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Resenhas:

de HOLANDA, Sérgio Buarque

Caminhos e Fronteiras

São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 1995.

e

Visão do Paraíso

Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil

São Paulo. Ed. Brasiliense, 1996.

Editora Original: Ed. José Olympio.

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Marianne Reisewitz
Marianne_Reisewitz@revistapraxis.cjb.net

Pós-graduada em História Social na USP, São Paulo.

Lincoln Secco
Lincoln_Secco@revistapraxis.cjb.net

Membro da Editoria da Revista Práxis.


Nos últimos anos, as editoras paulistas têm relançado as obras do historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda. Seria trivial dizer que se trata de uma justa homenagem a um dos nossos maiores pensadores, mas não seria destituído de importância lembrar que Sérgio Buarque sempre foi um homem de esquerda, comprometido com as lutas dos trabalhadores e com a transformação da sociedade brasileira.

Nascido na cidade de São Paulo, em 1902, Sérgio Buarque se aproximou da atividade jornalística e da crítica literária e se incluiu na geração modernista de 1922, atividades que certamente deram um tom mais dialógico e polêmico às suas obras futuras, levando-o a considerar as opiniões contraditórias, o impacto público das suas posturas e, principalmente, o receptor de seus escritos. Politicamente, Sérgio Buarque aproximou-se do Partido Comunista nos anos vinte, manteve discussões com Otávio Brandão e Astrojildo Pereira, mas não concordou com o sectarismo do PCB. Acabou seguindo uma trilha original na explicação da realidade brasileira, absorvendo conceitos de diversos autores, como Weber e Ranke. Sua trajetória sempre foi a do diálogo constante, em todos os sentidos: com seus adversários, com seus pares (os historiadores acadêmicos), com suas fontes documentais, com seus amigos da intelectualidade extra-universitária, incluindo, particularmente, Caio Prado Jr. O fim da sua trajetória de vida foi marcado pela adesão imediata ao movimento grevista do ABC nos anos 78-79 e pela filiação ao Partido dos Trabalhadores, o mais original e inovador projeto político socialista e pluralista da nossa história.

Essa trajetória multifacetada de Sérgio Buarque, entretanto, não deve apagar os méritos intrínsecos da sua obra e nem desviar os estudiosos da análise minuciosa dos seus escritos que agora começam a ser relançados. Nas obras Caminhos e Fronteiras e Visão do Paraíso, duas produções marcantes na historiografia brasileira e, embora do mesmo autor, de caráter aparente tão diverso, Sérgio Buarque de Holanda procura desvendar os elementos marcantes e delineadores do tipo de colonização que ocorreu nas terras portuguesas da América. Em cada uma dessas obras encontra um elemento que lhe serve de fio condutor para, justamente, mapear todo o processo de colonização e, ao mesmo tempo, explicar as diferenças em relação às outras formas colonizadoras do Novo Mundo no mesmo período. É a singularidade e a historicidade que lhe importam. Profundamente influenciado pelo historicismo alemão de Ranke, que acentuava o caráter único do evento histórico, Sérgio Buarque evidenciava a preocupação de conhecer o Zeitgeist (espírito da época) quinhentista, seja na interpenetração das culturas portuguesa e indígena (Caminhos e Fronteiras) ou na cosmovisão que os homens dos quinhentos tinham ao chegar ao Novo Mundo (Visão do Paraíso).Com Ranke, a História (Geschichte) se "libertou" da filosofia, recusou-se a ser guiada por verdades supraterrenas e a-históricas (metafísicas) para se tornar, segundo seu contestado ideal, ciência (Wissenchaft) ou, mais precisamente, conhecimento científico. É exatamente no que há de atual nas "inatualidades" de Ranke que Sérgio Buarque de Holanda vai inspirar-se (HOLANDA, Sérgio Buarque. "O atual e o inatual em Leopold von Ranke". In Idem (org). Ranke: História. SP. Ática, 1979, pp. 54-62).

No primeiro caso, do livro Caminhos e Fronteiras, mas mais especificamente do capítulo inicial, "Índios e Mamalucos", Sérgio B. Holanda utiliza os vestígios da cultura material para recuperar a ocupação e transformação pelos europeus da região paulista e seu interior, e concomitantemente demonstrar em que se difere da colonização das áreas do litoral nordestino – a qual se baseia no esquema, já convencional, latifúndio, monocultura e mão de obra escrava africana. A idéia de que o Brasil não se constituía como um todo uniforme durante a época colonial, e precisou ainda de alguns anos após a declaração da Independência política para vencer os seus mais profundos hiatos internos, é desenvolvida pelo mesmo autor em seu artigo, "A Herança Colonial: sua desagregação" (In: História Geral da Civilização Brasileira. SP. Difel, 1965, v. 3). Ali expõe as mazelas que se constituíram na antiga colônia luso-americana, dificultando a unificação política.

As razões do autor em buscar a cultura material como base de pesquisa nem de longe se apresentam como arbitrárias, mas se estruturam em motivos bastante específicos, definidos claramente em seu prefácio: "A acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui, em preferências particulares do autor por esses aspectos, mas em sua convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se mostraram muito mais acessíveis a manifestações divergentes da tradição européia do que, por exemplo, no que se refere às instituições e sobretudo à vida social e familiar em que procuraram reter, tanto quanto possível, seu legado ancestral."(Caminhos e Fronteiras, p.12)

Através dos indícios materiais, tais como caminhos, objetos, alimentação e medicação, Sérgio Buarque de Holanda busca o que é específico e diferenciado da colonização portuguesa no interior paulista, se comparado ao litoral nordestino, apresentando os resultados do confronto dessas duas culturas, a do colonizador e a do índio, e suas modificações no tempo. No entanto, tal confronto não seria a simples sobreposição dos hábitos de um e de outro, nem a imposição de técnicas mais avançadas sobre as mais rudes, mas lento processo de transformações decorrentes das necessidades e ambições mais imediatas dos primeiros sertanistas que percorreram a região. Seria a "situação de instabilidade ou imaturidade, que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a população nativa" (Ibidem, p. 9).

Sérgio Buarque de Holanda refere-se à existência de três momentos na história do interior paulista e adjacências: aquele dos primeiros sertanistas ou bandeirantes; o dos tropeiros; e, por fim, o dos fazendeiros. Mas só os dois primeiros são tratados no capítulo sobre os "Índios e Mamalucos". O levantamento da cultura material pode justamente mapear esses dois momentos iniciais e através deles é possível perceber as mudanças e permanências.

Aqueles homens que se aventuraram em regiões incomuns para o europeu, precisaram certamente de mobilidade, imposta antes pelo meio do que pelas diferenças entre os colonizadores, os quais seriam os mesmos em todas as regiões do Brasil. (p. 10) E o meio, no caso paulista, não permitiria o tipo de sedentarização que ocorreu logo nos primeiros anos no nordeste açucareiro. As necessidades de busca de mão de obra no interior (índios, ou "negros da terra"), forçariam os colonos pioneiros à mobilidade, à percorrer caminhos e estabelecer novas fronteiras. Mas tal mobilidade ultrapassa os limites físicos da locomoção espacial, e atinge as possibilidades de absorção de uma cultura estranha, primitiva, mas totalmente integrada no seu meio, necessária para a sobrevivência. E é através dessas dificuldades iniciais, impelido a desbravar o sertão, a sobreviver na inóspita região, que o colono português entra em contato com a cultura indígena e é constrangido a incorporá-la, ainda que parcialmente, não sem deixar também as suas próprias marcas. A sedentarização dos paulistas só seria possível quando o meio, e o tipo de cultura que poderia então ser introduzido, assim o permitisse, através do cultivo do café. Então surge o terceiro momento, o dos fazendeiros.

A reconstrução dos primeiros sertanistas e da sociedade que ali se erigiu traz toda profundidade e complexidade do pensamento dialético de Sérgio Buarque de Holanda, onde se dá um processo lento de confronto entre culturas semi-nômades, mas totalmente adequadas ao próprio meio, e outra de elevado grau de desenvolvimento técnico, porém possuidora de todo um aparato insólito para a região. Como então extrair as riquezas da terra, objetivo indiscutível da colonização, se nas condições primevas os recursos técnicos se apresentavam inúteis, fossem esses as armas, os hábitos alimentares, os cavalos, e até os sapatos? Somente quando os próprios colonizadores parecem ter sido capazes de instalar na região paulista um sociedade mais sólida, com uma agricultura e criação de gado mais bem estruturadas é que surge o tropeiro, neto do bandeirante, e só depois o fazendeiro.

Pode-se dizer também que Caminhos e Fronteiras e Visão do Paraíso se complementariam, posto que o primeiro traria o "suporte material" (Visão do Paraíso, p XVIII) ou cultura material, enquanto o segundo tentaria reconstituir ainda que parcialmente, o Espírito (Geist), ou seja, aquilo que em linguagem marxista se denominaria parte da superestrutura. Mas S. B. Holanda não reproduz as ligações mecânicas e esquemáticas de certo economicismo marxista. Não é disso que se trata. Não há correspondência linear entre a produção da cultura material e da atmosfera espiritual, pois ambas constituem o amálgama, de tal forma que a relação não é de causa e efeito (consoante é comum nas visões irônicamente antidialéticas de boa parte da produção teórica marxista), mas sim, de complementaridade, na qual tanto uma quanto outra podem assumir a primazia, sabendo-se que essa preponderância é sempre provisória, alterna-se no curso do tempo e nunca pode ser um princípio causal perene.

Na obra Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda pretende, através da concepção de Éden, aproximar-se dos motivos espirituais da empresa ibérica, particularmente portuguesa, na descoberta e ocupação do Novo Mundo. O autor busca nos cronistas e nos navegadores, nas correspondências e nos contos de larga tradição medieval, nas epopéias e reminiscências da antigüidade, as fontes que podem permitir ao historiador aproximar-se da Weltanschauung (mundividência) dessa época conhecida pelos grandes descobrimentos e pelo "Renascimento" artístico e intelectual. Weltanschauung essa que é mais do que a consciência do mundo, pois abrange as representações espontâneas.

Inserindo-se conscientemente, portanto, no que denominou "História das Mentalidades" (p. XVI), Sérgio Buarque de Holanda não descura dos suportes políticos, sociais e até econômicos da empresa colonizadora. Num parágrafo introdutório, mas de notável valor teórico-metodológico, o autor prefere aliar-se a uma concepção que nega o marxismo de matriz economicista, para reafirmar a renovação do instrumental teórico de Marx, embora essa seja praticamente a única menção a uma discussão de natureza eminentemente teórica do livro Visão do Paraíso: "Não pretende ser esta uma história 'total': ainda que fazendo cair o acento sobre idéias ou mitos, não fica excluída, entretanto, uma consideração, ao menos implícita, de seu complemento ou suporte 'material', daquilo em suma que, na linguagem marxista, se poderia chamar a infra-estrutura. Mas até mesmo entre os teóricos marxistas vem sendo de há muito denunciado o tratamento primário e simplificador das relações entre base e superestrutura, que consiste em apresentá-las sob a forma de uma influência unilateral, eliminadas assim, quaisquer possibilidades de ação recíproca. Ao lado da interação da base material e da estrutura ideológica, e como decorrência dela, não falta quem aponte para a circunstância de que, sendo as idéias frutos dos modos de produção ocorridos em determinada sociedade, bem podem deslocar-se para outras áreas onde não preexistam condições perfeitamente idênticas, então lhes sucederá anteciparem nelas, e estimularem, os processos de mudança social. Ora, assim como essas idéias se movem no espaço há de acontecer que também viajem no tempo, e por ventura mais depressa do que os suportes, passando a reagir sobre condições diferentes que venham a encontrar ao longo do caminho". (Visão do Paraíso, p. XVIII).

Sérgio Buarque de Holanda parece antecipar, ou ao menos se colocar a par, das alterações que teóricos marxistas, como o polonês Adam Schaff e todos aqueles que, no conjunto da produção do marxismo ocidental, tal qual Lúkacs e aqueles que se inspiraram em Gramsci, promoveram o resgate da subjetividade contra o fatalismo, das formas artísticas, políticas, culturais e mentais, contra as determinações econômicas ou de classe social. Nesse ínterim, assume importância o fato de que, se é a produção e a reprodução da vida que está no centro do marxismo, faz parte dessa produção, inevitavelmente, a produção das idéias, sejam elas concebidas conscientemente ou inconscientemente, conforme já se ressaltou aqui.

Entretanto, Sérgio Buarque de Holanda não se preocupa em fazer um arrazoado teórico como introdução à sua obra; não lhe toma o espírito a necessidade, tida por imperiosa não só entre os filósofos estruturalistas que começariam a despontar nos anos sessenta, mas também entre historiadores marxistas ortodoxos, de escrever as famigeradas "reflexões metodológicas iniciais". A exemplo do marxista bastante heterodoxo que foi Caio Prado Jr., Sérgio Buarque não está atrás de definições estabelecidas aprioristicamente, mas sim de compreender no próprio fluir da história a dialética dos conflitos que a tecem. E onde estaria entranhada essa dialética? Para Maria Odila Dias estaria no próprio estilo narrativo (DIAS, Maria Odila L. S. (org). Sérgio Buarque de Holanda. Introdução. SP. Ática, 1985, p. 18).

O estudo da obra de Sérgio Buarque de Holanda talvez devesse inspirar-se na crítica que Antônio Cândido dedicou à poesia: essa crítica deveria ser, fundamentalmente, a pesquisa das suas tensões internas (CÂNDIDO, Antônio. Na Sala de Aula. SP, Ática, 1985). Visão do Paraíso é um livro cuja expressão formal já denuncia muito do que é a pretensão explicitada pelo autor no plano do conteúdo. Com uma linguagem que serpenteia pelos meandros quase barrocos de complexas construções frasais, muito do que é tensão e contradição já se anuncia no próprio plano da expressão, antes que se verbalize integralmente.

A história, fluxo e refluxo, é o devir nada linear em que as afirmações se negam, para mais tarde se reafirmarem em sínteses sempre provisórias, frutos de uma Aufhebung hegeliana, a superação que, ao mesmo tempo, nega e conserva, algo que lembra a prosa croceana, e igualmente dialética, de Otto Maria Carpeaux, cuja época de crítica literária mais dinâmica conviveu com a fase mais produtiva de Sérgio Buarque de Holanda.

É essa expressão plena de contradições, contida numa escrita sinuosa que se enreda pelas incertas-certezas do mundo quinhentista, que leva o autor a captar os dois fatores que norteiam o seu livro, a mudança e a continuidade, ou melhor dizendo: o autor pesquisa como a mudança se abriga na continuidade. Essa dicotomia constituída de afirmações e negações, idas e vindas, avanços e recuos, fluxos e refluxos, é que compõe a tessitura da processualidade histórica, na qual a ausência de grandes rupturas não esconde a alteração de atitudes, comportamentos, política deliberadas, mentalidades espontâneas etc. Por isso, Sérgio Buarque supera simultaneamente a tese de Burchkhardt, para quem o Renascimento seria uma ruptura com a Idade Média e a antítese, exposta na moderna historiografia da primeira metade do século XX, que construiu a imagem da continuidade ininterrupta. A própria continuidade aparece em Visão do Paraíso, para reforçar também os "momentos crepusculares" da Idade Média: "A noção de que existiria uma fratura radical entre a Idade Média e o Renascimento, e é em suma a noção básica de Burchkhardt, tende a ser superada em grande parte da moderna historiografia pela imagem de uma continuidade ininterrupta. Mas precisamente a teoria da continuidade vem reforçar a importância desses momentos que se diriam crepusculares, momentos, no caso, em que a tese da produtividade inexaurível, quase orgiástica, do homem e da natureza é ainda, ou já é, sofreada por hesitações e titubeios. É nesses momentos situados na infância, tanto quanto na agonia, de uma era de otimismo, que iremos deparar com expressões indecisas entre a do abatimento da criatura e a de sua exaltação". (Visão do Paraíso, p. 188).

Entre infância e agonia, ruptura e continuidade, crepúsculo e dia eterno, tese e antítese, Sérgio Buarque reafirma uma continuidade que não é absoluta, pois contém em si os momentos de imperceptíveis mudanças qualitativas que assinalam uma época de transição, em que nada se afirma definitivamente, e que vai da ascensão de um humanismo quinhentista ao barroco seiscentista.

A tentativa de reconstruir o Zeitgeist que dominava as mentes e os corações daqueles que se lançaram às periculosas navegações transoceânicas, enfrentando tormentos concretos e imaginários para conquistar um paraíso terreal, não necessariamente irreal, pois o fantástico e o sobrenatural são tão reais quanto a mais concreta das coisas, desde que inseridos na atmosfera espiritual da época. Os que aportavam nas terras americanas, traziam consigo os códigos culturais que iriam servir para interpretar uma realidade até então incógnita. Daí surgem as distinções entre aqueles que vindos do mundo anglo-saxão se deparam com terras ao norte da América e os que, ibéricos na origem serão movidos pela exuberância natural de uma terra de feracidades excepcionais. Os primeiros, também movidos por motivos edênicos, irão buscar a terra dos nossos primeiros pais, através da laboriosa construção humana; os segundos trilharão caminhos diversos.

A preocupação central do autor é com espanhóis e portugueses, e mais com estes do que com aqueles. E é no cotejo da descrição das novas terras com o instrumental lingüístico transplantado da Europa, que Sérgio Buarque de Holanda primeiro encontrará os traços de uma atitude mais concreta, pessimista, presa da força da convenção, no que tange aos lusitanos. Desde a carta de Caminha, na qual o escrevente da frota cabralina se detém de maneira temperada na descrição da nova terra, é a curiosidade moderada, sujeita às dúvidas e indagações desconfiadas, é a prosa utilitária, que ressalta a fertilidade da terra ou as chances de encontrar as tão preciosas pedras, que moverão o espírito lusitano. Daí a desproporção entre a insistente atividade dos navegadores portugueses e sua modesta contribuição para a geografia fantástica.

A descrição fantástica das viagens pelos mares nunca antes navegados em busca desse paraíso real se utilizava de um aparato cultural inevitavelmente estranho à nova realidade a ser descrita. Não é sem razão que a paisagem do Haiti, como a viu Colombo, era a realização do mesmo esquema literário de Dante; ou que o Leitmotiv de toda a descrição do Éden reconquistado nas terras americanas obedece à célebre síntese de um clima tão agradável que era ni frio ni caliente. O fabuloso, nas Índias tão procuradas, tornava às vezes o próprio código lingüístico incapaz de reconstruir as imagens vistas, como notaria com grande acuidade Brunetto Latino, pois nenhum homem vivo conseguiria "representar as figuras / das bestas e dos pássaros/ tanto são feias e más".

Essa fantasia não estava alheia à cobiça. A ganância terrena por riquezas e honrarias se aliava às sutilezas dos bens do espírito. Essas coisas se conjuminavam de tal sorte que a busca de riquezas minerais era guiada por motivos arquetípicos, trazidos da Europa. No caso dos portugueses, pode-se dizer que a verborragia descomedida dos castelhanos teve uma influência psicológica na prática colonizatória no Brasil. A conquista do Império Incaico e o desvelamento dos tesouros das cordilheiras sul-americanas sob autoridade espanhola, sugere ao rei de Portugal uma política mais definida e imediata na colonização do Brasil. Esses motivos visionários na política de colonização contrastam (e corroboram a tese defendida por Sérgio Buarque) com o retraimento da colonização portuguesa em outras paragens, a partir de 1541.

Essas imagens dos "incalculáveis tesouros" que os castelhanos encontravam no Peru, estimulavam os portugueses a abandonar sua habitual e desconfiada moderação para se lançar à expansão pelo interior das terras brasílicas na busca de um "outro Peru". Lá onde a silhueta se adelgava, para usar a feliz descrição geográfica do autor, pelas bandas da capitania de São Vicente e da vila de São Paulo, e daí para baixo, tornava-se mais fácil empreender as buscas pelo ouro escondido no centro da América do sul. A presença de motivações alheias à realidade concreta do Brasil colonial na busca do paraíso perdido chegou às raias da ironia, quando um Dom Francisco de Souza, que vivera na corte espanhola e habituado a encarar a atividade colonial segundo a deslumbrante imagem que lhe propunham a Nova Espanha, Nova Granada e o Peru, chegou a tentar obter autorização real e provisões para introduzir lhamas em São Paulo, em 1609, transfigurando as montanhas de Paranapiacaba numa réplica dos Andes (Visão do Paraíso, p. 98).

Aqui se observa como a dialética histórica se instala na narrativa (e será que pode realmente haver dialética que não esteja entranhada no fluir do tempo, no processo da gênese ?). As aparências se contraditam e a fantasia, influenciada pelos espanhóis, volta a desaparecer nos portugueses que, embora diante dela não fossem de todo insensíveis, preferem o imediato e o quotidiano ao milagre fantástico (Ibidem, p. 104). Onde estão as raízes dessa peculiaridade histórica portuguesa?

Na Revolução de 1383-85, através da qual a sublevação popular e burguesa inaugura nova dinastia (Casa de Avis), que promove a centralização do reino e abre caminho à expansão ultramarina comandada pela coroa. A precocidade do absolutismo português o coloca à frente de sua época. Essa tese de Sérgio Buarque de Holanda logo é negada por ele próprio, e antes que lhe enderecem as habituais críticas ao caráter "burguês" do 1383. É o próprio Sérgio Buarque que demonstra que os novos homens no poder não deixaram para trás suas virtudes ancestrais, adaptando-se aos padrões da nobreza. As formas modernas encobrem o fundo arcaico e conservador e o absolutismo monárquico que racionaliza o Estado é uma simples fachada de uma forma mentis vinculada ao passado (Ibidem, p.134). Faltam, aos lusitanos, as transformações espirituais dos quinhentos, que o separariam do pragmatismo realista e conservador.

Contentando-se com o evidente, o imediato, ou o utilizável, o português, entretanto (eis de novo a contradição) não estará imune ao tema paradisíaco, crendo piamente na realidade física do Éden (Ibidem, p. 149). E lembre-se de que o paraíso edênico não era algo absolutamente celestial, sem concretude terrestre; ao contrário, na tradição antiga e medieval, juntando concepções bíblicas e pagãs, era bastante provável que se localizasse em algum ponto do Oriente, onde o sol participava da terra com mais presença, e a vida podia depender menos do esforço a que Adão fora condenado do que da desejada fertilidade que o Gênesis atribui ao Éden.

Visão do Paraíso mostra como as idéias, mesmo sem uma correspondência imediata com a realidade concreta, podem ser móveis do conhecimento prático e das decisões políticas práticas. A História política, para a qual nem sempre é visível essa região do imaginário, muito pode aprender com esse livro. O humanismo relativamente passadista dos portugueses, em tudo contaminado pelo realismo chão de um certo praticismo (de que Gil Vicente é exemplo significativo), podia justificar a busca do conhecimento prático da natureza. O mundo natural e visível, embora vale de lágrimas condenado por Deus, pleno de sofrimento merecido e decadência, podia ser meio para que a mente, um órgão do espírito, pudesse dar luz ao conhecimento daquilo que é invisível, a alma (Ibidem, p. 231).

A intenção do autor é explicar "como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes vem buscar, e não raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do mar oceano, é uma espécie de cenário ideal, feito de suas experiências, mitologias ou nostalgias ancestrais" (Ibidem, p. 315). Os portugueses quinhentistas não constituíram exceção a essa regra, mas não estiveram livres de traços antiquados, anteriores em tudo ao espírito renascentista. Ao contrário da maioria dos castelhanos é a veia puramente descritivo e o acúmulo de "minúcias justapostas", conforme a tradição dos cronistas medievais, que vai guiar o olhar lusitano. A sua obra colonizadora é eminentemente tradicionalista, daí seu caráter disperso, fragmentário, de feitorização, e não de um Império articulado, como o da Espanha. Presa à faixa litorânea, como já criticava Frei Vicente do Salvador, e sujeita a um objetivo exterior, voltado para fora do país (o "sentido da colonização" de Caio Prado Jr.), é que a colônia vai formar-se social e economicamente.


 

Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

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