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Marx versus Mercado (a)
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Paul Singer
Professor Titular da Faculdade de Economia e Administração, FEA, da Universidade do Estado de São Paulo, USP, São Paulo.
Fui convidado aqui para, junto com o Jacob (Jacob Gorender), falarmos de Marx. Mas, antes de falar de Marx, eu queria falar do Jacob. Nós nos conhecemos há mais de 30 anos (não sei se o Jacob se recorda). Foi em Belo Horizonte que nos conhecemos e, desde que li O Escravismo Colonial(b), eu tenho o maior respeito e admiração pelo Jacob e sua importantíssima contribuição ao pensamento marxista vivo neste país. Ocasionalmente nós nos encontramos, conversamos ou debatemos, mas, mais recentemente, o Jacob produziu um livro, ao meu ver notável, que é Marcino e Liberatore. O Jacob conseguiu, através de um diálogo entre um marxista moderno e um liberal esclarecido, colocar as grandes questões, digamos, que hoje formam a problemática de quem quer entender e intervir no que se passa. Este livro não tenta destruir uma visão contra a outra, pelo contrário, tenta fazer uma análise muito lúcida da experiência histórica a partir, sobretudo, da Revolução Russa e do recente colapso da URSS, construindo, ao meu ver, uma visão muito provocadora.
O que vim fazer aqui hoje, além dessa homenagem ao Jacob, é praticamente tentar tirar, enquanto economista, algumas ilações das coisas que estão aí. Eu queria dizer a vocês, aproveitando o momento mais livre, que eu entendo que o marxismo foi uma desgraça, sobretudo para os marxistas. Eu fui marxista e devo ser ainda em grande medida, mas há muito tempo descobri que, quando o marxismo começou a surgir, isto é, quando começaram a aparecer pessoas dizendo-se marxistas, Marx, que estava vivo, soube disso e disse: "Olha, eu não sou marxista". Sempre achei que isso era uma brincadeira, um dito irônico. Muito mais tarde descobri que é algo bem mais profundo, porque, quando nos dizemos marxistas, tendemos a aderir quase incondicionalmente a tudo o que Marx falou, a todas as coisas certas e erradas, a todas as suas hipóteses que foram transformadas em profecias. Isto, sem dúvida, me prejudicou e deve ter prejudicado muita gente: Eu continuo absolutamente admirador de Marx, não tenho nada a discordar daquilo que Jacob salientou a respeito da importância de O Capital etc., mas para isso não é preciso ser marxista.
Marx tentou ser, simultaneamente, uma liderança política ― convém lembrar que ele foi secretário e, sem dúvida, principal teórico da Primeira Internacional, sendo, portanto, um militante ― e ao mesmo tempo quis ser um cientista. Ora, enquanto cientista, ele, ao meu ver, deu uma contribuição fundamental. Se existe algum pai das ciências sociais, hoje, é Marx. Agora, ele errou muito, pois, inevitavelmente, o cientista erra, não existe uma ciência que acerta sempre: o cientista que acerta sempre não contribui coisa nenhuma, porque ele está na verdade "chovendo no molhado". O cientista importante é aquele que ousa dizer coisas que podem estar certas ou erradas e que outros, mais tarde, irão comprovar ou não. E isso, Marx fez em grande escala.
Vejam: o que eu estou querendo sustentar aqui, antes de entrar no meu assunto, é que a principal homenagem que se pode fazer hoje a Marx é criticá-lo, é tomá-lo a sério como cientista que ele foi. Só se critica quem merece ser criticado, não quem falou bobagem, quem falou coisas insignificantes ou "choveu no molhado". O objeto da crítica é uma homenagem e é o que vou fazer aqui: vou tentar fazer a crítica de certas idéias de Marx que, me parecem, estavam realmente erradas, mas que todos nós, enquanto marxistas, compartilhamos durante décadas. Já é hora de rever tais idéias e é claro que, se eu pretendo fazer uma análise crítica de Marx, estou me sujeitando a aquilo a que ele também se sujeitou, a saber, a grande probalidade de estar errado. Mas, antes arriscar-se a errar do que repetir sempre as mesmas coisas.
O que vou tentar criticar aqui é exatamente a idéia, já salientada pelo Jacob, de que o mercado é um elemento essencial de alienação e que, por isso, tanto o mercado como o dinheiro devem ser abolidos. Essa era uma das visões fundamentais: a diferença entre o capitalismo e o socialismo era tanto o fato de que as classes sociais, as desigualdades, a exploração e as opressões deixariam de existir no socialismo, como fato de que a economia socialista não seria de mercado nem monetária.
Qual era, exatamente, essa idéia de Marx (como todas as suas idéias, mesmo quando erradas, extremamente originais e engenhosas)? Ele afirmava que havia uma tendência extremamente poderosa da própria evolução do capitalismo no sentido de socializar os meios de produção. A socialização dos meios de produção já acontecia no próprio capitalismo, na medida em que o capital, aproveitando os avanços técnicos e obrigado pelos mesmos, concentrava cada vez mais, em fábricas e usinas gigantescas, os meios de produção que, antes do capitalismo, estavam dispersos nas casas de milhares, talvez centenas de milhares de produtores. Essa concentração de meios de produção, essa própria concentração de produtores em firmas, empresas, plantas muito grandes, Marx denominava "socialização".
Portanto, o desenvolvimento do próprio capitalismo, ao ver dele, criaria as bases de uma economia totalmente planejada, porque, como ele apontava muito bem, a empresa capitalista é planejada. O mercado é anárquico, quer dizer, dentro do mercado não existe nenhuma vontade orientadora, não existe nenhum limite ao conhecimento. Isso é um pressuposto, o de que todo mundo, no mercado, conhece tudo o que está sendo oferecido e tudo o que os outros querem comprar. É um pressuposto absurdo. Exatamente porque ele é absurdo, o mercado é anárquico. Ele é anárquico no sentido de que o resultado do mercado é o resultado inconsciente da ação de um grande número de pessoas, cada um agindo a favor, digamos, em tese, de seu próprio interesse. Agora, dentro da empresa não existe anarquia nenhuma, pelo contrário, tudo é planejado minuciosamente, desde o sujeito que fica de guarda até o lugar de cada trabalhador dentro da empresa, a missão que ele tem, a máquina de que ele deve cuidar etc., e isso lhe é prescrito, em geral, da forma mais minuciosa possível. Esta era a fábrica da época de Marx, a qual ele projetou no futuro. Marx dizia que, pela tendência da concentração, da centralização do capital, no futuro nós vamos ter um número mínimo de capitalistas, todos eles enormes, quer dizer, dominando imensas partes da produção social, e o resto da sociedade estará todo proletarizado, transformado em trabalhadores assalariados e empobrecidos. Soará, então, a hora de expropriar os expropriadores, isto é, será muito fácil tomar conta dessa economia que já está quase inteiramente planejada, mesmo que no bojo do mercado, e passar a trabalhar a economia inteira como se fosse, digamos, uma gigantesca empresa, quer dizer, o capital já estaria levando a isso tendencialmente.
Uma outra visão errônea de Marx, ao meu ver, mas extremamente interessante, é que ele (o Jacob também tocou no assunto), observou o gigantesco crescimento da produtividade do trabalho em função da Revolução Industrial inglesa e das várias revoluções industriais que se seguiram. Marx viveu entre duas revoluções industriais: viveu os sintomas da primeira e assistiu ao início da segunda. Ele previu que haveria uma situação tal que seria, como o Jacob lembrou muito bem, o "Reino da Liberdade", isto é, a ausência de escassez. Tudo se produziria em quantidade maior do que as necessidades de todos e, consequentemente, seria de graça e tornaria o planejamento da produção extremamente simples. Quer dizer, ninguém teria que fazer opções, porque estar-se-ia podendo produzir com um gasto absolutamente irrisório de trabalho humano, mais do que aquilo que a humanidade iria consumir. Isso é, na realidade, a previsão do comunismo. O comunismo não era uma gigantesca, digamos, empresa distribuindo, através do planejamento centralizado, a escassez, mas, pelo contrario, a ausência de escassez, portanto a libertação das pessoas das tarefas alienantes.
Eu creio que toda essa visão de Marx a respeito do futuro deve ser submetida a críticas. E é fácil fazer essa crítica quando nós estamos a 130 ou 125 anos depois e temos a obrigação de perceber para onde o sistema está indo. Eu diria que uma primeira coisa que se revelou absolutamente errônea foi essa idéia de que se passaria gradativamente para uma situação de abundância, ou seja, seria possível produzir tudo além das necessidades. Uma coisa que Marx não considerou ― há desculpas boas para isso, porque tal situação só foi notada na segunda revolução industrial, mas não estou aqui querendo desculpar Marx ― o fato é que ele não considerou a multiplicação das necessidades, ou seja, enquanto a produtividade do trabalho cresce, as necessidades também crescem. O próprio progresso tecnológico, que aumenta o potencial do trabalho humano de produzir coisas, cria novos produtos e novos serviços que aumentam a demanda (estamos, então, num circulo vicioso, quer dizer, a produtividade cresceu realmente tanto quanto Marx esperava que crescesse, mas não estamos mais perto de uma situação onde tudo é de graça porque é superabundante, muito pelo contrário, nós temos uma grande parte da humanidade ― e no Brasil isso é óbvio ― que carece do essencial). Evidentemente, há um mecanismo, perverso ou não, no capitalismo que, ao mesmo tempo que aumenta a produção, também aumenta as necessidades e, por isso, o sistema não tende para uma situação de abundância generalizada. Claro que o padrão de vida da humanidade no fim do século XX, sobretudo nos países mais adiantados, é muito maior do que na época de Marx, quer dizer, pode-se dizer que uma parte se realizou, na medida em que hoje, desde água potável, energia elétrica e mil outras coisas são acessíveis ao conjunto da população de países inteiros ― não no Brasil, evidentemente. Mas esta mesma população criou outras tantas necessidades ― pode-se discutir se são básicas ou não ― que não foram satisfeitas.
Outro ponto que eu queria começar a discutir é exatamente a reconsideração da questão do mercado. O mercado, afinal de contas, não é mais do que uma instituição em que se fazem intercâmbios. No fundo, é uma instituição na qual se garante aos indivíduos, ou às empresas, enfim, à quem comparece, a possibilidade de trocar ― comprar e vender ― tendo uma série de proteções legais para tanto. Se não há mercado, não existe, sobretudo, a garantia dos direitos de propriedade. Ora, nós temos hoje uma economia de mercado que abrange mercado de mercadorias, mercado de fatores de produção, mercado de trabalho, mercado de seguros, mercado de locações, enfim, uma grande quantidade de mercados, sendo que o próprio dinheiro esta presente em todos os mercados, pois a economia de mercado é necessariamente uma economia monetária. Esse dinheiro é objeto também de troca: troca-se dinheiro, por exemplo, por dinheiro futuro, obtendo-se juros, ou seja, há um enorme mercado financeiro.
O ponto central consiste naturalmente na economia de mercado, não no mercado em si. O que é uma economia de mercado? É uma economia na qual uma parte muito significativa da produção social toma a forma de mercadorias, ou seja, é produzida para ser vendida. Mas, mesmo na economia de mercado moderna, uma grande parte da produção social não é de mercadorias. Usando a metodologia do próprio Marx, que é importante, se nós pensarmos em modos de produção, poderemos conhecer, no capitalismo contemporâneo, três modos de produção articulados, a saber: o modo de produção capitalista, que é de mercado; o modo de produção público, ou setor público da economia, em que se produzem montes de coisas que não são mercadorias ― que não são vendidas, mas distribuídas por outros métodos – desde educação gratuita, assistência à saúde, defesa nacional, policiamento e assim por diante; e o terceiro modo de produção, muito importante, que é a economia doméstica: dentro de nossas casas se produz uma grande quantidade de coisas que também não são vendidas, isto é, não são distribuídas no mercado mediante o intercâmbio.
O que caracteriza uma economia de mercado é exatamente a existência de mercados e o fato de que eles são importantes na regulação da produção social. Não existe nenhuma economia de mercado pura, ou seja, que não tenha setor publico nem setor doméstico. A divisão entre esses três modos de produção não é fixa, mas objeto de luta política: verificamos nesse momento, no Brasil, a classe empresarial numa grande ofensiva para transferir do setor publico ao setor de mercado uma serie de empresas, se possível todas, inclusive a Petrobrás, [a] Vale do Rio Doce e assim por diante. Mas existem forças políticas importantes que estão se opondo a isso. Esta é uma das importantes lutas políticas que se travam, não só no Brasil, mas no mundo inteiro já há muito tempo.
Qual é a importância do mercado para nós socialistas? Ou, talvez, a pergunta devesse ser: qual é a importância do mercado para a classe trabalhadora? Eu diria que ela é a garantia da liberdade individual. Qual é o mercado principal que garante a liberdade individual do trabalho? É o mercado do trabalho. Gostaria de lançar esta tese: o direito de sair do emprego é fundamental para o trabalhador. Em nenhuma hipótese ele pode abrir mão desse direito. É básico o trabalhador poder largar o emprego e sair para trabalhar em outra cidade ou em outro Estado, se possível em outro país. Essa liberdade individual do trabalhador é uma conquista histórica, aceita como conquista contra o feudalismo, da qual ele não pode abrir mão em nenhuma hipótese. A sua dignidade de ser humano depende exatamente desse mínimo de autonomia.
Muito bem, coloca-se imediatamente a pergunta: e o desemprego? Eu diria que o desemprego é o preço que se paga por essa liberdade. Se, se considera que o trabalhador deve poder romper o contrato de trabalho sempre que ele quiser, não se pode negar a outra parte, o desemprego. É plausível afirmar que, como as duas partes do contrato de trabalho são desiguais, o empregador ― seja qual for ― tem que pagar indenização, dar aviso prévio etc.. Agora, uma economia em que o trabalhador não tem opção, em que existe um planejamento central que aloca o seu emprego ― isso é insuportável. Nem mesmo nas economias centralmente planejadas isso foi tentado. Por outro lado, imaginar uma economia em que os trabalhadores tem direito de sair do emprego, mas não podem ser despedidos, é inconcebível. Portanto, algum desemprego é o preço que, objetivamente, se paga pelo direito que cada trabalhador tem de poder mudar de emprego, não só de local de trabalho, mas também de atividade: começar outra coisa, reciclar sua vida, começar uma outra carreira se ele se decepcionar com o tipo de trabalho que está fazendo.
Eu diria que esse conjunto de liberdades ― liberdade de migrar, de mudar de emprego, liberdade de iniciativa ― isso é algo essencial no mercado como garantias de liberdade individual. A liberdade de iniciativa é algo que me incomoda, porque passei a vida inteira ouvindo tal argumento, tido como axial na defesa do mercado. Nós não precisamos ter medo da liberdade de iniciativa, porque no capitalismo tal liberdade está restrita aos detentores do capital. A liberdade de iniciativa é para 5 ou, talvez, 10% da população: para 80 ou 90% há muito pouco dessa liberdade, porque a iniciativa exige recursos. Eu diria que, no projeto socialista que nós teremos que reinventar, a liberdade de iniciativa para todos deve ser prioritária, vale dizer, seria preciso garantir a todas as pessoas, a todos os trabalhadores, individual ou coletivamente, financiamento para que possam iniciar empreendimentos novos. Não estou pensando em uma "festa", em que qualquer pessoa vai ao guichet, pega o dinheiro, leva embora, perde tudo e não presta contas a ninguém. Tudo deve ser feito com responsabilidade. Penso numa economia socialista com escassez, pois não acredito naquela economia em que o desperdício não tem qualquer importância. Os projetos que as pessoas fossem apresentar deveriam ser examinados, mas nós podemos efetivamente, através de um sistema financeiro socialista, abrir amplas possibilidades a todos de experimentar empreendimentos novos, desde que aquilo que apresentem tenha algum poder de convicção de que pode dar certo.
Vejam: quando falo em mercado, não estou novamente me referindo a um mercado absoluto. Não acredito que o socialismo terá uma economia mais mercantil que a do capitalismo, mas deverá haver, se quisermos ter uma sociedade socialista de homens livres. Esta é a tese básica.
A teoria socialista, que começou com Marx e foi desenvolvida por muitos outros autores marxistas e não marxistas, mostra dois fatos fundamentais. Primeiro: o mercado é instável. O mercado muda o tempo todo e se ajusta com muita dificuldade, infligindo perdas patrimoniais violentas, ou seja, quebrando empresas e condenando ao desemprego ― muitas vezes, à fome ― um grande número de pessoas absolutamente inocentes. O mercado não é algo perfeito. A mitomania liberal é que transformou o mercado numa coisa maravilhosa. Isto não existe, ele tem que ser aperfeiçoado e, ao meu ver, o único jeito de aperfeiçoar o mercado é cercá-lo por instituições não-mercantis, coletivas, que seguram, guiam e limitam o mercado. Agora, ele tem que existir e tem que ser, se possível, um mercado competitivo.
Há uma segunda tendência no mercado que, do ponto de vista socialista, é absolutamente negativa e, por isso, tinha que ser, digamos, cuidadosamente compensada: é a tendência à concentração. Uma economia de mercado divide desigualmente a produção social, quase que por definição. Logo, alguns, que no jogo do mercado acertam, ficam ricos e muitos, que no jogo do mercado arriscam e erram, ficam pobres. O problema é que, depois disso, em vez de se arrumar o jogo e de se redistribuírem as fichas, o jogo é contínuo, ou seja, a cada dia, a cada mês, a cada ano que passa, quem ganhou ontem tem muito maiores chances de ganhar hoje e de ganhar amanhã, ao passo que, quem perdeu ontem, tem toda a probabilidade de continuar sendo um perdedor. Em suma, a economia de mercado produz desigualdades absolutamente inaceitáveis.
Ora, o que se pode fazer se não se quiser renunciar ao mercado? São necessários processos de redistribuição sistemáticos. Alguns se encontram mesmo no capitalismo, como o chamado "tributo de transferência": tira-se, mediante Imposto de Renda e outros impostos diretos, de quem tem demais e se entrega tal montante, por exemplo, na forma de uma renda mínima garantida, como a que o Suplicy(d) está tentando instituir no Brasil e que outros países já adotaram. Garante-se, assim, um mínimo de capacidade aquisitiva, independente de remuneração de trabalho, a todas as pessoas. Isso já seria uma base importante para a liberdade de iniciativa, bem como uma forma extremamente importante de ter o capital sob domínio, usá-lo como instrumento e não ser usado por ele.
A propósito, não sei se o Jacob concorda, mas o fetichismo é basicamente esta idéia dos indivíduos dominados pelo mercado, os indivíduos fascinados com essa "beleza" em que todos realizam suas propostas, vale dizer, o que fascina os liberais é a suposta capacidade que o mercado tem de satisfazer as necessidades de milhões de pessoas sem haver comando. No entanto, eles são completamente cegos às disfunções do mercado que se manifestam na instabilidade, na crise, na cegueira do mercado e na sua tendência brutalmente desigualizadora que, se não for contida muito fortemente, de fato realiza a previsão de Marx de uma sociedade com pouquíssimos ricaços e uma grande maioria de miseráveis.
Muito bem, para terminar, eu queria tocar num ponto muito delicado para nós, que Marx ― mais os marxistas, diria, que o próprio Marx ― considerou: a questão dos incentivos para a atividade econômica. Como fazer com que todas as pessoas efetivamente se engajem na produção social de maneira ótima, tratem de obter o melhor desempenho sem serem escravos ou fisicamente punidos, vale dizer, como se consegue fazer, através de incentivos, que as pessoas produzam o melhor que possam?
Esta questão, na tradição marxista, foi escamoteada pela idéia do "homem novo": no socialismo não haveria mais competição, as pessoas seriam fraternas, solidárias, altruístas, de tal maneira que, para a sua consciência socialista, cada um trabalharia o máximo, porque saberia que isso é bom para todos, inclusive para ele próprio.
Eu creio que numa sociedade socialista haverá muito mais solidariedade do que, infelizmente, na atual sociedade capitalista. As pessoas tenderão, eventualmente, a serem mais altruístas do que são hoje. Mas, também considero razoável supor que, até por um instinto de sobrevivência, as pessoas queiram ser queridas, apreciadas, respeitadas. Haverá, portanto, competição, se não pelo dinheiro, pela honra, pelo prestigio, inclusive dentro dos nossos próprios movimentos socialistas, que são, em alguma medida, prefigurações da sociedade que nós queremos construir.
O meu argumento principal contra a hipótese do "homem novo" é que o projeto socialista não é um projeto para o futuro: ele é para o presente. Não dou a mínima importância para um projeto para o ano 3000, mas dou muita importância para um projeto para o ano que vem. Dirão: mas você está louco, ao tentar realizar um projeto para 1993. Sim, porque eu tenho forças socialistas presentes no Brasil e em todos os países. Elas realizam esse projeto lutando. Se pretendo realizar 10 ou 50% do projeto, depende das vicissitudes da luta social, da luta econômica e, em alguma medida, da luta política, a qual deixo para analisar em outro momento. Mas, de qualquer forma, é preciso um projeto socialista para aqui e agora! Para guiar todos os socialistas agora, e não para daqui a 50 anos, ou seja, qualquer outro futuro incerto. Pois bem, esse projeto socialista, que é necessário para esta geração de pessoas, só pode tomar por hipótese tais pessoas como elas são. Se, no futuro, houver uma sociedade de "anjos", tanto melhor. No momento, nós temos uma sociedade que não é de "anjos" nem de "demônios". Nesse sentido, temos que trabalhar com o problema dos incentivos de forma realista.
Ora, eu sustento que, para incentivar desempenho econômico razoável, é bom premiar o valor, vale dizer, eu acredito que numa sociedade socialista deva haver valor, deva haver dinheiro, sendo que as pessoas devem ser premiadas com o dinheiro, ou seja, quem inventar um produto novo ou modificado que obtenha sucesso no mercado, deve receber mais que os outros. E os que tentarem inovações ou modificações fracassadas, ou superadas por outros, deverão sofrer uma inevitável perda de dinheiro.
Eu estava tecendo comentários aqui a respeito de incentivos monetários. Em que isso implica? Implica na existência de alguma desigualdade econômica. Por favor, não a desigualdade econômica que existe hoje no Brasil, por exemplo. Não estou dizendo que, para haver incentivos, é preciso que uma parte da sociedade possa alimentar seus bichos de estimação melhor do que a outra parte possa alimentar seus próprios filhos. Pode haver desigualdades econômicas tão pequenas ou tão grandes quanto se queira. Alguma desigualdade econômica me parece absolutamente necessária para garantir os mercados que, por sua vez, garantem as liberdades.
Eu gostaria de fazer uma última observação, porque estou ansioso para começar o debate e a troca de idéias, que são muito mais interessantes. A desigualdade econômica é completamente, digamos, atroz e cruel. Num país pobre como é o Brasil, e em outros países ainda mais pobres do que nós, ela obsta a satisfação das necessidades básicas de uma grande parte da população. Portanto, se nós, por exemplo – imaginando que o Lula ganhe as eleições do ano que vem ― conseguíssemos, muito a sério, eliminar a pobreza absoluta desse país ― não só a fome, mas a falta de escola, de casa para morar etc. – eu acredito que isso necessariamente sacrificara uma boa parte do consumo não essencial dos segmentos mais privilegiados da população brasileira. Não estou alvitrando que tudo seria reduzido apenas ao essencial – não somos tão pobres assim ― mas, sem dúvida nenhuma, a classe média, digamos, vai ter que abster-se de uma série de coisas que considera normal. Agora, se o Brasil chegar ao nível de desenvolvimento dos EUA – e isto é absolutamente factível – ou do Canadá, [da] Suécia, qualquer um desses países, a desigualdade econômica perderia seu aspecto trágico, quer dizer, haverá uma população que apresenta um montante de consumo não essencial diversificado.
Se quisermos concretizar a idéia, a meu ver muito boa, de Marx, segundo a qual o lema moral básico numa saciedade socialista é: 'de cada um segundo as suas potencialidades e a cada um segundo as suas necessidades', se nós quisermos realizar isso, realmente com seriedade, me parece que alguma desigualdade econômica é absolutamente indispensável. Tal idéia não implica necessariamente uma igualdade absoluta, em que todos ganham o mesmo numero de Cruzeiros Reais(c) no fim do mês. No entanto, a maneira de administrar essa desigualdade enseja uma discussão moderna extremamente interessante, que estou fazendo com meus alunos na USP(e). John Rawls, um filósofo americano, propôs o seguinte princípio: o único grau de desigualdade moralmente justificável é aquele que serve para melhorar as perspectivas do grupo desprivilegiado. Em outras palavras, se é necessária alguma desigualdade na obtenção de eficiência econômica, ela só se justifica quando melhora a situação do grupo mais pobre. Eu diria que este é um principio moral, para mim, muito simpático, mas, como todo principio moral, passível de discussão.
De qualquer forma, o que tentei fazer aqui é, na realidade, uma crítica não no sentido de desvalorizar Marx, evidentemente, mas para mostrar que, se quisermos ser dignos da herança que ele nos legou, é preciso respeitar muito seriamente o que ele disse, tratando-o com a crítica que merece, cento e tantos anos depois de sua morte.
Obrigado.
São Paulo, 27 de outubro de 1993.
Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 1, de 1994, tenha sido proveitosa e agradável.
São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©. ou leia a Página de Endereços para Contatos.
Néliton Azevedo, Editor, WebMaster.
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Atualidade de "O Capital" de Karl Marx; Jacob Gorender
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