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O Silogismo 'Família - Sociedade - Estado' expresso na Antígone de Sófocles
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Haroldo Santiago
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.
Haroldo_Santiago@revistapraxis.cjb.net
Busco discutir neste artigo a glosa da tragédia de Sófocles, Antígone, apresentada por Hegel na primeira seção do capítulo VI da Fenomenologia do Espírito(1).
A questão que já se punha desde a seção B do capítulo V (onde Hegel analisa as figuras de Fausto, Karl Moor e D. Quijote) é: por que Hegel se vale de exemplos buscados na literatura de ficção e não na História? O que, diga-se, propiciou ter sido chamado por Marx de irrealista (é verdade que num contexto diferente, comentando o # 279 da Filosofia do Direito, onde Hegel analisa as limitações desse "eu que quer", um monarca tal como Creonte, o que me permite o acronismo da comparação).
Se Hegel tomasse como ponto de partida os sujeitos reais, considerados como bases do Estado, não teria necessidade de o subjetivar de forma mística(2).
Vale dizer, se Hegel tivesse se baseado em Heródoto, Tucídides ou Plutarco, suas análises deixariam de ser de "ficção-histórica" para estarem de acordo com a ciência que seu grande antecessor, Kant, ajudara a fixar. Mas, diferentemente, tal não poderia ser considerado como uma antecipação da hoje chamada leitura intertextual? Ou seja, que as obras de ficção, longe de serem arbitrárias, apresentam os fatos da experiência humana imersos no medium universal mais adequado para representá-los, a linguagem em sua forma mais criativa e desinibida.
Um melhor juízo dos propósitos hegelianos quanto ao uso das figuras de ficção encontra-se em Marcuse, talvez porque seu marxismo já esteja mediatizado pela doutrina fenomenológica.
A Fenomenologia...(1), de Hegel, expõe, portanto, a história imanente da experiência humana. Esta não é, sem dúvida, a experiência do senso comum, mas uma experiência abalada na sua segurança, imbuída do sentimento de não possuir a verdade toda...(3)
Ainda com Marcuse, temos que nos lembrar que Hegel não escreveu uma Ética, ainda que tenha sempre estudado, de Iena a Berlim, as diversas manifestações do sistema de eticidade. Ou seja, contrariamente à Moralität edificante proposta pelos "imperativos categóricos" de Kant, a proposta de Hegel é objetivante e, para que não paire dúvidas, recorre a exemplos da ficção sempre que precisa mostrar "as figuras" ideais com que apresenta para o leitor sua reflexão.
O espírito deve avançar até à consciência do que ele é imediatamente; deve suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras, o saber de si mesmo(4).
Entremos, agora, na análise propriamente do sistema de vida ética grega, mediatizados pelas criações de seus dois grandes trágicos, Ésquilo (Orestiada, não analisada aqui) e Sófocles (Antígone).
Para Hegel, as potências éticas, ou multiplicidades da substância ética, formam uma díade:
1 - A família (= estirpe). Detentora da riqueza capaz de satisfazer às necessidades de sobrevivência de seus membros. Ela é responsável pela observância das leis divinas.
2 - O Estado (= governo). Detentor do poder de coação sobre as famílias (p. ex., arrebatando seus filhos em caso de guerra). Ele é responsável pelas leis humanas.
No caso da Antígone, representadas pelas figuras trágicas de Antígone e Creonte, respectivamente.
<...> A substância se divide, assim, em uma essência ética diferenciada: em uma lei humana e uma lei divina. <...> A consciência-de-si experimenta assim, em seu ato, tanto a contradição daquelas potências em que a substância se divide, e sua mútua destruição, como <também> a contradição entre seu saber sobre a eticidade da sua ação, e o que é ético em si e para si; e <ai> encontra sua própria ruína(5).
A lição de Hegel é de que é preciso desconfiar das ações tanto de Antígone quanto de Creonte; ou seja, devemos nos precaver quanto às provocações dos heróis trágicos, pois estes se matam uns aos outros e sempre põem a culpa no destino.
O pensamento de Hegel, na continuidade da ruptura cristã com os costumes da "cidade antiga", é de que devemos deixar que os mortos enterrem os mortos(6). Assim, podemos ver a ação insensata de Antígone, procurando cumprir seu dever filial de enterrar Polinice, sem sequer consultar as demais pessoas da família que diz representar. Sua tragédia foi deixar-se levar pelas leis subterrâneas de forma ameaçadora para as leis diurnas. É preciso que tenhamos cuidado com tais fanáticos, acautela-nos Hegel.
Mas Creonte, também, é um fanático do poder estratégico (das "raízes de Estado", em sentido moderno). Trava-se, então, uma luta entre subjetividades que não se reconhecem, uma vez que se encontram infinitamente encerradas em suas obstinações.
Agindo como termos médios entre tais extremos, propõe-se Hémon (filho de Creonte e noivo de Antígone) que busca fazer valer os argumentos da razão, mas que acaba se sacrificando pela dor em face da morte da noiva, e pelo ressentimento em face do pai que não mais lhe serve de modelo. Ou seja, os costumes objetivos da sociedade não foram respeitados, nem pelas potências da família, nem pelas potências do Estado: "a eticidade foi por terra"(7). Vale recordar um momento do tenso diálogo entre pai e filho, iniciado de forma tão cândida por este.
Hemon: Pai... eu te pertenço... Teus sábios conselhos me têm guiado, e eu os seguirei. Para mim não há casamento algum que possa prevalecer sobre tua vontade.
[...]
Hernon <já noutro estado de espírito - HS> Ouve: não há Estado algum que pertença a um único homem!
[...]
Creonte: Miserável! Por que te mostrar em desacordo com teu pai?
Hernon: Porque te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte: Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hemon: Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam dos deuses!
Creonte: Criatura vil, que se põe a serviço de uma mulher. (Sofócles, Antígone)(12)
A postura ética de Hegel é, a meu ver, contrária ao dever moral como imperativo categórico, tal como proposto por Kant em sua Critica da Razão Prática. Ambos, Creonte e Antígone, querem fazer valer a "lei do coração" como um dever ser de caráter universal e só trazem a perdição para a totalidade social. Diz Hegel:
<...> De fato, essa consciência <individual - HS> difere ainda da substância <ética - HS> como algo singular; ora estatui leis arbitrárias, ora acredita ter em seu saber as leis tais como são em si e para si; e se tem como potência que as julga(8).
Tanto não têm o caráter universal da substância ética quanto não podemos, nós espectadores, decidir por qualquer um dos dois. Isto porque representam a própria aporia ética fundamental, a que divide o ser da família e o ser do Estado. O único que podemos aprender nos é fornecido de forma irracional, através da catarse que nos provoca a visão de um Creonte vivo, mas cheio de culpa e que será julgado inexoravelmente perante o povo de Tebas.
Aqui vale a pena rememorar a continuidade da tradição desenvolvida pelo Direito. Num primeiro momento, imperava a "lei de Talião", ou vingança retributiva. Num segundo momento, o encarnado na tragédia, vemos a presença do direito ático que não reconhecia responsabilidade, apenas culpas e sobre estas exercia o veredicto condenatório. O terceiro momento, será desenvolvido pela legislação ateniense, criando a figura da responsabilidade (ou imputabilidade do réu), por ex., em relação aos generais que recusaram resgatar os corpos dos náufragos de Salamina por medo da tempestade (episódio vivido de perto por Sófocles).
No caso que estamos examinando, não existindo responsabilidade, a imputabilidade é descarregada no destino.
Creonte: Que venha!... que venha! Que apareça já a mais bela... a última das mortes que eu causei... a que me há de levar... no meu derradeiro dia... que ela venha! Eu não quero... eu não quero ver clarear outro dia.
Coro: Oh! Mas isto já é o futuro!... Pensemos no presente, ó rei! Que cuidem do futuro os que nos futuro viverem.
Creonte: Tudo o que eu quero está resumido nesta súplica! ... Ouvi!
Coro: Não formules desejos... Não é lícito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!
(Sófocles, Antígone, falas finais)(12)
Para a "bela eticidade grega", quem age não pode temer o crime e, portanto, a culpa. Por isso, Homero disse que apenas os mortos são felizes, pois não agem mais. Ou, como é expresso de forma plástica por Hegel:
"Inocente, portanto, é só o não-agir, - como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança <é inocente>(9)."
Se, para o Antigo Testamento, o pecado é inescrutável e original, para os gregos a culpa pode ser avaliada e antecipada pelos adivinhos (no ciclo tebano, que estamos examinando, representados por Tirésias), sempre prontos a alertar os príncipes sobre o orgulho (hybris) implícito em toda ação, pois a ação já indica o desejo de fugir ao curso-do-mundo traçado pelos deuses. Os homens se considerariam deuses, e tal bravata tem que ser punida, pois "O ato perturba a calma organização do mundo ético, e seu tranqüilo movimento.(10)"
Evidentemente, Hegel teria que deslocar, em sua glosa, a questão, colocando-a numa estrutura lógica determinada pelas categorias de necessidade (os costumes objetivos que têm que ser respeitados) e de contingência (as intervenções pessoais, subjetivando tais costumes objetivos). O povo, na tragédia em questão, representado pelo Coro dos Anciãos de Tebas, é o guardião inerme de tais costumes objetivos, "contudo, na base de seu operar, está firme confiança no lodo, à qual nada de alheio se mistura: nem medo nem hostilidade.(11)" Vejamos o que diz o Coro:
Coro: "Numerosas são as maravilhas da natureza, mas, de todas, a maior é o Homem! <...> Industrioso e hábil, ele se dirige, ora para o bem... ora para o mal. Confundindo as leis da natureza e também as leis divinas a que jurou obedecer, quando está à frente de uma cidade, muita vez se torna indigno e pratica o mal, audaciosamente! Oh! Que nunca transponha minha soleira, nem repouse junto a meu fogo, quem não pense como eu, e proceda de modo tão infame!"(12)
Parece-me crer que o que o Coro está querendo expressar é que desde que um dirigente começa a confundir as leis, considerando-as como "leis do coração" (i. e, formas eletivas pessoais de conduta, numa expressão típica do romantismo alemão), começa a se distanciar da substancia ética de sua comunidade e termina por se perder a si mesmo e aos seus concidadãos. Por isso, os anciãos não querem que venha a transpor sua soleira, nem que encontre repouso junto a seu fogo. Tal homem perdeu-se para o todo.
Mas o que é esse todo, ou "totalidade da realidade"? Para os gregos, era o principio da sabedoria. Como o disse Heráclito em conhecido fragmento: "Una é a sabedoria, compreender como o todo é governado pelo todo." Vejamos como o enxerga o idealismo alemão:
O todo é um equilíbrio estável de todas as partes, e cada parte é um espirito que-se-sente-em-casa <no todo>; e que não procura sua satisfação fora de si, - mas a possui dentro de si, pelo motivo de que ele mesmo está nesse equilíbrio com o todo. Por isso, esse equilíbrio na verdade só pode ser vivo, por surgir nele a desigualdade e ser reconduzido à igualdade pela justiça.(13)
Como se trata de um equilíbrio vivo, traduz uma situação histórica de assimetria. Aqui intervém a Aufhebung (a famosa supressão que permanece e que hoje se traduz pelo neologismo "suprassunção"): toda realidade, mesmo a mais idílica, traz em si o germe de sua destruição. A idéia de Hegel é que o conflito expresso por Sófocles é indecidível, e trágico é ser esse o destino dos indivíduos humanos, cujo senhor é a morte, mas cuja essência ética é a liberdade.(14)
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 1, de 1994, tenha sido proveitosa e agradável.
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