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Direito e Transição Socialista | ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() ![]() |
Márcio Bilharinho Naves
Marcio_Bilharinho_Naves@revistapraxis.cjb.net
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.
O marxismo entretém com o problema do direito uma relação densa e tortuosa. O direito atravessa a obra de juventude de Marx: é o fio condutor que lhe empresta inteligência e aponta para os seus limites, que o próprio Marx tratará de começar a ultrapassar em A Ideologia Alemã, ao dizer, em uma frase que vale todo o saber acumulado da jurisprudência, que o direito "não tem história própria"1, isto é, que o seu fundamento não repousa em si mesmo, em sua pretensão de exprimir a vontade de um sujeito todo-poderoso, mas que se encontra alhures, na teia de relações que o capital tece. Em O Capital, Marx desvenda o segredo do direito ao revelar o vínculo íntimo entre o direito e a constituição do circuito da troca de mercadorias e, em particular, desta mercadoria especial que é a força de trabalho , assim como o obscurecimento dessa operação comercial em nome dos sagrados direitos universais da pessoa2.
Mas a crítica do direito marxiana não pôde impedir a penetração da ideologia jurídica no interior do movimento operário de seu tempo. Se já na Crítica ao Programa de Gotha encontramos a recusa a essa presença no seio mesmo dos partidos operários, serão Engels e Kautsky aqueles que se encarregarão de refutar a sua expressão mais acabada: o socialismo jurídico, esta concepção de que a conquista e a construção do socialismo podem se dar por meio da extensão gradativa dos direitos. Engels e Kautsky mostram que, se as formas do direito decorrem do processo do valor de troca, como Marx o demonstrara, uma luta operária que se funda nas reivindicações jurídicas da liberdade e da igualdade apenas reproduz as condições mesmas da circulação do capital, não podendo assim a classe operária "exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia"3. Ironicamente, o mesmo Kautsky será o codificador de uma leitura de Marx que fará uma longa carreira ainda não encerrada , profundamente dominada por uma representação jurídica, na qual a categoria de relações de produção será subsumida na categoria (jurídica) de relação de propriedade. A partir daí o terreno já estaria preparado para se pensar o socialismo como uma mera operação jurídica de transferência da propriedade privada para o Estado, com a conseqüente exaltação do Homem (concebido juridicamente como sujeito de direito) e seus direitos inalienáveis, ao mesmo tempo em que se obscurecia a questão, em tudo estranha ao direito, do exercício efetivo do poder pelas massas populares e da transformação efetiva das relações de produção.
O problema do direito no socialismo é dominado por essa luta de tendências que percorre toda a história do marxismo e do movimento comunista. Logo após a Revolução Russa, por exemplo, o campo teórico do direito, assim como a prática judiciária, são influenciados por uma concepção estranha ao marxismo: a "consciência jurídica revolucionária". Provinda do repertório da jurisprudência burguesa, essa concepção supunha que a classe operária pudesse ter o "seu" direito, o que trazia como conseqüência inevitável o reforço da concepção jurídica de mundo, além de repousar a compreensão do direito, idealisticamente, em um determinado estado da consciência. Em um momento subseqüente, a mesma idéia de um direito de classe encontrou o seu fundamento em uma teoria positivista do direito, compreendido então como mero conjunto normativo. O principal defeito de uma concepção que supõe que cada classe social possui o seu "próprio" direito, é o de não fundar o direito nas condições materiais da produção, mas compreendê-lo como regra de conduta obrigatória. Ora, tal concepção acaba por pensar o direito como um elemento de validade universal, autônomo em relação às condições materiais da produção e provido de uma natureza "neutra", podendo servir a interesses de classe distintos, dependendo de quem "utilize" as normas jurídicas.
Se o socialismo, no entanto, significa a gradativa superação das relações de produção capitalistas de que a expropriação jurídica dos proprietários privados é uma condição necessária mas não suficiente , com a conseqüente extinção das formas mercantis, e se a forma jurídica decorre do processo do valor de troca, então, na medida em que a transição avança, o direito deve, não se fortalecer e se transformar em um completo sistema de direito socialista, mas, ao contrário, deve também se extinguir. Consequentemente, deve-se admitir a existência de um "resíduo jurídico" durante todo o período da transição socialista, já que não poderia o direito ser puramente "abolido", em virtude de também não poder ser "abolida" a causa de sua existência: o processo do valor de troca, e, em última instância, as relações de produção capitalistas de que depende a existência da forma-valor. A transformação das relações sociais burguesas não pode ocorrer imediatamente, ela exige um longo processo de luta de classes, no qual a classe operária vai, gradativamente, dominando as condições materiais da produção e as condições políticas de exercício do poder, de sua ditadura de classe. Deve-se admitir, assim, a possibilidade de uma utilização temporária do direito pelos trabalhadores no período de transição, ao mesmo tempo em que não se pode perder de vista a tese marxista fundamental da "extinção do direito". Na verdade, é só da perspectiva de seu desaparecimento que ganha sentido a persistência do direito no socialismo.
Se considerarmos o problema sob o ângulo do método marxiano, podemos indagar se o mesmo método utilizado por Marx para analisar o direito burguês pode ser empregado para analisar o "direito proletário", ou se, ao contrário, não seria necessário constituir um método próprio, um corpo de conceitos gerais específicos, para apreender o direito de uma sociedade de transição. Aceitar essa última alternativa levaria, como lembra Evgeni Pachukanis, "à eternização da forma jurídica" ao desconsiderar as condições históricas que permitiram o seu aparecimento e o seu pleno desenvolvimento na sociedade burguesa, além de apresentá-la como capaz de se "renovar permanentemente"4. Ora, do mesmo modo que a extinção, na fase de transição, das categorias econômicas valor, capital etc não implica a constituição de novas categorias "proletárias" do valor, do capital etc, assim também a extinção das categorias jurídicas burguesas não leva à constituição de novas categorias jurídicas "proletárias" ou "socialistas". Se o direito está relacionado às formas da economia mercantil e se a transição socialista significa justamente o progressivo aniquilamento dessas formas, a idéia mesma de um "direito socialista" se revela desprovida de qualquer sentido. Como diz Pachukanis, "Nestas condições, a extinção das categorias do direito burguês significará a extinção do direito em geral, isto é, o gradual desaparecimento do momento jurídico nas relações humanas"5. Somente de um ponto de vista normativista é possível dar conseqüência a um sistema de direito "socialista, mas, para tanto", é necessário recuperar as categorias do direito burguês e renunciar à análise marxista do direito. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx afirma que o período da transição socialista permanece encerrado nos "estreitos horizontes do direito burguês"6, ou seja, ao se conservar, nessa sociedade, o princípio de que uma certa quantidade de trabalho sob uma determinada forma deve ser trocado por outra mesma quantidade de trabalho sob outra forma, preserva-se o princípio da equivalência, portanto, preserva-se a forma jurídica, pois "por sua natureza o direito só pode consistir no emprego de uma mesma unidade de medida"7 A ultrapassagem do direito só poderá dar-se quando tiver sido ultrapassada a forma da relação de equivalência, isto é, a forma-valor. Comentando essa passagem, Pachukanis observa que "Marx, portanto, não concebia a transição para o comunismo desenvolvido como uma transição para novas formas de direito, mas como a extinção da forma jurídica em geral, como uma libertação dessa herança da época burguesa destinada a sobreviver à própria burguesia"8
O texto de Marx, portanto, não sustenta em nenhum momento a possibilidade de que se constitua um sistema de direito "socialista" em qualquer fase da transição para o comunismo.
Se o socialismo é um período de transição do capitalismo para o comunismo, trata-se de uma sociedade que não se desenvolve sobre a sua própria base, mas que está dominada pelas relações de produção herdadas do capitalismo9. A tomada do poder pela classe operária cria apenas as condições políticas para que o processo de transformação das relações de produção tenha início. Uma das medidas que se encaminham nessa direção é a estatização dos meios de produção, mas tal medida, por si só, isto é, se não for acompanhada de um efetivo esforço de apropriação real das condições materiais da produção pela classe operária, não é, em absoluto, suficiente para que as relações de produção capitalistas sejam revolucionarizadas e novas relações de produção, de natureza comunista, possam constituir-se. Essa apropriação real das condições materiais da produção pelo proletariado só pode dar-se se a organização do processo de trabalho capitalista no qual se exerce efetivamente a dominação de classe pela burguesia por meio da expropriação do saber operário e de todas as condições que lhe permitiriam o controle das condições materiais de sua própria existência for extinta e substituída por uma organização fundada na associação livre dos trabalhadores.
A transferência dos meios de produção para o Estado proletário não pode transformar a natureza capitalista das relações de produção, o que exigiria a superação da divisão do trabalho manual e intelectual e da divisão entre as tarefas de direção e de execução no interior do processo de trabalho, de modo que essas relações de produção ainda persistirão, durante um certo período, sob a ditadura do proletariado.
Ora, se as relações de produção capitalistas perduram no decorrer da transição socialista, também perduram as formas sociais que decorrem de sua existência e reprodução, particularmente, a forma-valor. Desse modo, a forma jurídica, o direito burguês, também remanesce, mas, do mesmo modo que algumas condições fundamentais para a transformação das relações sociais burguesas foram criadas, em virtude da tomada do poder de Estado pela classe operária e da estatização dos meios de produção, assim também esse direito burguês igualmente sofre certas modificações.
Que modificações são essas? A persistência da forma jurídica está, como vimos, ligada à existência da forma-valor no período de transição, mas, já aqui, a forma jurídica sofre determinadas limitações, não conservando a autonomia de que é dotada na sociedade burguesa. O direito do período de transição é o direito burguês posto sob relativo domínio do Estado proletário, "afetado" pela gradativa emergência de formas sociais não mercantis no seio da economia na medida em que o processo de revolucionarização das relações de produção progride. Muito embora o direito na fase de transição não possa adquirir um conteúdo "socialista", o proletariado deve utilizar as formas do direito "de acordo com os seus interesses de classe, esgotando-as completamente", como diz Pachukanis. Isso significa que a utilização do direito pela classe operária no socialismo deve implicar uma "torção" em sua forma mesma, por meio da contínua ultrapassagem do princípio da equivalência o qual constitui a natureza de todo direito , substituído por relações políticas e técnicas não submetidas à ação da lei do valor. Não há, assim, qualquer possibilidade de que se possa desenvolver um direito "socialista" apenas alterando o conteúdo desse direito, o qual não configura um sistema completo de "direito proletário", como poderia fazer crer uma concepção aparentemente coerente que relacionasse o feudalismo com o direito feudal, o capitalismo com o direito burguês e o período de transição com o direito proletário. O principal problema dessa concepção é que ela desconsidera que o feudalismo e o capitalismo configuram sistemas particulares de relações entre os meios de produção e os produtores diretos, dos quais decorrem determinadas formas de existência do direito, ao passo que o período de transição não conhece relações de produção específicas. Como diz Pachukanis, "A essência do problema é que o período de transição (...) não pode ser visto como uma concepção sócio-econômica especial e final, e portanto é impossível criar para ela um sistema de direito especial e final, ou procurar por qualquer forma especial de direito, começando pela simetria: direito-feudal; direito-burguês; e direito-proletário. Isso implica uma tendência perigosa de atrasar o progresso para o socialismo (...) Nós não temos um sistema final de relações de produção no presente momento10 pela razão de que nós estamos mudando-o a cada dia e a cada hora"11. A defesa de um sistema de direito proletário possui, portanto, uma natureza conservadora, como lembra Pachukanis12. A utilização do direito no socialismo está vinculada à necessidade de regular as relações mercantis que perduram mesmo no interior do setor nacionalizado da economia já que a ligação entre as diversas empresas do Estado se dá por meio do mercado. Há, aqui, uma diferença sensível em relação ao direito da sociedade burguesa, porque a classe operária, ao editar a lei e aplicá-la, o faz objetivando superar uma situação que obriga o recurso ao direito. Trata-se de uma utilização do direito que, na medida em que o processo de extinção das formas mercantis avança, torna essa mesma utilização desnecessária.
Podemos dizer, então, que o direito da fase de transição conserva a forma do direito burguês e é utilizado pelo Estado operário na construção do socialismo, sendo que a extensão dos "elementos socialistas" no período de transição implica a gradativa superação desse direito e não a sua metamorfose em "direito socialista".
Esta análise marxista do direito oferece elementos suficientes para que se possa compreender a necessidade de uma concepção materialista e dialética do fenômeno jurídico, estranha a qualquer compromisso teórico e político com a ideologia e a prática jurídicas da burguesia, permitindo à classe operária, no decorrer do período de transição socialista, apropriar-se das condições materiais e políticas de exercício de sua ditadura de classe. Não era outro o ensinamento de Marx e Engels ao demonstrar o irredutível vínculo entre a forma do direito e a forma mercantil, e ao condicionar a passagem para a liberdade comunista à superação do estreito horizonte do direito burguês.
1 - MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Editora Hucitec, 1993, p. 99.
2 - MARX, Karl. O Capital, t. 1, v. 1. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
3 - ENGELS, Friedrich; e KAUTSKY, Karl. O Socialismo Jurídico. São Paulo, Editora Ensaio, 1991, p. 32.
4 - PACHUKANIS, Evgeni. "Obschaia teoriia prava i marksizm". In: Evgeni Pachukanis, Izbrannye Proizvedeniia po Obschei Teorii Prava i Gosudarstva. Moscou, Izdatel'stvo Nauka, 1980, p. 53.
5 - Idem, Ibidem, p. 53.
6 - MARX, Karl. "Kritik des Gothaer Programms". In: MARX, Karl; e ENGELS, Friedrich. Gesamtausgabe, v. 25. Berlim, Dietz Verlag, 1995, p. 15.
7 - Idem, Ibidem, p. 14.
8 - Idem, Ibidem, p. 55.
9 - MARX, Karl. Op. cit., p. 13.
10 - Pachukanis se refere à União Soviética nos anos vinte.
11 - PACHUKANIS, Evgeni. "Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte (K nekotorym itogam diskussii)". In: Sovetskoe Gosudarstvo i Revoliutsiia Prava, nos 11-12, 1930, p. 42.
12 - Idem, Ibidem, p. 43. Cf. também PACHUKANIS, Evgeni, "Marksistskaia teoriia prava i stroitel'stvo sotsializma". In: Evgeni Pachukanis, Izbrannye ..., cit.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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