtivo e a modificação nas funções do processo de trabalho. Se procede à hipótese da tendência geral do modo de produção capitalista, isto é, a supressão do trabalho vivo pelo trabalho morto, podemos inferir que a nova etapa da produção burguesa faz emergir uma nova materialidade. Neste sentido, o germe da destruição dessa sociedade estaria se desenvolvendo, visto que ao expulsar homens do processo produtivo destrói a fonte geradora do valor, o trabalho. Aliás, hipótese sistematizada por Marx, em 1848. No presente, evidencia-se a contradição de uma sociedade alicerçada na apropriação da riqueza através do trabalho, enquanto sua base produtiva demonstra ser desnecessário o homem para produzi-la (Gorz). Bem, se o homem não tem mais onde trabalhar não adquire o direito de participar da riqueza social. Mas, não sendo mais necessário à produção, como então reproduzir a relação social que configura o modo de produção capitalista, a produção da mais-valia?
Se a realidade corresponde à nossa constatação, podemos então dizer que a humanidade, na atualidade, está frente a uma contradição que já lhe tinha sido posta no fim do século XVIII e início do XIX: cria uma nova sociedade, a socialista, ou reproduz (degenerativamente) a velha sociedade capitalista. A solução encontrada e adotada pelos homens às contradições daquele tempo (fim do século XVIII e início do século XIX) inibe o desenvolvimento do germe da negação do modo de produção capitalista, o tempo livre. Como a tendência só indica o caminho, mas não o executa, a solução agora, mais uma vez, pode inibir o desenvolvimento do germe da negação da sociedade burguesa. Assim, a base material da produção fundada na eletrônica ao invés de eliminar o trabalho, pode ser usada, também, para ampliá-lo.
O chamado setor terciário da economia, cuja característica é a existência da prestação de serviços, amplia a cada dia que passa sua importância no contexto social, a ponto de muitos autores configurarem a nova etapa da humanidade como a sociedade pós-industrial, onde o trabalho na esfera da produção não se constitui no fundamento da sociedade. A humanidade adentra agora numa sociedade cujo parâmetro é o terciário e, em particular, o informacional. Segundo Touraine, esta nova etapa da humanidade pode ser chamada de "Sociedade Programada", e emerge do esgotamento do capitalismo e do socialismo. Mesmo tendo constatado que o móvel da "nova" sociedade está centrado no sistema de produção, ou conjunto de informações, é ainda o trabalho a base dela.
Neste sentido, podemos estar assistindo, novamente, à mais uma solução encontrada pela humanidade, cuja ênfase é a reorganização da sociedade pelo trabalho. Por conseguinte, o "espaço histórico atual" é apenas mais uma forma da sociedade burguesa manifestar-se enquanto crise. Reproduz-se o modo de produção capitalista degenerativamente, onde encontramos, de um lado, a produção de uma elevada quantidade de riqueza, jamais vista pelos homens, num tempo muito curto, tendo por base a ciência na forma da eletrônica e da genética. O espaço da produção não é mais a aglomeração em torno da máquina-ferramenta-automática, mas sim da diversificação especializada do processo eletrônico. Disso decorre que as instalações da produção podem ser alocadas em qualquer parte do globo terrestre, pois os produtos padronizados podem ser utilizados e acoplados simultaneamente em diversas mercadorias. Em conseqüência, "extingue-se" o processo de produzir bens com uma única finalidade e para um único consumidor. A padronização e a precisão informacional constituem características fundamentais do novo espaço produtivo. Essa forma de ser do modo de produção capitalista permite que os homens possam tomar decisões rápidas e independentes de chefias, encontrando soluções ao processo produtivo, sem romperem a cadeia da produção seriada. O trabalhador adentra um novo fetiche no processo de trabalho: de simples executor, no sistema taylorista e fordista, pode, aparentemente, também, controlar e decidir sobre a forma de produzir a mercadoria, toyotismo (Harvey). Observa-se uma característica totalmente nova na materialidade da sociedade: a combinação de meios de trabalho de alta tecnologia com a habilidade e destreza do trabalhador. Eis o "espaço moderno" da humanidade.
As mercadorias adquirem, agora, a marca da produção, da circulação e do consumo mundial, a universalidade teórica e empírica do modo de produção capitalista. Se, no início, o capitalismo teve no comércio e no mercado seu caráter mundial, passando em seguida pela produção, agora toda a esfera social (produção, circulação e consumo) é mundial (Kurz). É neste sentido que "pode-se falar de mundialização, enquanto que outrora se tratava de mera internacionalização" (Santos).
Encontramos, também, do outro lado deste processo, o reverso da produção da riqueza, o "espaço miséria". Miséria não só no sentido de volume da apropriação da riqueza, mas no sentido de todos os aspectos da vida, em todo sentido que se pode apreender da história, principalmente porque os homens não são mais necessários à reprodução ampliada do capital. Mercê dos limites impostos pelo capital, "marginalizam-se" em formas fantasmagóricas de reprodução social, transformando-se em bárbaros dos novos tempos, pois a degeneração da formação sócio-espacial capitalista se transmuta em putrificação humana.
A miséria como espaço capital configura uma paisagem melancólica e triste em meio a tanta riqueza. Misturando-se ao seu contrário, ao espaço riqueza (de alta tecnologia), produz uma simbiose monstruosa da modernidade atual. Este é o "avanço" da humanidade no século XX. As grandes metrópoles, os países do Terceiro Mundo (e por que não dizer, também, do Quarto Mundo), as favelas, a mortalidade infantil, a prostituição, as drogas, o analfabetismo, a velhice desamparada, os desempregados e tantas outras formas podem ser arroladas como expressão da eficiência e produtividade do capital. Não estamos dizendo que esses são coeficientes da crise geral do capitalismo, mas sim que são evidências da reprodução, na forma degenerativa do modo de produção burguês (Kurz). Nesse espaço engendrou-se uma sociedade onde "a multiplicidade que se vê é perversa" (Santos).
Que espaço! Que capital!
No momento histórico atual, a contradição se materializa diferentemente dos períodos anteriores. No geral, a contradição do modo de produção capitalista é a produção social e a apropriação individual. Agora, há um contingente de homens que não integra mais as relações capitalistas, nem do lado do capital constante, nem do capital variável e nem da mais-valia. Não tem onde e como produzir parcela da riqueza social e, por conseguinte, não dispõe "do trabalho" para se apropriar da parcela que necessitam para viver. Não são só desprovidos dos meios de produção; agora, também, são desprovidos das próprias relações sociais. São excluídos do processo social como supérfluos às condições dadas. Manifesta-se empiricamente a existência de homens supérfluos à produção da riqueza material, os desempregados "estruturais". Essa manifestação aponta para que a construção de uma nova formação sócio-espacial tenha por fundamento as condições de homens desnecessários à produção, ou que há a possibilidade histórica de se produzir riqueza ilimitadamente para todos, sem que os homens morram no e pelo trabalho. Aqui está o grande legado do modo de produção capitalista para a construção de uma nova formação sócio-espacial, e não o que há de mais científico na organização e gestão do trabalho.
Destarte, no velho modo de produção capitalista, não se engendra nenhuma forma econômica da formação sócio-espacial socialista e, por conseguinte, nenhuma base material de produção ou mesmo de relações sociais de produção desta. E muito menos qualquer processo de trabalho, incipiente que seja, que indique a base material da sociedade socialista ou outra qualquer. Portanto, o elemento fulcral da transição do capitalismo ao socialismo é a base material criada pelo capitalismo e sobre a qual o socialismo poderá ser criado. 'A experiência da União Soviética e de outros países socialistas mostra uma outra lógica da origem e do desenvolvimento do socialismo. As formas socialistas da economia, diferentemente das capitalistas, não podem surgir no seio do regime anterior' (Dzarassov).
Neste caminhar e neste tempo histórico, isto é, da metade do século XIX em diante, as duas classes fundamentais da sociedade capitalista, burgueses e proletários, constituem um elo contraditório que expressa e propõe distintamente duas tendências historicamente possíveis: a luta pela criação de uma nova formação sócio-espacial, ou a luta pela manutenção da velha. As revoluções na Europa, de 1848 e 1850, são momentos decisivos desse caminhar conflitante e que culmina na França, em 1871, com a tomada de Paris pelos operários, onde mantêm por 72 dias, em suas mãos, o destino de sua história ou a história da humanidade. Em 1917, surge na Rússia, a primeira revolução socialista.
Teoricamente o movimento intelectual revolucionário, vinculado aos bolcheviques e aos mencheviques, pressupõe que a revolução na Rússia é o estopim da revolução socialista da Europa e, por conseguinte, do mundo inteiro. O que sabemos não se configurou, principalmente pela Primeira Guerra Mundial e pelo caráter nacional das lutas operárias de então. Em decorrência, impõe-se aos bolcheviques a tarefa de construir a formação sócio-espacial socialista num só país, que tem como primeiro passo, assumir o poder na forma de Estado. E o poder socialista só pode ser uma ditadura do proletariado (Marx). Essa ditadura, com todas as suas etapas históricas, na Rússia, tem sua expressão máxima a partir de maio de 1929, com a socialização forçada e os Planos Qüinqüenais.
É verdade que uma tarefa de suma importância a ser implementada nesta região é a produção da riqueza material. O dilema pode ser resumido assim: a meta é socializar, mas para isto é preciso existir o que socializar. Na solução desse dilema, a produção da riqueza material, o mundo socialista pressupõe a base produtiva da sociedade burguesa. Neste sentido, os bolcheviques apresentam como tarefa imediata do poder soviético a transformação dos trabalhadores oriundos da servidão em trabalhadores operários, iguais, disciplinados, aos operários das fábricas capitalistas, agentes sociais da revolução socialista. Um longo período é reservado à consolidação dessa base material. A formação sócio-espacial da Rússia socialista, base da URSS, se consolida mesmo tendo presente situações adversas: a guerra civil interna; o período de economia de guerra e a NEP (Nova Política Econômica); o processo da socialização forçada e outras. Alcança, mesmo assim, um grau de desenvolvimento comparável ao existente nos países capitalistas mais desenvolvidos.
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Manobras militares do Exército Vermelho, na Praça Vermelha de Moscou,
em 7 de Novembro de 1941
Apesar das adversidades, evidencia-se uma base aparentemente sólida para que o socialismo dê certo num só país. Esta aparência é reforçada pela revolução socialista chinesa (1949), pela Revolução Cubana (1959) e pelas agregações ao mundo socialista que ocorrem no momento da Segunda Guerra Mundial. Essa solidez aparente, que se estrutura principalmente sobre o povo russo, sobre a base de uma economia forte, de um Estado ditatorial militarizado, não resiste ao tempo. A partir do XX Congresso do PCUS, em 1956, emerge um novo momento que se acelera em 1985, com Gorbachev, e termina em 1991, com a era Iéltsin (Aganbeguian, Gorbachev, Pomeranz, Hobsbawm).
A forma de produção construída pelo socialismo, na URSS, está assentada no trabalho. Eis o problema, a raiz, o limite. A formação sócio-espacial socialista soviética se estrutura no taylorismo, na forma de grande fábrica, de máquina-ferramenta-automática, que é próprio do modo de produção capitalista, que corrói, sob os pés de Lênin, Stalin, Trotsky, Gorbachev, do PCUS e do povo soviético, a base dessa formação sócio-espacial que se propõe superior à capitalista. Estruturada no trabalho, não permite que uma formação sócio-espacial socialista seja construída, muito menos em um só país. Então, quando o movimento comunista internacional, sob a égide dos bolcheviques, busca a construção de uma formação sócio-espacial cujo objetivo é a ruptura das condições dadas da Rússia czarista, só fica nisto. Portanto, a noção de socialismo que orienta a ruptura da Rússia contribui significativamente para a construção de uma sociedade socialista estruturada sobre o trabalho (Savtchenko, Sorokin, Academia de Ciências da URSS). O que ocorre na URSS na década de oitenta indica que a apropriação coletiva da riqueza social é condição necessária, mas não suficiente para produzir uma nova formação sócio-espacial. É preciso que se construa uma base produtiva que lhe corresponda, assim como o modo de produção capitalista produziu a sua.
A desintegração da URSS não é uma questão só do socialismo, é uma questão atual da humanidade (Kurz). O fenômeno que está ocorrendo no sistema capitalista a expulsão dos homens do processo de produzir riqueza também é decorrente da impossibilidade da sociedade manter-se enquanto produção centrada na mecânica e na física, e busca incorporar novas formas de produzir riqueza com base na eletrônica e na biogenética. Isso coloca a necessidade de outra ruptura: assim como o capitalismo rompe com as estruturas que se fundamentam na produção com as mãos, a nova tecnologia impõe uma revolução na forma de produção da mecânica, na máquina-ferramenta-automática. Coloca uma nova possibilidade aos homens; aliás, uma possibilidade que já se fez presente na humanidade no início do século XIX, na Europa. Esta possibilidade é a de que o homem pode construir riqueza ilimitadamente, sem necessidade do trabalho humano direto. No limiar do século XXI, tal evidência é empírica e não mais teoria. Hoje, o homem tem condições de produzir não mais com as mãos, não mais com as condições biológicas e naturais do trabalho e nem mais só com a natureza existente. Hoje, o homem cria natureza. E ao ter essa condição, pode produzir riqueza para todos os homens.
Significa dizer, também, que o homem pode produzir com horas/trabalho muito reduzidas, de onde se deduz que a era do mundo do trabalho está no fim. Não pertence apenas aos livros de ficção a possibilidade de prescindir de trabalhadores. Em termos absolutos o mundo capitalista já convive com a diminuição do número de trabalhadores (Kurz). No entanto, a possibilidade da construção da riqueza para todos os homens emerge sob relações sociais capitalistas que se configuram como produtoras de riqueza para acumular capital.
A revolução que está posta é, em certo sentido, similar à revolução posta no começo do século XIX, com os socialistas utópicos e com os socialistas científicos. E a revolução socialista nunca esteve tão perto, uma possibilidade. Agora ela não é uma questão do Partido Comunista, ou de uns poucos homens, mas é uma questão dos homens em geral, da sociedade, da materialidade, da forma do homem produzir sua existência. É a possibilidade da construção de uma nova formação sócio-espacial sair dos sonhos dos utópicos, da análise científica de Lênin, dos partidos comunistas do mundo inteiro, para ser uma característica da sociedade, uma necessidade histórica e um caminhar de todos os homens.
Atualmente, as novas tecnologias, ao invés de absorverem, eliminam homens da produção. A produção, com elas, pode centrar-se fundamentalmente no trabalho passado, no trabalho acumulado, e não mais no trabalho presente, vivo (Aued). Daí a similaridade das duas épocas. No período de Marx, tal característica apresentada pela revolução industrial indica essa possibilidade, que também está posta hoje. E pela materialidade, tanto lá como cá há a possibilidade dos homens produzirem uma nova formação sócio-espacial. Agora, essa tendência pode não ocorrer; muito pelo contrário, pode ser que a humanidade mais uma vez encontre a solução criando uma base produtiva que privilegie as mãos. E mais uma vez: "Al brazo del obrero se sujeta una bombilla eléctrica. Se fotografían los movimientos del obrero y se estudian los de la bombilla. Se ve que algunos son 'superfluos' y se obliga al obrero a evitarlos, es decir, a trabajar más intensamente, sin perder ni un segundo en descansar" (Lênin).
Por certo, será diferente uma sociedade que pode planificar a utilização das matérias para a produção e utilização dos equipamentos necessários à existência humana. Ao invés de lavadoras individuais, grandes centros de uso coletivo dos equipamentos. O que será dos equipamentos individuais se se implantarem equipamentos coletivos? De quem é a opção de construir automóvel para cada pessoa? É a racionalidade humana ou a necessidade da reprodução degenerativa do capital? É o movimento contra-revolucionário na materialidade que faz uso de novas tecnologias para a produção de equipamentos para a individualidade e não para a coletividade, pois as leis do desenvolvimento capitalista indicam para a produção coletiva, assim como coletivo é o trabalho. As unidades produtivas individuais, principalmente de produção/consumo de cada indivíduo, na atualidade, são a contra-tendência histórica na materialidade. "A técnica liberou o homem da tirania dos antigos elementos a terra, a água, o fogo e o ar para os submeter em seguida à sua tirania. O homem deixou de ser escravo da natureza para se tornar o escravo da máquina, ou, pior ainda, escravo da oferta e da procura. A actual crise mundial testemunha de forma particularmente trágica, como este dominador orgulhoso e audacioso da natureza permanece escravo das forças cegas da sua própria economia" (Trotsky).
Essa base material com novas tecnologias pode ser utilizada para a criação de uma nova formação sócio-espacial. A burguesia, porém, a utiliza para reproduzir o modo de produção capitalista em degeneração, assim como implementou no início do século XX com o taylorismo. A sociedade capitalista não se autodestrói; sua trajetória histórica é definida pela lei econômica onde a produção é a reprodução de si mesma. E a produção burguesa é uma produção de capital, de assalariamento, de trabalho, e não de coisas úteis aos homens. As novas tecnologias podem ampliar o contingente humano que não mais consegue vender sua força de trabalho, explicitando o limite histórico do assalariamento. Assim pode ser que, deste contingente de homens desprovidos de tudo para viverem, nasça um movimento político e social que coloque em xeque a ordem burguesa. E isso não é uma questão de teoria ou de partido político.
Os bolcheviques não compreenderam que a formação sócio-espacial socialista não é a forma de organização humana onde os homens buscam o máximo prazer no e pelo trabalho. Buscar o máximo prazer no e pelo trabalho é a forma de ser da formação sócio-espacial burguesa, que o século XX explicita em toda a sua plenitude. O que se apresenta como formação sócio-espacial socialista tem, por ora, apenas alguns contornos. O resto, à História pertence. No entanto, ela nos indica que a apropriação social da riqueza é necessária, porém, não pelo trabalho. A correspondência entre forças produtivas e relações sociais de produção impõe que a base produtiva capitalista não pode ser transportada à formação sócio-espacial socialista; outra há de ser engendrada.
E a história se universaliza a um grau mais elevado com o desmoronamento do muro de Berlim (1989) e da URSS (1991) e abre fendas até então inimagináveis no mundo do trabalho, evidenciando que a forma burguesa da produção de riqueza não consegue mais se manter, nem com suas próprias pernas e nem com muletas (Estado). Ao exacerbar a contra-revolução na materialidade com trabalho para todos, a formação sócio-espacial soviética também contribui para o esgotamento da forma dos homens produzirem sua existência tendo por base a máquina-ferramenta-automática. Seu caráter revolucionário, além de evidenciar ser possível a apropriação da riqueza, fundada na negação da propriedade privada, é o de recolocar a necessidade de um novo modo de produção ao liberar o desenvolvimento das forças produtivas.
Ao se reciclar, no enfrentamento com o mundo socialista, o modo de produção capitalista (Hobsbawm) escancarou os limites de suas relações sociais, transformando a face da terra em sua imagem e semelhança, cuja característica é a mundialização do ser humano (Santos, Ianni). E a mundialização está indicando que a produção de riqueza não mais ocorre neste ou naquele lugar. É agora fenômeno de todos os homens em todos os lugares. Os homens amoldam o fazer histórico, talvez, com moinhos eletrónicos e não com taylorismo, corporificando um novo espectro que ronda, agora, o mundo inteiro, em detrimento do moinho a vapor.
Que espaço! Que socialismo!
Os revolucionários bolcheviques, ao se confrontarem através das estratégias, tendo por base as teorias gerais da transição do capitalismo ao socialismo (crítica à apropriação da riqueza) e da formação sócio-espacial da Rússia czarista, apenas evidenciam que a centralização do poder e das repúblicas, o plano econômico único, a industrialização, a produção agrícola coletiva e a planificação são formas de relações contraditórias entre cidade e campo, entre operários e camponeses, entre o espaço socialista e o capitalista na constituição da URSS na década de 1920. E, ao centrarem suas estratégias nessas especificidades, engendram um espaço produtivo que reproduz o ethos do mundo do trabalho. Não compreenderam que o trabalho como coesão social é próprio e adequado à formação sócio-espacial burguesa.
Essa lição os nazistas alemães legam à humanidade, quando inscrevem no pórtico do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, Arbeit macht frei (O trabalho liberta). Mas o trabalho só se torna livre, historicamente, ao se transubstanciar em capital, que amolda o mundo à sua imagem e semelhança. O que os bolcheviques deveriam ter legado, como experiência histórica, não é uma formação sócio-espacial onde quem trabalha come, quem não trabalha morre de fome, mas, sim, uma formação sócio-espacial onde o reino da liberdade só ocorrerá depois que os homens se libertarem do trabalho.
1 - Este trabalho é parte da tese Estratégias e Contradições na Construção da Sociedade Socialista Soviética: Socialismo de Menos, Capitalismo de Mais (1917-1929), defendida em 26 de abril de 1996 na Universidade de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências: Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sob orientação do Professor Dr. Armen Mamigonian.
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Trechos Originais da Revolução Russa |
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável. Caso se interesse pela leitura da Tese "Estratégias e Contradições na Construção da Sociedade Socialista Soviética: Socialismo de Menos, Capitalismo de Mais (1917-1929)" (completa) entre em contato conosco. Obrigado.
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Néliton Azevedo, Editor, WebMaster.
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