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Habermas versus Marx
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Paulo Sérgio Tumolo
Paulo_Tumolo@revistapraxis.cjb.net
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC - CED/EED e doutorando no Programa de História e Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica-São Paulo, SP.
"O iluminismo está morto, o marxismo está morto,
o movimento da classe trabalhadora está morto ...
e o autor também não se sente muito bem."
Neil Smith
Há muito vem sendo anunciada a morte do marxismo. Para além do discurso panfletário dos ideólogos de plantão do capital, é preciso reconhecer que, contemporaneamente, um número expressivo de autores vem desenvolvendo análises sérias e coerentes, questionando o marxismo como aporte teórico-metodológico capaz de explicar a realidade presente. Certamente um dos mais destacados é Claus Offe, com sua vasta obra, cuja influência no Brasil, particularmente na área das Ciências Sociais, não é nada desprezível. A leitura da produção desse, e de outros estudiosos, evidencia que uma de suas principais provavelmente, a principal matrizes teóricas se encontra em Habermas e, por essa razão, quem pretenda entrar em tal debate candente deve estabelecer, necessariamente, uma interlocução com esse autor.
Está fora de cogitação a pretensão de desenvolver, nos limites de um texto como este, uma análise da obra de Habermas. No entanto, já que o debate com esse notável autor é praticamente inevitável, buscarei tão somente e tenho dúvida se já não é muita pretensão esboçar ou fazer apontamentos para a introdução de um ensaio de análise crítica a alguns elementos talvez principais presentes em um de seus textos, a saber Técnica e ciência como "ideologia". Tenho a plena clareza de que tal procedimento é deveras problemático, para não dizer equivocado. Um dos problemas é trabalhar somente com um texto do referido autor. Mas trata-se apenas de um exercício analítico, circunscrito nos limites já assinalados. De qualquer maneira, a escolha desse texto não é casual, pois é de importância fulcral na obra do autor.
No referido artigo, Habermas estabelece um diálogo, explicitado desde o início, com Herbert Marcuse, através de sua obra A Ideologia da Sociedade Industrial ou, mais especificamente, Habermas se confronta com a tese desenvolvida por Marcuse, segundo a qual "a força libertadora da tecnologia a instrumentalização das coisas transforma-se em travão para a libertação, torna-se instrumentalização do homem" (Habermas), de acordo com a interpretação de Habermas. Ao mesmo tempo finca as bases para futuros desenvolvimentos no seu pensamento, sobretudo em torno da ação comunicativa.
Com esta perspectiva, Habermas identifica as duas grandes interlocuções de Marcuse: Weber e Marx. Ao argumentar que Marcuse pretendeu explicar o processo de racionalização da sociedade contemporânea fazendo a crítica à explicação dada por Weber e ao mesmo tempo balizando-se pelo referencial marxiano, Habermas assevera que "na minha opinião, nem Max Weber nem Herbert Marcuse o conseguiram de uma maneira satisfatória". Por isso, continua o autor, "vou tentar reformular o conceito de racionalização de Max Weber num outro sistema de referências, para sobre esta discutir tanto a crítica que Marcuse fez a Weber, como a sua tese da dupla função do progresso técnico-científico (enquanto força produtiva e ideologia)".
Não entrarei na discussão Habermas versus Weber versus Marcuse. Interessa-me, sobremaneira, a contenda Habermas versus Marcuse/Marx. Neste ponto, a tese de Habermas é, grosso modo, a seguinte: como Marcuse se fundamentou no referencial marxiano para poder explicar o processo de racionalização da sociedade contemporânea, e como esse referencial não mais dá conta de explicar esta sociedade ele denomina de tardo-capitalismo , então a explicação oferecida por Marcuse só poderia ter sido insatisfatória. Dessa forma, como Marx é o fundamento de Marcuse, e Habermas desenvolve sua crítica a este último neste plano, então a discussão basilar se desloca para o diálogo Habermas versus Marx. É aqui que concentrarei minhas atenções.
Antes de mais nada, é preciso alertar que, embora tal interlocução se apresente, no artigo de Habermas, com uma riqueza ímpar de elementos, não será possível discorrer sobre todos. Mais uma vez cabe uma escolha, privilegiando alguns aspectos em detrimento de outros. A discussão pode ser feita, em linhas gerais, sob dois prismas. Primeiramente, o da leitura de Marx por Habermas e, em segundo lugar, a relação de sua análise e sobretudo da sua proposta de explicação com a realidade presente.
I - Elementos da Contenda Teórica
Vou tentar traçar, resumidamente, a linha argumentativa de Habermas. Partindo daquela suposição segundo a qual as categorias elaboradas por Weber e Marx/Marcuse são insatisfatórias para explicar a sociedade moderna, Habermas apresenta seu calcanhar de Aquiles ao sugerir outro enquadramento categorial, vale dizer, a "distinção fundamental entre trabalho, ou ação racional teleológica, e interação ou ação comunicativa". Com base nessas categorias, o autor caracteriza e explica os diversos sistemas sociais, distinguindo-os conforme "neles predomine a ação racional teleológica (trabalho) ou a interação (ação comunicativa), e defende que na "sociedade tradicional" havia o primado da interação sobre o trabalho e, ao contrário, no capitalismo de tipo liberal, estudado por Marx, predominava o trabalho mercado sobre a interação. Balizado por uma particular leitura de Marx, segundo a qual a crítica da economia política marxiana é um "tipo de análise que isola metodicamente as leis do movimento econômico da sociedade", Habermas argumenta que se tal análise poderia até ter alguma validade ou explicar satisfatoriamente o capitalismo de tipo liberal, tendo em vista o primado do econômico sobre o político o mercado (estrutura econômica) se sobrepunha à sociedade "a crítica marxiana já não pode aplicar-se sem mais à sociedade tardo-capitalista", pois, ao contrário da antecedente, trata-se de um capitalismo regulado pelo Estado, onde, por razões diferentes da sociedade tradicional, volta a predominar a interação sobre o trabalho o mercado. Ele busca fundamentar as razões dessa transformação em dois fatores ou "duas tendências evolutivas" que se fazem sentir desde o último quartel do século XIX:
"1) um incremento da atividade intervencionista do Estado, que deve assegurar a estabilidade do sistema e,
2) uma crescente interdependência de investigação técnica, que transformou as ciências na primeira força produtiva" (grifado por mim).
Ao desenvolver o estudo a respeito desses dois fatores, Habermas assinala a presença e regulação do Estado não só com relação ao mercado, mas também no que diz respeito às políticas sociais e sugere que o segundo fator, de certa forma, está na dependência do primeiro. Ou seja, o elemento central na mudança de um tipo de sociedade para outro é a presença do Estado, que no tardo-capitalismo é predominante e regula não só o mercado, como toda a sociedade.
Por isso, o aporte teórico marxiano, que até oferecia uma explicação cabível e pertinente para o capitalismo de tipo liberal, não serviria para explicar o tardo-capitalismo. Suas principais categorias analíticas relações de produção/forças produtivas, teoria do valor-trabalho, mais-valia, luta de classes etc. teriam deixado de ter validade. Em poucas palavras, Habermas coloca em xeque o coração do arcabouço teórico marxiano: "o enquadramento categorial em que Marx desenvolveu os pressupostos fundamentais do materialismo histórico" (grifado pelo autor). Por decorrência, Habermas propõe a substituição da conexão forças produtivas/relações de produção como ele as entende pela "relação mais abstrata de trabalho e interação". Como considera aquele binômio categorial como o fulcro do materialismo histórico, na verdade está propondo um novo aporte teórico fundado nestas duas últimas categorias. "Tenho a suspeita", afirma ele, "de que o sistema de referência desenvolvido em termos da relação análoga, mas mais geral, de marco institucional (interação) e subsistemas da ação racional dirigida a fins ('trabalho' no sentido amplo da ação instrumental e estratégica) se revela mais adequada para reconstruir o limiar sociocultural da história da espécie" (grifado por mim). Posto isso, farei algumas considerações sobre a proposta categorial habermasiana. Tomarei como referência sua categoria de trabalho e buscarei relacioná-la com a categoria marxiana de trabalho, já que essa se constitui como central em sua obra.
Parece-me que Habermas deu um sentido mais geral às suas duas categorias centrais, inclusive ao trabalho, porque, na sua particular leitura de Marx, considera que as categorias da crítica da economia política desenvolvida por esse último eram prisioneiras da base estrutural economia , de uma "ordem apolítica", guardando, dessa forma, um caráter mais restrito e particularista, enquanto que suas categorias teriam um alcance mais "largo" e universalista. Creio que, talvez, por essa razão, Habermas impute às categorias marxianas um caráter histórico, particular, e às suas categorias um caráter universalizante. Será que, ao operar dessa forma, não perdeu a historicidade? É o que procurarei discutir.
A concepção que Habermas tem de trabalho é claramente de "trabalho em geral". Curiosamente, guardadas as superficiais diferenças, Marx também lida com essa categoria, e é possível encontrar semelhanças entre elas. Aliás, para esse último, trata-se de um ponto de partida em seu procedimento analítico. Apesar de longa e repisada, vale a pena fazer a citação de Marx, para que possamos cotejá-la com a acepção habermasiana:
"Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que o trabalho humano não se desfez ainda de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais. (...) Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios".
Se compararmos essa acepção de trabalho em Marx com a concepção habermasiana de trabalho, será possível encontrar semelhanças entre elas. Contudo, tais semelhanças não passam daqui. Para Marx, o trabalho em geral é um ponto de partida da análise, tendo em vista que tomado em si é mera abstração, uma "representação caótica" e por isso não serve como explicação do real. A direção metodológica de Marx é a seguinte: do trabalho em geral ao trabalho sob relações capitalistas de produção, quer dizer trabalho produtivo de mais-valia, de capital, passando pelo trabalho concreto, criador de valores de uso e pelo trabalho abstrato, criador de valores de troca. O itinerário é do concreto aparente para o concreto pensado. Em seu "método da economia política", Marx discute, não por acaso, esta questão do trabalho e depois de sublinhar, num exemplo, as características do trabalho nos USA e na Rússia, afirma:
"Este exemplo mostra de uma maneira muito clara como até as categorias mais abstratas precisamente por causa de sua natureza abstrata , apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem plena validez senão para estas condições e dentro dos limites destas".
O trabalho em geral é mera abstração e, por isso, não tem validade explicativa, e só pode adquiri-la quando "ganha" historicidade, quer dizer, quando mergulha na história e é compreendido como trabalho sob determinadas relações de produção. É justamente a essa tarefa que Marx se dedica em grande parte de sua obra, notadamente em O Capital. Por isso é que, depois de estudar o processo de trabalho onde se insere a primeira citação , cujo ponto de partida é o trabalho em geral, ele analisa o processo de valorização do capital, cujo substrato é o trabalho produtivo de capital.
Dessa forma, tendo uma particular abordagem da obra marxiana e ao mesmo tempo apresentando categorias analíticas com sentido "mais geral" com o intuito de oferecer uma explicação "sociocultural" mais universalizante da "história da espécie" e, por isso, mais adequada para a sociedade moderna, parece-me que Habermas acabou perdendo a historicidade, ao eleger o ponto de partida trabalho em geral como ponto de chegada, ou seja, como uma das duas categorias explicativas do tardo-capitalismo. Ora, seja capitalismo de tipo liberal ou tardo-capitalismo, ou qualquer outra conformação capitalista, trata-se de compreender o trabalho como trabalho sob relações capitalistas de produção e não como trabalho em geral. É claro que o ponto de chegada pode retornar ao ponto de partida para que a análise possa prosseguir, mas depois de ter percorrido aquele caminho já não é mais o "mesmo" ponto de partida. Na análise de Habermas, esse elo teria se perdido, ou melhor, nem teria sido produzido, tendo em vista que, possivelmente, o seu ponto de partida é o próprio ponto de chegada. Desta maneira, Habermas pode ter "caído na armadilha" de considerar que uma categoria analítica com sentido mais geral vale dizer, no plano do concreto aparente pudesse oferecer uma explicação mais adequada da realidade. A categoria habermasiana de trabalho, sobre a qual o autor constrói seu aporte teórico, seria, portanto, a-histórica e, por essa razão, deveria ser crivada como categoria analítica capaz de oferecer explicação consistente para sociedades sob a égide do capital.
Poder-se-ia, como desdobramento, fazer uma análise do mesmo teor, guardadas as especificidades, tanto das outras categorias marxianas, como da outra categoria habermasiana a interação (ação comunicativa). Tal como a primeira, essa categoria também careceria de historicidade. Se tudo isso faz algum sentido e mesmo considerando que as categorias marxianas são inadequadas para explicar o tardo-capitalismo, como defende Habermas, minha hipótese é a de que as categorias propostas por Habermas se apresentam como mais problemáticas e, talvez, mais inadequadas para a compreensão daquela fase capitalista, tendo em vista o seu caráter a-histórico.
Por último, vale ressaltar ainda que, curiosamente, Habermas dá um caráter histórico à teoria marxiana serve para um tipo de sociedade e não serve para outro e não dá o mesmo caráter para sua teoria e respectivas categorias. Antes de prosseguir, contudo, faz-se necessário alguns esclarecimentos. Penso que o intuito de Habermas não tenha sido o de simplesmente fazer a crítica a Marcuse, ou mesmo a Weber e a Marx. No que diz respeito ao artigo aqui referido, Habermas era um "homem de seu tempo" e, por isso, sua preocupação estava em compreender justamente esse "seu tempo". Mais que isto, sua maior preocupação e nesse aspecto segue a tradição das gerações precedentes da escola de Frankfurt era a de buscar oferecer respostas políticas para os desafios colocados naquele momento histórico, quer dizer, ele tem em seu horizonte uma perspectiva política e a apreensão da realidade de "seu tempo" era condição sine qua non para a construção de uma proposta política. Dessa forma, creio que a particular leitura que faz de Marx só pode ser compreendida nesse contexto, isto é, se deve tanto à leitura que faz da realidade da época de Marx e da sua própria, quanto da "sua" perspectiva política.
II - A Explicação de Habermas e a Realidade Presente
Até o momento procurei fazer o cotejamento Habermas versus Marx numa abordagem teórica. Ora, a validade das categorias analíticas de um arcabouço teórico só pode ser testada na relação com a realidade. Por isso, a partir de agora, buscarei relacionar a teoria habermasiana com a realidade presente. Para tanto, iniciarei com a seguinte suposição: admitamos uma concordância na leitura que Habermas faz de Marx, o que nos leva, por decorrência, a admitir a adequação de toda sua análise. Seu roteiro argumentativo é, grosso modo, o que se segue: como o capitalismo mudou, daquele de tipo liberal para o de tipo tardio, o aporte teórico marxiano, que eventualmente servia para explicar o primeiro tipo, não serve para a compreensão do segundo. Daí a premência de um novo aporte teórico, proposto por Habermas. Como já foi visto, o elemento decisivo de todo esse processo é a intervenção do Estado. Habermas partilha da crença keynesiana de que o Estado pode regular o mercado e a sociedade, garantindo a "estabilidade do sistema", cuja expressão mais cabal é o Estado do Bem-Estar Social. A existência do Welfare State naqueles termos é o suporte empírico da propositura habermasiana.
Acontece que, a partir do período mais ou menos próximo àquele em que Habermas escreve seu texto 1968 , se opera um processo de transformações profundas. O capitalismo mudou outra vez, e como mudou! Certamente, um dos autores que procura compreender as características das transformações que ora se operam no mundo é Harvey através de seu livro A Condição Pós-Moderna1. Como o próprio título sugere, o autor busca, ousadamente, construir uma explicação para a sociedade contemporânea em seus múltiplos e inter-relacionados aspectos, qual seja, a chamada pós-modernidade. Rompendo as tradicionais fronteiras entre as diversas áreas do saber, através de um vasto conhecimento, e comparando os elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto da pós-modernidade, Harvey aponta a dificuldade em definir o pós-modernismo, dada "sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico" e que, por essa razão, uma de suas principais características consensuais talvez a única seja a crítica que faz às metanarrativas, ou metateorias. Conscientemente, o autor tece uma das mais bem fundamentadas críticas, baseada numa desenvoltura erudita e numa abundância de dados empíricos, à pós-modernidade e, pois, à sua oposição a todas as formas de metanarrativa, valendo-se, justamente, de uma determinada metanarrativa, ou mais precisamente, do marxismo.
Tendo como ponto de partida a constatação de que "vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas, desde mais ou menos 1972", Harvey anuncia, logo no início, sua tese de que é possível "aduzir bases a priori a favor da proposição de que há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de 'compressão do tempo-espaço' na organização do capitalismo". Mas tais mudanças, continua o autor, "quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova".
Ao buscar um substrato material para explicar as mudanças aparentes, Harvey mergulha na análise das transformações político-econômicas do capitalismo do final do presente século, partindo de um estudo sugestivo do fordismo e sua imbricação com o keynesianismo, o que propiciou um longo período de expansão capitalista, passando pelos elementos de crise desse paradigma de organização da produção, demarcada principalmente pela crise de 1973 "crise de superacumulação" , até chegar e concentrar seus esforços na discussão daquilo que denomina "acumulação flexível de capital".
"A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado 'setor de serviços', bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas".
No bojo dessa análise, gostaria de ressaltar, para efeito da discussão aqui desenvolvida, que, embora a presença do Estado, qualquer que seja sua forma, continue sendo uma necessidade imperiosa do capital em seu processo de acumulação ao contrário da falsa idéia alardeada pelos ideólogos do "neoliberalismo" é preciso reconhecer, de um lado, que a crise de 1973 cinco anos após o texto de Habermas e as outras crises posteriores de superprodução de capital demonstraram empiricamente a inconsistência daquela crença partilhada por Habermas segundo a qual a intervenção do Estado na economia e em outras instâncias da sociedade poderia garantir a estabilidade do sistema e, de outro, como desdobramento do primeiro, que o modelo keynesiano-fordista e, por decorrência, o Estado do Bem-Estar Social também entraram em crise e se encontram tendencialmente em estado agonizante. Parece que o "mercado", de forma diferenciada, se impôs novamente.
Ora, os elementos centrais constitutivos do tardo-capitalismo, segundo a caracterização de Habermas, não se apresentam mais como centrais nesta fase atual do capitalismo. Isto significa que, se seguirmos a linha argumentativa de Habermas, poderíamos afirmar que, por razões distintas daquelas do capitalismo de tipo liberal, o capitalismo atual seria um "tardo-tardo-capitalismo" ou um "capitalismo mais-do-que-tardio"? recupera o primado do mercado2. A conclusão parece ser inevitável: pelas mesmas razões apontadas por Habermas, seu aporte teórico e suas respectivas categorias analíticas são relativas ao tardo-capitalismo e, por isso, não dão conta de explicar satisfatoriamente o capitalismo atual, na medida em que a própria história, evidenciada por fatos empíricos, teria se encarregado de "jogar por terra" o caráter pretensamente universalista da proposição habermasiana. Em outras palavras: mesmo que concordássemos com a leitura que Habermas faz de Marx e considerássemos a validade de sua explicação, tal explicação, para guardar coerência com sua linha argumentativa, deixaria de ter validade, ou seja, ficaria prejudicada quando se trata da realidade presente. Urgiria, portanto, um novo arcabouço teórico com novas categorias analíticas.
III - Considerações Finais
Se é verdade que nem Marx e tampouco Habermas oferecem um aporte teórico capaz de explicar satisfatoriamente a realidade atual, então poderíamos ficar tentados a proceder como Habermas e desenvolver uma proposição teórica. Não é, de forma alguma, o meu intuito. Na verdade, trabalhei com todas aquelas suposições e são meras suposições para poder evidenciar alguns problemas na análise habermasiana. Toda vez que o capitalismo muda e isso é constante e permanente enquanto existir capitalismo, tendo em vista que tais mudanças são fruto de suas próprias contradições e ao mesmo tempo são as formas possíveis por ele engendradas no ensejo de se perpetuar no seio da luta de classes as teorias produzidas para explicar uma fase não servem para explicar a subseqüente, demandando sempre a produção de novas teorias? Teriam essas teorias, indelevelmente, um caráter sempre particular? Se sim, e Habermas o identifica na teoria marxiana, por que isso não vale para sua proposição teórica? Até que ponto, ao pretender dar um alcance mais geral ou universal às suas categorias analíticas, não acabou por construí-las a-historicamente?
Parece-me que um dos problemas na análise de Habermas, no referido texto, é que não leva em consideração que o capitalismo de tipo liberal, o capitalismo tardio e o capitalismo em sua atual fase, em que pese suas profundas e já destacadas diferenças, têm uma identidade: são todo capitalismo. Essa é, aliás, a principal tese desenvolvida por Harvey em relação ao padrão fordista-keynesiano e à "acumulação flexível". Nas suas conclusões, o autor monta uma tabela comparativa onde se pode visualizar claramente as distinções e oposições entre as principais características, abrangendo todas as dimensões da vida social do econômico ao cultural , do "modernismo fordista" e do "pós-modernismo flexível". Não é por acaso que o título da tabela seja "modernidade fordista versus pós-modernidade flexível". Depois de comentar os elementos de oposição contidos na tabela, indaga: "mas e se a tabela como um todo constituísse em si uma descrição estrutural da totalidade das relações político-econômicas e cultural-ideológicas do capitalismo?" (grifado por mim). Em seguida afirma que "concebê-la assim requer que vejamos as oposições intra e entre perfis como relações interiores no interior de um todo estruturado" (grifado por mim). O que Harvey está defendendo, depois de ter percorrido um longo caminho analítico, é a idéia segundo a qual, para além das diferenças, oposições e "desidentidades", há entre aqueles dois modelos uma identidade, a saber, o seu pertencimento ao mesmo todo estruturado, o capitalismo. Com a ajuda de tal idéia "podemos dissolver as categorias do modernismo e do pós-modernismo num complexo de oposições que exprime as contradições culturais do capitalismo. (...) Nesse caso, a rígida distinção categórica entre modernismo e pós-modernismo desaparece, sendo substituída por uma análise do fluxo de relações interiores no capitalismo como um todo". (Harvey)
Ora, podemos dizer o mesmo do "fordismo" e da "acumulação flexível", cuja rígida distinção categórica desaparece, dando lugar a uma análise do fluxo de relações interiores no capitalismo como um todo. Por essa razão, é possível afirmar que, se é verdade que as análises devem ser sempre conjunturais, buscando apreender as particularidades das diversas fases do capitalismo e mais do que isto, devem ser sempre renovadas e reconstruídas "mergulhadas" na história , acompanhando o constante processo de metamorfoses do capitalismo, elas podem ter um balizamento que tenha um caráter universal, válido para toda e qualquer fase capitalista. Afinal, trata-se de formas diferentes de manifestação de um único e mesmo modo de produção, o capitalismo. Além do mais, talvez o maior problema de Habermas, como já vimos, é a a-historicidade de suas categorias analíticas. Na minha opinião, Habermas não percebeu na obra marxiana principalmente em O Capital , em virtude da particular leitura que dela fez, dois aspectos de fundamental importância: o seu caráter histórico e o seu alcance universal. Mas esse último só é possível tendo como condição a historicidade. É preciso deixar claro, no entanto, que tais características não são fruto da "genialidade" de Marx e sim da aplicação de seu método que foi, aliás, dispensado por Habermas.
Por isso, se me fosse permitido propor um aporte teórico que ofereça pistas para a apreensão dos elementos fundamentais constitutivos da realidade presente, sugeriria a crítica da economia política desenvolvida por Marx e outros principais analistas da linhagem marxista. Numa palavra: o materialismo histórico. Evidentemente, numa leitura distinta daquela realizada por Habermas.
Faz-se necessário, contudo, alguns esclarecimentos. A obra de Marx, bem como dos outros autores marxistas, está bem longe de ser suficiente para explicar satisfatoriamente não só a atual fase do capitalismo, como também as precedentes, inclusive aquela vivida por Marx. Trata-se, portanto, de uma condição necessária, mas sempre insuficiente. Além disso, as categorias centrais do materialismo histórico teoria do valor-trabalho, força de trabalho como mercadoria, mais-valia, capital etc, e principalmente a luta antagônica entre as classes fundamentais não são nada, não têm qualquer validade fora da história e, por isso, só têm validade explicativa se mergulhadas na história, ou seja, na medida de sua historicidade. Deve-se lembrar que método é itinerário de análise da história e não disposição de categorias apriorísticas com as quais se debruça sobre a realidade para que esta se "encaixe" naquelas. A universalidade das categorias fundamentais do materialismo histórico é particular ao modo capitalista de produção e a condição de sua validade é, como já foi dito, sua historicidade. Trata-se, pois, de uma análise concreta de uma realidade concreta.
De qualquer maneira, sobra pelo menos uma indagação. Confrontado com a realidade atual, o marxismo ainda teria alguma validade? Tenho plena clareza da minha impossibilidade de, neste texto, abordar a contento tal questão. Apesar disso, tentarei "arranhá-la" levantando outras perguntas. A crise de 1973, bem como as seguintes, e a caracterização do novo padrão de acumulação de capital engendrado a partir de então, não se constituem uma demonstração empírica da validade das categorias fundamentais do materialismo histórico? Até que ponto tais fatos não são a prova da determinação do mercado leia-se mercado capitalista sobre o Estado? Se o Estado regulava o mercado e a sociedade, como acredita Habermas, por que o Estado seja nacional, multinacional ou "globalizado" não evitou as crises? Por que não evita o desemprego estrutural, o aumento da miséria, a intensificação da exploração etc.? Será que na fase atual "voltou" o primado do mercado, ou não pode ter voltado aquilo que, na verdade, "não foi"? Se as crises e seus respectivos desdobramentos continuam a "dar o ar de sua graça", qual a teoria que buscou apreendê-las em suas raízes, para poder melhor explicá-las?
Enfim, para verificar até que ponto o materialismo histórico pode oferecer alguma explicação consistente acerca da realidade presente, é necessário testá-lo, colocá-lo à prova. É o que tem feito um número expressivo de estudiosos e o resultado de suas investigações vem demonstrando, de forma contundente, a validade, a fertilidade, a vitalidade e a excelência do marxismo. Certamente, um deles é Harvey, cujo riquíssimo ensaio já tive oportunidade de apresentar anteriormente. Em sua obra, o autor faz uma citação de Neil Smith, que está reproduzida na epígrafe deste artigo: "O iluminismo está morto, o marxismo está morto, o movimento da classe trabalhadora está morto ... E o autor também não se sente muito bem". Pelo menos, os que, como eu, não compartilham dessas crenças têm a vantagem de se sentirem um pouco melhor.
1 - Vide também, entre outros, Antunes* (1995).
2 - É interessante observar que, neste período recente, parece haver um consenso, nem sempre explicitado, acerca da determinação do mercado leia-se mercado capitalista sobre as outras esferas da sociedade, incluindo a cultura, a educação etc. Alguns chegam às raias do cinismo, propondo a subordinação direta de algumas daquelas instâncias ao mercado. Sobre essa questão vide, entre outros, Harvey.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.
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