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A Atualidade de 'O Capital' de Karl Marx 1

Karl Marx

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"As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a natureza enganadora das coisas." Karl Marx, Salário, Preço e Lucro, cap. VI, linhas finais.

Jacob Gorender
Jacob_Gorender@revistapraxis.cjb.net

Historiador, Professor Visitante do Instituto de Altos Estudos da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo,
Ganhador do Prêmio Juca Pato - Intelectual do Ano - 1999. Membro do Conselho Consultivo da Revista Práxis.

Apresentação ao Debate organizado pelo Núcleo de Estudos d'O Capital, São Paulo, 27 de Outubro de 1993.


Não deixa de ser animador o fato de que um grupo de jovens intelectuais, alunos de universidades, tenha constituído um núcleo de estudos de O Capital. Sabemos que é a obra principal de Marx e, na verdade, é a obra fundamental de toda a teoria marxista. Logo, a existência desse núcleo e o fato de seus membros pertencerem ao PT são fatos animadores: mostram que - enquanto se repete na imprensa burguesa que o marxismo faliu, que não tem mais nada a fazer, que seus prognósticos se mostraram errôneos e definitivamente arquivados - enquanto isso é afirmado, o interesse pelo estudo de O Capital permanece vivo.

Desejaria também observar que, nesse caso, trata-se da obra de Marx como uma obra que não está na estante, mas está na história. Faço referência ao artigo, creio que de 1991, escrito por José Arthur Giannotti, um prestigioso intelectual brasileiro, em que ele dizia: "Marx sai da história e vai para a estante". Parece-me ter sido um prognóstico um tanto precipitado. Na verdade, Marx está na estante, ele é estudado como um autor fundamental em várias áreas das ciências humanas, mas, ao mesmo tempo, ele está na história, porque continua a inspirar movimentos práticos, movimentos políticos. Ele continua a ser, pelo menos, um dos principais focos de idéias para a transformação social.

Podemos constatar que, enquanto Marx continua na história, o autor da tese de que a história tinha chegado ao fim é hoje um homem já quase esquecido. Ainda há pouco fazia grande furor, nos meios intelectuais do mundo inteiro, o nome de Francis Fukuyama, primeiro com um artigo, depois com conferências e finalmente com um livro sobre o fim da história. Francamente, não vale a pena gastar saliva nem tinta para refutar essa tese, porque a própria história encarregou-se rapidamente de refutá-la.

É verdade que os regimes do Leste Europeu e da extinta URSS entraram numa crise tremenda, estão hoje atravessando uma fase que nós não sabemos ainda muito claramente onde vai desembocar, e tudo isso é ligado ao nome de Marx. Ora, se isso é ligado ao nome de Marx, deve ser como um desafio para que nós entendamos o que está se passando. Mas o que também é ligado ao nome de Marx é a própria crise do capitalismo. Ou seja, o próprio fato de que o capital, os seus ideólogos, os seus agentes críticos não pudessem se regozijar por muito tempo com a destruição do Muro de Berlim, enquanto fato simbólico, e tudo mais que aconteceu no Leste – porque logo depois o próprio sistema capitalista mundial entrou numa crise recessiva que está se mostrando mais prolongada do que se poderia esperar, apresentando não poucas dificuldades para ser superada – uma vez que tudo isso está sucedendo, onde vamos encontrar as melhores orientações para entender o que se passa e para a própria critica do capitalismo, senão nessa obra de Marx, em O Capital? Enquanto houver capitalismo, O Capital será lido, esclarecerá as cabeças daqueles que trabalham e vivem do trabalho, bem como orientará aqueles que entendem que, num momento ou noutro, se deve passar para uma nova forma de sociedade.

Aproveitando o ensejo, vou apresentar algumas questões referentes à obra de Marx, de maneira evidentemente muito breve, porque não se pode pretender entrar muito a fundo nas questões concernentes a obra sem dispor de tempo. Vou chamar a atenção apenas para alguns aspectos, cuja referência me parece oportuna.

O Capital tem a fama de texto muito difícil de ser lido. Mesmo na época cm que o marxismo estava em voga, em que ele foi mesmo moda, sobretudo nos vinte ou vinte e cinco primeiros anos depois da Segunda Guerra Mundial, O Capital sempre foi considerado uma obra difícil. Aqui, eu não pretendo convencê-los de que se trate de uma obra fácil. Não é: exige esforço de, quem quer estudá-lo, mesmo que disponha de boa preparação. Mas não é obra hermética. Pensar assim seria uma injustiça muito grande. Ao contrário, a escrita de Marx é clara, precisa, há um esforço muito grande de não ser dispersivo. Mas é tamanha a quantidade de idéias que essa obra oferece - é uma obra, como se diz, holística, quer dizer, ela constitui uma totalidade – que, sem dúvida alguma, o seu estudo tem que ser empreendido com energia, tenacidade e paciência.

Um primeiro aspecto que eu gostaria de assinalar é a abordagem histórica que Marx faz em O Capital. Ao contrário de tantas obras de economia, que ignoram solenemente a história, que apresentam seus postulados ou suas fórmulas como se fossem eternas, aplicáveis a todas as sociedades, em suma, como se fossem próprias de um estado ideal da sociedade, Marx focalizou a sociedade burguesa como uma sociedade que surge em determinado momento, em determinada fase do desenvolvimento da história humana. Não se podia pensar em capitalismo há três mil anos atrás. O capitalismo, ou seja, a sociedade burguesa, surge num momento em que há forças produtivas acumuladas pela sociedade, forças produtivas materiais e humanas, objetivas e subjetivas, que tornam esse sistema de organização econômica, social e política possível e mesmo necessário. Nesse sentido, não há um enfoque abstrato, fora da história, mas sempre dentro da história.

Marx, seja em O Capital como em outras obras - como nos chamados Gründrisse (Elementos Fundamentais da Economia Política), que ficaram manuscritos, principalmente numa parte especial chamada "Formas que Precederam à Produção Capitalista" – procura mostrar quais os processos que conduziram a essa situação, a essa, digamos assim, conjuntura histórica em que o capitalismo podia emergir, considerando o grau atingido pelo desenvolvimento das forças produtivas. No fundamental, tal conjuntura consistia na separação do produtor com relação aos meios de produção. Quer dizer, o produtor efetivo, o trabalhador - que antes era um camponês, um artesão, e tinha os meios de produção - em certo momento se viu despojado desses meios de produção e se tornou uma força de trabalho passível de assalariamento, de ser contratada sob a forma de salário. E, ao mesmo tempo, é claro, as forças produtivas se acumularam em mãos de certos indivíduos - os capitalistas - que podiam assalariar, que podiam contratar esses trabalhadores desprovidos dos meios de produção. Tal é o processo da chamada acumulação primitiva, ou acumulação originária, que é uma acumulação de capital feita por meios não capitalistas, feita ainda dentro de sociedades pré-capitalistas - medieval (feudal), modo de produção asiático, ou então dentro do escravismo colonial, como foi o caso do Brasil. Tal acumulação originária serviu como ponto de partida para o surgimento do capitalismo. Marx teve um grande trabalho para decifrar isso que, seja qual for a idéia que tenhamos sobre o Leste Europeu, permanece como uma tese da ciência econômica que eu considero extremamente sólida, com uma fundamentação fatual e teórica resistente a contestações.

Marx se esforçou para esclarecer tal aspecto, tendo em vista a compreensão do próprio sistema capitalista e a refutação da tese da economia política burguesa. Pois, como explicar que tenham surgido homens, em pequeno número, que tinham capital, tinham dinheiro, e um grande número de despossuídos? A explicação mais comum é aquela segundo a qual os que tinham dinheiro eram parcimoniosos, eram pessoas que não faziam gastos excessivos, não se entregavam aos prazeres da vida, mas poupavam dinheiro. Eram os poupadores. Zelavam para que o dinheiro fosse aplicado na produção e não no seu consumo pessoal. Por essa razão, tais pessoas teriam juntado dinheiro e, portanto, é justo que, ao aplicá-lo, elas tenham a recompensa do lucro, dos juros, enfim, pela aplicação desse capital. Tal conclusão dos economistas tem muita afinidade com a tese de Max Weber sobre a Ética protestante, conforme a qual um dos fatores, melhor dito, o fator diferencial que fez com que o capitalismo surgisse na Europa e não na Ásia, por exemplo, foi a religião cristã protestante com sua Ética racional de valorização do trabalho. Em uma palavra, a Ética protestante do trabalho, da frugalidade, da poupança, é que estaria na origem do capitalismo.

Ora, isso é uma apologia do capitalismo e um elogio imerecido para a burguesia. O que Marx mostra com os fatos históricos, sempre citando as fontes, é que o processo de formação do capitalismo decorreu como um processo de terrível violência, de espoliação a mais cruel, de expulsão dos camponeses que tinham terras e foram jogados nas estradas como vagabundos, morriam de fome, eram escravizados e assim por diante. O processo de colonização, de saque da África, da América, das novas terras descobertas, o tráfico de escravos e sua exploração - tudo isso alimentou, fertilizou o terreno sobre o qual veio a florescer o capitalismo. Logo, esse aspecto da acumulação originária e da origem do capitalismo, aspecto fundamentalmente histórico, é importantíssimo para a compreensão de todo o sistema capitalista. Ainda que, conforme argumenta Weber, os burgueses se distinguissem dos aristocratas pelo calculismo nas aplicações produtivas e no consumo pessoal, dai não se segue que sua fortuna tenha tido origem no trabalho e na frugalidade desses burgueses, moldados pela Ética protestante. A origem de sua riqueza residiu na exploração do trabalho assalariado.

A obra de Marx, O Capital, oscila sempre entre o histórico e o lógico. Há verdadeiras monografias historiográficas, capítulos inteiros que são obras-primas de historiografia - e é com toda justiça que um intelectual liberal inglês, Isaiah Berlin, considera Marx o fundador da história econômica. Um historiador da economia pode ser anti-marxista, mas o fundador dessa ciência, desse ramo da ciência historiográfica, inegavelmente foi Marx.

Se falarmos do lógico, isto é, de O Capital como apresentação do sistema capitalista, nas suas mais variadas conexões, então é necessário lembrar uma frase de Marx que é muito citada, até por Delfim Netto2, em que se afirma que, se a aparência fosse igual à essência das coisas, a ciência seria desnecessária. Quer dizer, se isso que nós vemos e sentimos empiricamente já nos desse a essência da sociedade, no caso o sistema econômico, então não seria preciso fazer pesquisas, não seria preciso penetrar nesse sistema com instrumentos de análise conceitual, a saber, com a dialética materialista, a dialética de Hegel transformada em dialética materialista. É que a essência permanece realmente escondida pelas aparências. "As aparências enganam", como diz a frase corriqueira. De fato enganam, o que acontece com as aparências econômicas, no varejo e no atacado.

Queria fazer uma alusão especial justamente ao primeiro capítulo do Livro Primeiro de O Capital, que é o capítulo sobre a mercadoria. Marx, evidentemente, não facilitou as coisas para os seus leitores, porque esse primeiro capítulo é talvez o mais abstrato, é um dos mais abstratos pelo menos. É preciso atravessá-lo, esse longo capítulo, para ir adiante. É um capítulo fundamental: a mercadoria, como Marx diz desde o início, é a célula do capital, é a célula do sistema econômico capitalista. Aí ele se demora, ao longo de dezenas de páginas, em mostrar toda a lógica interna do sistema capitalista, isto é, como um sistema baseado na produção de mercadorias, à medida que vai se incrementando, conduz ao capitalismo. Como a mercadoria, pelo aspecto dúplice de ser valor-de-uso e valor - o qual pode ser expresso em dinheiro -, pelo jogo dialético das contradições, conduz ao regime econômico dominado pelo Capital.

A última seção desse capítulo se intitula "O Fetichismo da Mercadoria e o seu Segredo". Refiro-me a esta seção por causa duma obra que ganhou grande popularidade, desde o ano passado, aqui no Brasil: a obra O Colapso da Modernização, de Robert Kurz3, um autor alemão até então desconhecido. Kurz tem como tese principal dessa sua obra a afirmação de que os "marxistas do movimento operário" esqueceram a tese de Marx sobre o fetichismo da mercadoria e, por isso, se transviaram e criaram esse socialismo que fracassou. A grande fonte das contradições atuais do capitalismo, então, é o fetichismo da mercadoria, de tal maneira que é preciso atingir uma consciência que o aniquile. Ou seja, superar a consciência iluminista abstrata pela consciência prática sensível.

Ora, eu penso que aí há um equívoco básico da parte de Robert Kurz. O que Marx chama de fetichismo da mercadoria é uma metáfora. Ele usa aí a palavra "fetichismo", oriunda de "fetiche" - uma palavra portuguesa tornada universal. Pois foram os portugueses, como primeiros europeus colonizadores da África, que notaram que muitos povos africanos, aqueles não islamizados, atribuíam poderes sobrenaturais a objetos comuns, como pedras, árvores, animais, os quais seriam causadores de chuvas, inundações, secas e toda espécie de acontecimentos. A mercadoria, segundo Marx, também se comporta, aos olhos daqueles que a produzem e dos que vivem na sociedade capitalista, como se fosse um fetiche. Pois, o que é uma mercadoria? É um objeto qualquer que o homem produz: pode ser um alimento, um saco de trigo, um automóvel, um computador e até mesmo uma droga. Mas, seja lá o que for, a mercadoria, uma vez produzida, escapa ao controle do produtor. Quem produz a mercadoria, seja um pequeno ou grande empresário, desconhece as exatas dimensões do mercado em que ela deverá ser vendida. Então produzem-se mercadorias que não se vendem, como está acontecendo agora, numa fase de recessão. As máquinas estão aí, pode-se produzir, mas não adianta produzir porque não há quem compre. A mercadoria, portanto, como que domina o seu produtor. Ela tem um poder misterioso, aparecendo como um fetiche para os homens, os criadores da mercadoria.

Mas isso que Marx chama de fetichismo e que ele estuda na última seção do primeiro capítulo de O Capital, bem como em um dos trechos de suas Teorias da Mais-Valia - aliás, de forma até mais abrangente - e ainda em um capítulo do Livro Terceiro de O Capital, "A Fórmula Trinitária", é uma transmutação ideológica de um mundo dominado pelo capital produtor de mercadorias. Em suma, o fetichismo é uma transmutação ideológica necessária, não arbitrária: inevitavelmente, onde se produzem mercadorias, onde elas dominam, esse fetichismo surge e se reflete, inclusive, nos economistas, nos homens doutos que estudam economia. Porque, para eles, o mercado ajusta-se por si mesmo, o capital produz lucro, a terra produz renda e o dinheiro produz juros. Quer dizer, para eles o dinheiro produz juros, como algo inerente à sua natureza, sem que importem as relações sociais, sobretudo as relações de produção. Isso é uma transmutação ideológica, cujo ponto de partida são os processos materiais da base econômica.

Portanto, colocar o fetichismo no centro da luta que devem travar os trabalhadores, como pretende Robert Kurz, nu minha opinião é desorientador, porque a luta não é contra o fetichismo do capital em primeiro lugar, mas contra as bases sociais que o engendram. Por conseguinte, é a luta contra o capitalismo. Seria um desperdício de energia sairmos por aí nos comícios convocando os trabalhadores a lutar contra o fetichismo da mercadoria. Não tem sentido. Pode-se dizer: "Abaixo o capitalismo!", como frase bombástica que não dá certo, mas todos compreendem. Já "abaixo o fetichismo da mercadoria!" e coisa de erudito pedante. Aliás, o próprio Kurz é bastante claro a respeito: enfatiza o fetichismo da mercadoria no plano da consciência e declara impotente a luta da classe operária, pois esta seria somente uma criação do capital.

Desejo ainda assinalar que Marx tem sido comumente acusado de economicista, de exagerar a significação do fator econômico etc. Admito que, num trecho ou noutro de sua obra, haja formulações que conduzam a essa conclusão. Mas o pensamento de Marx, bem compreendido, não permite considerá-lo economicista, apesar de todo peso que ele conferiu à economia e de ter dedicado a maior parte de sua atividade intelectual aos estudos econômicos. O próprio O Capital é uma obra interdisciplinar, em que se combinam os enfoques de várias disciplinas sociais. É uma obra de economia, óbvio, mas também é uma obra em que aparecem, muitas vezes, análises ricas sobre o direito: Marx dá muita importância ao exame do direito civil, do direito penal e daquilo que se pode denominar hoje direito trabalhista. Quer dizer, a legislação que rege as relações entre o capital e o trabalho, que rege a vida dos trabalhadores, é examinanda atentamente: as suas origens, como ela evoluiu e assim por diante. Marx também não é alheio, de maneira alguma, à política. A ação do Estado, as formas de governo, isso tudo está dentro de O Capital. Se extrairmos as referências à política que há nessa obra poderíamos ter todo um livro. Geografia, demografia, sociologia, psicologia social, as diferenças entre os vários povos - como eles estão impregnados de diferentes atitudes, comportamentos, costumes -, história da técnica e antropologia. Portanto, a obra de Marx não entroniza o chamado "Homo Economicus", quer dizer, o homem que só age por motivos econômicos.

Ainda há poucos dias, em um dos seus artigos da segunda página da Folha de São Paulo (edição de 20/10/93), Delfim Netto se referia ao fato de que a teoria liberal não defende a idéia do "Homo Economicus" e, escrevia ele, essa teoria não pode ser compreendida se não levarmos em conta que os homens, que agem no mercado, têm certos valores, sendo a honestidade o valor fundamental. Nesse sentido, a teoria econômica considerada como tal, tem em vista um tipo de agente que não é altruísta, não age tendo como fim o bem dos outros, mas age, como afirmava Adam Smith, objetivando o seu próprio bem, o seu próprio enriquecimento, a sua própria vantagem. Mas, se não é altruísta, ele respeita as regras do jogo, ele é honesto. Absolutamente honesto. Por isso mesmo, a teoria econômica enfatiza a igualdade de informações entre os agentes econômicos, isto é, todos têm as mesmas informações. Então, podem tomar suas decisões ótimas, pois, sabendo cada qual aquilo de que cada um dispõe, o mercado funciona com eficiência.

Em abstrato, podemos até considerar que seja assim. O próprio Marx toma como pressuposto, nas suas análises econômicas, a condição de que o salário corresponde ao valor da força de trabalho. Embora ele ressalte que, na prática, nem sempre isso acontece, que muitas vezes o salário está abaixo do valor da força de trabalho, para a teoria econômica considera-se que o salário é sempre igual ao valor da força de trabalho. Mas isso não leva Marx, de jeito nenhum, a julgar que os agentes econômicos capitalistas são homens honestos, que tem a honestidade como valor. Ao contrário, depois de expor um teorema abstrato, ao entrar no terreno das apreciações práticas, concretas, Marx mostra que o capitalismo é movido pela cobiça, pela avareza e que os capitalistas não se detêm diante de nenhum escrúpulo - seja com relação aos outros capitalistas, seja com relação aos operários - para obter aquilo que é o motor do capitalismo, a saber, o objetivo do lucro. Claro que há regras no jogo: há legislações, há juizes, enfim, a anarquia da produção não é "bagunça". Mas daí não se segue que a honestidade, como pretende Delfim Netto, seja um valor dos agentes econômicos. Ao menos, é um valor tão elástico que desaparece na imprecisão. Para o capitalista importa, antes de tudo, vencer no jogo do mercado. Para vencer, a esperteza se impõe acima da honestidade. Um dos elementos da esperteza consiste precisamente nas informações privilegiadas. Assim, os agentes capitalistas ficam longe de dispor de informações iguais para todos.

Falando em antropologia, a de Marx é aquela do homem que produz. Por conseguinte, é a do trabalho como base do processo histórico da humanidade. Querer deslocar essa base para a comunicação, como faz Habermas, enquanto novo paradigma, para mim é sair do marxismo. É claro que a tendência visível da tecnologia se orienta para uma sociedade onde se poderá trabalhar cada vez menos. Isso no caso do capital ser "domado" e, afinal, extinto. A tecnologia moderna, na medida em que avança, vai mostrando isso. Mas tal situação também é resultado do trabalho, é o fato de que o trabalho vai se tornando cada vez mais produtivo. Aquilo que Marx denominava "o reino da liberdade", o reino onde o homem pode fazer o que gosta e não trabalhar por obrigação, vai se tomando mais dilatado.

Quero terminar, rapidamente, aventando que outra tese de Marx em O Capital, acerca do caráter cíclico da acumulação do capital, está sendo confirmada sob nossas vistas, nós a estamos vivendo na prática. A dinâmica da acumulação do capital conduz à sua super-acumulação. Em certos momentos, o capital tem capacidade para produzir mais do que a chamada demanda efetiva pode pagar. Porque, no capitalismo, o que interessa não é quem precisa comer, mas quem tem dinheiro para comprar comida. Portanto, o capital, pela sua dinâmica inerente, periodicamente - e, por isso, é cíclico - torna-se excessivo para a demanda efetiva. É o que esta acontecendo agora. Quer dizer, há uma capacidade de produção excessiva de aviões - motivo por que há uma crise de toda a aviação comercial no mundo -, de computadores, de máquinas-ferramentas, de automóveis e, até, de alimentos. É por esta razão que as fábricas de automóveis estão dando prejuízo no Japão, nos EUA e na Europa: não estão trabalhando a pleno vapor, estão mandando trabalhadores embora, desempregando gente. Há 35 milhões de desempregados nos países mais ricos do mundo, nos países mais industrializados. Os seus governantes já chamam tal situação de "desemprego estrutural". Agora mesmo, acabamos de saber que os funcionários da Air France fizeram uma grande greve contra o plano da empresa de despedir 4 mil dos seus empregados. Aí já há uma luta contra a programação patronal do desemprego, não por aumento dos salários. Essa recessão prolongada, que é cíclica, mas sobre a qual incidem fatores estruturais, vem a confirmar mais uma vez a análise feita por Marx em O Capital.

Isso não significa que O Capital contenha toda a verdade, que seja uma obra capaz de explicar tudo o que está ocorrendo, passados já um século e meio da sua elaboração. Seria anti-marxista afirmá-lo. Depois dessa obra, outros marxistas trataram das questões econômicas do seu tempo e fizeram progredir a ciência econômica e sociológica própria do marxismo. O período de império do estalinismo, sem dúvida alguma, foi tremendamente negativo para o marxismo, foi esterilizador do pensamento marxista, pois, afinal de contas, com um poderoso aparelho baseado na força de um grande Estado, de uma superpotência, ele dominou a maior parte da militância comunista do mundo inteiro. Agora que podemos nos considerar libertados dessa coação exercida pelo estalinismo, embora os seus resíduos ideológicos remanesçam, está à nossa frente a tarefa de revigorar a ciência econômica e social de inspiração marxista. Para isso, os núcleos de estudos de O Capital, como esse que se formou aqui em São Paulo, são extremamente úteis e necessários, A tarefa consiste em avançar com a metodologia de O Capital, na trilha que abriu, com o entendimento de que essa obra não encerra a ciência econômica, ao contrário, ela abre a ciência econômica. Há um campo imenso, no final do século vinte, que exige a nossa reflexão. Uma reflexão que não seja um mero exercício acadêmico, mas uma reflexão estimulada pela própria crise do capitalismo e pelos rumos que ele vem tomando, no sentido de que a alternativa socialista, num momento ou noutro do futuro, sem querer fazer previsões de prazo, se apresentará. Haverá o que eu poderia chamar de "segunda onda socialista", que não será igual à primeira, aquela que foi característica do século vinte. Uma segunda onda que, sem dúvida, encontrará uma humanidade mais madura e que aproveitará as lições da primeira: as questões do mercado, do planejamento, do papel do Estado, da organização da sociedade civil, das liberdades individuais e assim por diante. Essa segunda onda, certamente, pelo menos começará a crescer e, ou realmente institui um outro sistema no lugar do capitalismo, ou então tratar-se-á daquela alternativa colocada por Rosa Luxemburg: ao invés do socialismo, teremos a barbárie. Nesse sentido, não há nenhum fatalismo na perspectiva marxista. Ela se produz, na verdade, no convite à ação política.


Muito Obrigado.

São Paulo, 27 de outubro de 1993.


1O texto de Jacob Gorender, "A Atualidade de 'O Capital' de Karl Marx", foi apresentado pelo autor em debate organizado pelo Núcleo de Estudos de O Capital do PT paulistano, que se realizou no anexo 0 da Câmara Municipal de São Paulo, em 27 de outubro de 1993.

2Antônio Delfim Netto, político e economista brasileiro, ex-Ministro e Secretário de Planejamento durante a Ditadura Militar brasileira. (Nota do Webmaster - NW)

3Clique aqui para ler a resenha da obra, na Revista Práxis no 1. (NW)


Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, apresentado ao debate organizado pelo Núcleo de Estudos de O Capital do Partido dos Trabalhadores da cidade de São Paulo, e publicado na Revista Práxis número 1, de 1994, tenha sido proveitosa e agradável.

São permitidas a reprodução, distribuição e impressão deste texto com a devida e inalienável citação da sua origem. Direitos Reservados ©.


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