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| A Arte Romântica |
Georg F. Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Nascido em 27 de Agosto de 1770, na cidade de Stuttgart, Prússia. Falecido em 11 de Novembro de 1831, em Berlim, vítima de cólera.
Principais Obras: "Fenomenologia do Espírito", "Lógica", "Enciclopédia das Ciências Filosóficas", "Princípios da Filosofia do Direito", "Preleções sobre a Filosofia da História", entre outras.
Publicação original: Hegels Werke, Berlin, 1981.Publicado originalmente em 1807.
(Texto Original em alemão)
A Arte Romântica
Introdução
Do Romântico em Geral
Conforme já demonstramos a respeito da arte simbólica e da arte clássica, a forma de arte romântica é também determinada pelo conceito intrínseco do conteúdo que se pretende representar. Tentaremos formar uma idéia precisa do princípio que está na base deste conteúdo novo, como conteúdo absoluto da verdade, de uma nova teoria do mundo e de uma nova forma de arte.
A gênese da arte foi caracterizada pela tendência da imaginação para se separar da natureza a fim de se orientar para a espiritualidade. Ainda se tratava apenas de uma tentativa do espírito que, por não ter encontrado o conteúdo verdadeiro para a arte, era obrigado a se contentar com revestir as significações naturais de formas exteriores ou as interioridades substanciais, de abstrações que não possuem subjetividade, tornando essas formas exteriores e abstrações o próprio centro da arte. As coisas se mostram de maneira muito diferente na arte clássica. Nela a espiritualidade, que busca sua afirmação à custa das significações naturais, é base e princípio do conteúdo, sendo o que há de natural neste, de corporal e sensível, o que lhe dá alicerce exterior. Mas em vez de ficar, como na fase anterior, superficial e indeterminada, impermeável ao seu conteúdo, esta forma é tal que, por causa dela, a arte se tornou capaz de atingir o mais alto grau de perfeição, penetrando-a de espiritualidade, fazendo dela uma realidade adequada ao espírito em sua individualidade substancial e idealizando o natural por via desta bela união entre o fora e o dentro. Dessa maneira a arte clássica se afirmou como a representação mais autêntica do ideal, como a implantação do reino da beleza. Nada de tão belo pode haver nem nunca mais haverá.
Entretanto existe algo mais elevado que a representação bela do espírito em forma sensível, direta, criada até por ele mesmo como sua adequação. É que aquela união, realizada no elemento exterior e que proporciona à realidade sensível uma existência conforme e adequada, não deixa de se opor ao verdadeiro conceito do espírito. O repouso e a tranqüilidade que o espírito achava ter encontrado na exteriorização corporal se mostram precários, e ele sente-se cada vez mais impelido a fechar-se em si mesmo, procurando o repouso num acordo consigo mesmo. A mera totalidade do ideal, sólida em aparência, desagrega-se e cliva-se em duas: o subjetivo em si e a manifestação exterior, e esta cisão vai permitir ao espírito realizar uma pacificação mais profunda, em acordo mais íntimo com seu domínio interior próprio. O espírito que se baseia no princípio da adequação a si mesmo, na fusão do seu conceito com a realidade, só no seu próprio mundo pode encontrar uma existência de acordo com sua natureza, no seu mundo espiritual, em sua própria alma, na sua sentimentalidade íntima, em suma, no mais íntimo e profundo de sua condição intrínseca. Desta forma o espírito adquire a consciência de ter em si mesmo o seu outro, a sua existência enquanto espírito e de gozar a sua infinitude e liberdade.
1. O Princípio da Subjetividade Intrínseca
Esta elevação do espírito para si mesmo, por meio da qual ele encontra em si mesmo a subjetividade que tinha sido até então obrigado a buscar no mundo sensível e exterior, adquirindo assim o sentimento e a consciência da união consigo mesmo, esta elevação é o princípio fundamental da arte romântica. Um outro princípio liga-se por necessidade a este: o de que a beleza do ideal clássico, e portanto a beleza na forma ajustada melhor ao conteúdo que se precisa exprimir, não é o fim supremo e último da arte romântica. Na fase romântica, o espírito sabe que a sua verdade não consiste em mergulhar no corpóreo e que, pelo contrário, ele adquire a consciência de sua verdade somente quando se retira do exterior para regressar a si mesmo, pois já não encontra lá os elementos de uma existência adequada. Até o ponto em que este novo conteúdo impõe a si mesmo a tarefa de se apresentar em forma de beleza, esta, no sentido que vimos dando a tal palavra, continua a ser para ele um atributo secundário; a beleza que lhe importa é puramente espiritual, a beleza da interioridade como tal, da subjetividade infinita e espiritual em si mesma.
Para se instalar no infinito, o espírito deverá erguer-se no sentido do Absoluto, acima da personalidade formal e finita. Em outras palavras: o espiritual deverá representar-se pleno de substancialidade e, no coração desta, como sujeito dotado de um saber e de um querer que apenas vêm de si próprio. A substancialidade, pelo contrário, a verdade não deve ser concebida como um além do humano somente, o que implicará tão só a impressão do antropomorfismo grego; é o humano, enquanto real subjetividade, que se deve adotar por princípio, o que, pelo contrário, implicaria, conforme vimos, um antropomorfismo mais acabado e perfeito.
2. Os Principais Elementos do Conteúdo e da Forma em Arte Romântica
Quanto aos principais elementos envolvidos nesta determinação básica, temos de considerar, de um modo geral, apenas o conjunto dos objetos e a sua forma modificados pelo novo conteúdo da arte romântica.
O verdadeiro conteúdo da arte romântica é constituído por aquilo que é intrínseco em absoluto, e a forma correspondente pela subjetividade espiritual consciente de sua autonomia e liberdade. Estes infinito e universalidade em si e para si implicam uma atitude negativa em absoluto face a toda a particularidade, um acordo consigo mesmo que ignora quaisquer separações ou processos da natureza, a sucessão do nascimento, desaparecimento e reaparição, toda a limitação da vida espiritual, e o resultado desta atitude e a recondução de todos os deuses particulares a uma pura e simples identificação com a subjetividade espiritual. Tem-se assim um Panteão de deuses destronados, destruídos pela chama da subjetividade e, no lugar do politeísmo plástico, a arte agora já se reconhece um único deus, um espírito único que goza de autonomia absoluta, encontra-se numa perfeita e livre união consigo mesmo, e não se decompõe em uma multiplicidade de caracteres e funções particulares reunidas pelo único liame de uma necessidade obscura.
A subjetividade absoluta escaparia, como tal, ao domínio da arte e só pertenceria ao pensamento quando, para ser uma subjetividade real e em conformidade com seu conceito, ela não se introduzisse também na realidade exterior para, depois, refletir-se em si mesma. Graças a esta passagem através da realidade, a este contato íntimo e direto com ela, o Absoluto, em lugar de surgir com o aspecto de um deus cuja atividade se limitasse apenas a diminuir, ou até a suprimir, tanto a natureza quanto a existência humana em que nelas se manifestasse como subjetividade real e divina realmente, antes revela-se como o verdadeiro Absoluto, ficando desta forma acessível à apreensão e à representação artísticas.
Porquanto a existência de Deus não é um fato natural e sensível, mas um fato que vai além do sensível; é que ela se torna subjetividade espiritual e esta, em vez de perder o caráter absoluto na sua manifestação exterior, adquire justamente, por causa desta manifestação, a certeza de sua realidade como Absoluto. Em verdade, Deus não é um simples ideal criado pela imaginação, mas intervém na finitude da realidade exterior, feita de acasos e acidentes, sem que, no coração desta realidade, deixe de ser, e de saber que o é, a substância que permanece infinita em si mesma, e sendo, ela mesma, origem da infinitude. Como assim a manifestação de Deus torna-se o sujeito, a arte adquire o direito de utilizar a forma humana exterior para exprimir o Absoluto, embora a nova tarefa de que virá a incumbir-se consista não em fazer o trânsito da interioridade para o exterior corpóreo, mas, pelo contrário, em salvaguardar a independência da interioridade, tornando perceptível no sujeito a consciência espiritual de Deus. Os vários momentos que compõem o todo desta teoria de mundo, enquanto totalidade da verdade, agora se apresentam como manifestações humanas que já nada têm a ver com os momentos das fases anteriores, cuja forma e conteúdo eram representados ou pelos objetos naturais, como o Sol, os astros, etc., ou, conforme os gregos, por deuses de beleza radiante, por heróis, façanhas e ações relacionadas aos deveres impostos pela moral da família ou pela vida política; é o sujeito individual, real, animado de vida interior, que adquire valor infinito, como único núcleo onde são elaborados, e de onde irradiam os eternos momentos daquela absoluta verdade que só se realiza como espírito.
Ao comparar o caráter da arte romântica, conforme o acabamos de definir, com o da arte clássica, cuja expressão mais perfeita é a escultura grega, verificamos que as figuras plásticas dos deuses não exprimem o movimento e a atividade do espírito que abandona a esfera da sua representação exterior e regressa a si mesmo, ao seu intrínseco ser-para-si. O que existe de variável e acidental na individualidade empírica com certeza encontra-se reduzido ao mínimo nessas belas figuras de deuses, porém o que lhes falta é a subjetividade que existe para si, que se sabe e deseja a si mesma. Esta lacuna traduz-se exteriormente por faltar nas estátuas a luz do olhar, na qual a alma exprime-se em sua simplicidade. As obras mais completas da bela escultura demonstram este defeito, pois sua interioridade não se revela como tal e naquele estado de concentração espiritual que só o olhar é capaz de exprimir. Essa luz interior, em vez de emanar das estátuas, está no espectador cuja alma não se encontra diante de uma alma nem o olhar encontra outros olhos. O Deus da arte romântica é, contudo, um Deus que vê, que se sabe Deus e possui uma subjetividade intrínseca, um Deus com uma interioridade que se abre e revela-se à dos crentes. Com efeito, a negatividade infinita, o espiritual refletindo sobre si mesmo, suprimem a difusão total no que é corpóreo; a subjetividade é a luz espiritual iluminando a si mesma, que brilha onde só havia escuridão, e enquanto a luz natural só pode iluminar objetos fora dela mesma, o objeto e o âmbito da luz espiritual é ela mesma, ou seja, a subjetividade que se sabe como tal. Entretanto considerando que esta interioridade absoluta assume, em sua manifestação real, um aspecto humano, e dado que o humano liga-se por sua vez ao conjunto do mundo a que pertence, disso resulta uma grande variedade de formas, tanto do subjetivo espiritual quanto do objetivo concreto e exterior que o espírito reconhece como seu.
A realidade, elaborada desta maneira pela subjetividade absoluta, pode se manifestar de três maneiras, tanto pela forma quanto pelo conteúdo:
2a.
O Ponto de Partida nos será fornecido pelo próprio Absoluto que se realiza, afirma e sabe como espírito. A figura humana é representada de tal modo que possa, de imediato, ser reconhecida como participante do divino. O homem não se apresenta apenas como homem, com caráter puramente humano e paixões limitadas, com fins e realizações precárias, somente consciente de Deus; sim, como o próprio Deus único e universal, que viveu, teve sofrimentos, nasceu, morreu e ressurgiu, revelando, até a consciência finita, o que são o eterno e o infinito de acordo com a verdade. A arte romântica representa este conteúdo na história de Cristo, de sua mãe e de seus discípulos, bem como de todos os que o Espírito Santo inspira e agem movidos da sua divindade. Uma vez que é Deus, enquanto Universal, revelando-se na vida humana, a realidade que apresenta esta revelação não se limita apenas à manifestação individual e imediata do Cristo, mas amplia-se a toda a humanidade, onde o espírito de Deus afirma sua presença e permanece de acordo consigo mesmo. O âmbito desta auto-intuição, deste ser-em-si e para-si do espírito equivale à paz, à conciliação do espírito consigo mesmo em sua objetividade, ao nascimento de um mundo divino, de um reino de Deus onde o Divino, ao qual o princípio de conciliação com sua realidade é imanente, efetiva essa conciliação de modo pleno, e com ela a identificação perfeita consigo mesmo.
2b.
No entanto, se esta identificação, enquanto liberdade espiritual e infinitude, tem sua razão e suas raízes na essência mesma do Absoluto, a conciliação de onde ela provém não constitui um fato preexistente na realidade mundana, natural e espiritual; pelo contrário, ela se realiza graças à ascensão do espírito que, ao separar-se de sua manifestação imediata que se realiza realiza finita, ergue-se para a verdade. Para alcançar isto, para realizar a sua totalidade, conquistando a liberdade, o espírito deve começar por separar-se de si mesmo e se opor, com sua finitude, ao infinito em si. É em conseqüência desta separação de si mesmo, origem e causa de tudo o negativo e maligno na existência natural, finita e imediata, que o espírito se torna capaz de romper os laços que o prendem a essa existência, para se introduzir no reino do verdadeiro e santo. Trata-se portanto de uma atividade, de um movimento espiritual, de um processo composto por lutas e combates que trazem consigo a dor, a morte, o doloroso sentimento do nada, o tormento do espírito, do corpo. Da mesma forma que Deus começa por afastar para longe de si a realidade finita, também o homem finito, que tem seu ponto de partida fora do reino de Deus, deve elevar-se até Deus, afastar-se do finito, do que não possui valor nem dever, o que consegue quando ocorre a destruição da realidade imediata pela realidade verdadeira que Deus objetivou ao se manifestar como homem. A infinita dor que acompanha este sacrifício da subjetividade, o sofrimento e a morte que estavam mais ou menos eliminados nas representações da arte clássica, só adquirem caráter de necessidade na arte romântica.
Não é possível afirmar que os gregos tenham percebido o significado essencial da morte. Como nada viam de negativo em si, nem na natureza nem no caráter imediato do espírito associado ao corpo, consideravam ser a morte um trânsito abstrato, sem receio ou terror, com uma parada que não tinha outras conseqüências para o indivíduo morto. Mas quando a subjetividade, ao atingir o ser-em-si espiritual, adquire importância primordial, a negação implícita na morte aparece como negação da própria subjetividade, e isto a faz terrível. Ela se torna a morte da alma que, afastada para sempre de qualquer felicidade por ser negativa em-si e para-si, destina-se à infelicidade, á condenação eterna. Mas como a individualidade grega, considerada como subjetividade espiritual, não atribuía tal valor a si mesma, a morte lhe aparecia com rosto sereno, porque o homem só vê com receio as coisas às quais confere alto valor. Portanto a vida só adquire um valor infinito para a consciência quando o sujeito, considerando-se uma realidade espiritual, consciente, única, é tomado por um sentimento de terror ao pensar que o fim da morte é abolir essa realidade positiva da qual é, precisamente, a negação.
Por outro lado, a morte na arte clássica não possui a significação afirmativa que lhe atribui a arte romântica. Só com o progresso da reflexão e da consciência subjetiva, com Sócrates por exemplo, é que a imortalidade adquire um sentido mais profundo e aparece como a satisfação de uma exigência mais evoluída. Quando, no mundo subterrâneo, Ulisses declara (A Odisséia, XI, versos 482 a 491) que Aquiles é mais feliz do que todos os que viveram antes dele e viverão depois, pois sendo honrado outrora como igual aos deuses, agora reina entre os mortos, Aquiles, que parece não apreciar muito aquela felicidade, responde a Ulisses suplicando que este jamais pronuncie nenhuma palavra de consolo por ter (Aquiles) morrido, porque entre o destino do escravo de um homem pobre e o de reinar entre os mortos, preferia o primeiro. Por outro lado, a arte romântica representa a morte como um desejo da alma natural e da subjetividade finita, desejo que só é negativo perante aquilo que é negativo em si e que só tem em vista suprimir o que não tem valor ou libertar o espírito da sua finitude, também realizando a conciliação do sujeito com o Absoluto. Para os gregos, só a existência natural, exterior e mundana era afirmativa – essa existência de que a morte constitui apura e simples negação. Eles concebiam a morte como supressão, abolição da realidade imediata. Entretanto a morte, na visão romântica do mundo, significa a negatividade, ou seja, a negação, e isto a transforma em algo afirmativo; a morte liberta o espírito da naturalidade pura e simples e da finitude incompatível com o seu conceito. Assim, a dor e a morte da subjetividade cedem lugar ao reconhecimento em si, à satisfação e santidade, à existência afirmativa e pacificadora que o espírito só consegue atingir depois que dissipa a atmosfera negativa, isolante da verdade e da vida na verdade. Não se trata da morte que cai sobre o homem como uma fatalidade natural mas de um processo que, mesmo independentemente dessa negatividade exterior, o espírito deverá percorrer para se erguer a uma vida digna deste nome.
2c.
O terceiro aspecto do mundo absoluto do espírito é representado pelo homem na medida em que, em lugar de ser ele mesmo a manifestação do Absoluto e do Divino e de realizar o processo de ascensão e conciliação com Deus, continua preso nos limites do humano. O conteúdo aí se constitui pelo finito como tal, englobando esta expressão tanto os fins espirituais, os interesses profanos, as paixões, conflitos, sofrimentos, alegrias, esperanças, satisfações, quanto a natureza com toda sua riqueza de fenômenos particulares. Entretanto há duas maneiras de conceber este conteúdo. O espírito pode sentir-se, por um lado, como se estivesse no seu elemento legítimo, capaz de lhe oferecer todas as satisfações que deseja, e isto ocorre porque leva em conta apenas seu caráter positivo, se manifestando em seguida afirmativamente na realização e no caráter intrínseco; por outro lado, o mesmo conteúdo pode se degenerar até um estado de simples acidentalidade, sem aspirar a qualquer independência ou autonomia, e o espírito dessa forma não encontrará nele o seu modo verdadeiro de existir nem poderá realizar o acordo consigo mesmo, se não proceder de modo negativo em relação a esta finitude espiritual e temporal.
3. Como a Arte Romântica trata o seu Conteúdo
Conforme acabamos de ver, o elemento divino está muito reduzido na arte romântica. Em primeiro lugar, a natureza não tem caráter divino; o mar, as montanhas e vales, rios e fontes, o tempo e a noite, e todos os processos gerais da natureza perdem seu valor como formas de expressão do Absoluto ou partes que o constituem. As formações naturais não sofrem já uma simbólica ampliação, não sendo consideradas suas formas e manifestações como passíveis de traduzir os sinais da divindade. Ora, todos os grandes problemas referentes ao início do mundo, à origem e destino do homem, às finalidades da natureza, e todas as tentativas para resolver esses problemas por meio da representação plástica perderam a sua razão de ser desde o momento em que Deus se revelou no espírito; e até no domínio espiritual o mundo vivo e cheio de cores, com suas características, ações e ocorrências de aparência clássica, fez convergirem todos os seus raios para o coração do Absoluto com sua eterna história de redenção. Desta forma, o conteúdo está todo concentrado e localizado no caráter intrínseco do espírito, no sentimento e na representação, na alma que aspira a unir-se com a verdade, procurando evocar e fixar a divindade no sujeito. Os fins e feitos que ela tem de realizar neste mundo não pertencem a este mundo, ou, antes, sua única realização essencial consiste na luta interior do homem consigo mesmo, visando a conciliação com Deus, a realização e conservação da personalidade e sua representação com aparência divina.
O heroísmo que existe nesta luta e neste anelo não é um heroísmo que cria leis para si mesmo, impondo instituições, criando ou fazendo a transformação das situações; é um heroísmo de submissão, que vai de encontro a situações preexistentes e acabadas, e sua incumbência com elas é apenas acertar o que é temporal, aplicar as ordens que emanam de uma autoridade suprema, que existe em si e para si, às coisas do mundo passageiro. Mas como esse conteúdo absoluto concentra-se no coração da alma subjetiva e como todo o processo desenvolve-se agora na intimidade do homem, a esfera do conteúdo sofre nova ampliação, desta vez se ampliando numa extensão infinita, em ilimitada variedade de formas. Com efeito, apesar dessa história objetiva da redenção constituir o lado substancial da alma, o sujeito a percorre em todas as direções, seja para acentuar certos aspectos, seja para lhe acrescentar certos caracteres humanos, sendo, além disso, capaz de se identificar com a natureza para fazer dela o ambiente e o campo de atuação do espírito, usando-a em função do único e grande fim.
Disto surge um enriquecimento infinito do espírito, o que lhe permite adaptar-se às mais variadas circunstâncias. Quando o homem sai desta esfera do Absoluto e se mistura com as coisas do mundo, vê-se diante de interesses e fins, de sentimentos tanto mais variados e numerosos quando maior profundidade seu espírito adquiriu antes, o que lhe permite se impor aos conflitos e ataques das paixões multiplicadas ao infinito e sentir por isso todos os graus da satisfação. É o Absoluto Universal em si, tal como se apresenta à consciência humana, que constitui o conteúdo intrínseco da arte romântica, que obtém desta maneira, em toda a humanidadee no conjunto do seu desenvolvimento, matéria inesgotável.
Porém, não é enquanto arte que a manifestação artística romântica reproduz tal conceito, como o faz em parte a arte simbólica e principalmente a clássica com seus deuses ideais; se ela atribui forma artística ao conteúdo da verdade, é necessário não esquecer que tal conteúdo existia anteriormente fora do domínio artístico, na representação e no sentimento. Enquanto consciência geral da verdade, a religião constitui a pressuposição essencial da arte romântica, e suas manifestações exteriores e sensíveis se dão à consciência real em forma de eventos e fatos de atualidade imediata no dia-a-dia. Ora, dado que o conteúdo da revelação feita ao espírito é nada mais que a substância absoluta e eterna do espírito, afastando-se da natureza que a degrada, os fenômenos de que se compõe o mundo exterior só podem ser os de um mundo acidental de que o Absoluto afastou-se para cocar a si mesmo no espiritual e no intrínseco e tornar-se verdade em-si e para-si. Desta maneira o exterior se torna um elemento indiferente em que o espírito não pode se demorar e no qual não possui confiança alguma. Quanto mais indigna dele mesmo o espírito considerar a forma da realidade exterior, menos disposto estará a procurar satisfações nela, e à conciliação com ela.
É por isso que a arte romântica não ultrapassa, na representação dos fenômenos exteriores, os limites da realidade banal e vulgar, não sentindo medo em apropriar-se do mundo real com todos os seus defeitos, insuficiências e exatidão finita. Aqui não não estamos na presença da beleza ideal, que induzia o olhar de quem a contemplava para além do tempo, dando a impressão do eterno e imperecível, que sabia apreender e fixar a beleza da existência através das suas manifestações opacas e deformadas. A arte romântica já não aspira a reproduzir a vida em seu estado de serenidade infinita, a reproduzir a alma encarnada em um corpo; seu objetivo não é mais a realidade em si, adequada de maneira plena ao seu conceito; pelo contrário, volta as costas ao cume da beleza, faz a arte participar de tudo o acidental nas formas exteriores, atribuindo um lugar infinito ao que mais se acentua na antítese do belo.
Portanto na arte romântica estamos em presença de dois mundos: um mundo espiritual, perfeito em si, cuja alma é apaziguada e reconciliou-se consigo mesma, mundo da representação linear do nascimento e desaparição, que levam à reflexão sobre si e à verdadeira vida de fênix do espírito; e, por outro lado, um mundo exterior como tal, que se torna uma realidade completamente empírica logo que são rompidos os liames entre ele e o espírito, e cuja forma é indiferente para a alma. Na arte clássica, o espírito dominava os fenômenos empíricos e os penetrava por toda sua extensão, porque neles encontrava sua realidade perfeita. Agora a intrinsecidade aparece indiferente à maneira de representar o mundo exterior, pois o direto e imediato em nada interessa à alma e não contribui para sua santidade. O fora não pode mais exprimir o dentro, e se ainda se recorre a ele para se conseguir a representação interior, é justamente para demonstrar que o mundo exterior nunca poderá ser fonte de satisfações e insistir na importância que precisamos dar à interioridade, à alma, ao mundo dos sentimentos. Assim procedendo, a arte romântica deixa livre o mundo exterior, não lhe impondo nenhuma obrigação, e nem o submete a qualquer escolha; ela não elimina os objetos mais vulgares de suas representações, como por exemplo flores e árvores, ou os mais banais, como os utensílios domésticos, e tudo que existe de acidente e ocasional na natureza. Entretanto aceitando este conteúdo, ela jamais esquece que estes objetos são apenas exteriores, ou seja, indiferentes e vulgares, que só adquirem valor e dignidade na medida em que participam da alma, exprimindo a intrinsecidade como tal, e amostrando não na sua união com a exterioridade nem sua fusão mais ou menos completa com ela, mas na conciliação, no acordo total e completo consigo mesma. A interiorização, levada a este grau, não é mais do que o exterior despojado de sua exterioridade objetiva, um exterior invisível e imperceptível, uma sonoridade que emana de origem misteriosa, vôo sobre as águas, música de ondas que se expandem sobre um mundo o qual, por seus fenômenos heterogêneos, é apenas um fraco reflexo daquele ser-em-si da alma.
Resumindo esta relação entre forma e conteúdo na arte romântica, diremos que isto no qual o tom básico da arte romântica surge no seu aspecto mais autêntico é de natureza musical e, por causa do conteúdo preciso da representação, lírica; tal coisa explica-se porque a universalidade aí alcança o grau mais elevado e também porque a alma, para se exprimir, não pára de escrutinar suas profundezas mais íntimas. O abismo em verdade constitui a característica básica, essencial da arte romântica; encontra-se na epopéia e no drama e mesmo nas obras plásticas envoltas em um halo, vaporosa emanação da alma, pois em todas as produções desta arte a alma e o espírito dirigem-se apenas à alma e ao espírito.
A partir desta definição, falaremos do seu aspecto religioso, pois a história da redenção, a vida, morte e ressurreição de Cristo têm lugar importante. A determinação geral, neste ponto, é que o espírito manifesta atitude negativa perante sua condição imediata e finitude; ele consegue superar a ambas e, assim liberto, afirma-se como infinito e frui de absoluta independência no seu domínio próprio.
Quando o espírito adquire tal independência, por se tornar ele Divino e pela elevação do homem até Deus, ela é ampliada e se aplica às coisas do mundo terreno. É o sujeito como tal que, afirmativo face a si mesmo, adquiriu virtudes relacionadas com esta subjetividade afirmativa, que passam a constituir a substância da sua consciência e interesse da sua existência: Honra, Amor, Lealdade, coragem, fins e deveres da cavalaria romântica.
O Conteúdo e a forma do Terceiro Capítulo podem ser enfeixados, então, com o título genérico de independência formal do caráter. Se a subjetividade chegou a tal ponto que a independência constitui para ela o essencial, o conteúdo particular em que o aspecto subjetivo terá de se exercer deverá participar então dessa independência. Entretanto dado que este conteúdo não integra a substancialidade da vida subjetiva, ou seja, do domínio das verdades religiosas, sua independência apenas poderá ser formal. Por outro lado as circunstâncias e situações exteriores, ocorrências com seus encadeamentos e complicações, prosseguem, depois de recuperar sua liberdade, uma carreira aventurosa, sem ordem, nunca submetida a nenhuma diretiva. Veremos assim a arte romântica terminar por imprimir, tanto ao exterior como ao interior, um caráter acidental, e entre ambos estabelecendo uma separação que significa negar a arte e acentuar a necessidade da consciência em descobrir, para a expressão da verdade, formas mais elevadas do que aquelas que a arte lhe pode proporcionar.
Capítulo 1
O Domínio Religioso na Arte Romântica
O conteúdo substancial das representações de arte romântica é a subjetividade absoluta, a união do espírito com sua essência, a pacificação da alma, a conciliação de Deus com o mundo e, por isso, consigo mesmo. Portanto, é nesta forma de arte que o ideal parece votado a encontrar sua plena e completa realização. Não vimos que na santidade, na pacificação, na independência, a serenidade e a liberdade são os principais atributos para definir o ideal? Sem querer excluir o ideal do conceito e realidade da arte romântica, entretanto diremos que, em comparação com o da arte clássica, o ideal apresenta-se aí com um aspecto diferente em absoluto. Embora já tenhamos feito uma alusão genérica a esta circunstância, a nós parece necessário insistir sobre a sua significação mais concreta para colocar em evidência, desde já, o tipo fundamental da maneira como se representa o Absoluto na arte romântica. No ideal clássico, o Divino encerra-se nos limites da individualidade; a alma e a santidade dos deuses manifestam-se nos detalhes de suas formas externas e, fundamentada esta arte na unidade indivisível individual, como ela mesma ou na exterioridade, a negatividade da separação, da dor corporal, dos sofrimentos morais, do sacrifício e da renúncia não é um elemento essencial.
Sem dúvida o Divino está, na arte clássica, decomposto em múltiplos deuses, porém isto não constitui separação entre uma essencialidade geral e manifestações individuais subjetivas que possuam forma humana e sejam dotadas de humano espírito; e nem o Divino consiste numa oposição entre o Absoluto, que não se manifesta por sinal exterior, e um mundo onde dominam o pecado e o mal, oposição que se trataria de anular pois só assim poder-se-ia restabelecer a realidade em sua verdade, religando-a ao Divino. Muito pelo contrário, o conceito da subjetividade absoluta implica a oposição entre a universalidade substancial e a individualidade, oposição que é uma mediação, a qual uma vez realizada leva o sujeito a participar da substância universal e faz do substancial um sujeito que se sabe e deseja como tal. Entretanto a subjetividade somente pode se tornar espírito no sentido real da palavra mediante profunda oposição com o mundo finito, e só depois de suprimida esta oposição e alcançada a conciliação com o Absoluto é que o sujeito, agora participante do infinito, eleva-se a uma altura em que se torna espírito absoluto. Desta forma, estamos face a uma nova realidade que, ao fazer parte da esfera espiritual, exteriorizada em uma forma espiritual em essência, possui beleza diferente por completo daquela realizada pela arte clássica.
A beleza grega apresenta o intrínseco da individualidade espiritual em uma pura forma corpórea, suas ações e atos no aspecto puramente concreto; enfim, nela estão interior e exterior em indissolúvel união, pois aquele encontra neste a sua expressão total. Porém a beleza romântica exige outra coisa: ela exige que a beleza, embora se manifestando num aspecto corpóreo e exterior, também demonstre que tal manifestação não a esgota por completo, que não constitui a sua revelação completa e definitiva, cuja condição é refletir sobre si mesma, regredir a uma vida independente. Assim o "fora" só poderá exprimir, na arte romântica, o aspecto interior do espírito caso mostre que não exprime esse aspecto de maneira total, mas que ele possui existência própria, e que esta existência não poderá ser reduzida pelas representações exteriores da arte. Portanto a beleza já não será uma idealização da forma objetiva, mas a beleza da alma, a expressão do que ela possui no mais íntimo, da maneira como nasce e se desenvolve o conteúdo intrínseco do sujeito sem se confundir com o que exteriormente o envolve, embora o penetre de um lado a outro. Em lugar da unidade clássica do dentro e do fora, o que se procura é o tempo oposto, que consiste em atribuir uma nova beleza à forma exterior do espírito; a arte, por isso, já não se interessa pela beleza puramente exterior, por tudo que é exterior geralmente, tratando as coisas exteriores tal como as encontra na realidade imediata, sem impedi-las de alcançar a forma para que tende espontaneamente. A conciliação com o Absoluto se apresenta, na arte romântica, como ação que se realiza na profundidade mais íntima e que, apesar de se exprimir exteriormente, nessa expressão exterior não reconhece a sua forma verdadeira, seu conteúdo e fim autênticos. A conseqüência dessa indiferença pela união idealizada entre alma e corpo é dar um caráter particular à representação mais especial da exterioridade individual, o do retrato, da reprodução pura e simples das características e formas tais como existem na natureza e foram elaboradas pelo tempo, como todos os seus defeitos e deficiências, que não procura minimizar nem, com mais razão ainda, idealizar. De um modo geral, ainda se continua a exigir correspondência entre forma e conteúdo, mas ela se limita a uma forma qualquer, a uma correspondência muito genérica, sem buscar suprimir todas as contingências da realidade empírica e concreta.
Aliás, o caráter fundamental da arte romântica se justifica por uma necessidade verdadeira. Ao atingir sua realização plena, o ideal clássico é encerrado em si mesmo, independente, impenetrável, rejeitando tudo que não é ele mesmo. A forma que apresenta pertence-lhe por completo, ele vive nela, e não a pode sacrificar a nada de comum, empírico ou acidental. Também os seres que, como espectadores, aproximam-se destes ideais, em absoluto não podem considerá-los expressões externas que mostrem possuir afinidades com suas próprias manifestações. Apesar das figuras dos deuses eternos possuírem aparência humana, só em aparência elas são humanas, pois sua realidade profunda nada tem de humano, porque os deuses estão além das doenças comuns à humanas e triunfam de sua precária fragilidade. Os laços que os prendem ao empírico e relativo partiram-se.
A subjetividade infinita, o Absoluto da arte romântica, pelo contrário jamais desaparecem na sua manifestação exterior, nem são completamente absorvidos nela; continuam a existir em si mesmos, não obstante seu aspecto exterior, a forma objetiva da subjetividade existam para os outros, para serem apreciados e dispostos livremente. Tal exterioridade deve se manter nos limites do vulgar, do empírico e humano, por ser o próprio Deus quem se digna intervir na vida finita e temporal para realizar a mediação e reabsorção da oposição absoluta que faz parte do conceito do Absoluto. Graças a isso, o homem vê que novas perspectivas lhe são abertas; sua própria condição de ser natural lhe inspira agora uma confiança conseqüente ao fato de a forma exterior, perdendo a distância em que se colocava na arte clássica, o alheamento face ao particular e universal, apenas lhe oferecer o que ele mesmo já possui ou o que pertence já àqueles que conhece melhor e mais ama. Por esta familiaridade com o vulgar, a arte romântica atrai e inspira confiança. Entretanto, caso este deliberado sacrifício exterior significar que arte romântica pretende dar relevo à beleza da alma, torná-la mais profunda, conferir-lhe santidade, ela também pretende se confundir com o conteúdo absoluto do espírito e abranger as regiões mais profundas e íntimas da vida humana.
Extrai-se ainda uma outra idéia daquele sacrifício: a de que, na arte romântica, a subjetividade infinita, em vez de se isolar na solidão como o deus grego que vive encerrado em si mesmo num estado de santidade imperturbável, deverá estabelecer relações exteriores com algo que, sem ser ela mesma, não deixa de nela participar, pois a subjetividade encontra-se neste algo sem deixar de ser o que é. Nesta união da subjetividade com o que ela não é consiste a beleza verdadeira da arte romântica, seu ideal cuja forma e manifestação extrínsecas residem na interioridade e na subjetividade, na alma, no mundo dos sentimentos. Portanto o ideal romântico exprime relações com outras espiritualidades que se ligam à subjetividade por liames tão fortes que só nelas e por elas a subjetividade pode exteriorizar todo seu conteúdo intrínseco. Como sentimento, esta vida nos outros e pelos outros é o Amor.
Pode-se então dizer a respeito do Amor, que ele constitui o conteúdo geral da arte romântica, vista em seu aspecto religioso. Entretanto o Amor só adquire sua forma em verdade ideal quando exprime a pacificação afirmativa e imediata do espírito. Por isso devemos, antes de seguir adiante, por um lado examinar o processo através do qual o sujeito absoluto, situando-se numa atitude negativa em relação à finitude e ao imediato da sua manifestação, acaba por ultrapassá-la, desta maneira encontrando a sua expressão na vida, sofrimentos e morte de Deus, condições da sua possível conciliação com o mundo e a humanidade pelos quais se sacrificou. Por outro lado, adotando o ponto de vista da humanidade, devemos examinar aquele processo efetuado por ela, com vistas a realizar em si mesma esta conciliação e lhe conferir a eficácia. Entre estas duas fases negativas da morte e da sepultura em seu duplo aspecto sensível e espiritual vem intercalar-se o que constitui o verdadeiro centro daquele processo, ou seja, a felicidade afirmativa que vem a ser um dos objetos da arte romântica e religiosa.
Trataremos este assunto em três itens.
O primeiro será votado à história da Redenção de Cristo, às manifestações do espírito absoluto por intermédio do próprio Deus concebido em aspecto humano, em sua existência real no mundo finito e com suas condições concretas, e que utiliza essa existência para revelar, aos homens e ao mundo, o Absoluto.
Na segunda, vamos considerar o Amor em sua forma positiva, que é a do sentimento de união e conciliação entre humano e divino: a Sagrada Família, o Amor maternal de Maria, o Amor de Cristo e o Amor dos discípulos.
O terceiro tópico será dedicado à comunidade. Vamos demonstrar como o espírito de Deus está presente entre os homens, tanto conseqüente à conversão das almas e à supressão da parte natural e finita dos homens, como também em conseqüência da união entre o homem e Deus, do regresso da humanidade a Deus, regresso cujos principais fatores foram a penitência e o martírio.
1. A História da Redenção de Cristo
A aparição de Deus neste mundo realizou e certificou a conciliação do espírito consigo mesmo, a história absoluta, o advento da verdade. O conteúdo desta conciliação consiste na união da verdade absoluta e da subjetividade individual humana; todo homem é Deus e Deus é um homem individual. Daí se conclui que todo espírito humano em si é, de acordo com o seu conceito e a sua essência, um espírito verdadeiro; e todo sujeito individual tem a vocação infinita de ser um fim a serviço de Deus e de permanecer unido a Deus. Daí também resulta a necessidade de transformar este conceito em realidade, que é relativamente um simples em si, ou seja, a necessidade de colocar a união com Deus como objetivo da existência humana e atingir esse fim. Uma vez alcançado este fim, o ser humano torna-se um espírito livre e independente. Entretanto isto só é possível quando esta união é concebida como fato primitivo, como a base eterna da natureza divina e humana. Ao mesmo tempo, este fim é o começo absoluto; com efeito ele é apresentado pela consciência religiosa dos românticos, para os quais o próprio Deus se tornou homem e carne, revelou-se como sujeito individual, de tal modo que a conciliação procurada, em lugar de limitar-se a uma simples abstração conhecida apenas através do seu conceito, encontra sua realização objetiva quando se oferece à percepção sensível na forma de um indivíduo humano que realmente existiu. Esta individualidade constitui o momento mais importante porque revela a cada ser humano que a sua conciliação com Deus não é uma possibilidade apenas, mas uma realidade que só depende da vontade que cada um tenha de efetivá-la. Porém considerando que a unidade, como conciliação espiritual de momentos opostos, não é resultado de uma aproximação imediata apenas, o processo através do qual a consciência torna-se de verdade espírito tem de se efetuar em cada sujeito como história sua. Conforme já mostramos, ela é a história do homem individual que se despe de sua individualidade carnal e espiritual, isto é, que sofre e morre, mas que faz isto indo além dos sofrimentos e da morte, ressuscitando como Deus em auréola de glória, como espírito real que, se ainda tem uma existência individual enquanto sujeito determinado, é na realidade e em essência Deus e espírito, no coração da comunidade a que pertence.
1a. Superfluidade Aparente da Alma
Esta história constitui o assunto principal da arte religiosa romântica, assunto diante do qual a arte, enquanto arte pura, de certo modo constitui superficialidade. É o que está na base desta história, é uma certeza interna, o sentimento e a idéia de uma verdade eterna, a fé que em si mesma possui a prova desta verdade e que assim passa a fazer parte do sujeito, carne da sua carne, alma da sua alma. A fé que atinge sua plena evolução nos dá certeza imediata de que a representação, a idéia dos momentos dessa história basta para nos outorgar a consciência dessa mesma verdade. Entretanto se é da consciência da verdade que se trata, a beleza da expressão e da representação exterior se torna coisa secundária e indiferente, porque a verdade existe para a consciência, até mesmo fora e independentemente da arte.
1b. A Intervenção Necessária da Arte
Por outro lado, o conteúdo religioso da arte possui um aspecto que não apenas o torna acessível à arte mas também o impõe como necessário. Conforme já observamos diversas vezes, a concepção religiosa da arte romântica implica um conteúdo de tal natureza que o antropomorfismo nele se encontra levado ao extremo, pois este conteúdo incide antes de tudo sobre a fusão do absoluto e do divino com a realmente perceptível humana subjetividade, de manifestação exterior e corpórea, apesar do Divino só poder se exprimir em forma de individualidade sujeita a todas as insuficiências naturais e à finitude das manifestações individuais. Neste aspecto, a arte oferece à consciência intuitiva a manifestação de Deus numa figura individual e com presença concreta, na forma de imagem concreta que reproduz, em todas as minúcias exteriores, eventos que se referem somente ao nascimento de Cristo, à sua vida e aos seus sofrimentos, à sua morte, ressurreição e transfiguração, de tal modo que só graças à arte a evanescente manifestação real de Deus adquire uma percepção renovada sem cessar.
1c. Particularidade Acidental da Manifestação Exterior
Em tudo que se refere à manifestação exterior, deve ser dada ênfase ao fato de ser Deus um sujeito individual, excluso de todos os demais, e Ele representa não apenas a união do divino com o humano, mas também a subjetividade individual nos traços de tal homem determinado. Assim a arte é invadida por todos os acidentais e particulares do mundo exterior, dos quais a beleza do ideal clássico alcançou libertar-se. Aquilo que o livre conceito do belo havia afastado de si por lhe ser impróprio, o que não possui relação com o ideal, é agora recebido como pertencendo necessariamente ao conteúdo, e como tal se tornando perceptível. Se a pessoa de Cristo foi muitas vezes escolhida como assunto da arte, os pintores que pretenderam tornar Cristo um ideal, no sentido clássico da palavra, seguiram um caminho errado. Nas muitas cabeças de Cristo bem se vê serenidade, seriedade, dignidade; porém isto não é suficiente, pois se por um lado Cristo deve ser representado como personificação da interioridade e da espiritualidade em geral, por outro Ele tem de possuir uma personalidade subjetiva e uma individualidade que também são incompatíveis com a representação sensível da santidade na forma humana. Nada existe de mais difícil do que reunir estes dois pólos: forma e expressão; e os pintores acabaram por se embaraçar, quando quiseram se afastar da representação tradicional. As cabeças de Cristo devem ter uma expressão profunda e séria, porém os traços e a forma do rosto não podem possuir nem a beleza ideal, nem participar do vulgar e do feio, nem elevar-se ao sublime.
A melhor forma exterior é a que se coloca a meio caminho entre a particularidade natural e a beleza natural. Esse meio temo conveniente é difícil de encontrar, e para isso podem intervir de modo eficiente o engenho, a inteligência e o espírito absoluto do artista. De maneira geral, e abstraindo do conteúdo que é domínio da fé, as representações que se referem a tais aspectos dependem, mais do que as representações dos aspectos do ideal clássico, do saber e do executar subjetivo do artista. Na arte clássica, o espiritual e o divino representam-se através de formas corporais, do organismo e sua configuração, formas que são o principal interesse após sofrer as modificações que as afastam do vulgar e do finito. Na arte romântica, a figura permanece tal como é nas circunstâncias vulgares, e as formas são consideradas indiferentes até certo ponto, como particularidades que não desempenham papel essencial, podendo ser tratadas com toda a liberdade. Portanto o interesse primordial reside, por um lado, no modo como o artista consegue, apesar de tudo, fazer dos materiais vulgares e conhecidos um meio para exprimir a profundidade e o espiritual; por outro lado, ele reside nos meios e processos técnicos que o artista utiliza para dar às suas figuras uma vida espiritual que nos permita apreender a pura espiritualidade pela intuição sensível.
O conteúdo encerra, além disso, a história absoluta que se extrai do próprio conceito do espírito e que, no aspecto objetivo, apresenta o retorno da individualidade carnal e espiritual à sua essência e universalidade. É que a conciliação da subjetividade individual e de Deus não se apresenta no aspecto de harmonia imediata mas na realização desta harmonia após uma passagem de sofrimentos infinitos, à custa de renúncias, sacrifícios, da abolição de todos os elementos sensíveis, finitos e subjetivos. Cruzam-se finito e infinito aqui em nó indissolúvel, e somente à luz da gravidade e da profundidade da oposição que se tenta diluir, pode-se ter uma idéia da verdadeira profundidade da conciliação, bem como da força da mediação. Portanto é possível dizer que toda acentuação e dissonância com origem nos sofrimentos, martírios e experiências dolorosas integram a mesma natureza do espírito, cuja satisfação absoluta fornece à arte um pedaço do seu conteúdo.
Este processo do espírito, considerado em si e para si, constitui a essência, o conceito do espírito em geral, destinando-se a representar, para a consciência, a história geral que tem de ser desenvolvida em cada consciência individual. Da multiplicidade de consciências individuais é que se constitui precisamente a realidade do espírito, ou, melhor dizendo, esta multiplicidade constitui a prova da sua existência. Ora, sendo seu momento essencial a realização do espírito do indivíduo, sendo esse o principal modo de manifestação do espírito, esta história geral só pode se apresentar com o aspecto de uma história individual, da história do nascimento de um indivíduo, seus sofrimentos, sua morte, sua ressurreição, na qual se conserva, apesar desse transporte individual, o significado da história do espírito absoluto e universal.
O oposto dessa vida de Deus ocorre quando o espírito perde sua existência individual, deixando de ser tal homem determinado: esse reverso é representado pela história da paixão, pelos sofrimentos na cruz, pelo calvário do espírito, pelo suplício da morte. Portanto estamos face a um conteúdo essencialmente incompatível com o ideal dos clássicos, um conteúdo que serve o mínimo possível à representação desse ideal, pois a manifestação exterior e carnal, a existência imediata, revela-se tal que o indivíduo perante ela adota uma atitude negativa, entre seus sofrimentos, a qual lhe permite, sacrificando o sensível e a individualidade subjetiva, ascender à verdade e ao céu. O corpo terrestre e a frágil natureza estão, na verdade, por assim dizer sublimados e santificados, por ser o próprio Deus que se manifesta neles; entretanto este corpo e esta natureza, por outro lado afirmam-se, enquanto humanos, como objetos de negação e só através do sofrimento se manifestam, enquanto no ideal clássico, o puramente humano mantém uma unidade harmoniosa com o substancial e o espiritual, que nada consegue perturbar. O Cristo torturado, com a coroa de espinhos, arrastando a sua cruz até o calvário, pregado nela, morre lenta e dolorosamente, uma morte de mártir; esse Cristo não pode ser representado nas formas da beleza grega; é a atmosfera de santidade que envolve essas situações e as torna belas, é sua profundidade interior, o grau infinito do sofrimento suportado com divina serenidade, onde a eternidade espiritual está presente.
Amigos e inimigos se colocam ao redor desta figura central. Os amigos não são ideais tampouco, mas são, de acordo com seu conceito, indivíduos vulgares, homens particulares que a força espiritual eleva para Cristo; e os inimigos, assumindo uma atitude oposta a Deus, irão condenar Cristo, martirizá-lo, crucificá-lo, e por isso representam-se como animados por uma perversidade que se traduz exteriormente pela feiúra e pelo grosseiro, e a barbárie, e por rostos deformados e odiosos. O não-belo, em todos os aspectos, sendo o contrário do que caracteriza a arte clássica, aqui surge como um momento necessário.
A morte contudo só pode ser considerada como estado transitório na natureza divina, como uma fase do movimento do espírito para a conciliação consigo mesmo, para a integração do humano com o divino, do universal com a subjetividade aparente. É esta afirmação que deve ser representada positivamente, pois ela constitui a base e a exigência primitiva. Ascensão e ressurreição, na história de Cristo, são os assuntos mais favoráveis para a representação artística. Podemos ainda acrescentar, a estes, os que se referem aos momentos em que Cristo ensina. Entretanto aqui as artes plásticas vão de encontro a grandes dificuldades, pois sua missão é dupla: por um lado, devem representar o espiritual como tal, na sua interioridade profunda; por outro lado, o espírito absoluto, infinito, unido intimamente à subjetividade e elevado acima da existência imediata, nem por isso deve deixar de possuir, no corpóreo e exterior, a completa expressão de sua infinitude e interioridade.
2. O Amor Religioso
O espírito como tal, o espírito considerado em si e para si, não poderá constituir objeto direto da arte. Sua conciliação suprema e real consigo mesmo só pode ser uma conciliação puramente espiritual, que em virtude do seu caráter puramente ideal, não se presta à expressão artística, porque a verdade absoluta é superior à aparência criada pela beleza e não consegue separar-se do sensível e fenomênico. Por isso, se a arte quiser dar ao espírito, em sua conciliação afirmativa, uma existência que não apenas o mostre como pura idéia, objeto de percepção puramente ideal, mas o torne alcançável também pela percepção sensível, pela intuição e contemplação, só conseguirá fazê-lo naquela forma única que satisfaça a exigência dupla da espiritualidade e da exteriorização pela arte: esta forma é a que exprime a interioridade do espírito, os movimentos da alma e a vida do sentimento. Essa interioridade, que é a única coisa correspondente ao conceito do espírito livre e que basta a si mesmo, é o Amor.
2a. O Conceito do Absoluto como Amor
O conteúdo do Amor implica os momentos que já definimos e que constituem o conceito fundamental do espírito absoluto: o regresso tranqüilo a si mesmo a partir do que é outrem. Tal outrem, no qual o espírito pode persistir sem deixar de ser espírito, deve por sua vez participar no espiritual, ser uma personalidade espiritual. A verdadeira essência do Amor é o suprimir da consciência de si mesmo, o esquecimento em um outro eu com objetivo de se encontrar novamente, entrar de novo em posse de si mesmo, neste esquecimento e supressão. Esta mediação do espírito consigo mesmo e sua elevação à totalidade constituem o Absoluto, não com sentido de uma singular subjetividade e, por isso mesmo, finita; não no encontrar-se e se realizar em outro sujeito finito e confundir-se com ele, mas no sentido de que é o Absoluto, o conteúdo da subjetividade, que se mediatiza consigo mesmo num Outro; é o espírito que só se satisfaz quando chega a saber-se e a se querer como Absoluto em outro espírito.
2b. A Alma e os Sentimentos
Tal conteúdo pode se caracterizar, assim como o Amor, de modo mais preciso, dizendo-se que é a forma do sentimento concentrado, do sentimento que reflete sobre si mesmo nas profundezas da alma e se manifesta como expressão condensada destas profundezas, em vez de tornar explícita toda a sua riqueza e torná-la perceptível em todos os detalhes. Daí resulta que o espírito deixa de reagir contra a representação artística como o seria na sua pura universalidade espiritual e, graças ao sentimento tornado subjetivo, se torna alcançável pela arte. Com efeito, se por uma lado, estando o espírito mergulhado nas profundidades da alma, tentar trazê-lo à claridade da luz por meio da arte seria alterar sua natureza, por outro esta mesma forma implica um elemento que a arte pode captar facilmente. A alma, o coração, o sentimento, por mais interiores que sejam, na verdade estão ligados ao que é sensível e corpóreo, pois estes lhe permitem a manifestação exterior; e são meios para realizar tal manifestação., os olhos, traços do rosto ou ainda outros menos materiais, como o som e a palavra, que servem para exprimir a vida mais íntima.
2c. O Amor, Ideal Romântico
Se o conceito do ideal consiste na conciliação da interioridade com sua realidade exterior, podemos definir o Amor como o ideal da arte romântica, do ponto de vista religioso. Ele é a beleza espiritual. O ideal clássico também continha a mediação e conciliação do espírito com seu outro. entretanto nele o outro era o "fora" impregnado de espírito, o organismo carnal do espírito. No Amor, pelo contrário, o outro das coisas espirituais não é o natural; sim, é uma consciência espiritual, um outro sujeito no qual e pelo qual o espírito realiza-se como se não saísse de si mesmo, como se estivesse em seu elemento próprio. Tal satisfação afirmativa, e essa realidade em que ele encontra seu repouso e sente-se feliz, conferem beleza ideal ao Amor, mas beleza que é espiritual também, passível de se exprimir tão-só como interioridade, como manifestação da vida anímica mais profunda. O espírito que se sabe presente, que se sabe como espírito diretamente, aquele cuja existência compõe-se de elementos espirituais e se desenvolve no âmbito espiritual, esse é a interioridade por excelência, e a interioridade do Amor, mais exatamente.
Deus é Amor. Sua mais profunda essência deve ser concebida como encarnada em Cristo e representada de modo a se prestar à atividade artística. Entretanto Cristo encarna o Amor Divino, que tem por objeto, por um lado, o mesmo Deus em sua essência imaterial e invisível, e por outro lado a humanidade que deve ser redimida. Assim, Cristo não pode representar a integração de um sujeito com outro sujeito determinado, pois ele encarna a idéia em si do Amor, na sua universalidade, o Absoluto, o espírito da verdade nos elementos e na forma do sentimento.
A universalização da manifestação do Amor é resultado da universalidade do seu objeto; com efeito, a concentração subjetiva do coração e da alma cessa de desempenhar um papel principal, não obstante ser entre os gregos a idéia genérica e não o aspecto subjetivo da forma e do sentimento individuais, o que ocupa lugar principal (é verdade que tinham intenção diferente) nos mitos que se referiam ao antigo Eros Titânico e a Vênus Urânia. Só quando Cristo é também concebido, nas representações românticas, em certa medida como sujeito individual refletido sobre si mesmo, a expressão do Amor adquire a forma da interioridade subjetiva, baseada, é certo, no aspecto universal de seu conteúdo.
Entretanto o assunto mais acessível à arte neste domínio é o Amor de Maria, o Amor materno. A imaginação religiosa do romantismo trabalhou sobre este assunto com maior êxito e felicidade. Esse Amor é real e humano por excelência, mas também é espiritual, desinteressado, desprovido de qualquer desejo, livre de qualquer elemento sensível, mas presente apesar disso tudo. É a interioridade santificada, gozando de satisfação absoluta. É um Amor sem exigências, mas que não é a amizade, pois mesmo sendo a mais profunda, a amizade tem sempre um objetivo determinado, sempre existe para um fim comum que é seu fundamento primordial. O Amor maternal existe por outro lado fora de toda a comunidade de fins e interesses; ele tem uma base natural e se mantém através de liames naturais. Entretanto no caso de Maria o Amor materno não está reduzido a esses limites puramente naturais. Na criança que carregou em seu ventre, gerada em suas dores, ela encontra a si mesma; nesta criança e por ela, Maria toma consciência de si mesma; e esta criança que é sangue do seu sangue, mesmo se colocando tão acima dela não deixa de lhe pertencer, de ser um objeto no qual ela esquece a si mesma e se reconhece. A natural interioridade do Amor materno espiritualiza-se no filho e na mãe, porém esta espiritualidade maravilhosa e imperceptível é penetrada por afinidades naturais e sentimentos humanos. Esta é a santidade do Amor materno; entretanto primitivamente, tal santidade é só a de uma única mãe. Com certeza este Amor não é livre de dor, de sofrimento que entretanto é provocado pela sorte do filho que é martirizado, expira e morre, não, como veremos adiante, pelo calvário e pela injustiça exteriormente infligidas, nem pelas lutas infinitas contra o pecado, nem ainda pelas torturas cujo autor é ele mesmo. Essa interioridade é o que constitui a beleza espiritual, o ideal, a identificação do homem com Deus, com o espírito, com a verdade; é um esquecimento de si mesmo, renúncia absoluta a si mesmo, porém olvido e renúncia que conduzem ao reencontro e reconhecimento de si no objeto do Amor de onde promana uma satisfação infinita.
Se o Amor materno, imagem por assim dizer do espírito, substitui o próprio espirito de modo tão belo na arte romântica, é porque o espírito, na forma do sentimento, pode ser apreendido pela arte, e porque o sentimento da união individual com Deus só existe, na forma mais primitiva, mais viva, mais real, no Amor materno da Virgem. Este Amor participará necessariamente da arte, pois lhe faltaria um ideal se não o fizesse, lhe faltaria serenidade afirmativa, satisfação que a felicidade suprema outorga. Houve um tempo em que o Amor maternal da Virgem era considerado e representado como o mais sagrado e mais nobre de todos os sentimentos. Porém quando o espírito toma consciência de si, tal como ele existe no seu próprio elemento, separado da base natural constituída pelo sentimento, na isolada mediação desta base está o meio de atingir a verdade. É por isso que a mediação interior do espírito se tornou, no protestantismo, a verdade suprema, em oposição ao culto de Maria que inspira a arte e a fé.
Por último, a serenidade afirmativa se manifesta como sentimento entre os discípulos de Cristo, entre as mulheres e os amigos que o seguem. São quase todos caracteres que, embora não tendo sofrido as torturas e sofrimentos da conversão, percorreram todas as fases mais difíceis da idéia do cristianismo, assimilando-a, e a ela se ligaram com todas as suas forças, graças à amizade, à doutrinação, ao exemplo de Cristo. Falta-lhes a união e a interioridade que se realizam no Amor maternal, e o elemento de ligação entre eles é a presença de Cristo, o hábito da vida comum, a ação direta do espírito.
3. O Espírito e a Comunidade Humana
Falta considerar um último ponto, ligado ao que já dissemos sobre a história de Cristo. A existência imediata de Cristo, concebido como tal homem preciso, sendo ao mesmo tempo Deus, ou seja, como Deus que assumiu a forma de um homem preciso e determinado, essa existência, dizemos nós, aparece como exorbitante do real. Em outros termos: a manifestação humana de Deus é de tal natureza que impõe a convicção de que a verdadeira divina realidade não reside sua presença ou existência imediata, mas no espírito. Só o espírito confere realidade ao Absoluto concebido como subjetividade infinita. Esta existência absoluta, enquanto universalidade ideal e subjetiva a um só tempo, não é apenas a existência de uma determinada individualidade que, no transcorrer de sua história, realizou a conciliação da subjetividade humana e divina, mas se alargou e ampliou para vir a ser a da consciência humana conciliada com Deus, a da Humanidade em geral que é composta de inúmeros indivíduos. Contudo, considerado em si mesmo como personalidade individual, o homem nada possui ainda de divino essencialmente, pelo contrário, ele é puramente humano e finito, e só realiza sua conciliação com Deus na medida em que apresenta o que é humano como um elemento negativo e, desta maneira, o elimina. Por meio desta libertação de sua frágil finitude, a humanidade revela-se como emanação do espírito absoluto que passa a ser espírito da comunidade em que a união do humano com o divino se realiza no coração da comunidade humana, como mediação real do que, segundo o conceito do espírito, de acordo com sua significação original, deve estar indissoluvelmente unido.
As principais formas que a arte romântica assume, na expressão deste novo conteúdo, são as seguintes:Divino
O sujeito individual que vive em pecado, em luta contra as realidades imediatas e as misérias da existência finita, por estar afastado de Deus, foi predestinado pela eternidade a realizar a conciliação consigo mesmo e com Deus. Porém na história da redenção de Cristo, foi a negação da individualidade imediata que se revelou como o momento essencial; por isto só a renúncia à sua parte natural e à sua personalidade finita podem conduzir o sujeito individual à elevação até a liberdade e à paz em Deus.
Por três meios essa vitória sobre a finitude pode ser alcançada:Divino
Em primeiro lugar, pela repetição exterior da história da Paixão que nós acabamos sentindo como sofrimento real e corporal: o martírio.
Em segundo lugar, pela conversão interior pura, pela mediação interna, realizada através do arrependimento, do remorso e da penitência.
Em terceiro lugar, a manifestação do Divino na realidade do mundo exterior é concebida como supressão do curso natural dos acontecimentos e da forma normal das coisas; é a crença nos milagres em que o poder e a presença do Divino se revela.
3a. Os Mártires
A primeira maneira do espírito manifestar sua presença no sujeito humano é aquela em que o homem reproduz em si mesmo a história da paixão, fazendo de si mesmo um protagonista da história eterna de Deus. Isto quer significar o desaparecimento da conciliação afirmativa direta, porque o homem deve conquistá-la na vitória sobre sua finitude. Desta forma o sentimento da indignidade humana é aumentado e intensificado, e a única e superior missão do homem agora é a de vencer essa indignidade, libertar-se deste sofrimento humilhante.
O meio que permite atingir esse fim consiste em suportar os sofrimentos mais cruéis com estoicismo, em impor a si próprio todas as renúncias, sacrifícios, privações; portanto em infligir a si mesmo dores, martírios, torturas, visando assegurar o triunfo do espírito em si mesmo, realizar a união com Deus, criar um céu feito de paz e felicidade. Esse aspecto negativo da dor no martírio se torna um fim em si, e o grau da transfiguração é medido pelo grau de atrocidades que o homem suportou e dos sofrimentos que sentiu. No homem que ainda não desenvolveu por completo sua interioridade, a primeira coisa que tem de ser separada deste mundo e santificada é a sua existência natural, a sua vida, a satisfação das suas exigências mais urgentes e vitais. O que mais contribui para o afastamento da vida com suas exigências e satisfações, para o habituar-se à dor e ao sofrimento, que por fim são vistos como fonte de alegrias, são os martírios corporais, infligidos por inimigos e perseguidores da sua fé, cheios de ódio e de rancor, ou então inventados pelo próprio homem. Em ambos os casos, o homem animado pelo fanatismo do sofrimento aceita o que lhe ocorre não como injustiça, mas como bênção, como a única maneira de vencer a dura impiedade da carne, do coração e da alma, conciliando-se desta maneira com Deus.
Entretanto só ao preço de humilhações e sevícias, de violências contra a carne é que se obtém a conversão interior nas situações que abordamos aqui, e isso torna evidente que a questão da beleza não se coloca para tais violências, que se tornam um assunto muito perigoso para a arte. Os indivíduos devem ser representados, por um lado, em medida maior do que na história da Paixão de Cristo, como indivíduos reais estigmatizados pela existência temporal, mergulhados na finitude e na naturalidade; por outro lado, as torturas e terríveis atrocidades, as mutilações e deslocamentos de membros, os martírios do corpo, os cadafalsos, as decapitações, o suplício do fogo lento, do azeite fervente, da roda, a morte na fogueira etc., por si mesmos constituem processos feios, repugnantes, de tal modo estranhos à beleza que não podem ser assunto para qualquer forma de arte sadia. O artista com certeza pode realizar uma execução perfeita de assunto desse gênero, mas esta será uma perfeição apenas referida ao subjetivo, que, por mais artístico que seja, se esforçará em vão para atingir a concordância absoluta do sujeito consigo mesmo.
Por este motivo, a representação deste processo negativo ainda precisa de um outro elemento que ultrapassa essas torturas do corpo e da alma, dirigindo-se à conciliação afirmativa. É a conciliação do espírito consigo mesmo, o fim e resultado das atrocidades sofridas e suportadas. Os mártires são, com relação a isto, os guardiães da divindade, a qual eles defendem da brutalidade da força exterior e da barbárie da descrença; eles suportam a dor e aceitam a morte para ganhar o reino dos céus, e a força, coragem e perseverança que os anima deve se manifestar por sinais evidentes. Entretanto, apesar da sua beleza espiritual, essa interioridade da fé e do amor não prova a existência de uma saúde espiritual difundida através do corpo; sim, ela constitui uma interioridade nascida da dor e que, até sua transfiguração, embebe-se ainda numa atmosfera de sofrimento que transmite à sua representação artística. Estes assuntos da piedade foram tratados principalmente pela pintura. Sua missão maior é exprimir a felicidade que os mártires encontram nas mutilações da carne, mostrando, nos traços da fisionomia, no olhar, etc., a resignação, a vitória sobre a dor, a alegria dos mártires que possuem o sentimento da presença espiritual. Pelo contrário a escultura, menos adequada para a representação da interioridade que se concentra nessa forma espiritualizada, só poderá exprimir os sentimentos do mártir mostrando sua causa material, isto é, reproduzindo as mutilações, as deformações e fissuras do organismo corporal.
O mártir não pretende– com esta renúncia e olvido de si mesmo, com esta resignação–, somente abstrair-se da existência natural e da finitude imediata, mas quer principalmente elevar sua alma para o céu até abolir em si tudo o que existe de propriamente humano, tudo que o mantém preso ao mundo, embora os laços que o tornam solidário com o mundo sejam puramente morais e racionais. Quando o espírito, ao se esforçar por fazer viva em si a idéia da conversão, sente-se ainda mais afastado de seu objetivo, mais bárbaros e abstratos são os meios que a força concentrada da piedade o obrigará a empregar na luta contra tudo o que, por sua natureza finita, se opõe à finitude simples em si da religiosidade contra todos os sentimentos humanos, as inclinações morais, exigências, deveres, solicitações do coração. É que a vida moral no coração da família, os laços da amizade, do sangue e do amor, as obrigações para com o Estado ou impostas pela profissão, isso tudo faz parte das coisas deste mundo; e estas, enquanto não estiverem penetradas pelo Absoluto da fé, enquanto não forem absorvidas pelo Absoluto, aparecem à abstrata interioridade da alma crente como indignas de ser admitidas na esfera dos sentimentos e das obrigações, como coisas perniciosas, inúteis e hostis à piedade.
O organismo moral do mundo humano é considerado indigno de atenção porque seus aspectos e deveres ainda não são reconhecidos como anéis necessários e legítimos da cadeia de uma realidade racional em si, que em nada deve atingir o estado de independência isolada mas em que tudo deve, no entanto, ser apreciado como um momento significativo que não convém sacrificar. Vista sob esse aspecto, a conciliação religiosa continua a ser abstrata e a existir no coração simples em si como fé intensa mas sem extensão; é a piedade do coração voltado para si mesmo, que ainda não atingiu a certeza geral e completa, uma segurança racional e compreensiva. Quando uma alma dotada de tal força persevera nessa atitude negativa perante o mundo e se isola, quebrando todos os laços humanos com violência, dá com isso tamanha prova de brutalidade e de bárbara tendência para a abstração, que somos obrigados a nos afastar dela. Do ponto de vista compatível com nossa atual consciência, podemos honrar e estimar esse tipo de religiosidade nas representações alusivas a ele, mas quando a piedade alcança tais proporções que chega a maldizer e renegar o que é moral e racional, somos obrigados a recusar nossa simpatia a tal fanatismo pela santidade e denunciar como imoral e contrária à verdadeira religiosidade a renúncia que considera abominável, que destrói e pisa naquilo que consideramos legítimo e sagrado.
As lendas, histórias e poemas sobre este assunto são vários. Existe por exemplo a história de um homem que, cheio de amor pela esposa e pela família, abandona o lar e cai numa vida errante e um dia regressa como mendigo, mas sem se dar a conhecer; dão-lhe esmola e uma cama no vão da escada; nesse estado ele vive durante vinte anos em sua própria casa, assistindo ao desgosto da família que chora sua ausência, e só revela sua identidade no momento da morte. Esse fanatismo monstruosamente egoísta nos é apresentado como exemplo de santidade. Tamanha persistência na renúncia lembra-nos o requinte de sofrimentos que os hindus se infligem com intuito religioso. Mas a tolerância do hindu apresenta um caráter diferente. Enquanto ele procura o esquecimento mergulhando na profunda noite da consciência, o objetivo do mártir cristão é pelo contrário a dor e a consciência da dor, fim que procura alcançar com tanto maior segurança quanto mais estiverem seus sentimentos ligados à consciência do valor das coisas que rejeita e do seu amor por essas coisas, bem como a consciência dos esforços que faz para prolongar sua renúncia. Quanto mais rico e nobre for o coração que se impõe estas provas, e quanto mais severamente se castigar, com mais dureza sentirá a ausência de conciliação que o expõe às mais terríveis convulsões e aos mais furiosos descarnamentos. Uma alma assim, em nossa concepção, que só quer a si mesma em um mundo inteligível e abomina os deveres e obrigações do mundo real, com os fins que almeja e que são em evidência legítimos, uma alma assim, embora estando presa na engrenagem deste mundo, nas exigências morais que considera repugnantes por serem contrárias a seu destino absoluto, jamais poderá, com os seus sofrimentos montados artificialmente, dar-nos impressão diversa da que nos transmite uma alma perdida, desencaminhada, incapaz de inspirar piedade e indigna de servir como exemplo. Falta a tais manifestações uma finalidade que seja válida para todos, um conteúdo que seja compreensível para todos, pois o que se realiza nelas é puramente subjetivo, o fim a alcançar é o de um único indivíduo que nada mais quer além de salvar sua própria alma, sua felicidade egoísta. Mas a salvação ou a felicidade deste ou daquele indivíduo não podem interessar a um grande número de pessoas.
3b. O Arrependimento e a Conversão Interiores
Um modo de representação oposto ao que acabamos de descrever contém a mesma esfera da religiosidade; ele consiste em abstrair dos sofrimentos corporais exteriores bem como em adotar atitude negativa face ao conteúdo legítimo da realidade mundana; este modo de representação se vê colocado, pelo conteúdo e pela forma, em um terreno mais próximo da arte ideal. Agora trata-se apenas das dores espirituais, de conversão da alma. Assim nos são poupadas, por um lado, as atrocidades e horrores das mutilações do corpo; por outro lado, a religiosidade bárbara da alma já não se ergue contra a humanidade moral ou a moral humana visando, no abstrato de uma satisfação puramente intelectual, encerrar-se na dor de uma renúncia absoluta e esmagar aos pés toda espécie de prazer; aquilo contra o que a alma se opõe é o que existe de verdadeiramente criminoso, mau e condenável na natureza humana. É a alma movida por aquela certeza elevada de que a fé, impulso que transporta o espírito para Deus, é capaz de anular um ato realizado, de torná-lo estranho ao sujeito, seja este ato pecado ou crime, e apagá-lo para sempre. Evasão do mal, do negativo absoluto inerente ao sujeito, evasão conseqüente ao desdém que sentem vontade e espírito por si mesmos por causa do mal de que são culpados, regresso ao positivo agora aceito como única realidade oposta à anterior vida pecaminosa: assim manifesta-se a potência verdadeiramente infinita do Amor religioso, da realidade e da presença do espírito absoluto no sujeito. Perseverança e força do espírito subjetivo que, assistido pelo Deus a quem se dirige, triunfa do mal e, enquanto se beneficia daquela assistência, sente-se unido a Deus, o que para ele é uma feliz fonte de alegria.
Se ele não deixa efetivamente de conceber Deus como um 'Outro' Absoluto perante o mundo profano mergulhado no pecado, também não deixa o sujeito de se sentir idêntico a esse infinito e à certeza de possuir uma consciência que participa da consciência divina. Portanto, trata-se de uma conversão puramente interior, que por isso é mais domínio da religião do que da arte; considerando porém que tal conversão realiza-se justo na alma que possui o poder de dar a conhecer, por sinais exteriores, a vida que se agita nela mesma, a arte plástica, a pintura, adquire com isso a possibilidade e o direito de procurar seus temas nas histórias de conversões. Porém, querendo representarem-se tais histórias em todos os seus pormenores, mais uma vez se chegaria a resultados incompatíveis com a beleza, pois muitos desses pormenores têm caráter criminoso e repugnante. Os resultados mais satisfatórios e mais adequados ao conceito do belo, a pintura os alcançará caso apenas represente a conversão e o fazer numa só imagem, sem outros detalhes que pertencem ao que é repreensível e condenável. Assim é a imagem de Maria Madalena, que se deve incluir entre os mais belos assuntos deste gênero, e que foi tratada de maneira particularmente notável e artística pelos pintores italianos. Exterior e interiormente, Maria Madalena aparece nestes quadros como a bela pecadora, tão atraente no pecado como na conversão. Entretanto seu pecado e santidade nunca são levados muito a sério; muito lhe é perdoado porque ela amou muito; ela recebe o perdão por causa de seu amor e sua beleza; seu aspecto comovente consiste no arrependimento que sente por ter amado tanto, nas lágrimas de dor que verte e que são testemunho da bela sensibilidade da sua alma. Seu erro não foi o de ter amado muito; mas é um erro comovente e belo e que a faz julgar-se uma pecadora porque sua beleza, onde se reflete uma rica sensibilidade, mostra que só nobremente e do mais profundo da alma ela poderia ter amado.
3c. Milagres e Lendas
O último item, ligado aos dois anteriores e confundindo-se com eles, refere-se aos milagres, que têm um dos lugares mais importantes na vida religiosa. Pode-se definir o milagre como a história da conversão de uma existência natural imediata. A realidade é concebida como algo comum, acidental; é uma finitude que se desagrega, se transforma quando é tocada pelo Divino que intervém diretamente no exterior e particular, e se interrompeu que por convenção chamou-se o curso natural das coisas. A finalidade principal de muitas lendas consiste em representar a maneira da alma, nas suas manifestações exteriores, comportar-se em relação a esses fenômenos que transpõem os quadros da natureza e nos quais acredita ver-se na presença de Deus. Na verdade, porém, o Divino não pode interferir na natureza senão como razão, na forma das leis imutáveis que Deus impõe à natureza, e não é, portanto, através de fenômenos e eventos isolados, contrários às leis naturais, que o Divino pode se manifestar. Só as leis eternas e as determinações racionais interferem na natureza. É assim que as lendas evidenciam quase sempre um aspecto absurdo, artificial e sem o menor sentido, e seu objetivo é apenas fazer acreditar que a presença de Deus está em coisas e circunstâncias incompatíveis com as exigências da razão, portanto falsas e sem nada a ver com o Divino. Emoção, piedade, a conversão de que se ocupam tais narrativas podem oferecer decerto algum interesse, mas só como fatos e experiências interiores; mas querendo estabelecer, entre essas experiências interiores e os eventos exteriores uma relação tal que os primeiros aparentem ser efeitos dos últimas, será necessário que estes não constituam um desafio à razão e ao bom senso.
São estes os principais aspectos do conteúdo substancial que, no âmbito que até aqui nos ocupou, corresponde à natureza de Deus e ao processo pelo qual e no qual Deus se manifesta como espírito. Trata-se de um objeto absoluto que a arte não cria e não expressa pelos seus próprios meios, mas que recebe da religião e que trata com a consciência de que ele representa e exprime a verdade. É o conteúdo de uma alma crente, que é uma totalidade infinita por ela mesma, apesar de o "fora" permanecer mais ou menos exterior e indiferente a ela; não conseguindo realizar uma perfeita harmonia entre o fora e o dentro, esse conteúdo só pode fornecer à arte assuntos inadequados, difíceis e quase sempre até impossíveis de tratar em função das exigências da arte.
Capítulo 2
A CavalariaJá vimos que o conteúdo da fé e da arte é a subjetividade infinita, o Absoluto, o espírito de Deus que só existe em verdade, para ele mesmo, na consciência humana. Esta mística romântica, que busca a felicidade só no Absoluto, perdura como interioridade abstrata, pois se opõe ao mundo exterior e o recusa, em lugar de penetrá-lo e o assimilar. Por tal abstração, separa-se a fé da vida, da realidade concreta da existência humana, das positivas relações que ligam os homens entre si, e ao sentirem-se idênticos, os homens só se amam na fé e pela fé, no espírito da comunidade. Esse espírito é a fonte límpida que lhes reflete as imagens, sem que o homem precise olhar os outros homens cara-a-cara e olhos-nos-olhos, ou relacionar-se de maneira direta com eles, sem sentir, na sua forma concreta e viva, a unidade que promana do Amor, da confiança, da comunidade de fins e da convergência de realizações. Na sua abstrata interioridade religiosa, em suas esperanças e aspirações, o homem concebe a si mesmo como parte da vida no reino de Deus, da comunidade com a Igreja, e esta identificação com uma terceira potência ainda está enraizada demais em sua consciência para lhe permitir encontrar no saber e no querer dos demais o que ele mesmo é em seu ser concreto. O conteúdo religioso adquire assim, no seu conjunto, forma real, embora continue a ser uma realidade puramente interior que não ultrapassa os limites da representação, que se opõe à expressão da vida e não consegue satisfazer as exigências supremas da vida neste mundo terreno e real.
Mergulhada na sua beata felicidade, a alma também precisa abandonar o reino celeste, que constitui seu âmbito substancial, para regressar a si mesma, dar a si própria um conteúdo presente que seja o do sujeito enquanto sujeito, isto é, ela tem de transformar a interioridade, até então religiosa, em interioridade profana. É certo que Cristo disse: "Deves abandonar pai e mãe para me seguir"; e ainda: "O irmão odiará o irmão; vão te sacrificar e perseguir", etc. entretanto a partir do momento em que o Reino de Deus ganhou seu lugar no mundo, em que os interesses e objetivos humanos estão transfigurados e pai, mãe e filho reuniram-se na mesma comunidade, a partir desse momento o mundano também adquire o direito de se afirmar e impor. Chegando a este ponto, desaparece a atitude negativa da alma, até então exclusivamente religiosa em relação ao humano como tal, e o espírito se desenvolve, amplia-se para abranger tudo o que havia até então rejeitado e desprezado. O princípio fundamental continuará imutável, mas a subjetividade infinita incide sobre outra esfera do conteúdo. Esta alteração pode ser definida dizendo-se que a individualidade subjetiva torna-se livre como subjetividade, dispensando a mediação de Deus e alheia à conciliação com ele. Foi no transcorrer desta mediação, em que ela se despojara da sua finitude limitada e natural, que a subjetividade percorreu o caminho da negatividade, enquanto agora se afirma como sujeito livre na sua infinitude com certeza ainda formal, mas já exigindo que os outros ou ele mesmo o considerem como sujeito na infinitude. Nessa espécie de subjetividade reside agora toda a interioridade, justo onde até então só Deus habitara.
Com relação ao conteúdo que a alma humana agora possui, ele pode ser definido afirmando-se que o sujeito, nesta nova fase, está pleno de si mesmo, animado pelo sentimento da sua individualidade infinita, sem que este sentimento fique preso a qualquer conjunto de finalidades, de atos objetivos e substanciais. São três os sentimentos que, acima de todos os outros, assumem grau infinito no sujeito: Amor, Honra e Lealdade. Eles não são qualidades ou virtudes morais propriamente ditas, mas apenas forças da interioridade romântica do sujeito na plenitude do sofrimento de si mesmo. A independência pessoal que luta pela Honra não se manifesta como atos de coragem realizados pela comunidade ou visando adquirir uma reputação de honestidade e de retidão na vida pública e privada. Pelo contrário, trata-se de obrigar terceiros a reconhecerem a invulnerabilidade do sujeito individual. Assim também o Amor, situado no centro dessa esfera, é apenas a paixão acidental que sente um sujeito por outro, e nem quando a imaginação o amplia e aprofunda no trabalho interior, ele exprime os laços morais pressupostos no matrimônio e na família. A Lealdade, por outro lado, apresenta um caráter sem dúvida mais moral, no sentido de que não tem em vista somente um fim pessoal, mas de que sua missão é garantir algo mais elevado, de interesse geral, e de que ela está subordinada à vontade de um outro, um chefe; portanto a Lealdade implica renunciar ao egoísmo e à vontade autônoma do sujeito. Entretanto o sentimento da Lealdade não se inspira diretamente no interesse objetivo de uma comunidade que conquistou sua liberdade na organização do Estado, mas liga-se apenas à pessoa de um chefe, sendo a sua ação individual ou coletiva.
A reunião desses três sentimentos em suas várias combinações, abstraindo da possível intervenção de elementos religiosos, forma o conteúdo principal da cavalaria e constitui o momento necessário da passagem do princípio da interioridade religiosa para a vida espiritual no mundo profano, no qual a arte romântica encontra agora possibilidades de criar com independência, e fontes de beleza mais livres, por assim dizer. A arte ocupa agora o livre meio entre o conteúdo absoluto das representações religiosas imutáveis em si e as particularidades multiformes do mundo profano, limitado e finito. A poesia foi o que melhor soube utlizar este assunto, porque ela é mais capaz de exprimir a interioridade refletida sobre si mesma, com seus fins e variantes.
Como se trata de um material que o homem carrega em seu íntimo, e que se encontra no mundo puramente humano, seria possível concluir que a arte romântica, neste aspecto, coloca-se no mesmo âmbito da arte clássica e, na verdade, parece estar indicado que devemos fazer neste ponto uma comparação entre essas duas formas de arte.
Antes definimos a arte clássica como o ideal da humanidade verdadeira objetivamente, verdadeira em si. O conteúdo da arte clássica é de natureza substancial e implica um pathos moral. Nos poemas homéricos, nas tragédias de Sófocles e Ésquilo, trata-se de interesses concretos, de uma expressão rigorosamente exata de sentimentos, de uma eloqüência e execução conformes com a idéia principal da obra, e acima desse ciclo de heróis e figuras independentes, tocados de um pathos individual, há todo um ciclo de deuses que possuem subjetividade ainda mais pronunciada. Até onde a arte se torna mais subjetiva, como nos jogos infinitos da escultura, nos baixos-relevos, etc., nas elegias, nos epigramas e outras produções da poesia lírica em épocas posteriores, a forma de apresentar um assunto é determinada por ele mesmo, porque o assunto já possui em si mesmo uma forma objetiva. São imaginários personagens mas de perfil definido e firme: Vênus, Baco, as Musas. Ainda nos epigramas posteriores, objetos conhecidos, como por exemplo flores, reúnem-se em um ramalhete atado pelo sentimento. De uma reserva riquíssima em toda a espécie de coisas, escolhem-se objetos para todos os usos; poeta e artista são magos que os escolhem, reúnem, agrupam e animam.
Muito diferente é o que ocorre com a poesia romântica. Na medida em que se interessa pelas coisas desse mundo, e não apenas pela história sagrada, ela dá aos seus heróis virtudes e objetivos que não são as virtudes e fins do herói grego, cuja moralidade, na opinião dos primeiros cristãos, não passava duma coleção de vícios brilhantes. A moral grega é a de uma humanidade consciente de si mesma, que se orgulha do seu presente e cuja vontade se exerce, de acordo com o seu conceito, sobre um conteúdo bem delineado, num determinado meio, onde a liberdade está submetida a condições absolutas. Estas condições regulam o relacionamento entre pais e filhos, marido e mulher, cidadãos da Cidade Estado em sua liberdade realizada. Sendo alicerçado numa base natural, reconhecida e considerada como positiva e certa, este conteúdo objetivo relaciona-se ao desenvolvimento do espírito, e não pode corresponder à interioridade localizada da alma religiosa, que busca justo o contrário: destruir o que existe de natural no homem; e deve também exaltar as virtudes da humildade, renúncia à liberdade e confiança em si própria. Com seu rigor abstrato, as virtudes da piedade cristã aniquilam tudo que é profano e só vêem a liberdade do sujeito na negação do que ele possui de humano.
Entretanto a liberdade subjetiva que vimos abordando já não consiste na simples resignação ou no sacrifício de si; ela já quer afirmar a sua eficácia no mundo das coisas profanas. No entanto, ainda é a interioridade que fornece ao sujeito o material para a realização de suas tendências profanas. A poesia não tem perante si qualquer objetividade preexistente, ou mitologia, imagem, figura que possa utilizar, ou assunto que se ofereça à sua expressão. A poesia é perfeitamente livre, puramente criadora; é como uma ave que canta. Embora porém seja esta a subjetividade da alma profunda que tem uma nobre vontade, suas ações e as condições em que se realizam continuam a possuir caráter arbitrário e acidental, visto serem a liberdade e seus fins produto de uma reflexão desprovida, quanto ao conteúdo moral, de qualquer substância sólida. Por esta razão, entre os indivíduos não se encontra um pathos particular no sentido grego da palavra, isto é, no sentido de uma individualidade autônoma e viva, mas graus de heroísmo nas manifestações do amor e na defesa da honra, nas demonstrações da Lealdade, graus que dependem da qualidade da alma principalmente. O que existe de comum porém entre o herói clássico e o medieval é a coragem. Entretanto a coragem não é a mesma nem cumpre as mesmas funções em gregos e medievais. Para os heróis da Idade Média, a coragem não é natural, própria de indivíduos saudáveis em que a cultura ainda não enfraqueceu a força da vontade e do corpo que lhes é útil para defender fins objetivos, mas uma coragem originada no interior do espírito, ditada pela honra, pela cavalaria, uma coragem fantasiada, submetida aos caprichos da vontade aventureira e de combinações exteriores, aos impulsos de uma piedade mística, em suma, às decisões do sujeito que vê apenas a si mesmo.
Esta forma de arte romântica triunfou em dois hemisférios: no Ocidente, graças ao descenso do espírito em si mesmo; no Oriente, onde ocorreu a primeira expansão da consciência que tenta se libertar do finito. A poesia no Ocidente é produto da alma que se fechou em si mesma, centrada em si mesma e cujas tendências profanas estão sempre submetidas ao mundo superior da fé. No Oriente, são os árabes principalmente, os que de início aparecem como apenas um ponto, tendo adiante o deserto e o céu imensos, mas que se ampliam e expandem, até se confundirem com o mundo profano, sem abdicar porém da sua liberdade interior. É principalmente o Islã que, no Oriente, preparou o terreno por assim dizer, suprimindo quaisquer ideologias das coisas finitas e imaginárias, dando porém à alma a liberdade subjetiva que permite conciliar coração e espírito, afastados de qualquer figura objetiva de um deus, e viver, como um mendigo, na adoração apenas teórica dos seus objetos e também viver, ao mesmo tempo, no amor, na felicidade, na alegria.
1. A Honra
A arte clássica da Antigüidade ignorava o que chamamos hoje de "Honra". É certo que n'A Ilíada as coisas se estruturam ao redor da cólera de Aquiles, e dela dependem os acontecimentos narrados posteriormente. Entretanto essa cólera não é provocada por nenhum ultraje à Honra. Aquiles está furioso por causa de Agamenon principalmente, que o despojou da sua parte no butim, da sua recompensa de herói. Assim o ultraje recai sobre algo real, um dom, um sinal de prerrogativas e reconhecimento da sua glória e coragem. Se Aquiles está encolerizado é porque Agamenon o trata de modo indigno e o humilha perante os gregos; mas o ultraje não atinge o profundo em sua individualidade, e Aquiles inclina-se a ficar contente com a restituição da parte que lhe foi roubada, e com mais alguns presentes; Agamenon acaba por concordar com a proposta. Segundo nossas idéias, eles infligiram um ao outro um ultraje bem mais grosseiro, ao concordarem nessa resolução. Eles manifestaram sua cólera apenas ofendendo-se mutuamente, mas bastou uma transação concreta para apagar um ultraje igualmente concreto.
1a. O Conceito da Honra
Na concepção romântica, a Honra é algo muito diferente. O objeto do ultraje não é mais um valor concreto e real, como a propriedade, a situação, o dever, etc., mas atinge a personalidade em si mesma, a idéia que se faz dela, o valor que o sujeito lhe atribui. Esse valor é tão infinito como o próprio sujeito. O homem tem consciência da sua infinita subjetividade pelo sentimento da honra, seja qual for o seu conteúdo. A tudo o que possui o indivíduo, a tudo que possui de particular e cuja perda ele poderia suportar sem problemas, a tudo isso a Honra atribui o absoluto valor da subjetividade total, tanto na própria representação do indivíduo como na dos outros. Na representação, quaisquer particularidades adquirem um caráter de universalidade, pois toda a minha subjetividade passa para essa particularidade que é minha. Costuma-se dizer que a Honra não passa de uma aparência. Concordamos com isto; entretanto, sob o ponto de vista que tomamos agora, ela deve ser considerada como a aparência e o reflexo da própria subjetividade, que confere infinitude à aparência, por ser ela mesma infinita. Por esta infinitude, a aparência que constitui a Honra torna-se a existência verdadeira do sujeito, sua realidade mais autêntica, e cada qualidade particular iluminada pela Honra e nela mergulhada, adquire valor infinito. É esta concepção de Honra o que constitui a determinação fundamental do mundo romântico, e ela supõe que o homem, após abandonar o âmbito das representações religiosas e da interioridade, entra na realidade viva e agora procura nela afirmar a sua independência puramente pessoal e seu valor absoluto.
A Honra pode possuir os conteúdos mais variados, pois tudo que sou e faço, além do que os outros me fazem, constitui minha honra. Posso portanto considerar que participa dela tudo o que é substancial em mim, a lealdade ao príncipe, a dedicação à pátria, a obediência aos deuses dos meus antepassados, a fidelidade conjugal, a honestidade no comércio e em todas as transações, bem como nas investigações científicas, etc. entretanto essas atitudes, todas louváveis e valiosas em si mesmas, do ponto de vista da Honra só recebem o reconhecimento definitivo e a sanção, só chegam a ser aquilo a que s chama atitudes de honra, quando eu transferir para elas a minha subjetividade. O homem de honra pensa em todas as coisas e, em primeiro lugar, em si mesmo, perguntando-se não se isto ou aquilo é justo ou injusto, mas se é digno da sua honra fazer aquelas coisas. Assim ele cria objetivos arbitrários, atribui a si mesmo um certo caráter e assume obrigações que nenhuma necessidade justifica, consigo mesmo e com os outros. Então o homem tropeça em dificuldades e complicações que não vêm da coisa, mas da idéia que tem de si mesmo, porque considera ponto de honra não trair o caráter que uma vez adotou. É assim que Dona Diana considera oposto à sua honra confessar o amor que sente, pois tinha no passado a reputação de ser insensível ao Amor.
É possível dizer, então, que de um modo geral o conteúdo da Honra, por ser esta uma criação do sujeito, não estando ligada à Honra como essencialidade imanente, depende de todos os acasos. Por tal razão, vemos o código romântico proclamar como Lei de Honra o que é legítimo e justificado em si, e o indivíduo ligar, à sua consciência do que é justo, a consciência infinita da sua personalidade. Dizer que a Honra exige ou proíbe alguma coisa significa, em tais condições, que toda a subjetividade se confunde como conteúdo dessa exigência ou proibição, de modo que transgredi-la só poderia criar uma situação irreparável, e que o sujeito não pode, por conseguinte, ouvir qualquer outro conteúdo. A Honra poderá vir a ser, pelo contrário, algo completamente formal e vazio de conteúdo, se incluir apenas o eu descarnado, infinito em si, ou caso aceite com caráter obrigatório algum conteúdo nefasto ou indesejável. Então a Honra se torna, principalmente nas obras dramáticas, coisa fria e morta por completo, com objetivos exprimem não um conteúdo essencial, mas uma subjetividade abstrata. Um conteúdo substancial possui caráter de necessidade. Explicitando a si mesmo em suas numerosas associações, impõe-se à consciência como uma força que vem desta necessidade.
Onde falta profundidade ao conteúdo, é aí que o engenho da reflexão introduz, no terreno da Honra, coisas que, apesar de relacionadas ao sujeito, são acidentais e insignificantes em si mesmas. Nunca existe falta de matéria nestes casos, pois o engenho tem dons sutis de analisar e distinguir, mostrando-se capaz de introduzir, naquele domínio, coisas em si indiferentes. É sobretudo entre os espanhóis que esse casuísmo da reflexão sobre os pontos de honra alcançou grande desenvolvimento, e nas suas obras dramáticas os heróis da Honra se entregam a longos raciocínios sobre o assunto. A fidelidade da esposa constitui objeto de análises detalhadas que se aplicam a todas as circunstâncias que possamos imaginar, mesmo as mais insignificantes; a mera suspeita dos outros, até a possibilidade de uma suspeita, mesmo quando o mundo sabe que ela não tem fundamento, é bastante para que a Honra se considere afetada. Quando isto ocasiona conflitos, seu desenvolvimento não conduz a fim satisfatório, pois não estamos face a nada de substancial, de modo que, em vez da paz que uma solução sempre oferece, o que se alcança é um sentimento penoso e torturante. Nos dramas franceses, é também a honra vazia e abstrata que constitui o foco principal da ação. O Alarchos de Schlegel é que encarna priincipalmente esta honra vazia e fria como o gelo: o herói assassina a sua nobre esposa. Por quê? Por causa da Honra, a qual consiste em seu desejo de se casar com a filha do rei, não porque sente amor por ela, mas por ser o genro do rei. Pathos odioso e idéia detestável, com pretensões à grandeza e ao infinito.
1b. A Vulnerabilidade da Honra
Uma vez que a Honra não é apenas o que ela parece ser para mim, mas também deve existir na representação dos outros e ser reconhecida por eles, os quais, por sua vez, têm o direito e exigir o reconhecimento da própria Honra, ela representa uma coisa por demais vulnerável. A extensão que havemos de dar a esta exigência depende só do meu arbítrio. A menor ofensa pode ser muito importante, e como na realidade concreta o homem relaciona-se com milhares de coisas variadas, como depende só dele alargar até o infinito o âmbito do que lhe pertence e a que sua Honra pode se ligar, da independência dos indivíduos e do seu quanto-a-si tristonho seguem-se contestações, disputas, querelas sem fim. Assim, no ultraje bem como na Honra em geral, a função essencial não é a do conteúdo. Em outros termos: não me sinto ultrajado no conteúdo, mas na minha personalidade, da qual esse conteúdo é parte, e considero que é o Eu, esse ponto de ideal infinito, o que está ultrajado.
1c. A Reparação da Honra
Portanto vemos como todo ultraje da Honra é considerado algo de infinito e a reparação, por sua vez, só pode ser infinita. Existem numerosos graus de ultraje, e também de reparação. Mas o que devo considerar como ultrajem, até que ponto devo me sentir lesado e exigir uma reparação, tudo isso depende do meu arbítrio subjetivo, que tem direito de se voltar tanto para a mais escrupulosa reflexão, como para a suscetibilidade mais sutil. Quanto à compensação a que tem direito, quem cometeu o ultraje deve começar por ser reconhecido como homem de Honra igual a mim. Minha Honra deve ser reconhecida por outras pessoas; mas para que ela seja por ele e para ele, este homem deve ser, a meus olhos, também um homem honrado, ou seja, eu devo poder considerá-lo, apesar do ultraje que me fez e da minha inimizade subjetiva, como infinita personalidade.
Portanto um dos princípios básicos da Honra consiste nisto: ninguém deve reconhecer, com suas atitudes, que os outros tenham direitos sobre a sua pessoa e, não interessando o que ocorrer, o homem tem de se afirmar como um infinito invariável a seus olhos e aos olhos alheios.
Mas como a Honra, as questões e satisfações que ela contém, baseiam-se na autonomia que não reconhece limites, obedecendo a sua inspiração apenas, de novo estamos perante o que já mostramos constituir a determinação principal das figuras heróicas: a independência da individualidade. Entretanto na Honra não se trata da independência pura e simples, no sentido de que o homem defende sua individualidade, agindo como acha que é o melhor,; sim, de uma independência cujo corolário é a idéia que se tem de si mesmo; esta idéia constitui o próprio conteúdo da Honra; ela é a representação que se tem de si mesmo e que faz da subjetividade o centro para o qual convergem todas as manifestações da vida exterior, todas as ações, palavras e intenções circunstanciais. Portanto a Honra consiste numa independência refletida, de essência nessa mesma reflexão, de modo que lhe importa bem pouco se ela possui conteúdo de natureza moral e necessária ou acidental e insiginificante.
2. O Amor
Depois da Honra, o Amor assume papel de predominância na arte romântica.
2a. O Conceito do Amor
Se a determinação principal da Honra está na subjetividade pessoal, como ela se representa em sua absoluta independência, a do Amor é antes constituída pelo abandono do sujeito a um indivíduo do outro sexo, pela renúncia à sua consciência independente e ao ser-para-si individual, pela tomada de consciência de si mesmo na consciência de um outro e através dela. A Honra e o Amor se opõem quanto a isso. Mas por outro lado, no Amor se pode ver a realização do que já está implicado na Honra, enquanto ela exigir o reconhecimento da infinitude da sua pessoa por outra pessoa. Este reconhecimento só é verdadeiro e completo se o respeito não se refere à minha personalidade in abstracto, ou da forma como ela se manifesta em um caso isolado concreto e por isso limitado, mas dirige-se a toda a minha subjetividade e enquanto eu passo, com essa minha toda subjetividade, com tudo o que ela contém do que sou, fui ou serei, para a consciência de outrem, impregnando seu querer e saber, suas tendências e aspirações. Assim, o outro vive em mim, e eu nele. Eu e o outro vivemos num estado uno e de plenitude, e nessa identidade colocamos toda a nossa alma, fazemos dela um mundo. Por essa interioridade infinita, o Amor ocupa lugar tão importante na arte romântica, e sua importância ainda é aumentada pela riqueza mais elevada que o conceito do Amor implica.
O Amor não tem seu alicerce, como acontece com a Honra quase sempre, nas reflexões e casuísmos do intelecto; sua origem é o sentimento, e devido à importância que a diferença de sexos nele assume, o Amor ao mesmo tempo forma a base espiritual das relações naturais. O lugar importante ocupado pelo Amor nestas relações, consiste no sujeito comprometer nelas toda a sua interioridade, sua infinitude. É esta fusão total da consciência de um sujeito com a de um outro, esta aparência de abnegação e desinteresse que servem, para o sujeito se reencontrar e tornar-se ele mesmo; esse esquecimento de si mesmo leva quem ama a não viver nem existir por si, a não pensar em si, mas a encontrar em um outro as razões da sua existência. Tudo isso confere ao Amor seu caráter de finitude. Sua beleza consiste principalmente no fato dele permanecer em estado de mero sentimento ou impulso, enquanto a imaginação o cerca de um mundo inteiro, transformando todos os interesses, fins e circunstâncias da vida real em ornamento do Amor. Nas mulheres, o Amor aparece em toda sua beleza, porque aquele abandono e abnegação, para elas é a expressão mais elevada do seu caráter, e sua vida inteira é uma preparação, uma expansão que leva a esse sentimento, no qual elas encontram o ponto firme e a estabilidade da sua existência. Se não atingem esse ponto, devido a qualquer desgraça, elas se apagam qual chama ao vento.
A arte clássica desconhece esta interioridade subjetiva do sentimento, o qual desempenha nela um papel secundário sempre, pois quando o Amor é tratado como assunto da representação, é apenas como prazer sexual. Homero não lhe atribui a mínima importância, vendo a realização mais digna do Amor no casamento, na vida doméstica, no caráter de Penélope, mãe e esposa dedicada, ou de uma Andrômaca, enfim das mulheres que possuem virtudes morais. Os laços que unem Helena e Páris são considerados imorais, por outro lado, pois foram eles a causa dos horrores e misérias da Guerra de Tróia. O Amor de Aquiles por Briseida não tem profundidade, porque Briseida é uma escrava, de quem Aquiles pode dispor como quiser. Nas Odes de Safo, a linguagem do Amor eleva-se ao entusiasmo lírico, sem dúvida, porém o que nelas se expressa é mais o apetite febril que devora o sangue do que a interioridade da alma, a força de um sentimento que se eleva do coração. Nas agradáveis odes de Anacreonte, o Amor aparece como um sentimento geral que ignora os sentimentos infinitos, o abandono da alma oprimida, que morre de nostalgia e suporta todos os males sem queixas, enquanto uma vida inteira depende deste sentimento. Anacreonte fala do Amor em palavras cheias de serenidade, como de uma fonte de alegrias imediatas, sem que a qualidade ou intensidade destas alegrias signifiquem uma escolha definitiva, vinculação a uma pessoa determinada, fixação irreversível do sentimento.
A tragédia clássica também ignora a paixão amorosa no sentido romântico da palavra. Principalmente Ésquilo e Sófocles não lhe conferem qualquer interesse especial. Apesar de Antigona estar destinada a ser esposa de Hémon, e este intervenha a seu favor junto ao pai e chegue a matá-la porque não a podia salvar, o que ele impõe a Creonte não é a força subjetiva da sua paixão, que não sente aliás como um apaixonado de hoje, mas somente as circunstâncias objetivas. Se Eurípedes trata o Amor, como por exemplo no Fedra, de maneira mais patética, entretanto apresenta este sentimento como quase criminoso, como paixão sensual provocada por Vênus para condenar Hipólito, pois este não lhe fazia sacrifícios. Vemos o mesmo na Vênus de Médici, imagem plástica do Amor, de admirável beleza e graça, mas sem a interioridade exigida pela arte romântica. Ocorre o mesmo com a poesia romana, onde se concebe o Amor, após a queda da República e a decadência dos costumes morais, como apenas um prazer sensual. Entretanto Petrarca, apesar de considerar os seus sonetos apenas uma brincadeira e de buscar a glória com suas poesias e trabalhos latinos, tornou imortal esse Amor criado pela imaginação, a qual foi capaz, sob aquele céu italiano, de imprimir ao fervor amoroso um caráter subjetivo. O ponto de partida para Dante foi também o amor de Beatriz, amor transfigurado em fervor religioso, e Dante soube com coragem e audácia ascender a uma concepção religiosa da arte, através da qual ele ousou fazer o que ninguém antes dele conseguira: tornar-se juiz dos homens e distribuí-los para o inferno, purgatório e paraíso. Ao contrário de Dante, Boccacio tratou o Amor como uma paixão violenta ou de maneira muito superficial, sem conceder nenhum lugar à moral, usando este sentimento para pintar os costumes da sua época e do seu país. No Minnegesang alemão, o Amor aparece sentimental, terno, sem riqueza de imaginação, em forma de um jogo melancólico e monótono. Entre os espanhóis, o Amor se exprime numa linguagem rica em imagens, é cavalheiresco, engenhoso para buscar e defender seus direitos e deveres, constituindo ponto de honra pessoal quase sempre quimérico. Entre os franceses, a partir de certo momento, ele surge galante, com uma vaidade bem evidente, um sentimento que se poetiza através de engenhosos sofismas, e ora aparece como um prazer sensual, isento de paixão, ora em forma de sensibilidade sublimada e racional. Por ora, limito me a estas observações, as quais vou ampliar e desenvolver adiante.
2b. Os Conflitos Criados pelo Amor
Observados de perto, os costumes profanos adquirem aspecto duplo. Por um lado, temos os interesses mundanos como tais: vida familiar, leis, o direito, os costumes, etc. Vemos por outro lado surgir o amor, no coração desta vida ancorada e estável, nas mais ardentes e mais nobres das almas; o Amor, essa religião profana do sentimento, que logo estabelece com a religião propriamente dita relações variadas e a subordina, esquece a religião e se impõe a ela como fim essencial da vida, até o único e o mais elevado, pregando não apenas o abandono de tudo e a fuga com a bem-amada para o deserto, mas também caindo num extremo sem beleza, o sacrifício da dignidade humana ao ser amado e a submissão mais servil. Produzem-se, na realidade concreta dos conflitos, por causa desta separação, choques entre a realidade do amor e a vida mundana, a qual impõe suas exigências e direitos.
O conflito inicial e mais freqüente é o que se trava entre o Amor e a Honra. A Honra possui o mesmo caráter infinito do Amor, e por isso lhe opõe um obstáculo absoluto. Com freqüência o dever da Honra pode exigir o sacrifício do Amor. De certo ponto de vista, seria por exemplo contrário à Honra de um homem de classe social superior desposar uma jovem de classe inferior. As diferenças de classe impõem-se pela natureza das coisas. Mas a vida profana não é desprezada pelo conceito infinito da verdadeira liberdade; nesta, a situação social, a profissão, etc., são determinadas livremente pelo sujeito livre. São portanto o nascimento e a natureza que, por um lado, atribuem ao homem a sua situação e classe social; por outro lado, resultam daí diferenças entre os homens, que assumem caráter absoluto e infinito porque a interferência da Honra exige a liberdade e defende o inatacável da situação desfrutada ou da classe social a que se pertence.
Entretanto não é apenas a Honra o que entra em conflito com o Amor; são as eternas potências substanciais, os interesses estatais, o Amor à Pátria, deveres familiares, etc. Esse tema é tratado com freqüência hoje em dia, pois as condições objetivas da vida sobrepõem-se a tudo como nunca antes ocorreu. O Amor então é oposto, como direito inútil do sentimento subjetivo, a outros direitos e deveres, ora porque o coração rechaça tais direitos e deveres como secundários, ora porque os reconhece, colocando-se desta forma o homem em conflito consigo mesmo e com sua paixão.
Em terceiro lugar, e último, há circunstâncias e travas exteriores que se podem opor ao Amor: o cotidiano, a prosa da vida, e acidentes, paixões, preconceitos; a mesquinhez espiritual, o egoísmo alheio, ocorrências e fatos de variada qualidade. Em se tratando de uma paixão selvagem, grosseira e maligna, oposta à beleza terna do Amor, o conflito assume características terríveis, é baixo e vil. Principalmente nos dramas, novelas e romances modernos, é onde aparecem os conflitos exteriores desse gênero, sendo nosso interesse despertado pelos sofrimentos, esperanças e aspirações de amantes infelizes, e os autores tentando nos comover com alguma solução feliz ou infeliz, ou nos tranqüilizar, ou nos proporcionar apenas um lazer. Esse gênero de conflitos, causados por meros acidentes, entretanto possuem interesse secundário.
2c. O Caráter Acidental do Amor - Amor e Acaso
Visto sob quaisquer aspectos, o Amor sempre tem a elevada virtude de nunca se aprisionar em um estado de mero desejo sexual, surgindo como sentimento rico, nobre, belo. O indivíduo que o sente está disposto sempre a realizar qualquer sacrifício para se unir ao ser amado e para não recuar em face de nenhuma exigência de coragem para conquistar ou conservar o seu amor. Entretanto o Amor romântico possui também o seu limite. Falta-lhe a universalidade em si. É o sentimento pessoal de um sujeito individual, fora dos interesses eternos e à margem do conteúdo objetivo da existência humana: família, política, pátria, deveres profissionais, sociais ou religiosos. O que ele contém é só um Eu que busca encontram em outro Eu a duplicata, o reflexo do sentimento que o domina. Este conteúdo interior, que é puramente formal na verdade, está longe de corresponder ao todo verdadeiro representado por um indivíduo concreto. Na família, na união conjugal, no âmbito dos deveres, no Estado, o sentimento subjetivo como tal, exigindo a união com este ou aquele indivíduo e excluindo os outros, não constitui o principal fator, enquanto no Amor romântico gira tudo em torno do amor sentido por uma mulher, dela por um homem. Este amor exclusivista de um indivíduo por outro indivíduo determinado pertencente ao sexo oposto, só tem razão de ser na particularidade subjetiva e no caráter sempre mais ou menos arbitrário e aleatório da escolha. Cada um enxerga na mulher amada, aos olhos dos outros uma pessoa comum, o ser mais belo, o mais nobre, mais original do mundo. Mas como todos ou quase todos os seres humanos fizeram alguma vez esse movimento de exclusão e como a mulher amada não é Afrodite, visto cada um ter a sua própria Afrodite, a quem coloca acima até mesmo da Verdade, ocorre que são muitas aquelas a quem se atribui o mesmo valor exclusivo, apesar de cada homem saber que há no planeta muitas jovens lindas que possuem, todas ou pelo menos a maior parte delas, seus amantes e adoradores, e sabendo também que não existe mulher que não encontre um homem que a julgue a mais bela, virtuosa, cheia de encantos, etc. Dar a preferência a uma só e fazê-lo de modo absoluto, é um assunto da vida privada, pertence ao sentimento subjetivo, à singularidade individual. A perseverança do sujeito em querer se unir a essa criatura única de modo exclusivo e torná-la, por toda sua vida, dependente desta união, age como uma força que torna a arbitrariedade necessária. Nestas situações a liberdade do sujeito e o caráter absoluto de sua escolha são reconhecidos e respeitados, porém tal liberdade, longe de assemelhar-se ao modo patético da Fedra, de Eurípides, entregar-se à divindade, antes parece, pela origem da escolha na vontade individual, mais um capricho e teimosia.
Os conflitos causados pelo Amor, sobretudo os que nascem da oposição e luta com interesses substanciais, mostram sempre uma aparência de luta que nenhuma necessidade justifica. Isto ocorre porque a subjetividade como tal (com as suas exigências, se quiserem, válidas em si) opõe-se ao que não pode ser esquecido ou tornado inválido, por seu caráter essencial. Na grande tragédia antiga, personagens como Agamenon, Clitemnestra, Orestes, Édipo, Antigona, Creonte, etc., visam fins individuais, é certo, mas o substancial, constituindo o conteúdo patético de seus atos, é legítimo e justificado e por isso tem um interesse universal. Se nos comove o destino que os destrói, não é porque seja um destino infeliz, mas por constituir uma infelicidade que honra: o pathos não descansa enquanto não obtém a satisfação com um conteúdo necessário que tem de esgotar. Que não seja punido o crime que Clitemnestra cometeu, que não desapareça o ultraje feito a Antígona, como irmã, são injustiças em si. Entretanto os sofrimentos causados pelo Amor, as esperanças malogradas, paixões obsessivas, as infinitas felicidades sonhadas pelo homem, nada disso oferece um interesse para todos, e só diz respeito ao sujeito: todo homem nasce para amar, e por isso tem o direito de procurar a felicidade no amor; mas se em determinadas circunstâncias, em certos casos, ele não consegue atingir seu objetivo com esta ou aquela mulher, isso não implica nenhuma injustiça. Pois nenhuma necessidade o empurra para certa mulher precisamente, com exclusão de todas as outras; entretanto a arte romântica pretende nos interessar pelo o que é acidental, por excelência, a arbitrariedade subjetiva, o que não possui ampliação ou universalidade. Eis por que, mesmo sendo a paixão descrita com todo ardor, não podemos conservar uma atitude fria perante ela.
3. A Lealdade
A Lealdade é o terceiro dos elementos principais da subjetividade romântica, tal como se manifesta no mundo profano. Mas não entendemos, por Lealdade, nem os juramentos de amor, nem a dedicação às amizades, cujo belo exemplo entre os antigos são os laços que unem Aquiles e Patroclo, e em grau ainda mais elevado, os de Orestes e Pílades. Amizades deste gênero existem principalmente entre os jovens. Todo homem é chamado a realizar uma carreira vital por seus próprios meios, a criar para seu uso uma realidade, e conservá-la. Entretanto nesta idade, a juventude, quando a noção das condições reais da vida é apenas vaga, também é aquela em que os indivíduos, graças ao caráter fluido das fronteiras que os separam, procuram se aproximar, adotando um modo comum de pensar, estabelecer a mesma vontade, realizar as mesmas coisas, tornar os empreendimentos individuais em coisas também dos outros. A vida do adulto segue também seu curso próprio, mas sem contrair relações tão estreitas com as vidas dos outros, sem que as coisas cheguem a tal ponto que o auxílio alheio seja indispensável. Os adultos se juntam e separam, e apesar da amizade continuar, como expressão da interioridade dos sentimentos, de princípios e mesmo de orientações comuns, ela não é mais a amizade juvenil que torna o que um decide negócio também dos outros. Está de acordo com o princípio de nossa vida profunda que cada um viva dentro de sua própria realidade por si.
3a. A Lealdade no Serviço
Se a Lealdade, no amor e na amizade, se baseia na relações entre iguais, a Lealdade que vamos agora considerar é a que se coloca perante um superior, um homem que ocupa situação mais elevada, perante um senhor. Na Antigüidade já se encontra a Lealdade dos servidores para com a família e a casa do senhor. Na lealdade do porqueiro de Ulisses temos disso um belo exemplo, quando ele desafia as tempestades e passas as noites a guardar os porcos, com a maior solicitude para com seu senhor, a quem prestará mais tarde um auxílio eficaz na luta contra os pretendentes de Penélope. Encontra-se no Rei Lear de Shakespeare um quadro comovente de lealdade, embora como sentimento interior puro, quando (Ato I, Cena IV) Lear pergunta a Kent:
- "Tu me conheces, homem?"
Ao que respondeu Kent: - "Não senhor, mas há no vosso rosto algo que me obriga a vos tratar por senhor".
Este quadro já de aproxima do que vamos chamar de Lealdade romântica. A Lealdade romântica não é a do escravo ou do servo, a qual mesmo sendo bela e comovedora, não possui a autonomia livre da sua individualidade, seus fins e atos, o que diminui sua importância.
A Lealdade que vamos abordar é a do vassalo de cavalaria, na qual o sujeito, apesar de sua dedicação a um superior, imperador, rei ou príncipe, conserva sua liberdade e independência. Esta Lealdade ocupa lugar tão importante na cavalaria porque ela vincula os principais traços da vida coletiva com a sua organização social, pelo menos em um início.
3b. Independência Subjetiva na Lealdade
Não é o patriotismo, ou o propósito objetivo e geral, que determina esse gênero de relações entre os indivíduos, mas sim o relacionamento com um sujeito, um senhor, e esta relação se baseia no sentimento da Honra, na opinião subjetiva, e tem como objetivo alguma vantagem particular. A Lealdade surge com seu brilho em um mundo disforme, brutal, sem direitos nem leis. Nessa realidade sem leis, os mais fortes e valentes assumem o papel de chefes, de príncipes, que logo obtêm a livre adesão dos outros, no esforço para criar uma ordem estável. Estas relações depois levaram aos laços iguais entre a gente do feudo, onde os vassalos continuam a ser livres e podem defender deus direitos ou obter vantagens. O principal fundamento, a origem destas relações é a livre escolha, no que se refere ao sujeito desta ligação, ou à sua duração. Assim, a lealdade da cavalaria sabe preservar muito bem a propriedade, a independência pessoal, a Honra dos indivíduos, mas não é considerada como um dever que é necessário cumprir, mesmo contra a vontade circunstancial do sujeito. Pelo contrário, cada um considera a ordem geral dependente do seu gosto, de suas disposições e opiniões particulares.
3c. Os Conflitos Criados pela Lealdade
Portanto a Lealdade e a obediência a um senhor podem entrar com facilidade em conflito com as paixões subjetivas, a suscetibilidade às pequenas ofensas à Honra, com o sentimento do Amor ou muitas outras circunstâncias acidentais, interiores ou exteriores. Portanto ela representa uma atitude em extremo precária. Temos como exemplo um cavaleiro fiel a seu senhor, quando surge uma questão entre este e um amigo do cavaleiro. Ele tem de escolher entre duas lealdades, sem deixar de ser fiel à sua Honra e a seus interesses. A história do Cid nos oferece belos exemplos dessa espécie de conflitos. Ele é leal ao rei e a si mesmo. Quando o rei age em função da justiça, o Cid lhe oferece o seu braço, mas quando seu procedimento é injusto ou quando o próprio Cid sente-se ofendido, retira-lhe com energia o seu apoio.
Os pares de Carlos Magno procedem do mesmo modo. Entre eles e o imperador há uma ligação de soberania e obediência que se pode comparar, com todas as reservas que se impõem, à de Zeus e aos outros deuses. O senhor ordena, grita, troveja, entretanto os indivíduos resistem a ele como e quando querem, pois são fortes e independentes. É no Maître Renard que essa fraqueza da ligação está descrita de modo mais divertido. Neste poema, assim como os grandes do império só servem a eles mesmos e só pensam em preservar a sua independência, também os príncipes alemães e os cavaleiros medievais estavam ausentes sempre que era preciso realizar algo pelo imperador e pelo império; poderíamos dizer que, se o conceito sobre a Idade Média já foi elevado, isso ocorreu porque naquele tempo cada um se considerava um homem de honra, embora obedecendo apenas a seu arbítrio, o que é inadmissível em um estado com organização racional.
Em se tratando de Honra, Amor, Lealdade, sempre ocorrem a afirmação da independência subjetiva, a afirmação da independência individual, as manifestações da vida interior que não pára de se ampliar até atingir os interesses mais elevados e mais ricos, nos quais ela realiza a conciliação consigo mesma. É isso que constitui aspecto mais belo do âmbito não-religioso, na arte romântica. Seus fins referem-se ao que é humano e é neste aspecto, ao menos enquanto implicam afirmação da liberdade subjetiva, que merecem toda a nossa simpatia; na área religiosa, pelo contrário, os assuntos representados e a maneira de representá-los encontram-se quase sempre em oposição às nossas noções e idéias. Entretanto é impossível estabelecer uma relação entre as duas esferas, no sentido de que os interesses religiosos quase sempre confundem-se com os da cavalaria profana, tal como acontece na aventura dos Cavaleiros da Távola Redonda que saem em busca do Santo Graal. Esta confusão introduz na poesia cavalheiresca um elemento que é, em parte, místico e fantástico, em parte, de modo bastante evidente, alegórico. O domínio profano do Amor, porém; o domínio da Honra e da Lealdade pode ser independente por completo de objetivos e idéias religiosas, por serem três sentimentos que somente exprimem a profunda subjetividade puramente humana. Falta à fase que acabamos de abordar uma interioridade que tenha um conteúdo concreto, dado pela condição humana, pelas paixões e caracteres humanos, em suma, um conteúdo apreendido na vida real. Faltando essa diversidade, a interioridade, em si infinita, continua abstrata e formal, por isso cabendo-lhe a missão de também assimilar essa matéria e a elaborar para torná-la adequada à representação artística.
Capítulo 3
A Independência Formal das Particularidades IndividuaisIntrodução e Plano
Com relação ao já visto, em primeiro lugar abordamos a subjetividade em seu âmbito absoluto, ou seja, a consciência na sua mediação com Deus, o processo geral da conciliação do espírito com ele mesmo. A alma fez o sacrifício do profano, natural e humano, até quando estes fatores justificavam-se e nada tinham contrário à moral, visando elevar-se ao puro céu do espírito e nele encontrar satisfação plena. Em segundo lugar, vimos a subjetividade humana, sem renunciar à negatividade implicada em todas as mediações, tornar-se afirmativa para si mesma e para os outros, porém o conteúdo desse infinito mundano era constituído apenas pelo sentimento, pela autonomia individual gerada na Honra, pela interioridade do Amor e pela dedicação da fidelidade. Tal conteúdo, embora passível de se exteriorizar em circunstâncias mais mutáveis, em condições mais variadas e com múltiplos matizes do sentimento e da paixão, entretanto não deixa de representar a autonomia do sujeito e sua interioridade, em tudo e sempre.
Temos agora um terceiro ponto a considerar: o modo como a arte romântica sabe utilizar e representar os demais aspectos da existência humana, exterior ou interior; mostrar como ela concebe a natureza e seu significado para a vida interior do homem, a vida da alma e dos sentimentos. Assistimos aqui à libertação do mundos dos particulares, do mundo da manifestação em geral, ou seja, de um mundo que se comporta de um modo independente e autônoma, embora não estando mergulhado na religião e sem almejar à união com o absoluto.
Agora não vamos portanto nos ocupar de assuntos religiosos, nem de cavalaria, com seus fins e concepções de origem interior. Isso tudo desapareceu, pois eram relações sem realidade presente e concreta. O que caracteriza essa fase é a sede de presentificação e de real, que nos leva a descobrir uma fonte de prazeres no que /e, na finitude humana, em tudo o que é finito e particular, no que está próximo do retrato. Em seu presente, o homem não quer ter relação com nada que não seja o presente, embora isso lhe custe o preço da beleza e do conteúdo ideal, e é esse presente o que ele quer ver recriado na arte, em toda a sua plenitude vital, como emanação da espiritualidade puramente humana.
Como vimos, o Cristianismo não é um produto da imaginação, como são os deuses orientais e os gregos. Se a imaginação cria o significado com o qual realiza a união de uma autêntica interioridade e de uma forma perfeita, e se essa união encontrou sua realização mais completa e perfeita na arte clássica, a religião cristã desde o início idealizou todo o aspecto particular da fenomenalidade intrínseca e estimulou a alma a se satisfazer com o vulgar e acidental dos fenômenos, sem atentar para a beleza. Entretanto a conciliação do homem com Deus só aparece, de início, como mera possibilidade; muitos são os chamados para serem felizes, mas poucos serão eleitos, e a alma para a qual o reino dos céus e o reino deste mundo continuam a ser ambos uma possibilidade além, esta alma deve renunciar, em nome da espiritualidade, ao encantamento do mundo e ao que apela ao seu egoísmo de momento. Ela vem de uma região por demais distante, e por enxergar apenas um aquém afirmativo no que acaba de sacrificar, o fato positivo de estar confinada no presente, e de querer apenas o que o presente lhe oferece, sendo algo que constitui um início, se apresenta na arte romântica em forma de fim, como o último degrau da marcha humana para o aprofundamento e a concentração interior.
Com relação à forma para este novo conteúdo, já vimos como a arte romântica vem desde o princípio lutando contra a oposição entre a infinita subjetividade e a matéria exterior, oposição que não conseguiu eliminar, apesar de todos os esforços realizados, e portanto podemos dizer que é justo ela o que caracteriza a arte romântica. Tão logo se unem, forma e conteúdo separam-se de novo, e assim continuam até se tornarem incompatíveis e inconciliáveis, mostrando assim que se deve procurar a possível união absoluta em um campo diferente do âmbito artístico. Por causa desta separação, do ponto de vista artístico, conteúdo e forma assumem caráter formal, no sentido de que eles não se unem visando constituir um todo indivisível, como acontece no ideal clássico. A arte clássica evolui em forma de figuras impossíveis de decompor. Como demonstramos, ao abordar a passagem para a arte romântica, a degeneração da arte clássica principia no momento em que ela se orienta, ao mesmo tempo, para o domínio do satírico e do cômico, e para o do agradável, para a reprodução de coisas frias e mortas, acabando por se rebaixar à técnica inferior. No todo, os assuntos continuam os mesmos, mas a produção antiga, animada pelo sopro espiritual, dá lugar a uma reprodução cada vez menos espiritualizada, que se adapta a uma tradição exterior, uma ténica manual. A evolução e o desenvolvimento da arte romântica, pelo contrário se realizam no sentido da íntima decomposição da matéria artística, da dissolução e libertação dos seus elementos e das partes constituintes, daí resultando, ao contrário do que assinalamos com relação à arte clássica, um desenvolvimento dos talentos e da arte da representação, que se aperfeiçoam à medida em que se enfraquece a coesão dos elementos que constituem o substancial.
Este capítulo terá três partes.
No primeiro vamos nos ocupar da independência do caráter, mas sob um ponto de vista puramente formal, como se fosse um determinado indivíduo, fechado em si mesmo, tendo um mundo à parte com seus fins e qualidades particulares.
Na segunda parte, a este formalismo e a essas particularidades do caráter, oporemos o aspecto exterior das situações, ocorrências e atos. Como a interioridade romântica é indiferente face aos objetos exteriores, a fenomenalidade real recupera sua completa e plena liberdade, mantendo-se impenetrável e inadequada ao sentido dos fins e das ações. Por tal razão os fatos e as circunstâncias que não têm um nexo racional e necessário para uni-los, associam-se, combinam-se, sucedem-se numa ordem acidental e imprevista, quer dizer, aventurosa.
Por fim, na terceira parte mostraremos ao leitor a dissociação dos aspectos cuja perfeita identidade constitui o próprio conceito da arte, resultando esta separação na decomposição, na dissolução da própria arte. Com efeito, a arte por um lado passa a representar a realidade banal, os objetos em suas particularidades acidentais e individuais, e a valorizar esta realidade aparente com sua mágica; por outro lado, ela se orienta para a representação e concepção puramente subjetivas, submetidas aos acidentes das disposições interiores, ou seja, para o humor, que é uma deformação, uma intervenção, uma inversão dos objetos e da realidade pelas palavras com "espírito", assinalando o fim do poder criador da subjetividade artística sobre a forma e o conteúdo, sejam quais forem.
1. A Autonomia do Caráter Individual
O infinito subjetivo do homem em si, onde está o ponto de partida da arte romântica, continua a ser o princípio fundamental e inspirador das manifestações que vamos agora abordar. Entretanto a essa infinitude autônoma vem juntar-se um elemento novo, por um lado constituído pela particularidade do conteúdo que é o mundo subjetivo, por outro lado pelas íntimas e diretas relações entre o sujeito e essa particularidade do conteúdo, com os objetivos e desejos implicados nele, e também pela individualidade viva a que se reduz e em que se aloja o caráter. A palavra "caráter" não deve ser tomada aqui no sentido que os italianos lhe deram nas representações de suas máscaras. É certo que as máscaras italianas também representam caracteres determinados, mas esta determinação só se exprime de maneira abstrata e geral, não em forma de individualidade subjetiva. O caráter, conforme aqui o entendemos, representa um todo acabado, um sujeito individual. Entretanto se ainda abordamos o caráter, formalismo e abstração, é porque entendemos por isso apenas que o principal conteúdo, o mundo formador deste caráter, é limitado por um lado, e por isso abstrato, e por outro lado ele surge como dominado pelo acaso. O indivíduo existe como indivíduo não pelo que tem de pessoal e justificado, mas graças à subjetividade do caráter que portanto se baseia, não no conteúdo e no pathos estável, mas, de um modo formal, sobre a independência individual.
Dois aspectos devemos distinguir no coração deste formalismo.
O caráter afirma-se como energia segura, atribui-se fins limitados, e aplica toda a força da sua individualidade, portanto reduzida, para realizar seus objetivos; por outro lado, contudo, o caráter aparece como totalidade subjetiva, a qual permanece mergulhada na sua interioridade e é incapaz de se exprimir, até exteriorizar-se de modo completo.
1a. A Independência Formal das Particularidades Individuais
O caráter surge portanto no seu aspecto particular, como um caráter particular que tende à perseverança em sua particularidade, e esta, pelo que tem de acidental e fortuito, não se deixa delimitar diretamente pelo conceito.
Uma individualidade assim reduzida a si mesma não poderia ter intenções nem conceber objetivos capazes de se ligar a um pathos geral; tudo o que possui, faz e realiza ela esgota diretamente, sem reflexão, na sua natureza que é uma réplica dela mesma, não se apoiando em qualquer princípio superior nem procurando o que a justifica num elemento substancial mas sempre, de modo imperturbável, ela repousa sobre si mesma, numa estabilidade que tanto lhe permite afirmar-se de maneira positiva como conduzir à perdição de si mesma. Esta independência só é possível onde o extra-divino, o particular humano, assume papel principal. São assim, antes de mais nada, os caracteres descritos por Shakespeare, forçando nossa admiração principalmente pela sua firmeza irremovível e sua unilateralidade.
Não existe neles uma questão de religiosidade, de moral, no sentido próprio da palavra, e os atos dessas personagens não ocorrem face a uma conciliação religiosa do homem consigo mesmo. Pelo contrário, estamos em presença de indivíduos entregues por completo a si mesmos, com objetivos que são só deles, apresentando o sinal da sua individualidade, e que, visando realizar os seus fins, obedecem apenas à lógica impiedosa da sua paixão, sem se deixarem desviar por considerações secundárias ou por precauções de ordem geral. É principalmente nas tragédias como Macbeth, Otelo, Ricardo II que encontramos caracteres desse gênero, cercados de outros caracteres menos delineados e enérgicos. O caráter de Macbeth é dominado pela ambição apaixonada. Após hesitações de início, ele termina por estender a mão para arrebatar a coroa, comete um assassinato e nenhuma crueldade o impede de conservar o que adquiriu com o crime. Tal perseverança sem escrúpulos, esta identidade do homem consigo mesmo e com o objetivo que se propôs atingir, e concebeu ouvindo apenas a sua paixão, constituem o interesse principal dessa tragédia. Nada é barreira para Macbeth: nem o respeito pela mística santa da realeza, nem a loucura da mulher, o abandono dos vassalos, a queda iminente; ele tem perseverança em seus desígnios, e despreza todos os direitos, todas as leis divinas e humanas. Caráter análogo é o de Lady Macbeth, e só a crítica atrevida e absurda de nosso tempo conseguiu levar o Amor do paradoxo até o ponto de fazer de Lady Macbeth uma mulher cheia de afeto. Na sua entrada em cena (Ato I, Cena IV), após a leitura da carta em que Macbeth lhe anuncia o encontro com as bruxas e seu vaticínio:
- "Salve, Than de Cawdor; salve que ainda serás rei!"
Ela exclama: - "Tu és Glamir e Cawdor, e serás o que foi anunciado. Temo, porém, por sua natureza; ela está saturada demais com o leite da doçura humana para que escolhas o caminho mais curto."
Nada demonstra de afeição, nem manifesta a menor alegria face à felicidade do marido, nenhuma disposição moral, simpatia ou remorso que testemunhem alguma nobreza da alma; ela apenas teme que o caráter do marido não esteja à altura de sua ambição e se transforme em obstáculo à sua realização. E ela considera até mesmo o próprio marido como mero instrumento. Lady Macbeth age sem hesitações ou reflexão, sem a menor dúvida, o que aliás se encontra mesmo em Macbeth, apesar de lhe faltar qualquer espécie de remorso, obedecendo apenas à abstração e dureza de seu caráter, que visa realizar o que lhe convém exclusivamente. A catástrofe que se abate sobre Macbeth vem de fora, porém Lady Macbeth dobra-se a uma catástrofe interior: enlouquece. Ocorre o mesmo com Ricardo III, com Othelo, Margarida e tantos outros. Que contraste apresentam eles com os caracteres mesquinhos da literatura moderna, por exemplo os de Kotzebue, que parecem tão nobres, grandes, perfeitos, mas não passam de caracteres pusilânimes. Outros, que não tinham desprezo demais por Kotzebue, não fizeram melhor do que ele, como por exemplo Kleist com a sua Catarina e o príncipe de Homburgo. Sua perdição consiste em que, desprezando a lógica segura da vigília, procederem como sonâmbulos, presos a influências magnéticas. O príncipe de Hamburgo é um general desprezível; ele se distrai quando tem de se preparar para o combate, expressa mal suas ordens e, após uma noite mal dormida, entrega-se aos atos mais excêntricos. É descrevendo tais contradições e discordâncias de caráter que seus autores pretendem imitar Shakespeare, e até serem seus sucessores. Estão muito distantes disto, porque em Shakespeare os caracteres são coerentes sempre, e fiéis a si mesmos e à sua paixão, e seu destino revela-se em tudo que lhes acontece.
Quanto mais particular é um caráter, mais ele obedece às suas tendências apenas, seguindo um caminho que conduz ao mal; porém os obstáculos que lhe antepõe a realidade concreta são mais numerosos, e maior é o risco dele desfalecer na concretização de suas tendências; com efeito, o destino que lhe é imanente e o destruirá mais se afirma e exterioriza. Esse destino não se desenvolve como uma conseqüência das ações exteriores do indivíduo, mas sim de modo independente; é um desenvolvimento interior, que acompanha o desenvolvimento do próprio caráter até perder o auto-domínio e atingir um estado de selvageria, de composição e esgotamento. Entre os gregos antigos, que não atribuíam ao caráter subjetivo o principal papel, mas sim ao conteúdo essencial, a evolução do destino se liga menos à do caráter que, aliás, não evolui de modo acentuado, chegando ao final quase em estado idêntico ao de suas manifestações iniciais. Nos casos que agora abordamos, a realização de um ato não é apenas um processo exterior, mas é também desenvolvimento da interioridade subjetiva. Os atos de Macbeth podem ser observados, por exemplo, como as manifestações de uma alma que chegou ao mais profundo da selvageria, mas se realizam com uma lógica que, passado o momento da indecisão, explode com violência irresistível. Sua esposa tomou a decisão já no princípio, e por isso o desenvolvimento do caráter se manifesta nela em forma de uma angústia interior que acaba na destruição física e moral, no desvario da loucura. Acontece o mesmo com os caracteres mais ou menos insignificantes. É verdade que os antigos caracteres também surgem com certa fixidez, achando-se muitas vezes comprometidos em situações tão complicadas, que delas só podem sair pela intervenção de um deus ex-machina. porém essa fixidez é rica de conteúdo, como por exemplo a de Filocteto, tendo no seu conjunto a justificação de um pathos moral.
Pela natureza acidental dos objetivos destes caracteres, os quais são os de individualidade independente, nenhuma condição objetiva parece possível. A relação entre o que eles são e o que se lhes é oposto, continuam vagas e indefinidas, e eles não saberiam responder a quaisquer perguntas que lhes fossem feitas. Portanto verificamos, mais uma vez, a intervenção da necessidade mais abstrata de todas, que é o fatum, e a única conciliação ao alcance do indivíduo consiste no seu infinito ser-em-si, na conservação da sua estabilidade, que lhe possibilita manter-se impassível perante sua paixão e destino.
1b. O Caráter como Totalidade Interior embora Incompleta
O lado formal do caráter pode estar na sua própria interioridade, porque o indivíduo é incapaz de ir além dela, de se exteriorizar e desenvolver o seu conteúdo.
São almas substanciais que preenchem um todo, porém de tal maneira elas se fecham em si mesmas, que nenhum dos seus movimentos se manfesta por sinais exteriores. O formalismo que antes descrevemos era caracterizado por uma precisão rigorosa do conteúdo, por um único fim que o indivíduo buscava atingir através de todos os meios, obstáculos e circunstâncias exteriores, até a vitória ou a catástrofe. Pelo contrário, o formalismo que agora abordamos se caracteriza pela reflexão sobre si, pela ausência de exteriorização e desenvolvimento da vida interna, de afirmação concreta e visível. Uma alma fechada em si mesma desta maneira é como uma pedra preciosa cuja existência só se revela, com a rapidez de um relâmpago, em alguns clarões de momento.
Tal fechamento em si mesmo só possui valor e interesse para os indivíduos com uma rica vida interior, porém que só dão a conhecer a riqueza e profundidade de suas almas por sinais mudos, e até pelo silêncio. Tais naturezas simples, ignorantes de si mesmas, podem exercer a maior atração. Comparemos então o seu silêncio com a calma superficial de um mar profundo e inescrutável, mas não à de um homem sem nada para dizer, vazio e boçal. Porém muitas vezes ocorre que um homem vazio e nulo consegue criar, pela manifestação imperceptível de referências vagas a certas idéias, uma reputação de sabedoria profunda e interioridade, chegando-se mesmo a lhe atribuir uma riqueza espiritual inesgotável quando, na realidade, existe apenas uma fachada exterior, e por dentro o vazio. Pelo contrário, o conteúdo e a profundidade infinitas das almas que chamamos silenciosas (e isso exige do artista grande genialidade e talento na realização) revelam-se por manifestações que, isoladas, dispersas, ingênuas, involuntariamente significativas, na intenção de ser apenas compreendidas pelos outros, mostram que uma alma dessa qualidade possui uma sensibilidade profunda para o aspecto substancial das circunstâncias a seu redor, porém não permite que sua reflexão se perca no labirinto dos interesses e considerações particulares e dos limitados fins dos quais se afasta e ignora, não se distraindo pelos movimentos comuns do coração, suas simpatias e antipatias banais.
Entretanto mesmo para uma alma assim integrada, assim recolhida em si mesma, deverá chegar o momento de se entreabrir para o exterior, para certo ponto determinado, momento no qual porá toda sua força inata em um sentimento de importância decisiva para sua vida, a que se liga com vigor inusitado, desta maneira atingindo felicidade ou desgraça. Em outros termos, esta alma vence ou é derrotada, uma vez que, para se manter, o homem deve possuir uma substância moral rica, a qual, só ela, pode lhe atribuir segurança objetiva. A esta categoria de caracteres pertencem as criações mais deliciosas da arte romântica, em especial as criadas por Shakespeare com beleza perfeita, como Julieta, namorada de Romeu. Os artistas modernos em geral representam Julieta como uma criatura cheia de vida, sensibilidade, entusiasmo, nobreza, enfim, como um ser perfeito. Entretanto ela pode ser concebida de maneira diferente: como uma jovem entre quatorze e quinze anos, muito simples, quase uma criança, que ainda não se conhece nem ao mundo circundante, sem emoções nem desejos, que nada ambiciona e olha o que a rodeia qual foram imagens projetadas por uma lanterna mágica, sem extrair delas qualquer lição, nem mesmo pensando em refletir sobre essas imagens, enfim vivendo em perfeita ignorância. Vemos de repente esta alma sofrer e desabrochar, mostrar-se capaz de esperteza e reflexão, de todos os sacrifícios e sofrimentos. Poderíamos considerá-la uma rosa que abriu todas as pétalas de uma só vez, uma fonte interior e oculta da qual se projeta de súbito o conteúdo que até então estivera sem características, e tudo isso movido por um interesse único, uma só paixão: a de se escapar da prisão espiritual em que estivera encerrada até então. Também diríamos ser tudo um incêndio ateado por um só fagulha, ou o botão que logo desabrocha assim que tocado pelo Amor, e mais depressa floresce para mais rápido murchar.
Tudo é ainda mais verdadeiro para Miranda, em A Tempestade. Ela é educada na solidão, e Shakespeare a mostra em seus primeiros encontros com homens, e apesar de apresentá-la em duas cenas breves, nos oferece dela rápido uma concepção completa, infinita. Podemos incluir também nesta categoria a Thecla de Schiller, embora sendo já produto de poesia refletida. Embora levando uma existência luxuosa, ela não se submete à vaidade nem se entrega à reflexão, continuando sujeita a um único interesse de maneira ingênua, e só por ele e para ele vive. Principalmente ela é uma daquelas nobres e belas naturezas femininas, para as quais o Amor constitui um segundo nascimento espiritual, uma iniciação no mundo e revelação da própria interioridade.
Encontra-se a mesma interioridade, incapaz de se explicar e exteriorizar por completo, nos cantos populares, em especial nos alemães, cantos de uma alma rica mas fechada em si mesma, que só por sugestões e alusões isoladas consegue exprimir sua riqueza e profundidade. Em épocas de civilização avançada, quando a consciência desperta e refletida mostra-se pouco compatível com a ingenuidade das épocas mais primitivas, as produções desse tipo são muito difíceis de concretizar, e só os artistas com um dom poético original o conseguem. Já vimos antes com que sabedoria Göethe conseguiu exprimir de modo simbólico, nos seus Lieder, toda a fidelidade e infinitude da alma, por meio de traços simples, exteriores e indiferentes na aparência. É suficiente citar a balada de O Rei de Tule, uma das mais belas criações poéticas de Göethe: o rei só usa a taça que sua bem-amada lhe tinha ofertado como expressão do Amor. À hora da morte, ele reparte seu império e tesouros entre os cavaleiros que o cercam, mas atira a taça ao mar, para que nenhum outro a possua depois dele: "Ele a viu boiar, encher-se e afundar no mar profundo. Seus olhos fecharam-se, e nunca mais ele bebeu uma gota sequer".
Uma alma tão profunda e silenciosa contém a energia do espírito em estado latente, como o sílex contém a faísca que salta dele. Incapaz de refletir sobre ela mesma, sem ter sido ainda submetida à experiência, ignorando a si mesma e as suas possíveis reações, nem sempre o encontro com a realidade serve para despertar nela um sentimento de liberdade. Ela fica vulnerável a assustadoras contradições, quando a desgraça dissonante invade sua vida, não tem pontos de apoio e carece "saber viver", desconhece como estabelecer o acordo entre seu coração e a realidade, para se defender dos seus ataques e se adaptar resguardando tudo. Quando se envolve em um conflito, este indivíduo só consegue solucioná-lo por meios violentos, impulsivos e irrefletidos, ou por uma passiva resignação. Hamlet possui, por exemplo, uma bela e nobre alma. O que faz sua inferioridade não é uma fraqueza interior mas a ausência de um sentimento vital e vigoroso, capaz de contrabalançar a melancolia e a tristeza que o dominam. Ele tem uma sensibilidade refinada; sem motivos para temer nada, embora tudo lhe pareça suspeito, ele é tomado pelo pressentimento de que se realizou um crime monstruoso. O espírito de seu pai lhe revela os detalhes do que suspeitava. Logo ele está pronto para a vingança, mas só interiormente. Ele nunca perde de vista o lhe mostra o coração, mas em vez de se deixar arrastar pela paixão como Macbeth, em vez de matar, expandir sua cólera, indo como Laertes direto ao fim, mantém a inércia de uma alma nobre encerrada em si mesma, que não consegue se exteriorizar, incapaz medir forças com as circunstâncias exteriores. Hamlet espera: para ficar em paz com sua própria consciência, procura uma certeza e, em vez de tomar uma decisão, deixa-se guiar pelas circunstâncias. Nesta alienação da realidade, ele se engana mesmo perante a evidência e mata Polonius em lugar de matar o rei. Age impulsivamente quando deveria agir com reflexão; quando as circunstâncias exigem a sua intervenção fica encerrado em si mesmo e permite que os eventos e acasos resolvam sem sua presença e decidam por ele sobre seu próprio destino e o dos seus amigos.
Nos dias atuais, estas ocorrências são muito freqüentes. São situações de indivíduos que saíram das classes inferiores e que, sem ter cultura suficiente para conceber objetivos gerais, para ter alvos diversificados e sem alcançar um fim determinado, ficam ao desamparo e não têm onde aplicar sua atividade. Esta carência de cultura leva as almas fechadas a se agarrar com tanto mais força quanto mais inferior for sua cultura, ao objetivo que subjuga o destino de sua individualidade, por mais insignificante que seja. Esta monotonia dos homens silenciosos, fechados em si mesmos, é uma característica alemã na essência, tornando os que a possuem em sujeitos teimosos, antisociais, inacessíveis, contraditórios no que dizem ou fazem. Vamos aqui citar Hippel, como um dos que souberam representar com talento especial esses homens de alma silenciosa. Hippel é autor de uma das raras obras originais de humor que surgiram em língua alemã. Ela se chama Caminhos em Linha Ascendente. Esse escritor se afasta do absurdo sentimentalismo das situações, característica das obras de Jean Paul. Pelo contrário, ele se afirma como notável personalidade, cheia de viço e de vida. O que ele sabe pintar de modo lúcido em especial são os caracteres deprimidos, que não conseguem se arejar e quando resolvem se exteriorizar, fazem-no com violência quase sempre terrível. Eles resolvem a contradição sem fim que existe entre sua interioridade e as infelizes circunstâncias em que vivem, de modo terrível e numa seqüências de ações que, em condições diferentes, resultam do acaso ou de uma sorte imprevista, como no caso de Romeu e Julieta por exemplo, onde os acasos exteriores frustraram a esperta armação do monge, levando os amantes à morte.
1c. O Interesse Substancial desses Caracteres Formais
Assim interessam-nos os caracteres formais: por um lado, por sua força de vontade infinita, inerente à subjetividade particular que se afirma como ela é, impelida apenas por si mesma; por outro lado, por serem indivíduos cuja alma é total e ilimitada em si, a qual, tocada em algum ponto, concentra nele toda a extensão e profundidade individual mas que, não tendo suficiente experiência do mundo exterior, vê-se desamparada e incapaz de tomar uma decisão refletida, havendo conflito. O interesse que nos despertam esses caracteres também se revela sob outro ponto de vista, que não é puramente formal, mas substancial, no sentido de que eles podem nos mostrar, em caso de se perderem, se os limites da subjetividade não resulta da sorte ou do destino, se a unilateralidade que os força a limitar sua atuação a objetivos determinados, excluindo todos os outros, não se deve a estar seu particularismo, que se quer exteriorizar, dominado por interioridade mais profunda. Em Shakespeare existem personagens que possuem essa profundidade e riqueza espiritual. São homens de espírito genial e força de imaginação excepcional, que têm capacidade para se elevar, por via de reflexões, acima de sua condição e dos fins determinados que ela implica, de modo que só em conseqüência de circunstâncias infelizes ou querelas em que se envolvem por causa de sua condição, eles são obrigados a fazer o que fazem, e são coisas que eles não fariam em circunstâncias normais. Não queremos dizer que os crimes de Macbeth, por exemplo, devem ser atribuídos a bruxas malignas; as bruxas são apenas a metáfora poética daquela vontade rígida e sem escrúpulos que possui Macbeth.
Tudo que fazem as personagens de Shakespeare, todos os seus fins particulares, têm origem apenas nelas mesmas. Entretanto existe nestas individualidades um elemento de grandeza que as eleva sobre o que elas são em realidade, acima de seus objetivos, interesses e atos na vida corrente. Os caracteres vulgares de Shakespeare, Stéfano, Trinculo, Pistol e o rei da vulgaridade, Falstaff, não escapam decerto à vulgaridade, mas se revelam ao mesmo tempo indivíduos que possuem notável inteligência, sendo capazes de compreender tudo e possuir o que é necessário para levar uma existência livre e para ser até grandes homens em outras circunstâncias. Os heróis da tragédia francesa, pelo contrário, mesmo até os maiores e melhores, são muitas vezes orgulhosos e perversos, procurando justificar suas ações com toda espécie de sofismas. Não há justificativas nem sentenças em Shakespeare; é tudo guiado pelo destino, acontece tudo necessariamente. Sem queixas nem lamentações, os indivíduos assistem ao desenrolar dos acontecimentos exteriores, bem como aos de suas próprias vidas, que lhes parecem também exterior. Eles se inclinam perante o destino.
2. O Lado da 'Aventura'
Após havermos descrito as modalidades em que se apresenta a independência do caráter individual, vista do interior, lancemos um olhar para suas relações com o exterior, para as particularidades das circunstâncias e situações estimulantes do caráter, para os conflitos em que ele se encontra envolvido, e para o maneira da interioridade se comportar no coração da realidade concreta, de modo geral.
Uma das determinações fundamentais da arte romântica consiste, como vimos, no fato de a espiritualidade, a alma voltada para si mesma, formar um todo que basta a si mesmo, apesar de se encontrar separada por completo da realidade exterior que, sem ser penetrada por ela, leva existência independente, composta por sucessões, complicações, mudanças infinitas e acidentais. Portanto ela é indiferente por completo às circunstâncias que lhe aparecem, porque todas são igualmente acidentais. Importa para ela menos criar uma obra sólida e duradoura do que se afirmar de um modo genérico, agir por agir.
2a. O Caráter Acidental dos Objetivos e Conflitos
Nos encontramos face a um objeto análogo ao que uma vez denominamos desdivinização da natureza. O espírito se retirou do mundo exterior para voltar a si mesmo, mas sem a interioridade subjetiva para animá-lo, o mundo exterior continua a seguir seu caminho sem se preocupar com a subjetividade. Visto sob o ponto de vista da verdade, o espírito surge conciliado, mediatizado com o Absoluto; porém como este é o campo da subjetividade autônoma, que desconhece outro ponto de partida além dela mesma, perseverando no que é e tal como é, a desdivinização que mencionamos atinge igualmente o indivíduo agente, que se vê assim colocado, com suas finalidades acidentais, em um mundo feito de acasos e acidentes com o qual não é possível unir-se para formar um todo coerente. Tal relatividade dos fins em ambiente relativo, esta relatividade cujas determinações e complicações não dependem do sujeito e que, tendo origem exterior e acidental, cede lugar a conflitos também acidentais, complicados, ramificados e entrelaçados de maneira extravagante; dizíamos, esta relatividade constitui o lado de "aventura", característica principal das formas, ocorrências e atos qualificados como românticos.
Do ponto de vista do ideal clássico, no rigoroso sentido da palavra, toda ação e todo acontecimento visam a determinado fim, verdadeiro e necessário em si, cujo conteúdo vai determinar a forma exterior e também a maneira de concretizá-los no real. Este não é o caso das ações e ocorrências tratadas pela arte romântica. Embora sejam os seus objetivos de representação de natureza geral e substancial, eles não são os que dirigem a ação, regulam a ordem e a seqüência de suas fases, mas permitem que evolua em todos os aspectos livremente, ao sabor do acaso e dos acidentes da realidade exterior.
Apenas uma única obra absoluta o mundo romântico deveu realizar: a difusão do cristianismo, o despertar do espírito comunitário. No coração de um mundo hostil, formado pela Antigüidade em decadência por um lado, por outro caracterizado pela barbárie e por consciências grosseiras, esta obra, quando passa da doutrina à ação, só pode ser uma obra passiva de aceitação dos sofrimentos e martírios, de sacrifício da vida temporal de cada pessoa para a salvação eterna da alma. Seguiu-se a esta obra, durante a Idade Média, a da cavalaria cristã, a expulsão dos mouros, árabes e maometanos em geral; depois, pela ação magna das cruzadas para a conquista dos locais santos. Este não foi um objetivo humano, no sentido amplo e próprio da palavra, isto é, um propósito de importância humana em essência, mas um fim que só podia ser realizado pela reunião de indivíduos isolados, que não demorou para atrair adesões individuais de todos os lados.
As cruzadas, vistas dessa maneira, podem ser conhecidas como a aventura cristã coletiva da Idade Média, aventura coerente e fantástica, de natureza espiritual se assim as quisermos designar, mas sem um fim espiritual de verdade e que se enganou em seus atos e caracteres. É que, no aspecto religioso puro, o propósito das cruzadas era exterior, vazio de conteúdo. A cristandade só pode buscar salvação no espírito, só no Cristo ressuscitado que está à direita de Deus e que possui realidade viva no espírito apenas, não em seu túmulo, que está nos lugares sensíveis onde temporalmente habitou em outros tempos. O fervor religioso da Idade Média só tinha por objeto o local exterior da Paixão, a situação exterior do Santo Sepulcro. O fim puramente mundano da conquista era não menos contrário ao objetivo religioso, da aquisição que, em seu aspecto exterior, parecia ser algo religioso. Assim, visando aquisições espirituais e interiores, procurava-se conquistar os lugares exteriores abandonados pelo espírito, e ganhos temporais justificando fins profanos com razões religiosas. Constitui toda a incoerência e o absurdo das cruzadas o fato de as relações entre exterior e interior estarem invertidas por completo, em lugar de serem concebidas em união harmoniosa. por isto exterior e interior encontram-se na execução sobrepostos mas não conciliados. A piedade se degenerou em brutalidade e num barbarismo terrível, e esta mesma brutalidade, de origem no egoísmo do homem e nas suas paixões violentas, resulta, em certo momento, numa ternura profunda e na contrição espiritual que na verdade constituíam o único objetivo ao qual deveriam os cristãos cingir-se. Pela oposição entre todos esses elementos, às ações e eventos, referidos a um único fim, faltava a unidade de um comando conseqüente e lógico, porque os cruzados estavam fragmentados e decompostos em aventuras, vitórias, derrotas, numa teia imensa de acidentes pitorescos; e o resultado obtido não correspondeu, por isso, aos meios postos em atividade e à importância da preparação. Podemos até dizer que o objetivo foi frustrado pelo modo como se pretendia alcançá-lo. As cruzadas ilustraram, mais uma vez, a importância das palavras: "Não permitirás que ele descanse no túmulo. Não sofrerás a decomposição do teu santo. Entretanto o fervor com que se meteram a procurar Cristo vivo naqueles lugares e mesmo no túmulo, para satisfação do espírito, revela, diga o que disser o Senhor Chateaubriand, uma aberração do espírito, de que a cristandade deveria mais tarde ressuscitar para voltar à vida plena e sadia da realidade concreta.
A demanda do Santo Graal constitui propósito análogo, parte místico, parte fantástico, mas sempre aventuroso na tentativa de realização.
O propósito que o homem é chamado a realizar dentro de si mesmo é mais elevado, é um fim vital de que seu destino eterno depende. Esse é o tema que Dante abordou em A Divina Comédia, sob o ponto de vista da concepção católica, nos guiando através do inferno, purgatório e paraíso. Apesar da rigorosa organização do conjunto, essa obra é rica em quadros fantásticos e aventuras de todo gênero. Obra de santificação e condenação, ela realiza o fim proposto não de maneira genérica, mas com um número incalculável de individualidades que faz desfilar perante nós com todas as suas particularidades, e o poeta apodera-se dos direitos eclesiásticos, dispondo das chaves do reino dos céus, absolvendo, condenando. Assim ele se agiganta em juiz supremo do mundo e arroja a prerrogativa de enviar para o inferno ou o paraíso os sujeitos mais conhecidos do mundo antigo e do mundo cristão, poetas, burgueses, guerreiros, cardeais e bispos.
No domínio profano, os outros assuntos, ricos em ações e ocorrências, as aventuras variadas ao infinito, os acasos interiores e exteriores com referência ao Amor, à Honra e Lealdade. São assuntos que levam os homens a duelarem para conquistar a glória, salvar a inocente perseguida, realizar façanhas as mais extraordinárias em honra de uma dama, ou defender o direito ultrajado, com a força do braço ou pelo valor das armas, mesmo quando em face de uma quadrilha de ladrões. A maioria destes assuntos não envolvem qualquer situação ou conflito em que a ação se desenvolva com necessidade; é a alma procurando expandir seu conteúdo, e só consegue fazê-lo nas aventuras. Assim, por exemplo, as manifestações exteriores do Amor, sob o ponto de vista do seu conteúdo específico, não possuem outro propósito que não o de exprimir a firmeza, fidelidade, permanência do Amor. Tratando-se de fornecer provas de amor, e tudo sendo colocado na dependência de tais provas, as ações que se referem à manifestação do Amor não são determinadas por elas mesmas, dependem da disposição do momento, dos caprichos da dama, dos acidentes exteriores. O que é verdade para o Amor, também é verdade para a Honra e a coragem. Ambas são inerentes a indivíduos sem conteúdo espiritual, sempre dispostos a se identificar com não importa qual conteúdo que encontra por acaso, dando-lhes a ocasião de sentir esse encontro como ultraje, ou encorajamento para mostrar sua valentia. Uma vez que a escolha do conteúdo não obedece a nenhum critério, não há conceito que permita julgar o que é lesivo à Honra ou digno de apelar para a coragem. Acontece o mesmo com a defesa do direito, que é também um dos propósitos da cavalaria. Justiça e direito não são considerados um estado ou um propósito firmes e estáveis, de acordo com a lei e seu necessário conteúdo, mas como concepções submetidas às mudanças do humor subjetivo, embora interferir ou não fazê-lo, em defesa do direito, bem como os juízos que devem ser considerados justos ou injustos em cada caso, dependem por inteiro do arbítrio individual.
2b. O Lado Cômico das Situações cuja Única Determinação é o Acaso
O que caracteriza desta forma, em especial no âmbito profano, a cavalaria e o formalismo dos quais vimos falando, é a natureza acidental das circunstâncias em que a ação se desenrola como da vontade subjetiva. As individualidades que possuem caráter particular podem adotar qualquer conteúdo acidental e concretizá-lo empregando a energia e à custa de conflitos originados no exterior, caso não pereçam neles. É o que acontece com a cavalaria, que na Honra, no Amor e na fidelidade encontrou uma justificação de sentido mais elevado, quase moral. Reagindo em circunstâncias isoladas, ela mesma assume de verdade um caráter acidental, porque em vez de tentar a realização de uma obra geral, ela se limita à busca de objetivos particulares e suas relações entre si, e por isso estes fins assumem caráter arbitrário, ilusório, aventureiro. Levada às suas últimas conseqüências, esta corrida às aventuras, esta procura de fins quiméricos, que só existem na imaginação subjetiva e não possuem relação com o real, logo se manifesta em ações e cria situações nas quais predomina o elemento cômico. Assistimos portanto à dissolução da cavalaria. Esta dissolução aparece com nitidez nas obras de Ariosto e de Cervantes, enquanto Shakespeare evidencia principalmente o lado cômico dos caracteres fechados em seus exotismos, dominados por completo pela sua singularidade individual. O mais divertido em Ariosto são as as complicações infinitas dos destinos e objetivos, as combinações inverossímeis de circunstâncias fantásticas e situações observadas, às quais o poeta dá um tratamento lúcido e com ligeireza de aventura. Suas personagens levam a sério todas as loucuras e extravagâncias. Em especial o Amor, baixando das alturas celestiais em que Dante o colocara, despindo-se da ternura imensa que Petrarca lhe concedeu, muitas vezes degenera em pornografias e impele a conflitos ridículos; o heroísmo e a coragem, por seu lado, são levados a tal extremo que provocam não a admiração das coisas inverossímeis, mas o sorriso com que recebemos as narrações impossíveis. Descrevendo situações produzidas ninguém sabe como ou por quê, dissociando e causando brigas, que são interrompidas e voltam a ocorrer, para novamente se confundir até sumir tudo inesperadamente, Ariosto sabe mostrar, ao mesmo tempo, o que existe de cômico e exótico na cavalaria, e tudo que havia de grande, a coragem, a audácia, o Amor e o sentimento da Honra, mas sem ignorar o reverso da medalha, que é a astúcia, é a manha, a presença de espírito em situações patéticas na aparência, etc.
Enquanto Ariosto insiste no principalmente fabuloso das aventuras cavalheirescas, Cervantes se apóia mais em seu aspecto romanesco. Dom Quixote é dotado de uma natureza nobre que o espírito da cavalaria leva à loucura assim que, em sua busca de aventuras, esbarra nas condições firmes e imutáveis da realidade exterior. Daí resulta a oposição cômica entre um mundo organizado pela razão e pela lógica imanente, e uma alma isolada por outro lado, que pretende recriar esse mundo que é fatal para a cavalaria, por via da obediência aos princípios e regras da cavalaria, os quais quer impor, acaba se perdendo. Mas a despeito dessa aberração cômica, no Dom Quixote encontramos tudo que se admirou antes em Shakespeare. Cervantes soube também apresentar seu herói com uma natureza nobre, plena de dons espirituais e que nos desperta um interesse verdadeiro. Apesar do caráter quimérico de sua causa, Dom Quixote está seguro de si, ou melhor, a aberração consiste justo no fato dele estar e continuar seguro de sua causa. Sem esta serenidade infinita, que o impele a conformar-se ao conteúdo e às conseqüências de suas façanhas, Dom Quixote não seria um romântico verdadeiro, e a confiança que deposita na verdade substancial de sua maneira de pensar é complementada por caracteres de grande beleza que alcançam a genialidade. Enquanto Cervantes procura ironizar a cavalaria romântica, Ariosto mergulha em gozações fáceis; entretanto as aventuras de Dom Quixote constituem o núcleo de um admirável conjunto de novelas românticas que se destinam a mostrar o valor verdadeiro de tudo que, nas outras partes do romance, é apresentado de modo cômico.
Da mesma forma que a cavalaria degrada-se facilmente no cômico, mesmo na realização de seus interesses mais importantes, também Shakespeare utiliza um processo duplo que consiste ora em apresentar cenas e figuras cômicas, junto aos caracteres individuais plenos de firmeza e de situações trágicas de verdade, ora em atenuar a firmeza dos caracteres lhes conferindo juízos humorísticos que pretendem alcançar. Falstaff, o bobo de O Rei Lear, a cena dos músicos em Romeu e Julieta, são exemplos do primeiro modo, e Ricardo III é exemplo do segundo.
2c. O Romancesco
O romancesco, no sentido moderno da palavra, finalmente se liga a esta dissolução do romântico que acabamos de descrever; o romanesco começa nos primórdios da cavaria e nos romances pastorais. Ora, este romanesco é a cavalaria porém levada a sério, como um conteúdo real. A vida exterior, até então submetida aos caprichos e adversidades do acaso, transformou-se numa ordem segura e estável, a da sociedade burguesa e do Estado, de modo que são agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo que substituíram os fins imaginários que os cavaleiros se colocavam.
Por este motivo, a cavalaria dos heróis dos romances modernos sofrem também profunda transformação. Agora se trata de indivíduos que, com seu amor, sua honra, suas ambições e aspirações por um mundo melhor, contestam a ordem existente e a prosaica realidade que em todos os seus domínios se levanta como obstáculo. Impacientes perante esses obstáculos, eles exageram seus desejos e exigências subjetivas, e cada um deles vive em um mundo encantado que o oprime e que ele julga ser seu dever combater, pois resiste a seus sentimentos e paixões e lhe impõe uma conduta e um modo de viver determinado pela vontade de um pai, uma tia, ou pelas condições e convenções da sociedade. Estes novos cavaleiros são recrutados entre os jovens principalmente, que são obrigados a viver em um mundo que julgam ser incompatível com seus ideais, considerando uma desgraça a existência da família, da sociedade, do Estado, das leis, das profissões, etc; segundo eles, isso tudo é uma ameaça perene aos direitos do coração. Portanto se trata de abrir uma brecha nesta ordem de coisas, e transformar o mundo, aprimorar ou pelo menos construir na terra um pedaço do céu, buscar e achar a mulher que será como deve ser, tirá-la do ambiente negativo que a circunda, de sua família e da vulgaridade em que vive, para lhe oferecer uma existência digna, adequada ao ideal representado por ela. No mundo moderno estes sonhos e lutas são próprios do que denominamos "anos de aprendizagem", e seu único interesse está no valor educativo que significam para o indivíduo, pondo-o em contato com a realidade existente e enriquecendo-o com experiências práticas. Tais anos de aprendizagem incrementam portanto a sabedoria do sujeito, que termina por compreender que sua combatividade, seu espírito agressivo a nada levam de útil e que é mesmo mais adequado ajustar seus desejos e sua maneira de pensar às condições da vida real, integrar-se nela para adquirir apoio firme, um ponto de partida racional para as experiências que virão a seguir. Quaisquer que tenham sido suas discordâncias com o mundo, por mais áspera que tenha sido a luta em que se empenhou, ele acaba casando com a mulher que mais lhe convém, e segue uma carreira profissional, torna-se um filisteu igual aos outros. A mulher toma a seu encargo a direção da casa, e nascem os filhos, e a mulher, antes adorada como um ser único, comporta-se como todas as outras mulheres, o emprego torna o trabalho obrigatório, causa aborrecimentos, o casamento se transforma em calvário doméstico; enfim, é o despertar após a embriaguez da juventude. Aqui também observamos caracteres inclinados à aventura, com a diferença de que terminam achando o bom caminho, destruindo na vida real o que tinham de fantástico.
3. A Dissolução da Arte Romântica
Resta-nos demonstrar agora como a arte romântica, que constitui em si o princípio de dissolução da arte clássica, realiza na prática esta dissolução.
Antes de tudo, o que importa considerar aé o caráter acidental e exterior por completo, dos assuntos apropriados pela atividade artística e o modo como ela os trata. Nas obras plásticas da arte clássica, o relacionamento entre a subjetividade interior e o exterior são tais que o externo representa a própria forma interior, não tendo assim qualquer independência. Por outro lado, na arte romântica, onde a interioridade vem debruçada sobre ela mesma, o conteúdo total do mundo externo possui liberdade de movimentos e pode manter sua particularidade singular. Inversamente, quando a interioridade constitui o momento essencial da representação, o problema de saber qual é exatamente o conteúdo da realidade exterior e do mundo espiritual que a alma poderá manifestar não tem nenhuma importância. A interioridade romântica pode se manifestar em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis, acomodar-se a não importa que estados e situações, cometer muitos erros e mergulhar em complicações infinitas, causas toda espécie de conflitos, pois o que ela sempre busca não é um conteúdo objetivo e válido em si, mas sua própria imagem, seja qual for o espelho que a reflete. Por isso, tudo tem seu lugar na representação romântica, grande ou pequeno, importante ou sem significação, moral e imoral, e quanto mais a arte se torna secular, mais se prende ao que existe definito no mundo, maior valor lhe confere, e o artista se identifica com as coisas na medida em que as representa e do modo como as representa. Em Shakespeare, que representa os atos em suas relações finitas, as personagens se dispersam em atos isolados e os mais importantes e nobres interesses arrojam o mesmo valor que têm os menores e secundários. Sentinelas e cortesãos aparecem no mesmo plano em Hamlet; no Romeu e Julieta vemos a vida doméstica junto ao amor dos namorados; em outras peças atuam bobos e mendigos, aborda-se todo gênero de vulgaridades cotidianas, aparecem tabernas, carroceiros, em analogia com o âmbito religioso da arte romântica, em que o nascimento de Cristo e a adoração dos reis magos nunca se separa de um boi, um burro, um estábulo coberto de sapê. Poderíamos citar uma enorme variedade de exemplos deste enobrecimento que a arte confere às coisas mais baixas e vulgares.
É no coração desta acidental condição dos objetos que em parte servem para ambientar um conteúdo que possui certa importância e que, por outro lado, são representados por eles mesmos; dizíamos, é no coração desta condição acidental que ocorre a decomposição da arte romântica. A realidade, por um lado, se apresenta naquilo que constitui, do ponto de vista do ideal, sua objetividade prosaica, e o conteúdo do cotidiano se dá não no que ele tem de substancial, implicando o divino e o moral; mas a realidade aparece como sujeita a toda espécie de variações aqui, e de natureza caduca; por outro lado, é a subjetividade, com seus sentimentos e concepções, com seus direitos e a força do seu espírito, com sua astúcia, quem procura dominar o conjunto da realidade, nada deixando subsistir das relações estabelecidas e dos valores convencionados, e só se sente satisfeita quando tudo o que submete desta maneira acaba por tomar a forma e assumir o lugar que as opiniões, caprichos e a genialidade subjetiva lhe oferecem, e revela-se como dissociável em si e se apresentando nesse aspecto perante a percepção e a sensibilidade. No que virá adiante, teremos que falar, em primeiro lugar, no princípio das numerosas obras de arte que na sua representação do corrente e da realidade exterior se aproximam do que se convencionou chamar imitação da natureza.
Em seguida, vamos abordar o humor subjetivo, cujo lugar na arte moderna é muito importante, constituindo mais particularmente a característica de um grande número de obras poéticas.
Mostraremos em terceiro lugar de que modo e em que medida a arte exerce sua atividade em nosso tempo.