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Macunaímas e Profetas

'Macunaímas e Profetas' - Xilogravura de 1508
Xilogravura de 1508

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Ronald Rocha
Sociólogo, membro da Editoria da Revista Práxis.
Ronald_Rocha@revistapraxis.cjb.net


"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite."(1)

Mário de Andrade


Destino e profecia, duas palavras interligadas, tão fortes que não admitem moderação. Talvez porque se articulem, de uma forma ou de outra, com os grandes dramas humanos. O professor Mangabeira Unger, ao passar pelo Brasil em meados de 93, colocou-as no epicentro de suas entrevistas e palestras. Quando lhe perguntaram "como alguém tão sofisticado vota em Brizola", respondeu misteriosamente: "No Brasil há muito macunaíma e pouco profeta"(2).

A frase de efeito encerra uma preocupação realmente séria: uma das "condições para se instaurar no Brasil uma política (...) voltada para a prática das reformas estruturais" é de fundo "espiritual e psicológico". Trata-se de romper "a desesperança", assumir "o caminho do despojamento, da renúncia e do risco". De realizar uma "ruptura existencial". Em suma: "teremos uma república de cidadãos quando formos uma nação de profetas"(3).

Para sermos fiéis ao sentido etimológico do termo, dado pelas tradições judaico-cristã e muçulmana, vale dizer: quando formos uma nação de indivíduos que predizem o futuro. Uma terra de homens e mulheres que têm presságios e realizam vaticínios. De oráculos, enfim. No sentido figurado, a presença esmagadora, em tais conceitos, do natural ou do sobrenatural pré-traçados pode ser mitigada: já não seriam adivinhos, nem maomés, apenas autores de hipóteses, conjecturas e prognósticos.

Porém, Mangabeira Unger o recusaria. Não se refere à razão especulativa. Quer a criação do "impulso visionário no País"(4). Pretende que a multidão de macunaímas tornados profetas deixe de achincalhar o venerável, renuncie ao ímpeto dessagrador e anuncie o destino nacional. Que, afinal, os saudosos Grande Othelo e Oscarito recomponham as silhuetas mestiças, fechem os semblantes zombeteiros e percam o brilho maroto dos olhos para vivenciar, nos estúdios de uma Atlântida imaginária, aquela propheteia da morte trágica com que Shakespeare aprisionou a trama de Romeu e Julieta. Teria sido possível? Será desejável?


A Razão Macunaíma

Para Mangabeira Unger, o "herói sem nenhum caráter" aparece como símbolo de um povo ajoelhado e prostrado. Mas o seu perfil não se identifica linerarmente com o interesse individualista-vilânico e a razão cínica. É muito mais complexo. O genial livro de Mário de Andrade revela um cáustico anti-ufanismo na busca de identidade nacional e cultural. Macunaíma é o antípoda do herói romântico, protegido da vida real por uma redoma de virtudes. É o "nosso herói trickster, safado e moleque", cuja falta de "compostura" se contrapõe "ao senso comum da gente séria, ajuizada, bem comportada, ganhadora de dinheiro, virtuosa e servil"(5).

Sua "alegria imotivada é a vingança do povo, sua revanche, contra a envolvente trama intelectual que se lança sobre suas cabeças, atribuindo a ele a culpa de nossos crônicos males. Debitando o fracasso nacional ao povo, à sua suposta inferioridade racial, à sua alegada indolência tropical, à sua propalada luxúria pagã, os poderosos, os ricos, os brancos, os educados – donos do mundo, senhores da vida – se livram de culpas. Jogam sobre o povo, o pobre, o preto, a mulataria, as responsabilidades de nosso desempenho medíocre, ontem e hoje"(6).

A história política do país reforça o paradoxo da personagem. O mesmo povo integrado ao esquema da clientela, que se curva frente aos "de cima", que troca os direitos da própria cidadania por um par de botinas, que adere à conhecida Lei de Gerson, que pratica o vale-tudo, tem sido capaz de protagonizar episódios memoráveis. Mais recentemente, resistiu ao regime militar, construiu partidos socialistas, fundou a CUT independentemente do Estado e dos patrões, fez manifestações gigantescas por eleições diretas para Presidente, realizou greves gerais, ocupou terras enfrentando milícias de jagunços, quase conduziu a Frente Brasil-Popular ao governo central, destituiu Collor [de Melo], exigiu "ética na política" e hoje demonstra uma inclinação eleitoral à esquerda.

Ao longo de sua trajetória contraditória, as gentes do Brasil vêm produzindo exemplos coletivos de integridade, "despojamento" e "risco", traço que o próprio Mangabeira Unger reconhece, ainda que só na esfera dos indivíduos. E o fazem na condição de macunaímas, acionando seu lado contestatório e generoso. Com sua falta de caráter, isto é, na sua busca de auto-reconhecimento, na sua pluralidade, beiram "a surpresa e a indeterminação"(7). Possuem uma cultura multifacética, castrada e unilateralizada. Sua verdade é o todo.

Os traços degradantes do comportamento de alguns segmentos populares não têm uma natureza imanente. São frutos da via específica da afirmação da supremacia burguesa no Brasil. Aqui, na falta de uma transformação democrático-radical, que se apoiasse na mobilização dos "de baixo" para liquidar os fundamentos espirituais e materiais da velha ordem, os capitalistas se formaram e se tornaram classe dominante através de um processo de "revolução passiva". Uma "revolução sem revolução", como diria Gramsci(8). Eis a origem histórica do Estado cartorial, da política inorgânica, da clientela, da corrupção crônica, da razão cínica, dos traços gelatinosos da sociedade civil brasileira, persistentes na integração à modernidade ocidental.

Neste quadro, as massas populares são antes vitimas que vilãs. Já não será tempo de voltar as armas da crítica contra os donos do capital, que foram os principais sujeitos da "revolução passiva", aceitando um pacto com a oligarquia latifundiária, o passado colonial, o Estado aristocrático e a cultura elitista? A formação social brasileira não é a imagem de "nossa" burguesia, e vice-versa? Como responsabilizar a legião de macunaímas oprimidos, explorados, marginalizados, muitos dos quais inclusive inadequados ao conceito de pessoa, excluídos que foram da própria cidadania? A sua falta de caráter habita o conceito de povo que a classe dominante sempre cultivou. Mas é apenas uma das faces do projeto cultural dos poderosos, felizmente inconcluso.

O povo macunaíma, apesar de ter eleito Collor e milhares de "joões alves" por este país afora, não deve ser acusado por tê-los inventado. Seu ato de vontade não foi infinito porque se deu constrangido, não foi plenamente livre porque resultou de um gesto alienado no interior da complexa malha de relações sociais e fatores psicossociais, da "hegemonia passiva". De nada vale dar-lhe pito e responsabilizá-lo. Seria pedantismo. A postura dos descamisados só mudará na medida em que realizem sua experiência política e reproduzam o conjunto das condições necessárias para se constituírem como novos sujeitos. Mas o serão, ainda, como filhos e netos de Macunaíma, não como clones assépticos, sem pecados originais.

Assim, não se trata de construir "uma nação de profetas", mas de realizar, como elemento fundamental da estratégia socialista, uma disputa de hegemonia no terreno social global, dialogar com homens e mulheres reais. Diga-se de passagem, ao contrário de um povo de profetas, apenas seria possível um povo com alguns poucos profetas. "De um lado, o portador de 'revelações' metafísicas ou ético-religiosas, isto é, o profeta; de outro, a colaboração de todos aqueles que participam do culto sem serem sacerdotes, isto é, os leigos"(9).

Um dos traços mais perversos da "hegemonia passiva" é o auto-abandono das multidões à figura de um "salvador da Pátria". Pressupõe o dono da verdade, o portador do "carisma como ideologia profissional do profeta"(10), e a multidão cuja verdade única é a eficácia simbólica que oculta os interesses do secular por meio da função de conhecimento-desconhecimento-manipulação. O populismo expressa uma heteronomia das classes populares em contraste com a sua desejável autonomia representada por lutas, movimentos, entidades e partidos independentes.

Tivemos, recentemente, um oráculo: Collor de Melo. Em tudo e por tudo, o antimacunaíma. No porte físico, no messianismo e até no farisaísmo. A pitonisa da modernidade. A sua saga é bem conhecida. Deplorável. Contudo, teve um aspecto positivo. Acabou sendo a oportunidade para relembrar um principio que já vinha se perdendo: a libertação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores(a). Nunca de profetas. Ainda que se argumente com a ilusão da comunidade profética. Ora, o profeta é sempre o intermediário individual entre um povo e o destino. Porém, Mangabeira Unger insiste: quer uma nação de sacerdotes que profetizem o "destino do trabalhismo" encarnado por "Brizola"(11).

Ao contrário de atuar e falar "de forma imprevisível, contra os seus interesses e contra os seus determinantes"(12), cabe ao povo brasileiro agir de acordo com os seus próprios interesses. Ao invés de agir de maneira imprevista, indeterminada, impensável, travar uma luta política nacional contra os seus inimigos seculares, o que jamais prescindirá de nexos causais com a formação social brasileira. O movimento das classes populares requer uma ideologia revolucionária e uma imaginação produtiva, jamais as quimeras da universalidade abstrata e da imaginação radical. Deve ter uma dose de previsibilidade, senão dissolverá toda e qualquer razão estratégica.


Destino: Anunciar ou Construir?

O destino, entendido como futuro prefigurado, é um mito conservador, que mata o sujeito e transforma o agir humano em um epifenômeno. Na verdade, o traço regressivo de Macunaíma, eivado de cinismo e desesperança, é o que mais se aproxima da postura profética, no sentido de que anuncia o conformismo com o ser social existente, com o destino trágico que o capitalismo reservou ao povo brasileiro. A face progressista de Macunaíma é, portanto, a irreverência, a iconoclastia, esta maneira óbvia de zombar da miséria, da condição desumana que a formação social brasileira impôs aos deserdados, de uma realidade representada, embora equivocadamente, como imutável. Não é apoio ao jugo, é resignação. Não é ideologia conservadora orgânica, é critica mordaz, se bem que impotente.

Justifica-se utilizar o termo destino para falar de um ser social: a "indústria fordista transplantada não consegue ser competitiva na economia mundial senão à base de repressão dos salários internos, e é incapaz de instrumentar ou transformar a vasta periferia econômica que existe dentro do Brasil. O seu destino é reproduzir, para o benefício das classes ricas, bens de consumo já fabricados nas economias adiantadas"(13). Mangabeira Unger se refere a uma objetividade posta.

Neste sentido hegeliano, o destino aparece como necessidade, enquanto "puro conceito absoluto mesmo intuído como ser"(14). A constatação do real da indústria nacional, de sua racionalidade, não exclui, pelo contrário, potencializa, uma quebra de sua lógica perversa pela realização de reformas estruturais. Portanto, trata-se de uma necessidade indesejável que o sujeito revolucionário deve suprimir, visando constituir novas necessidades sociais. Assim, o destino aparece como negatividade, como ser para confrontar, não como positividade, como ser anunciado. Nestes termos, captá-lo, vale dizer, adquirir consciência da necessidade, é um ato cognoscitivo essencial à liberdade. E a forma superior de liberdade política é o exercício do pensamento estratégico.

O mesmo não se pode pensar de uma visão apologética do "destino do trabalhismo". Aqui, a necessidade aparece como pura e simples positividade, como valoração: "evoluiu para uma preocupação com o Brasil que continua nas sombras". Brizola "encarna o destino do trabalhismo" e "compreende a proeminência de uma política antidualista que levante o Estado, sare a divisão do país e reoriente o sistema produtivo"(15).

Ora, o próprio Mangabeira Unger reconhece que o trabalhismo nasceu "no bojo do modelo econômico composto pelo pseudokeynesianismo e pelo fordismo protegido"(16). Traz uma necessidade, ou seja, um destino cuja origem se localiza no interesse de uma fração da burguesia em constituir a base inorgânica de massas para fortalecer o capitalismo de Estado e geri-lo desde o governo central. Tal necessidade se realiza na República populista pré-64.

A participação popular no trabalhismo encerra uma contradição. Teve seus carecimentos contemplados, mas no quadro da hegemonia passiva, ao preço do abandono da independência de classe, sempre na expectativa de que um grande "pai" resolvesse os problemas nacionais. Tal desconhecimento de si é a tradução psicossocial, no caso brasileiro, da ideologia da burguesia nacional em busca de um projeto próprio, O destino do trabalhismo é apoteosar o povo para transformá-lo no eunuco político que luta, sim, mas pela voz e pela vez particularista de um setor do capital. No máximo, sendo manipulado à maneira bonapartista.

Se há, hoje, um destino visível do trabalhismo brasileiro, um real "intuído como ser", trata-se de sua crise. De um lado porque sua necessidade gira ciclicamente ao redor de uma visão arcaica de sociedade, cujo nacionalismo se apoia em um capitalismo de Estado ultrapassado, atolado em cartórios e clientelas, que se tornou incompatível com os interesses estratégicos do próprio capital. De outro, porque se consolidaram novas opções à esquerda, com forte apelo de massas e que reúnem o maior potencial de combate ao projeto neoliberal através da construção de uma alternativa democrático-popular para o país.

Premido pela dupla rejeição, dos "de cima" e dos "de baixo", o trabalhismo brizolista oscila de uma imagem popular, apelando às massas por reformas sempre vagas, a elas prometendo paternalismo, à prática de cortejar as "elites", como ficou patente no apoio à transição conservadora do General Figueiredo, na ida ao Colégio Eleitoral com Tancredo [Neves], no envolvimento com Collor e hoje na tentativa de aparecer como a melhor solução contra uma possível vitoria eleitoral da esquerda.

A necessidade trabalhista só pode ser defendida pela transformação do espectro político nacional em um pasticho: "o que impressiona, na política brasileira hoje, é o predomínio de um só ideário hegemônico, que influencia desde o PDS até o PT", com base no "projeto neoliberal na esfera da produção"(17). O "esquecimento" do PDT é providencial, mas sobretudo compreensível, pois afinal se trata de uma sigla diluída na personalidade brizolista, no destino que a nação de profetas deve anunciar e sufragar.


Ensinar o 'Padre Nosso' ao Vigário?

Mangabeira Unger faz um diagnóstico empiricamente acertado do que chama "modelo econômico" resultante de uma "aliança que o Estado brasileiro constituiu com uma parte privilegiada do País, em detrimento do resto do Brasil"(18). Porém, vago. Não entende "o modelo econômico" enquanto culminância da via específica do progresso burguês. Ademais, não traduz a "parte privilegiada" para um sujeito social definido: a oligarquia monopolista-financeira nacional e internacional, o latifúndio e as forças políticas que defendem seus interesses particularistas.

Na falta de concretude, nossas mazelas aparecem, não como expressão do capitalismo, mas como resultado de sua carência. A meta estratégica seria "impor o capitalismo aos capitalistas"(19). Tal diretriz subordina os preceitos meramente temáticos, como "investimento em educação" e "política antidualista"(20), e vai ter no Estado, mais uma vez, o sujeito privilegiado: "só o Estado tem a capacidade de se libertar da perspectiva do lucro de curto prazo e acalentar uma visão estratégica de crescimento"(21). É o "Estado" que deve "impor o capitalismo aos capitalistas"(19).

Obviamente, há uma incompatibilidade política com o Estado Mínimo, mas que opera no âmbito ideológico do capitalismo. Trata-se de um projeto inscrito, de maneira típica, na tradição populista, que gira em torno do Poder como capitalista coletivo. Vê-se que a reforma "espiritual e psicológica" proposta reforça na cultura os valores burgueses, inclusive o papel central do Estado como universalidade abstrata. Entende-se porque a pressa em descartar Macunaíma.

No Brasil, é impossível realizar reformas democráticas e populares sem atingir os privilégios do capital e sem democratizar profundamente as instituições estatais. Vale dizer, sem enfrentar as frações hegemônicas do capital, cujos interesses são considerados intocáveis. Tal princípio serve para todos e para cada um dos grandes problemas econômicos nacionais, como as dívidas externa e interna, a questão salarial, a criação de um amplo mercado de massas, o combate à inflação, as reformas agrária, fiscal e tributária, a democratização nas empresas estatais e nos meios de comunicação, a soberania nacional e outros.

Além do mais, as reformas sociais urgentes precisam ser inseridas na disputa de hegemonia global na sociedade. Uma coisa é realizar medidas de interesse popular no interior do processo de construção da contra-hegemonia socialista, outra muito diferente seria criar uma espiritualidade nas massas em defesa de um capitalismo mais eficaz, isto é, reformar o que Weber chamou de "espírito do capitalismo"(22). Um é revolucionário, outro é burguês na forma nacional-populista. Para o primeiro, o caminho é uma ampla mobilização das massas populares em torno de um projeto independente e da conquista de um governo democrático-popular. Para o segundo, as classes populares também são indispensáveis, mas apenas como base de massas na disputa intestina entre os segmentos dominantes, mais qualificados para "impor o capitalismo aos capitalistas"(19). Afinal, seria inútil ensinar o Padre Nosso ao vigário.


Lacunas Significantes

Se o centro da estratégia para o Brasil fosse "impor o capitalismo aos capitalistas"(19), então se justificaria um conjunto de providências que procura evitar o enfrentamento e que até omite as questões mais explosivas. Mangabeira Unger fala corretamente em "economia democratizada de mercado"(23), mas não toca na condição básica para implantá-la: uma política salarial que aumente o poder aquisitivo das massas populares. Critica a política conservadora que deseja "retirar o Estado das atividades produtivas", mas não se coloca explicitamente contra o processo de privatização e muito menos apresenta uma proposta de moralização, modernização e democratização das empresas estatais, cujo eixo seja implantar normas transparentes para a sociedade civil e a participação dos trabalhadores na sua gestão.

Mangabeira Unger apresenta duas possíveis soluções para o problema da dívida interna: "o alongamento compulsório dos prazos de pagamento" e "a monetização da dívida"(24). Tem razão quando se insurge contra o equívoco de sinonimizar a hiperinflação e o caos. Mas, a pura e simples monetização da dívida não passa de sua socialização radical. Nestes termos, apenas seria um enfoque aceitável mediante algumas pré-condições básicas.

Primeira: realizar uma auditoria geral para detectar as dívidas ilegais e acionar os responsáveis.

Segunda: alongar os prazos da dívida por um período fixo, visando escalonar os pagamentos em função de prioridades para os credores menores e para outros dispostos a direcionar os fundos no sentido dos setores de maior interesse social.

Terceira: decretar para as grandes dívidas um deságio a ser utilizado no ataque ao desemprego e a miséria.

Mangabeira Unger simplesmente omite o problema crucial da dívida externa, que afeta diretamente a soberania nacional e os investimentos no país. Passa ao largo da relação com o FMI(c), fonte das políticas econômicas antipopulares. Desconsidera o tema reforma agrária, fundamental para democratizar a estrutura fundiária, ampliar o mercado interno, aumentar rapidamente a oferta de produtos agropecuários sem investimentos faraônicos e integrar milhões de camponeses pobres à cidadania, fazendo com que sua vontade impregne a terra enquanto mercadoria.

Uma das maiores lacunas do "conteúdo possível de uma alternativa democratizadora para o País"(25) reside no enfoque das instituições políticas. Nenhuma diretriz econômica, por melhor que seja em tese, poderá lograr êxito se não for precedida ou no mínimo acompanhada de uma profunda reforma institucional, capaz de democratizar a vida pública e facilitar a emergência das classes populares na cena política: a democratização da justiça, a renovação cultural e política dos legislativos, especialmente da Câmara Federal, a existência de partidos fortes e que possam atuar em um clima de ampla liberdade, o fim da tutela das Forças Armadas sobre os órgãos do Estado e a constituição de um governo democrático-popular.

É preciso ter consciência de que um propósito deste tipo passa por uma disputa que só pode ser uma luta política nacional, portanto luta de classes. Para tanto, o destino trabalhista é inadequado, sobretudo se partir de uma esperança fundada em impulsos visionários. O que precisamos é de uma unidade do proletariado, do campesinato, das camadas médias, da intelectualidade avançada e da juventude ao redor de um projeto para o país. Uma ampla frente política de massas, entidades e partidos capazes de construir uma vontade coletiva, não para anunciar profeticamente o destino, mas para fazer um novo destino. Como Sartre(b) sugeriu, aquele "futuro (...) que tenho que ser enquanto posso não sê-lo", aquele "em-si presente modificado"(26). É claro, com a imprevisibilidade do que ainda não existe mas com a previsibilidade do que não surge de um ato votivo absoluto, de uma liberdade indeterminada.

Por certo, uma tarefa para macunaímas que têm a opção de passar à Historia, não como emblemas da razão cínica, mas porque souberam, em determinado momento de sua trajetória humana, reconstruir sua própria natureza. Que as lágrimas de Mário de Andrade, ao redigir as últimas páginas de sua rapsódia, não tenham sido vãs. O herói realmente "desiste dos combates da terra e resolve ir viver o brilho inútil das estrelas"(27), transformado que foi, por "Pauí-Pódole", na "constelação da Ursa Maior". Mas não aderiu à ordem. Deve ter ido praguejando "de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva"(28).


Notas

1 - ANDRADE, Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Paris/Brasília, Association Archives de la literature latino-américaine, des Caráibes et africaine du XXe. siècle, 1988, pág. 5. [ Voltar - Volver - To Return ]

2 - UNGER, Mangabeira. Entrevista Em: Folha de São Paulo, 03/10/93, cad. 6, pág. 10. [ Voltar - Volver - To Return ]

3 - Idem. "A fonte secou". Em: Revista do Legislativo, nº 4. Belo Horizonte, Assembléia Legislativa [de Minas Gerais, Brasil], 1993. pág. 45. [ Voltar - Volver - To Return ]

4 - Idem, pág. 445. [ Voltar - Volver - To Return ]

5 - RIBEIRO, Darcy. "Liminar Macunaíma". Em: ANDRADE, Mário de. Op. cit, pág. XIX. [ Voltar - Volver - To Return ]

6 - Idem, págs. XIX-XX. [ Voltar - Volver - To Return ]

7 - BOSI, Alfredo. "Situação de Macunaíma". Em: ANDRADE, Mário de. Op. cit., pág. 171. [ Voltar - Volver - To Return ]

8 - GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino, Ed. Einaudi, 1977, T. III, pág. 2011. [Existe edição em Português, publicada pela Ed. Civilização Brasileira] [ Voltar - Volver - To Return ]

9 - WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. Colonia/Berlin, Kiepenheur und Witsch, 1964, T. II, pág. 837. Apud: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva S. A., 1974, pág. 80. [ Voltar - Volver - To Return ]

10 - BOURDIEU, Pierre. Op. cit, pág. 55. [ Voltar - Volver - To Return ]

(a) - "a libertação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores", máxima marxiana, repetida por inúmeros militantes e teóricos de expressão como Lênin, Trotsky e Kruchov. (Nota do WebMaster da Revista Práxis na Internet - NW) [ Voltar - Volver - To Return ]

11 - UNGER, Mangabeira. "Entrevista" Cit., pág. 10. [ Voltar - Volver - To Return ]

12 - Idem, "A fonte..." Cit., pág. 45. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

13 - Idem, pág. 42. [ Voltar - Volver - To Return ]

14 - HEGEL, G. W. F. Fenomenologia del Espiritu. México, Fondo de Cultura Económica, 1985, pág. 170. [ Voltar - Volver - To Return ]

15 - UNGER, Mangabeira. "Entrevista" Cit., pág. 10. [ Voltar - Volver - To Return ]

16 - Idem, pág. 10. [ Voltar - Volver - To Return ]

17 - Idem, "A fonte...", Cit., pág. 42. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

18 - Idem, págs. 41-42. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

19 - Idem, pág. 44. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

20 - Idem, pág. 43. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

21 - Idem, pág. 42. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

22 - WE8ER, Max. The Protestant Ethic. [Existe edição em Português, publicada pela] Ed. Pioneira, São Paulo, págs. 44-45. [ Voltar - Volver - To Return ]

23 - UNGER, Mangabeira. "A fonte...", Cit., pág. 45. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

(b) - FMI, Fundo Monetário Internacional, organismo das Nações Unidas para aconselhamento, acompanhamento e solução de problemas nacionais de gestão econômica e financeira. (NW) [ Voltar - Volver - To Return ]

24 - UNGER, Mangabeira. "A fonte...", Cit., pág. 43. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

25 - Idem, pág. 41. [Ver Nota 3] [ Voltar - Volver - To Return ]

(c) - Jean Paul Sartre, filósofo existencialista francês. (NW) [ Voltar - Volver - To Return ]

26 - SARTRE, Jean-Paul. El ser e el nada. Madri Buenos Aires, Alianza Ed., Ed. Losada, 1984, págs. 147 e 243. [ Voltar - Volver - To Return ]

27 - ANDRADE, Mário de. Apud: BOSI, Alfredo. Op. cit, pág. 180. [ Voltar - Volver - To Return ]

28 - Idem, Macunaíma... Cit., pág. 188. [ Voltar - Volver - To Return ]


Índice

Título

Seção 1 - A Razão Macunaíma

Seção 2 - Destino: Anunciar ou Construir?

Seção 3 - Ensinar o 'Padre Nosso' ao Vigário?

Seção 4 - Lacunas Significantes

Notas de Rodapé


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 1, de 1994, tenha sido proveitosa e agradável.

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